2005

O espetáculo e a mercadoria como signo

por Eugênio Bucci

Resumo

A imensa oferta de imagens que caracteriza a paisagem da cultura contemporânea costuma ser pensada como se fosse um efeito natural e um tanto sujo da era da comunicação generalizada. O excesso de imagens seria, então, um subproduto da exacerbação discursiva ou da proliferação descontrolada de falas múltiplas, e simultâneas, numa “torre de Babel” de visualidades barulhentas, por assim dizer. Para além das análises superficiais, Guy Debord encontra um nexo preciso entre esse aparente paroxismo comunicacional e o modo de produção capitalista. A partir desse nexo, abrem-se perspectivas para a compreensão do gigantesco espetáculo que abraça o planeta. O espetáculo não é um transitar ensandecido de conteúdos saídos de emissoras em busca de receptores, mas o novo estágio das relações sociais. As imagens, antes de mensagens, são mercadorias – mercadorias que revelam a própria face do Capital. O capitalismo se converte num modo de produção de signos – não mais de coisas.

Como negócio, como indústria e como mercado, a representação se converte em fator de exploração do trabalho e de lucro. A representação torna-se processo ingovernável, e isso por uma razão histórica: passa a ser regida pela lógica da economia capitalista (em que tem lugar a anarquia da produção) e não mais pelas intenções que imaginariamente conduziriam a comunicação social. É como modo de produção que o espetáculo pode ser compreendido. É como imagem que o capital se manifesta.


PRIMEIRA PARTE[1]

O capitalismo atual tem sua mercadoria antes na imagem da coisa do que na coisa corpórea. É como imagem que a mercadoria circula. É sua imagem que precipita seu consumo — é sua imagem que inicia, e que embala, a realização de seu valor.

Não se trata de uma ideia de fácil aceitação. Pensamos normalmente na mercadoria como coisa: uma garrafa de água mineral, um microfone, um par de sapatos, um automóvel. Pois essas coisas, hoje, nada mais são do que o suporte aparente da imagem da mercadoria, esta, sim, a que concentra valor, a que materializa valor. Esse talvez seja um dos aspectos centrais do que temos chamado de espetáculo — conceito que eu gostaria de aprofundar um pouco mais, logo adiante qual seja, o de transformar a mercadoria na imagem de si mesma, a um ponto em que a fabricação da imagem da mercadoria sobrepõe-se e mesmo determina a fabricação da mercadoria como coisa corpórea. Esse pode ser entendido como o mote inicial desta minha conferência.

Antes de tudo, seria pertinente uma breve recapitulação do conceito de mercadoria e de seu valor. Parecerá uma recapitulação de almanaque, mas não vejo muito como evitá-la, pois o conceito de mercadoria, tal como ele se firmou na tradição marxista, parece não ter se preparado para essa transformação da mercadoria em imagem. No Livro Primeiro de O capital, Capítulo I, Karl Marx trata da mercadoria: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual, pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa”.[2]

A noção de Marx, aí, é marcadamente corpórea — a mercadoria é uma coisa. O propósito de Marx, mesmo admitindo a “necessidade que se origina da fantasia”, é afastar dos contornos de seu objeto qualquer definição idealista do bem. Sobre essa base concreta é que vai se assentar o primeiro valor da mercadoria: o valor de uso. Ao falar dele, Marx, de novo, insiste na concretude:

A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem o mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante, etc., é, portanto, um valor de uso ou um bem.[3]

Na visão de Marx, o aspecto físico da mercadoria e seu valor de uso praticamente não se dissociam, mesmo que ele fale mais alto à fantasia. Para que não pairem dúvidas, Marx prossegue: “Se abstraímos [da mercadoria] o seu valor de uso, abstraímos também os componentes que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram”.[4]

Quanto ao valor de troca, ou simplesmente o valor, este se impregna à mercadoria — tornando-a mercadoria — à medida que trabalho humano é alienado ao trabalhador. Não se trata de um tipo específico de trabalho, mas do trabalho socialmente necessário, uma categoria abstrata. “Um valor de uso ou bem”, diz Marx, “possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato.”[5]

O valor de uso, portanto, não funda a relação social. É o valor de troca — a medida segundo a qual as mercadorias tornam-se permutáveis, ou, ainda, o critério que estabelece os possíveis sinais de igualdade entre o trabalho socialmente necessário materializado numa coisa e o trabalho socialmente necessário materializado em outra coisa — que exprime a via necessária e indispensável para que a mercadoria seja posta enquanto tal, um objeto marcado pelo valor abstrato capaz de regular as relações entre os homens. O próprio Marx cuida de observar: “Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso, mas não mercadoria”.[6]

A mercadoria é, sim, um valor de troca (ou não seria mercadoria), mas, revestindo o valor de troca, há de haver, segundo Marx, a coisa fabricada e, mais que isso, a coisa útil. Ela precisa, afinal de contas, corresponder a alguma necessidade. Logo, não pode haver mercadoria sem que ela concentre em sua dimensão física, de algum modo, para alguém, alguma possibilidade de uso, seja ela determinada por “necessidades originadas do estômago”, seja por “necessidades originadas da fantasia”.

No campo das mercadorias ordinárias, as mercadorias quaisquer, os termos estritos de O capital estabelecem um limite: mercadorias não-corpóreas são praticamente impensáveis, ou, melhor, as mercadorias cujo valor de uso não decorra de sua dimensão física de coisa fabricada, que seja posto a partir de um outro lugar, alheio à coisa, tornam-se uma formulação impertinente.

Pois bem, acontece que as características não-corpóreas das mercadorias existem. Estão aí. Às vezes são elas mesmas mercadorias, como as marcas (que não se confundem com as patentes, embora delas se possam apropriar), que não são corpóreas e são negociadas como mercadorias, ou as inúmeras significações que se associam às marcas. Uma camisa é menos um pedaço de pano “útil”, e mais um significado que a partir do pedaço de pano escorre sobre o corpo e esse significado tem valor de troca. As mercadorias não-corpóreas estão aí. Embora não tenham seu valor de uso em sua dimensão física, persistem como mercadorias — estritamente como mercadorias tal qual Marx as definiu.

Para entendermos como é que tais transformações se operam, precisamos ter em conta que a mercadoria é um signo. Isso, que era um aspecto marginal ou periférico na noção de mercadoria no final do século XIX, hoje pode ser visto como seu aspecto principal. A mercadoria, toda mercadoria, é um signo.

O signo pode referir-se a um significado corpóreo, mas ele mesmo não é algo físico, corpóreo, no sentido de que um signo falado não se toca com os dedos. Bakhtin afirma que o signo é uma categoria material — ele diz que o signo é o suporte material da ideologia —, mas aí ele fala em “material” não como sinônimo de concreto, corpóreo, físico, mas no sentido de uma categoria passível de ser tratada dentro do campo do materialismo histórico. O signo é um produto material do trabalho humano, por assim dizer. Dito isso, deixemos Bakhtin, mas fiquemos ainda um pouco nas cercanias da linguística.

Tendo a linguística em referência, poderíamos dizer que o valor é o significante da mercadoria. Se importarmos das ciências da linguagem o binômio significante/significado e, a partir dele, pensarmos o mecanismo pelo qual o capitalismo imprime valor à mercadoria, teremos um paralelismo elementar, mas bastante esclarecedor. O valor de troca, valor que se materializa no instante em que é arrancado ao trabalho humano, valor que deixa de pertencer ao trabalhador para inscrever-se na mercadoria, age como o significante sobre o significado (que se expressa no valor de uso da mercadoria). O significante da mercadoria, na analogia que proponho aqui, é o valor que foi alienado do trabalhador: é esse o valor que determina que a mercadoria seja mercadoria independentemente de seu significado, de seu valor de uso (pois a mercadoria só é mercadoria quando adquire valor de troca).

Esse significante guarda uma relação dialética com o trabalhador como sujeito. Este só é sujeito porque a ele falta: a ele foi suprimido o domínio sobre o produto de seu trabalho. O valor do trabalho, ao deslocar-se do sujeito — que só recebe como pagamento o valor da força de trabalho (e não o valor do trabalho) —, impregna-se à coisa fabricada para torná-la mercadoria. Esse valor arrancado ao trabalhador abre uma falta no sujeito (a analogia com a psicanálise, aqui, é proposital): sem ser proprietário do produto de seu trabalho, ele se reduz à condição de detentor de uma força de trabalho, e por aí ele também, sujeito, torna-se mercadoria, determinada também por um valor, que é o valor de troca da força de trabalho.

Assim, o significante da mercadoria é igualmente o avesso do vazio que marca o significante do sujeito, é a manifestação negativa do significante do sujeito, ou do sujeito como significante (o valor-a-menos que abre uma lacuna no sujeito é o valor-a-mais que estabelece na coisa fabricada a condição de mercadoria). O significante do sujeito, sujeito marcado pela falta, é a expressão daquilo que a ele foi arrancado como valor; ao ser força de trabalho, o sujeito encontra-se alijado do que produz, e foi, portanto, alijado de seu significado como produtor.

O capital constitui o trabalhador como sujeito quando dele retira o valor do trabalho, quando o institui como aquele a quem falta. O sujeito como significante, nos termos de O capital, é aquele que detém a força de trabalho, um valor que só se realiza à medida que se troca por outra mercadoria. A mercadoria é um valor de troca que só se realiza quando a troca se faz (por mercadoria, por dinheiro, para acionar o ciclo de reprodução do capital). Assim, a mercadoria desliza no mercado como sujeito — e o sujeito, como mercadoria. Eles se igualam em seus significantes que se espelham negativamente.

O sujeito é uma mercadoria para outra mercadoria. Mas o que o sujeito (que não se sabe mercadoria, nem pode saber-se como tal) imagina buscar na mercadoria não é propriamente o significante que lhe foi arrancado, mas o significado dela, seu valor de uso. Que será pura “fantasia”, acima de tudo, “fantasia”, se aqui empregarmos os mesmos termos que Marx empregou.

Esse valor de uso lhe aparece como o significado de si mesmo (aí é que a mercadoria preenche uma “necessidade originada da fantasia”, que poderíamos hoje chamar, grosseiramente, de desejo). Por meio da mercadoria, ele, sujeito faltante, completa-se imaginariamente: o consumo da mercadoria tem sua raiz no desejo inconsciente. E, atenção, é na mediação dessa busca que incide o valor.

Por isso é correto afirmar que o capital comparece na mediação entre os sujeitos, ou, se preferirmos, na mediação entre as mercadorias. As relações humanas no capitalismo são necessariamente relações sociais, e relações sociais são necessariamente estabelecidas segundo a mediação do capital. Por sobre as relações sociais, mediadas pelo capital, dá-se uma relação imaginária entre o sujeito (significante inconsciente) e a completude que ele espera obter pelo valor de uso (significado) da mercadoria. Daí que a dimensão de fantasia, relação imaginária, estará sempre presente na relação do sujeito com a mercadoria. Ela obrigatoriamente preenche uma função imaginária, por mais concreto e objetivo que seja seu uso. Do mesmo modo, ela sempre terá um valor de troca, por mais imaterial e difuso que seja o seu uso objetivo. A necessidade objetiva, a ser satisfeita pelo valor de uso, não mais se dissocia do desejo, nunca mais.

Como eu já observei, no capitalismo do século XIX, campo de observação de Marx, o reino da fantasia era apenas um fragmento exíguo, um fator que apenas virtualmente se pressupunha na definição de valor de uso: ele estava lá, mas, digamos, apenas pressuposto, ou nem isso. O capitalismo ainda não estava organizado como está hoje, como puro espetáculo.

A “fantasia”, antes uma mera pressuposição, tornou-se dominante na relação do sujeito com a mercadoria. Hoje atende por outros nomes. Hoje é muito mais complexa.

O que mudou no capitalismo?

A pergunta comporta milhões de respostas, como todos sabemos, mas a resposta que nos interessa de perto começaria da seguinte maneira: o que mudou no capitalismo é que ele se tornou capaz de fabricar industrialmente o imaginário social. Industrialmente mesmo. Eu passo então à segunda parte de minha exposição para tratar disso: a fabricação industrial do imaginário. Aí é que a mercadoria só existe se existir como um signo.

SEGUNDA PARTE

O imaginário é hoje confeccionado industrialmente. Ou melhor, superindustrialmente. O entrelaçamento da relação capitalista de produção com a confecção do imaginário gera o imaginário superindustrial.

Falo do conceito de “capitalismo superindustrial”, desenvolvido por Fernando Haddad. Ele identifica a indústria numa fase sem precedentes de acumulação do capital. Para Haddad, o capitalismo superindustrial é aquele em que acontece “a emergência da superindústria capitalista, entendida como aquela que internaliza o processo de inovação tecnológica, que, finalmente, exponencia o desenvolvimento das forças produtivas numa escala nunca imaginada”.[7]

Nesse capitalismo, o superindustrial, o imaginário ou, se quiserem, o imaginário social converte-se em imaginário superindustrial. O capitalismo transforma-se em representação de si mesmo e materializa, nessa representação, sua própria existência de indústria e de mercado. A novidade histórica não é a representação, que de resto é essencial à ordem do imaginário — e a ordem do imaginário é tão antiga quanto a linguagem. A novidade que isso representa, na verdade, são duas novidades.

A primeira é a capacidade que o capitalismo adquiriu de apropriar-se da representação — potencialmente de qualquer representação que tenha lugar no imaginário — para submetê-la à lógica de negócio e de mercado. Como negócio e mercado, a representação converte-se em fator de lucro. Com isso, a representação imaginária torna-se uma indústria ingovernável: ela passa a ser regida pela lógica da economia capitalista.

Como se sabe, a lei que ordena a produção na economia capitalista é a anarquia da produção, ou seja, a lei que ordena a produção é a lei que a desordena. E essa lei passa a ser também o sentido do imaginário superindustrial. Ele se converte num terreno em que se travam relações de produção: a fabricação dos signos obedece à lógica do modo de produção capitalista, baseada na exploração do trabalho e na criação de mercadorias. O consumo — ou a recepção — desses signos também obedece à lógica do mercado capitalista. Agora, a indústria não fabrica somente coisas palpáveis: dedica-se a produzir os signos que encarnam sua representação.

A superindústria do imaginário nasce marcada pela tendência de revolucionar-se ininterruptamente (tendência que, de resto, é congênita ao capitalismo). O imaginário superindustrial, como a própria economia, entra em contradição com o capital. Se, na economia convencional, essa contradição ocasiona as crises cíclicas e outras mais profundas, no imaginário superindustrial tem lugar a crise permanente: o capital precisa destruir o imaginário que ele mesmo gera de si para reconstruí-lo imediatamente a seguir. No plano do imaginário, a obsessão pelo novo é uma manifestação dessa tendência. A obsessão pela morte e pela destruição é outra dessas manifestações. A moda na velocidade da luz, a fama de quinze minutos, as aparições relâmpagos e a carreira vertiginosa e fugaz de astros e símbolos sexuais são mais manifestações. Esse processo não mais pode ser descrito pelas categorias clássicas da economia política e do materialismo histórico, pois se consuma também na linguagem e nos caminhos inconscientes pelos quais o sujeito se constitui. A economia política perde sua autonomia de campo diante dessas novas fronteiras. O processo só se pode descrever conforme o materialismo histórico seja alimentado pela teoria psicanalítica e pelas ciências da linguagem.

A segunda novidade é que o imaginário superindustrial, disciplinado pela relação capitalista de produção e pelas leis de mercado, não fica apenas no plano do imaginário tal como ele é entendido convencionalmente, isto é, não se reduz a representações nem a imagens cujo local não coincide com o local do mercado. Agora, o imaginário engloba as relações sociais, tem em si as relações sociais, é gerado por elas — e se dirige para dentro do mercado. As relações sociais são, ao mesmo tempo, e de modo indissociável, linguagem e relação de produção. Elas se complexificam: completam-se, para além das relações puramente econômicas, nas relações de representação, mediadas por imagens, que, por sua vez, apropriadas pela lógica do capital, condicionam a forma das relações econômicas. As relações de produção tornam-se relações de produção do imaginário superindustrial: fabricam linguagem. A reprodução do capital já não é apenas um fato econômico, social e histórico, tal como esses termos são entendidos nos marcos tradicionais do materialismo. Ela se dá no imaginário superindustrial — cuja existência é material, e não meramente “ideológica” (a palavra “ideológica” aí entendida em sua velha acepção esquemática, em oposição ao que é “material”) —, e é também nesse sentido que o modo capitalista de produção passa a fabricar superindustrialmente mercadorias que são signos, ou signos que são mercadorias, e assim atinge um patamar até então desconhecido. A reprodução do capital alarga-se, expande-se a ponto de transformar a linguagem num novo mercado — e numa nova fábrica — e, mais que isso, a ponto de tornar a linguagem na era do capitalismo superindustrial o canteiro em que o capital se reproduz. O capital, enfim, vira espetáculo.

O fenômeno foi identificado e mais ou menos descrito, em 1967, por Guy Debord, em A sociedade do espetáculo, um manifesto em forma de 221 teses aforísticas. Debord é o criador do conceito de espetáculo para descrever esse novo patamar do capitalismo. Ele não fala em superindústria nem em imaginário superindustrial (esses conceitos são mais recentes); ele não busca as conexões necessárias entre a constituição do sujeito na linguagem e a expropriação do trabalho, mas a teoria que propõe ajuda a enxergar o modo pelo qual imaginário e relação de produção fundiram-se. “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”, diz Debord. “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.”[8] Note-se que não se fala aqui de qualquer representação. A representação não é apenas representação. A partir de Debord, essa “imensa acumulação de espetáculos” exige que se deixe de conceber o espetáculo isoladamente como simples encenação: a acumulação de espetáculos gera o espetáculo como um corpo novo para um modo de produção que já não cabia em seu velho corpo. O espetáculo é, sim, o show contínuo das imagens, mas, em seu conjunto, compõe um organismo bem maior que a soma das imagens. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”[9]

Aqui é necessário abrir parênteses para uma distinção necessária entre espetáculo e indústria cultural. O conceito de indústria cultural, criado por Adorno e Horkheimer, precisa ser recuperado para um paralelo elementar e rápido. A indústria cultural surge como uma indústria entre outras indústrias: a automobilística, a do petróleo, a dos cosméticos, a farmacêutica, e assim por diante. Nela, o trabalho autoral (do artista) é revogado e substituído pelo trabalho industrial: com a indústria cultural, não é mais o talento do artista que produz a obra de arte; a obra de arte perde lugar para o bem cultural; a obra de arte deixa de ser o que era; o trabalho fungível dos gerentes e empregados da indústria é quem fabrica, de modo alienado, as mercadorias culturais que fazem as vezes de obra de arte. Assim como se fabricam sabonetes, aspirinas, pneus, fabricam-se também canções de rock, filmes, além de galãs de cinemas e “artistas plásticos” que são popstars. O espetáculo é outra coisa, que dessa primeira aflora, sendo-lhe totalmente distinta. É uma outra ordem de mundo, embora já pudesse ser vislumbrada na noção de indústria cultural. O espetáculo não é o prolongamento linear da indústria cultural, nem é sua evolução simples. Não é mais uma indústria entre outras indústrias: é um estágio em que todas as indústrias e todos os mercados convergem para um centro único. A indústria farmacêutica converte-se em espetáculo, pois não tem sobrevida fora da imagem ou, de forma restrita, bem restrita, fora da propaganda. A produção intelectual, acadêmica, converge para o espetáculo e a notoriedade dos intelectuais é dada também por expedientes como sua “presença na mídia”, de um modo tal que essa notoriedade midiática, posta pela imagem, sobrepõe-se aos critérios acadêmicos, sufocando-os. A indústria bélica torna-se espetáculo, pelos filmes de Hollywood, pelas declarações ameaçadoras dos chefes de Estado em horário nobre, pelo terrorismo ao vivo, pelas guerras performáticas em cadeia mundial de tevê. A política, enfim, torna-se espetáculo. O conceito de espetáculo não mais cabe dentro do conceito de indústria cultural, pois o ultrapassa. Fim dos parênteses.

A relação social é engolida pelo espetáculo. Ela não está mais destinada a realizar-se unicamente naquele terreno específico em que se dá a fabricação de mercadorias corpóreas, não está somente na compra, pelo capital, da força de trabalho e na necessária alienação do trabalho; o núcleo da relação social já não se realiza no “chão de fábrica”: a relação social é ao mesmo tempo a relação de produção dura, direta — que arranca ao trabalhador assalariado o produto de seu trabalho e a representação imaginária da produção e do mercado que, em retorno, reordena todo o modo de produção. “Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a atividade social efetiva”, afirma Debord, pois “a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma positiva.”[10]

Debord não se furta a ver que “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.[11] Ele escreve: “O capital já não é o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação o estende até a periferia sob a forma de objetos sensíveis. Toda a extensão da sociedade é o seu retrato”.[12] Ao que eu acrescentaria: os signos que se apresentam corno objetos-mercadorias para promover a completude imaginária do sujeito tornam visível o próprio capital. Mais que isso: monopolizam o campo do visível. Para Debord, “o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo”.[13] E, mais ainda: “O consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral”.[14]

Ele afirma: “O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. […] O espetáculo é o dinheiro que apenas se olha, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totalidade da representação abstrata”.[15]

O espetáculo, exatamente como o capital, é aquele que se basta, o que tem em si a própria origem e seu fim. “O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo”.[16]

Não que o espetáculo seja uma ordenação rígida. Ao contrário, para estar sempre lá, como primeiro, ele sempre muda (a contradição entre o capital e sua representação não escapa à inteligência de A sociedade do espetáculo):

O que o espetáculo oferece como perpétuo é fundado na mudança, e deve mudar com sua base. O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido. Para ele, nada pára; este é seu estado natural e, no entanto, o mais contrário à sua propensão. [17]

Poderíamos dizer, então, apenas de passagem, que o espetáculo é o significante que encadeia outros significantes para logo desordená-los. Ele não é, pois, significado. É o significante que se basta a si mesmo, capaz de significar sozinho, capaz de gerar seu próprio significado. Como o capital.

Vivemos uma profunda alteração da espacialidade e da temporalidade como um efeito videológico da comunicação a partir da instância da imagem ao vivo — alteração que já representa um entrelaçamento entre modo de produção e sua representação, uma vez que é uma resposta à exigência de ubiquidade e instantaneidade posta tanto pelo capital como pela imagem televisiva. Vivemos numa paisagem que elimina as distâncias e numa história que amplifica o gerúndio, presentificando o passado e o futuro. Pois há três décadas Debord divisava efeitos análogos. “A produção capitalista unificou o espaço”, diz ele, “que já não é limitado por sociedades externas.”[18] Também sobre o tempo, as teses de Debord precipitam-se para flagrar uma espécie de suspensão: “O espetáculo, como organização social da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo”.[19] A importância dessa formulação está naquilo que, com acerto, aproxima capital (refeito em espetáculo) e ideologia (embora ainda entendida, precariamente, como “falsa consciência”), fundindo-os na relação social. Ele constata que a ideologia se materializa (e não é mais simplesmente um amontoado de conceitos em oposição à matéria):

A ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da história. Os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem uma real ação deformante.[20]

TERCEIRA PARTE

Há, de minha parte, uma diferença de fundo em relação às teses de Debord. Essa diferença começa pelo conceito de inconsciente e termina com o lugar da democracia. Comecemos pelo inconsciente.

Em Debord, o inconsciente é uma deformação produzida pelo espetáculo, e não a dimensão obrigatória da constituição do sujeito. “O espetáculo é a conservação da inconsciência na mudança prática das condições de existência”, diz ele.[21] O inconsciente continua sendo, em Debord, um estado de letargia, de adormecimento, uma “falta de consciência”. Veja sua referência à ideologia como “falsa consciência”. A ideologia é vista como “deformação” da “realidade”. Não surpreende que, em pelo menos uma passagem, Debord deixe passar uma sutil sugestão de sinonímia entre as noções de “eu” e “sujeito”.[22]

No modelo de revolução continua a diferença que me separa de Debord. É desconcertante, mas, enquanto seu diagnóstico consegue descrever o espetáculo como um modo de produção qualitativamente mais complexo do que o capitalismo do Manifesto comunista, sua teoria de classe é idêntica àquela do panfleto de Marx e Engels.[23] Por isso, Debord não rompe com ideias como as de submissão,[24] alienação, dominação e, sobretudo, de manipulação, como já se verá. Ao contrário, ele as perpetua no espetáculo. O que abre uma precariedade lógica em seu modelo. Ora, se o espetáculo é manipulado, como é que ele pode ser o capital? O capital escapa à manipulação — ou não seria capital. Como é então que o espetáculo, sendo capital, pode ser manipulado como um número de circo? Por lacunas como essas, as propostas pretensamente revolucionárias de Debord são apenas simplórias, quando comparadas à genialidade de seu diagnóstico. Por exemplo:

Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipação de nossa época. Nem o indivíduo isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação podem realizar essa “missão histórica de instaurar a verdade no mundo”, tarefa que cabe, ainda e sempre, à classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática controla a si mesma e vê sua ação. Somente ali os indivíduos estão “diretamente ligados à história universal”; somente ali o diálogo se armou para tornar vitoriosas suas próprias condições.[25]

Aqui, Debord invoca os sovietes, os velhos sovietes operários para superar socialmente a ordem do espetáculo. Há nisso um evidente anacronismo e um claro desprezo pela democracia como mais uma das manifestações “manipuladas” do espetáculo. Embora isso vá soar como apenas uma declaração de princípios contra outra, acho que é o caso de dizer: só a democracia radicalizada será capaz de compreender o espetáculo e de transformá-lo, mesmo sendo a democracia um ambiente sujeito às leis do espetáculo, mesmo estando ela sob o permanente risco de esvaziamento a partir das leis que transformam todas as imagens — até mesmo as da política — em mercadorias. Ou a democracia compreende o espetáculo, ou esse a confinará, mumificando-a sem, no entanto, retirar-lhe os movimentos, privando-a da vida sem privá-la da vivacidade. De todo modo, essa minha confiança (fé?) na democracia não é bem o tema da conferência. E remete a uma discussão em aberto que não poderá ser feita aqui.

Notas

[1] Esta conferência é inteiramente baseada na pesquisa que resultou em minha tese de doutorado, defendida na Escola de Comunicações e Artes, da USP, em 2002, sob o título de Televisão objeto: a crítica e suas questões de método.

[2] Karl Marx, O capital, crítica da economia política, trad. Regis Barbosa & Flávio Kothe (2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985), p. 45 (grifo nosso).

[3] Ibid., p. 46.

[4] Ibid., p. 47.

[5] Ibidem.

[6] Ibid., p. 49.

[7] Fernando Haddad, Em defesa do socialismo, Coleção Zero à Esquerda (São Paulo: Vozes, 1998), p. 28.

[8] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu (Rio de Janeiro: Contraponto,1997), p. 13.

[9] Ibid., p. 14.

[10] Ibid., p. 15.

[11] Ibid., p. 25 (grifo do autor).

[12] Ibid., p. 34.

[13] Ibid., p. 30 (grifo do autor).

[14] Ibid., p. 34.

[15] Ibidem.

[16] Ibid., p. 17.

[17] Ibid., p. 47.

[18] Ibid., p. 111.

[19] Ibid., p. 108.

[20] Ibid., p. 137. Ver também, na Tese 213: “A ideologia materializada não tem nome, como também não tem programa histórico enunciável. Isso equivale a dizer que a história das ideologias acabou”, na página 138. Ver, ainda: o espetáculo “é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência”, p. 14.

[21] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 21 (grifo nosso).

[22] Ver Tese 52. Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 35.

[23] Ver o papel do proletariado na Tese 114. Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 81.

[24] Ver “o uso fundamental da submissão” na Tese 67. Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 45.

[25] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 141. Ver também a Tese 117, p. 83. Ver ainda “o sujeito proletário” e “sua consciência igual à organização prática” na Tese 116, p. 83.

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