1991

O dia seguinte

por Sérgio MiceliPaulo Betti

Resumo

O que significa a edição dos debates políticos na televisão e com que tipo de visualidade lida esse gênero de programas na mídia eletrônica brasileira? A televisão tem um notável cacife político e uma incrível capacidade de influir politicamente. O nível surpreendentemente elevado de credibilidade de que desfruta a televisão em todos os segmentos sociais parece tanto maior quanto menos instruído e menor o nível de renda do entrevistado. Pode-se então imaginar a notável capacidade de influência política que a televisão alcança atra­vés quer do horário político, quer sobretudo dos debates entre os candidatos.

O que decide o debate é uma avaliação de desempenho a partir de pequenos lances que têm a ver com o uso das mãos, a “es­pontaneidade”, a “naturalidade”, o “artificialismo”, a rapidez e a eficácia da resposta em termos do timing do próprio veícu­lo, o vestuário, o comportamento corporal, a gestualização, e com tudo o que tais linguagens transmitem sobre segurança social, firmeza intelectual, confiabilidade, e assim por diante.

O que há de terrível num debate político é o fato de que ele se soluciona como vitória ou derrota de cada um dos candidatos naquele exato momento. Alguém vai ganhar ou perder em função do desempenho ao longo do evento. A derrota (ou a vitória) está contida no que se vê no plano da imagem.

No dia seguinte ao debate, procede-se à edição visual do que aconteceu, ou seja, elabora-se uma nova sequência de ima­gens. O espectador fica dramaticamente autorizado ou de­sautorizado na sua versão. É isso que faz o que faz a edição do dia seguinte. De uma certa maneira, ela se permite fraudar a véspera, construir a véspera numa chave caricata, extrapolada, exor­bitando numa direção ou noutra.

Um pouco da força política da televisão está no fato de conseguir impor um sistema plástico e visual, com tamanha autoridade simbólica e credibilidade cultural, que todos se sentem como que desautori­zados, desconfirmados na leitura que fizeram.


Pretendo expor aqui o primeiro resultado de uma pesquisa comparativa, sobre a recepção dos meios de comunicação de massa, feita em cinco capitais latino-americanas: Santiago, Buenos Aires, Cidade do México, São Paulo e Lima. Esta pesquisa não traz nenhuma novidade do ponto de vista de informação sobre a exposição dos diversos segmentos do público à mídia. Isso tudo já se sabe no Brasil, a pesquisa de mercado faz esse acompanhamento semanal. Mas a pesquisa é interessante num outro sentido. No questionário, há uma bateria de perguntas sobre a imagem institucional que a televisão possui na cabeça, no imaginário, na representação dos diversos segmentos do público telespectador: se a pessoa entrevistada acha que a televisão tem publicidade demais ou se tem uma quantidade suficiente de publicidade; se a televisão é um meio de comunicação mais fiel à verdade; em qualquer dos casos, qual é a sua posição nessa hierarquia de credibilidade em termos de meio de comunicação mais fiel à verdade; se a pessoa entrevistada gostaria de modificar alguma coisa na programação ou se acha que a programação deveria ser mantida.

O que eu queria suscitar na discussão é o que dá título a minha participação no seminário, “O dia seguinte”, que pretende ser uma reflexão sobre o que significa a edição dos debates políticos na televisão e com que tipo de visualidade lida esse gênero de programas na mídia eletrônica brasileira. A televisão tem um notável cacife político e uma incrível capacidade de influir politicamente. Exatamente por isso é importante discutir essa força política da televisão no Brasil.

Desejo basicamente levantar algumas questões relativas às razões pelas quais a televisão desfruta, no entender do público espectador, de uma situação de virtual hegemonia no interior da indústria cultural brasileira. Ou seja, não vou me referir, por exemplo, à ancoragem da televisão numa rede complexa de interesses econômicos. Como se sabe, a televisão brasileira faz parte hoje de um esquema de exploração econômica onde se integram as grandes empresas da mídia cultural, os grandes conglomerados financeiros e os grandes anunciantes (um dos maiores é o próprio governo federal e os governos estaduais). Ou seja, esse conglomerado de interesses que está por trás da televisão é um dado absolutamente indispensável para qualificar o cacife político que a televisão possui. Mas hoje não é esse o foco da atenção.

Vamos às perguntas do questionário. Farei agora uma análise sucinta das respostas às questões que buscavam uma caracterização das opiniões dos entrevistados sobre televisão, independentemente do fato de serem ou não espectadores habituais do veículo. Indagados, por exemplo, se a televisão tem publicidade demais, ou, ao contrário, se tem uma quantidade normal de publicidade, cerca de 70% parecem se situar na faixa de concordância com a primeira alternativa. Outros 25% se pronunciam aceitando a situação atual, e, portanto, se orientando nos marcos da segunda alternativa. Talvez se devesse esperar uma distribuição de respostas exatamente nessa direção, mas não exatamente obedecendo à mesma distribuição. O grau de receptividade explícita às mensagens publicitárias é um tanto surpreendente. Podemos ora interpretá-lo como indício de uma identificação acentuada com o veículo em questão, ora tomá-lo como sinal de incorporação da publicidade à definição mesma do veículo.

Estou chamando a atenção para um fato que todos já sabemos pela experiência prática de telespectador nativo. O que essa resposta e sobretudo esta agregação de respostas demonstram é o fato de que as pessoas não conseguem discernir o bloco do programa do bloco publicitário. Os espectadores costumam migrar visualmente de um para o outro porque consideram haver um encaixe quase perfeito entre ambos. E alguns telespectadores, se fossem incitados a se pronunciar em determinados momentos da programação, não hesitariam em admitir que preferem a publicidade ao bloco de programas. Então, isso vai dar um pouco a ideia de que a publicidade não é algo sem tessitura, destituída de realidade própria, alguma coisa da qual um telespectador possa se livrar a seu bel-prazer. É parte integrante da mensagem televisiva e prestar atenção na publicidade é o mesmo que se ligar no bloco do programa, pois ambos fazem menção o tempo todo um ao outro. Grande parte da publicidade é um manejo da visualidade e da cultura do próprio espectador: os atores da televisão, as referências da cultura da televisão, a referência a uma tradição cultural, a sinalização da utilização de imagens,

de vinhetas, de uma série de estereótipos sociais. Ou seja, o fato de as pessoas terem dado esse nível de respostas às questões indicadas (se tem publicidade demais etc.) mostra apenas que a publicidade está muito mais internalizada na percepção do telespectador do que em geral se admite.

Em seguida, procuro qualificar mostrando como essa opinião é favorável à publicidade, e muito maior quanto mais baixos os níveis de renda e de instrução, e, portanto, maior o grau de exposição à mídia eletrônica. Quando interrogados sobre qual seria o meio de comunicação mais fiel à verdade, e a despeito do fato de que jornais e televisão tenham obtido escores bastante próximos, ambos oscilando na faixa de 30% a 32%, dependendo da variável de cruzamento (quer dizer, se for renda, aumenta um pouquinho para televisão, se for nível de instrução, aumenta um pouco para mídia impressa), os segmentos mais instruídos, mais jovens e de renda mais elevada, se manifestam preferencialmente em favor da mídia impressa, sobretudo jornais, enquanto os menos educados, os mais velhos, e os mais destituídos em termos de renda, se mostram mais adesivos e reverentes à televisão.

Aliás, como era de se esperar, é expressiva a porcentagem de entrevistados com escolaridade elevada que preferem se abster de conceder credibilidade a qualquer dos veículos propostos. Este segmento se iguala, praticamente, aos que optaram pela mídia televisão. O virtual empate entre os grupos optantes pelos jornais e pela televisão talvez fosse resolvido em favor da televisão caso fossem canceladas as alternativas rádio e revista (com uma votação muito baixa no ranking) que nublaram um pouco a posição central entre mídias impressa e eletrônica. Cumpre ainda ressaltar que os percentuais obtidos nesta questão parecem também revelar uma imagem pública institucional bastante mais positiva destes veículos que teriam logrado impor-se como “serviços” prestados à coletividade. Ou seja, o diferencial por assim dizer institucional da televisão e da mídia impressa, em relação ao rádio e às revistas, prende-se ao fato de que ambos logram veicular uma imagem institucional de que eles não são privados, de que estariam prestando um serviço público, e, portanto, estariam diluindo, na proposta de constituir um serviço público, a força e o teor de seu interesse privado.

A adesão à TV Globo, por exemplo, é praticamente o dobro nos setores menos instruídos do que nos segmentos mais instruídos. Quanto mais se eleva o grau de escolaridade, tanto mais renhida se mostra a competição pela legitimidade, ampliando-se as notas que o entrevistado concede aos canais de redes comerciais concorrentes. No interior do segmento mais instruído, não apenas cai bastante a taxa de adesão à Globo, como se manifestam duas atitudes características de um povo educado. Ou seja, todo público educado procura demarcar o seu consumo daquele que ele entende ser mais massificado. Então, por exemplo, acontecem duas coisas com o público educado. É o único segmento em que aparece alguma adesão à TV Cultura, por exemplo. É uma maneira de se demarcar socialmente. Além do fato de se poder gostar da TV Cultura – o que é uma coisa perfeitamente razoável, é o meu caso, por exemplo, o que não me isenta das marcas sociais associadas a tal disposição – pode-se também apreciar algo educativo, pedagógico. Aqui a adesão dos entrevistados a mensagens ou artefatos culturais, quando instados a avaliar a mídia eletrônica, a dizer em que consiste uma mídia massificada, está sendo interpretada como uma maneira de se revelar uma vantagem social, como indício de uma superioridade social e cultural. Isso é plenamente confirmado quando se efetua o cruzamento entre a adesão aos diversos canais com a adesão aos programas. Então, o público mais instruído e de renda mais elevada revela justamente preferência por todos os programas que parecem não ser os programas populares, colados a uma definição massificada.

Colocados diante da possibilidade de mudarem a programação da televisão, ou mais precisamente, interrogados sobre qual tipo de programas eliminariam, os menos instruídos são aqueles mais receptivos ao status quo da televisão brasileira, contribuindo com quase 50% dos que se manifestaram a favor da manutenção da atual programação. Pertencem a esse mesmo segmento os que se manifestaram pouco receptivos ao horário político, às novelas e aos programas considerados “imorais”. Ao contrário, os segmentos mais instruídos se mostram arredios aos programas de auditório, de cujo público pretendem se distinguir, nesse empenho de construir uma marca social, e ao mesmo tempo receptivos ao horário político, evidenciando uma atitude cultural lastreada em todas as modalidades de capital, costumeiramente incorporadas através de uma exposição prolongada à instituição escolar. Uma parcela significativa das propostas de eliminação se refere a programas efetivamente existentes e não ao conjunto de programas passíveis de serem definidos como gêneros, tais como shows, reportagens, humor. Ou seja, parece haver um número muito maior de entrevistados que não apreciam determinados programas do que um contingente tendente a se pronunciar contra algum gênero em particular, a não ser no caso das novelas que ganham uma rejeição em torno de 10%.

Quais as razões dessa atitude? A rejeição à novela, quando acontece, deriva de uma recusa desse tipo de mensagem como algo imoral e está associada em geral ao fato de se pertencer a uma confissão religiosa, do tipo pentecostal por exemplo, vinculando-se assim a uma forte identidade confessional. Além dos 13% favoráveis à manutenção da programação, outros 22% não se manifestam a respeito. O que também não deixa de ser uma maneira acanhada de se dizer a mesma coisa, sem explicitá-la na direção esperada. Quando se sabe que 53 % dos entrevistados nessa categoria têm baixíssimo nível de instrução, constata-se que parecem possuir um perfil escolar e social bastante similar ao maior contingente dentre os que se manifestaram a favor da programação atual. Diante da questão “que tipos de programas acrescentaria?”, novamente volta a surpreender a quantidade de entrevistados que declaram “nenhum”, indicando assim a sua relativa satisfação com a programação atual da televisão brasileira. Seria possível aprofundar a análise dessas questões mas isso não acrescentaria nenhum dado significativo ao núcleo do argumento. Ou seja, tais evidências permitem caracterizar o nível surpreendentemente elevado de credibilidade de que desfruta a televisão em todos os segmentos entrevistados, embora mui diferencialmente. E tal credibilidade parece tanto maior quanto menos instruído e menor o nível de renda do entrevistado. Pode-se então imaginar a notável capacidade de influência política que a televisão alcança através quer do horário político, quer sobretudo dos debates. O que ocorre durante o debate? O que acontece aí em termos de visualidade passa por um confronto entre a construção do espectador em relação ao que assistiu e a arrumação posterior proposta pelo próprio veículo a respeito do que se passou, daquilo que teria acontecido.

O que estou propondo é o seguinte: nós todos vemos o debate no dia em que ele é transmitido, mas que tipo de reação temos? Começamos animados, depois ficamos chateados, até choramos se o “nosso” candidato não está indo bem. Seja como for, a gente percebe quem está ganhando o debate. Todo mundo faz uma ideia sobre a vitória ou a derrota. Todos constroem uma leitura de como foi o debate. Cada um tem dentro de si uma percepção, vai juntando todas aquelas impressões de desempenho dos candidatos e consegue fazer uma imagem aproximada de quem ganhou e de quem perdeu, ou melhor, nós conseguimos identificar quem ganhou e quem perdeu mesmo quando não é o “nosso” candidato. Esse é o quadro de leituras que a televisão tem de enfrentar. É a leitura do telespectador, porque ele saiu do debate achando de fato alguma coisa. O que acontece então com a edição do debate?

Aparentemente, a edição do debate é uma compilação ajuizada de imagens veiculadas ao longo do debate. Farei uma analogia O que não aconteceu de modo algum no debate é a frase visual que a edição do “dia seguinte” constrói com as imagens da transmissão original. com o replay do gol do futebol transmitido agora na Copa ou em qualquer partida. O que acontece com o gol? Quem está no campo ou assistindo da arquibancada enxerga um certo tipo de gol, eis uma situação ótima para explicitar o problema porque cada um está enxergando o gol a partir de uma certa posição no campo, ou seja, cada um teria uma perspectiva visual do gol em função da posição que ocupa no estádio. A mesma coisa acontece com os bandeirinhas e com o juiz. Por isso, muitas vezes o bandeirinha sinaliza de uma maneira que parece equivocada, ou o bandeirinha ou o juiz, ou ambos, e a torcida reage ao que viu, ou ao que imagina ter visto. De qualquer maneira, o que acontece no replay? Trata-se de uma reconstrução visual completamente inacessível a qualquer espectador situado no interior do estádio. Agora, nós todos que estamos em casa, “não está vendo que foi gol?”. Ou seja, há uma edição do gol que não corresponde a nenhuma percepção visual real de quem está no campo ou próximo dele. O replay é uma linguagem plástica, é uma proposta visual, sendo a tal ponto uma construção visual que pode ser divisível numa série de pontos na telinha, tendo pouco a ver com o que se passou de fato. Vale dizer, pode-se até confirmar que foi gol o que não foi, mas a pergunta é: o que foi gol? O que foi gol em campo pode acabar sendo mutilado na tela, e vice-versa. O que foi gol depende em última instância daquele que legitimou visualmente o lance em finalização. Porque o gol tem de ser confirmado, crível, o gol tem de ser reconhecido.

O que aconteceu no debate político é mais ou menos a mesma coisa.

Em que se apoia a elaboração visual da televisão? Os políticos e o pessoal responsável pela campanha imaginam que fazendo brainstorms fabulosos, com pencas de assessores, montanhas de dados etc., vão se preparar melhor para o desempenho do “seu” candidato no debate. Mas o que se passa na televisão não tem nada a ver com esse nível da informação. Por quê? O que está em jogo no debate, por exemplo, entre Collor e Lula, não é a vida pregressa, evidentemente, de nenhum dos dois, não são as alusões aos pontos fracos de quaisquer dos candidatos, também não é o programa do partido, não é o passado de cada partido, nada disso é o que vai decidir o que se passa na televisão. No meu entender, o que decide o debate é uma avaliação de desempenho a partir de pequeninos lances que têm a ver com o uso das mãos, a “espontaneidade”, a “naturalidade”, o “artificialismo”, têm a ver com a rapidez e a eficácia da resposta em termos do timing do próprio veículo (como se sabe, uns segundos apenas “plantado” na defensiva pode parecer uma eternidade!), têm a ver com vestuário, o comportamento corporal, a gestualização, e com tudo o que tais linguagens transmitem sobre segurança social, firmeza intelectual, confiabilidade, e assim por diante. Ou seja, o que é terrível na linguagem de televisão é o fato de que tudo que sucede ao nível da telinha não escapa aos constrangimentos característicos de uma construção visual clássica. Em outros termos, aquela telinha obedece a uma lógica própria que não depende das informações que trazemos de fora, ou melhor, para sermos exatos. depende delas menos do que gostamos de admitir. O que há de terrível num debate político é o fato de que ele se soluciona como vitória ou derrota de cada um dos candidatos naquele exato momento. Alguém vai ganhar ou perder em função do desempenho ao longo do evento. Darei o exemplo do que ocorreu entre o Covas e o Afif Domingos num outro debate. A imprensa pode dizer no dia seguinte: “O Covas ganhou o debate”. Mas não foi o Covas que ganhou o debate, foi o Afif que perdeu o debate. Porque o que acabou se sedimentando no plano propriamente visual provinha menos da postura ofensiva do Covas dizendo “Você sempre votou contra os trabalhadores na Constituinte” do que da reação hesitante do Afif. Quase todo mundo já sabia do que o Covas estava falando. Não havia nenhuma novidade naquilo e o Afif assim mesmo poderia ter se saído melhor dessa acusação se ele não se mostrasse atingido, desmontado, destruído visualmente. Antes de ser politicamente prejudicado, o Afif foi visualmente derrotado. Ele não foi derrotado por conta das acusações que lhe foram endereçadas, ou em função dos conteúdos doutrinários presentes em sua fala. Ele foi derrotado pelo fato de ter se mostrado acachapado, olhando para a câmera como se não tivesse nenhuma resposta, como se dissesse: “Agora, o que eu faço?”.

A derrota está contida no que se vê no plano da imagem, a derrota é antes de tudo uma sentença (no duplo sentido do termo) visual. Qual é a proposta da análise? No dia seguinte, procede-se à edição visual do que aconteceu, ou seja, elabora-se uma nova sequência de imagens, uma frase visual a partir de materiais transmitidos, mas segundo uma perspectiva de interesse político daquele que se pretende mostrar e apontar como vitorioso. O que aconteceu no primeiro debate entre Lula e Collor? O PT saiu correndo na frente e editou o debate. Vitória acachapante de Lula. Nem quero discutir se o Lula ganhou ou não efetivamente o debate no primeiro dia. Minha ideia é de que só se ganha o debate com a edição. Só ganha o debate quem logra impor a versão vitoriosa do debate. Não basta ganhar o debate diante do espectador. Cada um de nós, espectadores, pode ranger os dentes e perder politicamente o debate. Porque o debate se perde ou se ganha em dois níveis: primeiro no plano visual da própria mídia, em seguida no âmbito propriamente político.

O espectador fica, por sua vez, dramaticamente autorizado ou desautorizado na sua versão. O que faz a edição do dia seguinte? De uma certa maneira, ela cauteriza o olhar do espectador, sussurrando-lhe: “O que você viu não foi bem assim como você imagina”. Você viu algo que na verdade pode ser construído nesta ou naquela direção. Então o que acontece com o espectador é que todos nós percebemos a fraude. A rigor, a edição do dia seguinte é uma forma de fraudar a véspera. É um jeito de construir a véspera numa chave caricata, extrapolada, exorbitando numa direção ou noutra.

Um pouco da força política da televisão está no fato – aliás, não há muita novidade nisso – de conseguir impor um sistema plástico e visual. A mídia televisão dispõe de tamanha autoridade simbólica, de tanta credibilidade cultural, que todos se sentem como que desautorizados, desconfirmados na leitura que fizeram, emocionados e apaixonados quando eram espectadores em condições de discernir entre todos os lances que estavam ocorrendo no debate do dia anterior

Comentário:

NA MARCA DO PÊNALTI

Paulo Betti

O óbvio é ululante. A eleição presidencial foi decidida na televisão. Não no segundo debate Lula/Collor, mas na edição do debate no Jornal nacional, na sexta-feira, antes da votação. Seria estúpido não considerar outros fatores: o caso Diniz, a falta de ônibus, os boatos espalhados por todo o país sobre o confisco das propriedades se Lula fosse eleito, noticiário parcial de quase toda a imprensa, tudo isso teve seu peso, sua importância. Mas foram, usando o jargão futebolístico, faltas apitadas na linha intermediária. A edição de sexta foi um pênalti. E sem que o goleiro (Lula) pudesse defender-se. Em apenas três minutos, com muita eficácia, mostrou-se quem tinha “ideias mais claras”, “quem falava melhor”, quem estava “mais preparado”. E tudo confirmado por dados do instituto de pesquisa Vox populi que – pasmem! – trabalhava para Collor.

Depois do primeiro debate, no horário gratuito, a equipe do PT também fez uma edição. Lógico, a favor de Lula. Mas a edição de Collor foi no Jornal nacional. Um espaço que para o espectador é neutro. Portanto, com mais credibilidade. Quantos votos valem três minutos de Jornal nacional, na véspera da eleição, num universo de eleitores que tinha 30% de indecisos e, como todos os brasileiros, ligados na televisão? A diferença de 4 milhões de votos a favor de Collor foi obra da edição do Jornal nacional. É óbvio. Os preços astronômicos do espaço comercial desse programa jornalístico endossam o que estou dizendo. Vende-se muito mais do que esses 4 milhões num anúncio bem feito inserido nesse programa. E a edição não era um simples anúncio. Era muito mais. Era notícia. Portanto, para a maioria dos brasileiros era a verdade.

Vamos lembrar (desculpem) do general Médici que dizia: “Sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Em outros países, greves, atentados, conflitos. No Brasil, não. O Brasil marcha em paz rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante, após um dia de trabalho”.

A edição é mais importante do que o debate porque é condensada. O debate foi muito longo para o costume dos telespectadores. Muitos não sabiam quem tinha ganho, Ficaram confusos. Usando novamente o futebol: é como se estivessem no estádio assistindo à partida – saiu o gol e o espectador distraído ou mal colocado no campo não viu direito. No outro dia ele liga a TV para ver o gol. Só então o gol passa a ser verdade. Só então ele viu. A edição funciona como replay do gol. Além disso, a edição é um juiz que diz ao telespectador quem ganhou. E prova por meio de dados de um instituto de pesquisa. Ninguém ficou sabendo que os indecisos – muito importantes naquele momento – preferiram Lula no debate. A edição, é óbvio, não mostrou esse gol de Lula. Portanto, para a maioria dos eleitores ele nunca existiu. O Partido dos Trabalhadores representou ao ministro do Tribunal Eleitoral, sr. Francisco Rezek, requisitando uma compensação no jornal de sábado. Nada conseguiu. Até hoje Francisco Rezek deve uma explicação aos eleitores. Ele que era o árbitro da peleja eleitoral agora é ministro das Relações Exteriores do governo que por, no mínimo, omissão ajudou a eleger. Se nosso povo entendesse de política como entende de futebol, Rezek seria linchado. Nos estádios chamamos os árbitros de ladrões!

Há um outro exemplo da força do Jornal nacional. Dois dias antes do debate, um sindicalista do Rio passou ao Lula uma ideia genial. No último minuto ele sacaria a carteira profissional e faria o encerramento, falando de seu compromisso com os trabalhadores. Pelas regras Collor não poderia responder. Gol!!! No entanto, Lula preferiu utilizar o livreto da Constituição. Não levou em conta que a profissional é o verdadeiro símbolo do trabalhador brasileiro. A azulzinha desbastada nos cantos, no bolso de trás da calça.

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