1996

O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sensível

por Gerd Bornheim

Resumo

A cultura moderna tem uma dupla paternidade. Se Descartes funda o racionalismo, Montaigne contribui para uma reabilitação do mundo sensível através do seu modo particular de olhar as coisas e a realidade humana. São duas linhas de pensamento antitéticas que privilegiam, de um lado, o sistema, o raciocínio que vai se impor com a ciência como norma no mundo todo; de outro, o fragmento como descoberta nos Ensaios, a invenção do “bom selvagem” que resulta da abertura do imaginário e da ideia de viagem, iniciando um desfile da Alteridade que mais tarde culminará na crise da metafísica. Bom selvagem não é só aquele que está fora da civilização. Com Rousseau ele se torna uma espécie de philosophe das Luzes, um grande olho a julgar a Europa. A cultura moderna é também a matriz de utopias que atravessarão os séculos, de Thomas Morus a Karl Marx (e que no século XX invertem seu sentido original positivo, no 1984 de Orwell e no Admirável mundo novo de Huxley). A dicotomia entre liberdade e necessidade, espontaneidade e artifício, natureza e norma, se radicaliza a partir do século XVIII, quando também se inventa a ideia de humanidade. No âmbito da estética, o esvaziamento da norma só acontece no século XX. Mas desde Kant o gosto subjetivo se liga à sensação, e Nietzsche mostrará que a negação do prazer do corpo engendra o ressentimento. É como se a nudez do bom selvagem já trouxesse na pele, desde o tempo das Descobertas, um novo modo de ser, alheio às disputas entre materialismo e espiritualismo.


O MUNDO SENSÍVEL CONQUISTA O SEU LUGAR

Na evolução social do homem, a cultura moderna representa uma etapa de profunda transformação. As próprias bases da cultura ocidental põem-se a periclitar, e a História passa por uma metamorfose inédita. E é dentro de tal contexto que a consideração do mundo sensível desempenha um papel de extremo relevo. O tema ostenta agora uma complexidade de amplos horizontes, devendo-se mesmo afirmar que, de certo modo, o que se verifica é nada menos do que a própria descoberta do mundo sensível. Não que esse mundo, claro está, fosse totalmente desconhecido no passado; mas na modernidade ele começa a ter um modo de presença, uma intensidade nas suas formas de manifestação que não encontra paralelo. Sabe-se que os gregos, a esse respeito, como em tudo, souberam abrir caminhos. Pense-se, de modo especial, na experiência epicurista. Ou então, no destaque que empresta Aristóteles à vivência sensível do tato, quase que prenunciando uma das críticas de Hegel a Kant; e é que, no tato, a dicotomia sujeito-objeto como que desaparece, tal a intimidade que se verifica entre os dois termos, um como que está no outro. Não obstante isso, de modo geral, em todo o passado, o mundo sensível vê-se literalmente degradado a uma instância inferior. Assim reprimido, não consegue encontrar o seu estatuto específico, a sua identidade própria, em nome de argumentações o mais das vezes desprovidas de sentido, como, por exemplo, a oca ideia de que a alma é superior ao corpo. Evidentemente, tal tipo de crença continua apresentando certa vigência, e por aí se patenteia a profundidade da crise e a extensão da revolução em que se adentrou a cultura moderna.

Sublinhe-se, antes de tudo, o caráter tão radicalmente histórico em que se debate a experiência sensível. De fato, não basta considerar essa experiência de modo estático, como se ela vivesse refugiada em sua própria matriz, dona de uma tessitura inamovível e nomádica, decorrente de qualquer coisa como uma natureza humana estável, espécie de essência fixa. Longe disso, a experiência sensível revela-se histórica de cabo a rabo, o que autoriza a dizer que cada cultura, cada sociedade e mesmo cada indivíduo elaboram diferentemente os seus modos de vivenciar e de interpretar a esfera do sensível. O mundo sensível é em si mesmo histórico, sob pena de perder o seu estatuto humano. Já por isso, cabe avançar que o século das Luzes como que inventa o reino do sensível, e o faz num sentido bem preciso: é que esse reino começa a perder a sua atribuição de inferioridade, ele se deixa iluminar em seu contexto apropriado. Para confirmá-lo, basta um lance de olhos no que se produz então na filosofia e na literatura, e no panorama geral das artes. Têm, por isso, razão os autores que, a propósito de século XVIII, constatam a crise da consciência ocidental. Acrescente-se de imediato: crise de alargamento, de humanização, de enriquecimento; do pré-conceito se passa aos poucos à transparência do conceito.

SISTEMA E FRAGMENTO

Para iniciar nossa análise, convém voltar por um momento aos iní­cios do pensamento moderno. Em geral, os historiadores estão concordes: Descartes foi o grande pai da filosofia dos novos tempos, e não sem razão; Descartes foi o principal artesão do racionalismo nascente, e nem é preciso insistir na importância fundamental de tudo o que a seguir se passou no plano da racionalidade de modo geral. Acontece que, por esse caminho, cimentado na ofuscante presença da nova ciência, aqueles historiadores não deixam de incorrer no que pode ser considerado uma injustiça. Realmente, não há sequer exagero em avançar que aquela paternidade deve ser compartilhada por outro pensador, o famoso autor dos Ensaios, Montaigne. Senão vejamos.

Há uma conhecida e instigante afirmação de Montaigne no início de um de seus ensaios, que diz: “Os outros formam o homem; eu o recito, e o represento como um particular bem malformado […]”.[1] O asserto contém uma crítica lúcida e mais profecias do que o seu autor poderia imaginar. É fácil perceber que o uso do verbo formar traz em seu bojo toda uma tomada de distância relativamente a uma vetusta tradição, inaugurada no antigo pensamento grego. Em verdade, há poucas palavras tão comprometidas com o próprio sentido da metafísica tradicional quanto o conceito de forma. Assim, o verbo formar nada tem de inocente, e, quando Montaigne contrapõe-se àqueles que formam o homem, ele toma posição de crítica em relação àquela metafísica e àquela pedagogia que atravessam o passado. Bem ao contrário disso, é na aceitação desse veio tradicional que se deixa inserir perfeitamente bem a abordagem cartesiana da realidade humana: Descartes prende-se a esse passado e lhe dá prosseguimento, como que aprofundando as suas implicações.

Aristóteles, logo no início de seu tratado sobre política, ao analisar a definição do homem como animal político, diz que o homem foi feito pela natureza como um animal que fala — e por isso é político. Assim, acentuando o ato de falar, Aristóteles coloca o homem de saída dentro de uma coletividade de indivíduos que falam e escutam; sua afirmação é imediatamente social.[2] Mas bem cedo a tradição passou a manipular a formulação aristotélica, e o animal político que fala metamorfoseou-se em animal racional. E é precisamente essa definição que terminou se consti­tuindo, através de percalços os mais variados, numa das grandes bases de toda cultura do Ocidente. Filiado a tal tradição, Descartes desenvolve o conceito antigo, ele o faz avançar, em nome presumivelmente da busca de uma maior coerência; seja como for, o homem passa a ser agora uma dualidade substancial, a animalidade e a racionalidade a constituir duas realidades independentes e até mesmo incomunicáveis. Ou seja: Descartes constrói o homem, isto é, toma-lhe as partes, analisa-as e forma com elas, através de uma construção racional, aquilo que se deve entender por realidade humana. Montaigne sabia sem dúvida a que se opor, e parece até que ele pressentia o que estava por vir.

Portanto, Montaigne não está interessado em construir o homem: ele se empenha em outro modo de olhar as coisas e a realidade humana. E o método se concentra agora nos processos de recitação: ele recita o ho­mem. E eis o caminho: “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem”. E mais: “Preciso acomodar minha história à hora” .[3] O ser, quer dizer: a forma, a substância, a essência, o que se quiser: a imutabilidade. E cito mais: “Cada homem traz em si a forma inteira da humana condição”.[4] Só que essa forma nada apresenta de autônomo, ela como que se dissolve no indivíduo. Montaigne fala apenas de Miguel de Montaigne. E nosso herói é consciente do que faz: ele é o primeiro a expor-se desse modo. Não lhe interessa a essência do homem, nem mesmo o homem excepcional, e sim, simplesmente, o “homem vulgar e sem brilho”, lê-se no mesmo passo. E o método também vai por aí: ele está “sempre na aprendizagem e à prova”.[5] O método é antes de tudo uma forma de educação: saber ver. No recitar, os olhos do nosso filósofo viajam, tudo querem ver, saber ver as diferenças, longe da mesmidade do mesmo. Montaigne viaja e vai longe, seu olhar se estende, por exemplo, até as praias do Brasil, e aí topa com um estranho tipo de canibal, que passa a chamar de bom selvagem. A medida do ver está em saber captar essa mutabilidade, esse mobilismo universal, ou seja, a condição humana.

É tudo uma questão de limites. Descartes delimita o homem em dois aspectos por ele considerados fundamentais: digamos que ele se prende à esfera das essências. Já Montaigne quer surpreender a sua própria curiosidade para além até mesmo das fronteiras do imaginável; digamos que ele se atém à interminável diversidade de modos de ser, de enumerar nuances, de descrever perfis, disfarces, costumes, paixões — todos os espaços e todos os tempos que compõem o cenário da existência. Trata-se, portanto, de duas posturas que se contrapõem precisamente como a essência e a existência. E se no primeiro caso ficamos aderidos a um mundo fixo, no segundo abrem-se as portas para o ilimitado: o índio brasileiro não é um animal racional, não é nem animal nem racional, nada deve à tradição grega, ele pertence simplesmente a outro ramo.

Assim, Descartes e Montaigne inauguram duas linhas de pensamento, linhas estas que irão se desdobrar e aprofundar ao longo da cultura moderna. E elas desenvolvem também os seus meios de expressão adequados, sua metodologia própria. Descartes elabora o raciocínio sistematizador, quer dizer, pressupõe-se que a própria realidade oferece uma estrutura que, a despeito da desordem aparente, revela-se como sendo essencialmente racional, e a construção racional não faz mais do que pôr de manifesto essa estrutura última. Sabe-se que essa ideia alcançou o seu maior desdobramento com o idealismo de Hegel; basta citar aqui a sua conhecida frase do prefácio da Filosofia do direito: “Todo real é racional e todo racional é real”. Essa conformidade perfeita está na base da própria possibilidade do sistema. Mas, depois, o sistema entra em crise. Superada a epopeia hegeliana, as coisas terminam se mostrando muito complicadas. Se a filosofia pode esquecer e até desprezar o conceito de sistema, acontece que ele continua mostrando a sua força em certos ramos do saber, a começar pelas ciências formais, como as lógicas e as matemáticas. O mais surpreendente, entretanto, está na vigência avassaladora do sistema na prática da organização social de nosso tempo. Nela, tudo tende a resolver-se em termos de sistematização: as normas do trânsito, o planejamento urbano, a arrumação das empresas de todos os tipos; até as residências compartimentam de modo racional os diversos setores da atividade humana: ao entrar na minha casa, submeto-me ao sistema. A máquina é um sistema, e a tendência globalizante pertence à essência mesma da tecnologia. De fato, a globalização se quer totalitária. Assim é que, e apenas para dar um exemplo, se as racionalidades de tipo socialista e capitalista se fazem assimiláveis aos países asiáticos, esse cometimento não leva apenas a absorver em abstrato, separadamente, tão-só formas de sistematização de um setor, a economia: o que entra em jogo é a totalidade do comportamento do homem em relação à natureza e com os outros homens — é o próprio sentido da existência humana que se põe a transmudar. Constata-se, por aí, o desenrolar de um imenso processo de ocidentalização do mundo, por mais atrofiados que se façam os diálogos, por mais contundente que se revele a fatalidade das formas de intercâmbio — pois o sistema vence.

O antídoto está em outra realidade ocidental. Montaigne fala em recitação, e isso parece cair fora do âmbito do homem entendido como animal racional. A forma de expressão agora é o fragmento. O seu livro chama-se, simplesmente, Ensaios, um plural que abarca uma enorme diversidade de tópicos, e nosso autor não pretende estabelecer entre eles nenhum tipo de comprometimento racional, não há aí o menor traço de enciclopedismo. Entendamos o ensaio como um fragmento desenvolvido. E esta forma literária, o fragmento-ensaio, estava destinada a representar um suces­so em tudo condizente com o próprio espírito da cultura moderna. Em outras palavras: o pensamento moderno se expressa pelo sistema e pelo fragmento, duas modalidades antitéticas, mas que são também comple­mentares, como o raciocínio e a intuição.

Nem os gregos nem os medievais conheceram tais formas de expressão. Dentre os pré-socráticos, Heráclito foi o único a endossar o fragmento. Mas isso nada tem a ver com o ensaísmo moderno. Em verdade, Heráclito se aproxima antes das sentenças atribuídas ao oráculo de Delfos. “É sábio escutar não a mim, mas às minhas palavras [..]”, esclarece o famoso fragmento: quem fala realmente é o próprio Logos divino. E, de qualquer maneira, o grego encontrou a sua forma ideal de expressão no diálogo. Assim como os medievais criaram a Suma Teológica, esta última não se assemelha em nada ao sistema moderno. A de são Tomás, por exemplo, compõe-se de 42 tratados independentes, que acabam formando certa unidade, um pouco à maneira do que acontecia, no plano das artes plásticas e do teatro, com a via-crúcis, por exemplo: cada quadro, cada cena representava um drama que valia por si mesmo, e integrava ao mesmo tempo um todo maior.

Cabe, pois, asseverar que o sucesso do sistema encontra como que uma complementação necessária na floração do fragmento. Mesmo no caso dos Pensamentos, de Pascal, e independentemente das intenções do autor, as anotações feitas permanecem fundamentalmente fragmentos, por terem sido concebidas dessa forma. O fragmento corresponde, de fato, ao air du temps. Isso explica o êxito dos fragmentos dos moralistas franceses dos séculos XVII e XVIII, de La Rochefoucauld, de Vauvenargues, entre outros. Ou a riqueza do mesmo gênero entre os românticos alemães, com Novalis, com Schlegel. Há um fragmento de Novalis, que cito aqui apenas a título de exemplo, por transmitir uma ideia precisa da intuição do poeta e que serve para definir essa forma de expressão: “A filosofia é saudade — ânsia de sentir-se em casa em todos os lugares”. Ou, então, a ironia deste outro: “Quanto mais limitado for um sistema, mais agradará aos bem-pensantes”.

Com a queda do sistema filosófico, é o fragmento que toma contado terreno — Nietzsche é fragmento quase de ponta a ponta — é o ensaio que passa a delimitar os novos caminhares da filosofia. E as coisas vão mais longe do que possa parecer à primeira inspeção do olhar. Veja-se o revelador exemplo do livro maior de Sartre, O ser e o nada, suas oitocentas páginas trazem como subtítulo: Ensaio de ontologia fenomenológica. A intenção de Sartre estava em dar conta da condição humana em si mesma, como tal. Mais tarde, os avatares políticos fizeram-no compreen­der que, em verdade, tal condição não se poderia fazer alheia à situação concreta do homem de nosso tempo, e ele acrescenta a toda a sua análise fenomenológica uma determinação nova: nada mais que a simplicidade do advérbio hoje. Ora, com isso, é a inteireza do tratado maior do exis­tencialismo que se transfigura subitamente em fragmento.

O caráter por assim dizer ilimitado ou aberto do fragmento é que determina a sua natureza, e isso se faz, mais uma vez, não por causa da natureza do sistema, mas em contraposição a ele. Se o sistema só se sente à vontade nos rigores do discurso racional, sobra então ao fragmento justamente o que escapa a tal racionalidade. Se o sistema pretende dar conta da racionalidade do animal racional, então parece que ao fragmento sobra o capítulo geral da animalidade. Mas logo se percebe também a falência dessa definição metafísica do homem. Amplie-se, em consequência, essa esfera da animalidade, ela abarca todo o mundo irracional, que compreende em si até mesmo a fé pascaliana. Se o sistema tende a abonar, e sempre mais, com o idealismo, uma visão unívoca do ser, cabe ao ensaio-fragmento adentrar-se na pluralidade do real, o seu novo endereço quer se confundir precisamente com uma concepção, digamos, equívoca do ser. E, longe da Ideia, aplica-se o fragmento à fatalidade de assumir o corpo, a experiência sensível, uma acepção da natureza avessa ao matematismo. De Descartes passa-se a Rousseau, de Poussin a Fragonard, de Bach e Lully a Beethoven e Chopin. Vauvenargues, por exemplo, tenta explicar as passagens: o princípio agora está nas paixões, e são elas que ensi­nam ao homem a razão, o espírito.\

Tento entrar um pouco mais no tema através da análise de uma questão particular, mas que nem o é tanto: o conceito de bom selvagem.

O CONCEITO DE BOM SELVAGEM

O bom selvagem não existe, nunca existiu. Ele é apenas um conceito, uma fantasia. Como pode Montaigne afirmar que um canibal é um bom selvagem? Mas a pergunta deve ser colocada em outros termos: como pode a fantasia fazer história? Ou ainda: qual é a verdade do nominalismo? Cabe interpretar a cultura moderna como um desafio: se o nominalismo é verdadeiro, como assimilá-lo? Por quais caminhos? Um desses caminhos — e não se quer aqui medir as importâncias — está na ousadia do bom selvagem. Apenas um conceito. E assim mesmo, muito mais do que isso — um conceito-limite, que tudo quer resolver em termos de transgressão. Tento, a seguir, caracterizar o nosso personagem.

Antes de qualquer outro, há um pressuposto essencial para o entendimento do bom selvagem: o da ideia de viagem. Viaja-se muito nos tempos inaugurais da modernidade: percorre-se todo o planeta, o assunto em todas as rodas são as grandes descobertas; Shakespeare é o primeiro dramaturgo que vasculha o passado em busca de suas histórias: Renascença, Idade Média, Roma, a Grécia; o exotismo oriental invade o Ocidente, e por aí afora. Verifica-se, nesse período, um deslocamento do próprio sentido da viagem. De certo modo, inventa-se a viagem. O deslocamento deixa de fazer a viagem girar em torno da mesmidade do mesmo. É que os endereços se fazem outros: largam-se de vez as peregrinações obsessivas e investe-se nas expedições novidadeiras. Começa agora essa fantástica aventura da descoberta do outro, do fantástico, do insólito, do fogo de artifício — um vasto elenco de novas experiências, de estranhas notícias, de eventos inusitados. O deslocamento abandona a distinção entre o plano natural e o sobrenatural, e tudo passa a instalar-se nas coordenadas do tempo e do espaço, da história e da geografia.

Em verdade tudo é sonho, a vida é sonho. Shakespeare nunca abandonou o seu torrão, sequer fez alguma pesquisa histórica. Montaigne viajou um pouco mais: pela França, um pouco, além de uma gostosa estada de alguns meses em Roma, de onde teve que voltar às pressas para cair nas durezas dos compromissos políticos. É que as viagens não se fazem apenas a cavalo ou de galera. As pimentas da Índia suscitam os mais esquisitos desvarios, e a imaginação abre os seus vastos panos. É a esta última ordem, a do imaginário, que pertence a invenção do bom selvagem. Mas tudo é viagem. Pela viagem surge o imaginário do que se supõe perdido, e nasce também, e mesmo principalmente, a presentificação do outro. Convém insistir: a viagem passa a instigar agora, e pela primeira vez, um deslocamento que deve ser considerado, literalmente, de teor ontológico: rompe-se o absolutismo da Identidade e passa-se a assistir ao desfile da Alteridade: é toda a paisagem de outros mundos, de outros continentes, de novas cores e novos sabores, e é justamente aí que sobressai a figura do bom selvagem. Esse deslocamento ontológico, tão leve em suas origens, está na raiz daquilo que logo mais será chamado de crise da metafísica, de morte de Deus, de superação dos valores tradicionais. Mas que é, então, o bom selvagem?

Muito pouco: natural e simples. Coisas que nem existem. Assim mesmo, mesmo sem armas, o nosso herói é um revolucionário em estado puro. Ele nada mais é do que a origem de toda revolução, e a revolução é um conceito fundamental na cultura moderna. No corpo do bom e belo selvagem já está tudo escrito, sua pele ostenta certa ideia de natureza, um modo de ser, simples e integrado. Claro: a simplicidade, aqui, nada tem a ver com as ideias simples do racionalismo cartesiano. Agora, o simples é muito mais um modo espontâneo de ser, situado muito aquém dos extremismos da dicotomia sujeito-objeto. O simples é tão-somente a supressão da dicotomia. Ou quase. Thomas Morus cometeu um deslize sem futuro: ele associa o bom selvagem ao homem adâmico, do paraíso perdido, anterior ao pecado original. Contra essa perversão teológica, para Montaigne tudo é simplesmente natural, o homem já está, ou estava, inscrito neste mundo. De fato, a determinação do que seja natural e simples não faz mais do que qualificar um programa que será a tarefa dos pósteros.

O adjetivo simples quer dizer: desprovido de convenções artificiais, e o novo conceito de natureza passa a impor-se como todo um programa de vida. Em terceiro lugar, há isso: o nosso bom selvagem vive fora da civilização — entenda-se: da civilização ocidental, racionalista. O que Rousseau critica com o seu conceito de “homem máquina” não tem por alvo apenas o determinismo cartesiano, mas principalmente todo o artificialismo das convenções, e o mau exemplo vem de cima, da vida na corte. Diderot também repete o esquema:

Quereis saber a história abreviada de quase toda nossa miséria? Ei-la. Existia um homem natural: introduziu-se dentro desse homem um homem artificial; e surgiu na caverna uma guerra civil que dura toda a vida. Ora o homem natural é mais forte; ora é derrubado pelo homem moral e artificial; e, em um e outro caso, o triste monstro é dilacerado, atazanado, atormentado, estendido sobre a roda; sem cessar gemente, sem cessar infeliz, seja porque um falso entusiasmo de glória o arrebata e embriaga, ou porque uma falsa ignomínia o curva e abate. Entretanto, há circunstâncias extremas que reconduzem o homem à sua primitiva simplicidade. — A miséria e a moléstia, dois grandes exorcistas. Vós os nomeastes. Com efeito, no que se convertem então todas essas virtudes convencionais? Na miséria, o homem não tem remorsos; e na doença a mulher não tem pudor.

Mas essas coisas têm até solução, e a solução se oferece com a evidência dos fatos. A convenção gera o mal, e o mal cura o homem. E a evidência do fato, na continuação do diálogo, diz: “Assim preferiríeis o estado de natureza bruta e selvagem? — Por minha fé, não ousaria declará-lo; mas sei que se viu muitas vezes o homem da cidade despir-se e reentrar na floresta, e que nunca se viu o homem da floresta vestir-se e estabelecer-se na cidade” .[6] O sistema tende a mecanizar o homem e a fazer com que ele perca a sua espontaneidade. A simples presença do bom selvagem acaba representando uma espécie de ruptura do homem civilizado em relação a si mesmo, é como se uma parte sua se tivesse extraviado. Um passo mais, e nosso selvagem deixa-se moldar por um processo de idealização, ele se cristaliza como mito. Aquilo que se perdeu passa a sintetizar uma forma superior de vida. De certo modo, o bom selvagem incorpora certa modalidade de universal concreto, mas não à maneira do herói clássico, e muito menos confunde-se ele com o santo. Evidentemente, nos começos, a visão nem sempre é de todo clara e pode oferecer certa ambi­guidade; assim, como foi dito, com Thomas Morus, por exemplo. Em verdade, porém, logo esse selvagem mostraria o seu autêntico rosto: ele se inventa na dessacralização radical. Talvez se possa até avançar que o bom selvagem seja a expressão inaugural da crise da figura do santo e dos valores tributáveis à santidade.

Acentue-se, pois, em quinto lugar, que o bom selvagem pertence por inteiro à ordem da natureza, e sua virtude revela-se puramente natural, “sans foi, ni loi, ni roi”, como diz o refrão; nenhum tipo de autoridade transcende a sua natureza soberana. E é por esse lado que Montaigne o toma. Ouçamo-lo:

[…] nada vejo de bárbaro ou selvagem no que dizem aqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra […] A essa gente chamamos selvagens, como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. […] As virtudes e propriedades [dos selvagens] são vivas e vigorosas, verdadeiras, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor adaptá-las a nosso gosto corrompido.[7]

Portanto, a idealidade, ainda toda forrada de nostalgia, e por causa disso, não se desprende do mundo da natureza.

Expulsem-se desse indivíduo primitivo as idealidades cristãs e qualquer outra forma de religião. E exclua-se dele também a pretensa superioridade da razão filosófica, mormente a do racionalismo. Sem dúvida, à sua maneira, o bom selvagem deve ser como o philosophe, ainda que afastado da estirpe cartesiana. É que a filosofia moderna desenvolveu dois tipos de discurso, dois modos de racionalidade. O segundo tipo encontra a sua forma de expressão no que chamei de ensaio-fragmento, analisado mais acima. Aqui, faz-se outra modalidade de abordagem da natureza, que não a cartesiana. Ela procede justamente de Montaigne, invade boa parte da filosofia inglesa, chega a Rousseau e aos enciclopedistas, embrenha-se pelo romantismo. E ainda hoje perdura o conflito entre os dois tipos de razão; basta citar, como exemplo incisivo e mesmo dramático, toda a in­trincada situação atual dos problemas ecológicos.

Aquela idealidade há pouco referida se faz presente ainda em outro tópico de importância nada secundária. É que nosso bom selvagem se vê subitamente promovido à condição de modelo moral. Isso, claro está, no nível daquele puro naturalismo, de adaptação plena do homem à natureza. Volto a citar um passo de Montaigne:

Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de bárbaros so­mente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua ingenuidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento, por vezes, não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las.[8]

Evidente também que boa parte desse modelo moral fica entregue à fan­tasia. De fato, como comunicar-se com os silvícolas, como saber quem e como eles realmente são? Veja-se, a propósito, a irritação de Montaigne, expressa no parágrafo final do capítulo “Dos canibais”, devida às dificuldades da linguagem, à incompetência dos interlocutores a fazer com que tudo paire mais ou menos no ar.[9] Mas, seja como for, o retrato que sobra torna-se moda e espalha uma imensa curiosidade. Sabe-se que cortes da França e da Alemanha chegavam a importar nossos canibais e oferecê-los em espetáculo. Participavam, então, de procissões para que se lhes exibissem os corpos. Numa festa da corte alemã aconteceu que faltaram ín­dios, e o jeito foi pintar brancos corpos de alemães para que integrassem o desfile. Em verdade, o que está por trás disso tudo é a grande transformação dos valores da moral na época, é toda a tradição ética que começa a ver-se combalida, e o século XVIII configura o espaço em que as coisas se precipitam, sobretudo com Kant e os franceses. A questão, de resto, nem é precipuamente filosófica. Voltarei logo ao assunto.

Mas há um oitavo e último ponto que merece ser destacado. Acontece que — e nem interessa saber aqui se isso se verifica a partir das praias do Brasil (a acima analisada importância da viagem) ou mais simplesmente pela imaginação da consciência dos europeus — o bom selvagem se transforma no grande olho, espécie de panóptico, a julgar a Europa de modo global. Ele é ao menos um potente e distante árbitro que obriga os europeus a se tornarem transparentes a si próprios, impõe-se como o paralelo das comparações, advindo da visão do paraíso — desde que se entenda esse último enquanto dessacralizado. Justamente: a dessacralização tem a força de ser uma medida da transformação do mundo moderno. O panóptico não funciona à maneira policialesca de uma entidade sobrenatural, o famoso “Deus te vê”; e também não como uma forma de superego dotado de força censora. O que causa espécie no andamento da revolução burguesa é, antes, certa transparência dos processos históricos de transformação. Os gregos já tinham feito algo de semelhante: já no início, Xenófanes, o mestre de Parmênides, foi responsável pela primeira grande revolução cultural, e o seu ponto de partida estava exatamente na crítica à religião. Mas nos tempos modernos tudo se faz de modo muito mais radical, a crítica acompanha cada passo do que é feito. O panóptico torna-se idêntico ao espírito crítico. O contrato social, por exemplo, encontra o seu pressuposto no individualismo, e os autores, já nos começos, iam se dando conta de que a religião perdia a vigência; assim, a discussão sobre o contrato fazia-se até mesmo dramática: como socializar o homem se se entende esse homem como realidade autônoma? Outro exemplo: o processo histórico oferece uma lógica de evidência irrecusável: feudalismo, revolução, restauração — tese, antítese, síntese. Assim também — mais um exemplo —, por forçar o jogo de comparações, o bom selvagem habita as raízes daquilo que logo seria denominado consciência histórica — e essa consciência é a transparência em pessoa.

SOBRE O SENTIDO DA UTOPIA

O painel feito até aqui ficaria claudicante se não fizesse uma referência incisiva ao que deve ser considerado como pano de fundo para o bom selvagem e seus aparentados, e isso em seu próprio nível: a utopia.

Frequentemente, a palavra utopia é tomada em um sentido muito amplo, que se estende de Platão até os dias atuais. Entendo, no entanto, que a ideia de utopia deva ser interpretada enquanto restrita ao mundo modemo. Pinço dois casos para elucidar o tema. A república, de Platão, constitui, antes de tudo, um plano bem concreto e concertado de reforma social, e tanto é assim que o próprio Platão tentou, por três vezes, pôr em prática o seu plano — mas isso é a negação da utopia. Também a Cidade de Deus, de santo Agostinho, estabelece nada mais do que uma pretensa verdade teológica, de consequências tremendamente funestas para a sociedade ocidental: a ideia de que a felicidade não pertence a este mundo; realmente, o nosso mundo, a civitas diaboli, deve ser vista como o princípio de alienação do próprio conceito de felicidade.

No início dos tempos modernos é que o conceito de utopia constrói detalhadamente o seu perfil, ou a sua vaguidade. Realmente, tudo acaba se dissipando um pouco no etéreo. Mas este é exatamente o problema que deve ser pensado. Já de saída salta aos olhos a relativa abundância da literatura utopista, e isso se pensarmos apenas na de qualidade superior. Antes mesmo de Montaigne (mas por que o autor dos Ensaios não se deixou seduzir pelo tema?), o livro de Thomas Morus marca um tento, a Utopia. Depois, seguem-se os nomes que se sabe: República de Evandria de Zuccolo e Città del sole de Campanella, The commonwealth of Oceana de Harrington e Nova Atlantis de Bacon, États et empires de la lune et du soleil de Cyrano de Bergerac e Voyages de Télémaque de Fénelon, e mais tarde, Saint-Simon todo inteiro, algumas fatias de Kant e mesmo o Wilhelm Meister de Goethe, e outros mais. É impossível deixar de mencionar a obra de Marx. E a dos anarquistas. Vê-se logo: trata-se de uma constância que atravessa alguns séculos.

Ao contrário de Platão, nenhum desses autores, ao que eu saiba, tentou pôr em prática o seu ideário: parece que as coisas se queriam fundamentalmente literárias — mas a literatura nada tem a ver com a inocência. Entretanto, tentativas de realização efetiva do ideal da utopia sem dúvida se verificaram, ainda que redundassem por vezes no pior. Nem sei se há algum inventário exaustivo sobre tais empresas. Mas ocorre-me de imediato o verdadeiro genocídio que se perpetrou, sempre em nome da verdade, e para ficarmos no berço do bom selvagem, no experimento das reduções jesuíticas do Sul do Brasil e também do Paraguai, sobre a “expulsão dos jesuítas” do Paraguai, refere Diderot “ces cruels Spartiates en jaquette noir”.[10] E não se esqueça o idílico assentamento dos anarquistas com sua cidade perdida nos fundos do Paraná. De qualquer forma, é significativo que tais experimentos tenham se dado longe da metrópole, como que a resguardar na distância a pureza da idealidade. Porque se edificam, evidentemente, bem ou mal, mundos ideais, mundos que se querem ideais.

Presumo que o melhor caminho para destrinchar essa curiosíssima problemática esteja em avançar que se busca algo como uma compensação pela aventura do imaginário — daí a necessária idealidade. Mas compensar o quê? O racionalismo sem fantasia? As agruras, os percalços dos novos tempos, tão decididamente inovadores? A fantasia de alimentar as imaginações inflamadas pelos relatos das longas viagens? Ou, mais complexamente, as contradições sociais que suscitaram o ideal de uma sociedade nova, de um homem universal acima das classes sociais? Digamos que se dribla com tudo isso e talvez com muito mais. Por vezes, tem-se até a impressão de que esse processo compensatório, se é que o é, fomenta estímulos por assim dizer reacionários. Por exemplo: um dos trunfos do homem novo está na conquista do direito à propriedade privada tal como ela passou a ser entendida e que assola ainda hoje a economia de qualquer cidadão sensato. Pois não é que o bom selvagem e os utopistas se fazem os campeões contra a tal propriedade privada? Mas poderia ser de outra forma? Sem dúvida, o panorama se mostra crivado de contradições.

Veja-se esta outra: a religião. É até usual que se fale em religião e divindade, e mesmo em divindades. Thomas Morus prega a tolerância para com todas as religiões, mas prega também a existência de um Deus único e criador, e chega mesmo a endossar os cristícolas. Contudo, a própria razão de ser das utopias não apresenta caráter religioso e nenhuma afinidade oferece com o mundo sobrenatural. Longe disso, todas estão afanosamente ocupadas com a organização deste mundo, direcionam-se para o estabelecimento do homem nesta terra, e o máximo que avançam, quan­do o fazem, é que a religiosidade seria uma dimensão natural do homem. Entende-se, por isso, que esse contexto propicie também o elogio do prazer e da volúpia. Isso já se encontra, surpreendentemente, em Thomas Morus. Assegura ele que “[…] a volúpia é o fim de todas as nossas ações”; e assim, em definitivo, as delícias: “Os utopianos reduzem todas as ações e mesmo todas as virtudes ao prazer, como finalidade”. Significativo está em que o tema aparece imediatamente associado à felicidade: “A sabedo­ria reside em procurar a felicidade sem violar as leis”.[11] Não há de ser fácil encontrar algum teólogo que dê embasamento teológico a tais pontos de vista.

Seja como for, o destino das utopias está em abandonar progressiva­mente a questão religiosa, por combatê-la ou ignorá-la, por simples indiferença — esta, a forma mais radical de ateísmo. E aqui se encontra outro aspecto das utopias: é que o seu sentido evolui, a ponto de se dever falar em história das utopias. No século XIX, viceja a programação de diversas formas de socialismo — nem entro no tema. E, na primeira metade do século XX, curiosamente, topa-se com uma série de utopias que levam ao extremo de inverter totalmente o seu sentido originário. De afirmativa que era, a utopia passa a ostentar um valor negativo, uma espécie de caricatu­ra da situação mundana do homem de nosso tempo. Lembro apenas o 1984, de George Orwell e, de Aldous Huxley, Admirável mundo novo, em que tudo se deixa sintetizar já na ironia do título. Essas utopias por assim dizer às avessas apenas confirmam a tese de que o tema é constitutivamente burguês.

A CRISE DA NORMA

Apage, Sophista! Não persuadirás jamais meu coração que ele erra em fremir; que minhas entranhas erram em agitar-se.
Diderot, Essai sur la peinture, VII.

As análises feitas levam à compreensão de que tudo tende a equacionar-se em termos de uma dicotomia realmente radical. Em verdade, elas são muitas, há dicotomias, no plural — como liberdade e necessidade, espontaneidade natural e o artifício das convenções, homem natural e homem máquina, religião e volúpia, a oposição entre duas formas de discurso racional. Entretanto, a melhor oposição, já por oferecer um belo antecedente, talvez possa ser vista entre os termos natureza e norma. De fato, já os gregos, mormente com os sofistas, debatiam a excludência entre physis e nomos, e o tema se complicava, na época, com a política democrática e desfazimento do mundo divino. Pois é precisamente essa oposição que volta à cena em nosso século XVIII, regulando-se porém agora por coordenadas outras, como as que foram aventadas acima. Aponto brevemente, por sua perfeita exemplaridade, apenas um autor para escla­recer melhor o tema: o nosso já vasculhado Diderot.

Para Diderot, o mundo das normas, tais como elas souberam ser especificadas ao longo das civilizações, patenteia-se ao menos como sendo gravemente suspeito. Não que o homem possa, subitamente, dispensar a normatividade, mas ela deve submeter-se ao crivo de uma crítica acirra­da. Há um passo no diálogo Suplemento à viagem de Bougainville espe­cialmente significativo e que merece ser transcrito:

Se as leis são boas, os costumes são bons; se as leis são más, os costumes são maus: se as leis, boas ou más, não são observadas, a pior condição de uma sociedade, não há quaisquer costumes. Ora, como quereis que leis sejam observadas quando elas se contradizem? Percorrei a história dos séculos e das nações tanto antigas como modernas, e encontrareis os homens sujeitos a três códigos, o código da natureza, o código civil e o código religioso, e coagidos a infringir alternadamente os três códigos, que nunca estiveram de acordo; daí decorre que não houve em nenhum país […] nem homem, nem cidadão, nem religioso. De onde concluireis, sem dúvida, que, basean­do a moral nas relações eternas, que subsistem entre os homens, a lei religio­sa torna-se talvez supérflua; e que a lei civil deve ser apenas a enunciação da lei da natureza. E isso sob pena de multiplicar os maus, em vez de produzir os bons.[12]

E por essa via arriba nosso autor à conclusão óbvia: “Como estamos longe da natureza e da felicidade! O império da natureza não pode ser destruído: em vão procurar-se-á contrariá-lo por meio de obstáculos, ele há de perdurar”.[13]

O que está em causa, mais uma vez, é o prazer, a volúpia, a começar pelo prazer sexual, o maior de todos, o mais doce: como se explica “que o maior, o mais doce e o mais inocente dos prazeres viesse a converter-se na fonte mais fecunda de nossa depravação e de nossos males?”.[14] E Di­derot põe-se a enumerar toda uma série de normas e convenções que levaram à falsificação da própria instituição do casamento; e, em nome da primazia da natureza, cabe à religião, como sempre, a palma da desditosa vitória: “Pelas instituições religiosas, que ligaram os nomes de vícios e virtudes a ações que não eram suscetíveis de qualquer moralidade”.[15]

A religião sempre é contestada. Ou melhor: ter-se-ia de admitir uma religião puramente natural, isto é, sem normas, sem dogmas, sem a ridícula hierarquia. No entanto, é ao menos curioso observar que o ateísmo começa a tomar corpo justamente no correr do século XVIII. Observe-se, contudo, que nenhum dos grandes enciclopedistas foi ateu: nem Diderot, nem Voltaire, nem D’Alembert, nem Rousseau. Eles sabem tomar evidentemente as suas distâncias: Diderot teria declarado a um amigo que o visitara na véspera de sua morte: “O princípio da filosofia está na incredulidade”.[16] De qualquer maneira, esse esfriamento em relação à religião não vai muito além de ser um subcapítulo dessa recusa da norma — e a norma, sim, é o grande tema, já por constituir a espinha dorsal de toda ética do pas­sado. Mas a situação permanece ambígua, porquanto, em resumo, eles dizem que, na medida em que não se puderem estabelecer normas mais consentâneas àquele estado simplesmente natural, devem-se aceitar as normas vigentes — é a velha ideia da moral provisória de Descartes que continua funcionando, sempre a encobrir o real endosso dos problemas. Em realidade, a situação ambígua se deixa explicar pelo fato de nossos autores integrarem um processo histórico de dimensões inusitadas, e as superações viriam a seu tempo. Mas as questões, sem dúvida, começam a ser ventiladas com pertinência.

Já Kant dá um passo decisivo ao menos no que respeita a transformação da ideia de norma. Na sua ética, sobressaem duas coisas. A primeira está na formalização da norma através do imperativo categórico; e a grave está nas entrelinhas: aí se assevera que a deusa da Justiça, a Dike, que presidia a arte, a tragédia e a própria filosofia nos idos da Grécia, já não é mais medida; assim como o Cristo medieval deixa de ser norma: a ética kantiana compromete-se antes de tudo com a derrocada dos universais concretos, vale dizer, com as expressões mais elevadas da norma do pas­sado. Em segundo lugar, e por consequência, Kant procede a uma espécie de democratização da norma, ou de socialização. O imperativo categórico diz que devemos agir de tal maneira como se a minha ação devesse servir de norma para todos os homens. E essa enunciação, tão lapidar, tão bem-sucedida e tão compatível com os padrões de autonomia do homem moderno, abriria todo um novo e auspicioso capítulo da história da ética. Entrementes, é apenas no século XX que as circunstâncias se agravam. Sartre, por exemplo, assume uma radicalidade simplesmente exemplar: se exis­te Deus, o homem não é livre; se o homem aceita a norma, ele se faz obediente, submisso, e abdica de uma responsabilidade propriamente sua. O que impressiona nesse argumento está precipuamente na sua absoluta coerência interna — uma coerência, diga-se, que tardou em ser reconhecida. Claro que se trata de uma temática sempre aberta à discussão — a discussão lhe é, de resto, constitutiva, mas tudo está a mostrar que a aposta a favor da responsabilização do homem já não pode mais ser preterida: qual seria, a não ser esta, a razão de ser maior de toda educação? E os avanços se anunciam: um problema crucial a ser defrontado está com certeza no processo de universalização da ética, naquela expressão de Kant, “todos os homens”, ou seja, no conceito de humanidade. Porque o século XVIII inventa também essa noção: pela primeira vez na história discute-se a ideia de humanidade, posto que tudo se resume agora nas unidades do tempo e do espaço, da história e da geografia. É altamente provável que um dos principais motivos que levaram Sartre à crise em sua tentativa de construir uma nova ética esteja precisamente nesse conceito de humanidade: o termo nem aparece na obra capital, O ser e o nada, e sim no livrinho catequético O existencialismo é um humanismo: nele, o homem deve fazer-se responsável por toda humanidade; é a viagem de Montaigne que prossegue: Biafra, Abissínia, depois a Somália, a Bósnia — os pesos se tornam maiores, e incluem as nossas favelas e nossos sertões. Mas o tema foi aqui aventado apenas para que se perceba toda a amplidão e mesmo a calamidade que deve ser assumida pelo próprio sentido da ética a partir de Kant. E o otimista autor da Crítica da razão prática nem sequer poderia imaginar os extremos com os quais as suas teses acabariam sendo envolvidas.

Volto-me agora à questão da norma no âmbito da estética, e faço a propósito duas observações. Nesse setor, as coisas andam mais lentamente. Será preciso esperar o século XX para que se efetive, pura e simplesmente, o esvaziamento completo da norma na arte e na estética. Eviden­temente, em certas posições a norma ainda acaba perdurando, a ponto de suscitar a censura policialesca — é o caso da arte promovida pelo fascismo e pelo stalinismo, de modo muito significativo. Mas, a rigor, tal arte nem existe, não passa de desastrado acidente político. No mínimo, o que se deve dizer é que a arte mais representativa, aquela que define o nosso tempo, passa a ter por escopo a própria arte, no sentido de que cada obra deve representar a estética em si mesma. Sabe-se que isso já começa com Flaubert e Cézanne. Acontece que, em toda esta questão, o século XVIII não antecipa absolutamente nada. As posições de Diderot, para ficarmos com nosso eleito, são bem representativas, justamente por suas ideias estéticas nada oferecerem de excepcional. Como seria de esperar, para ele tudo gira em torno do conceito de natureza, e é nessa órbita que gravitam as discussões do Tratado sobre a beleza. E se Diderot critica as proporções geométricas da arte clássica, nem por isso deixa de reivindicar certo tipo de idealidade, ainda que mais frouxa: o artista deve saber “selecionar”, e de tal maneira que sua arte incida em algo extraordinário, naquilo que apresenta “grande interesse”: tal é a exigência do conceito maior, a verossimilhança. Vê-se logo: Diderot acaba endossando uma posição bem tradicional, e logo se faz ouvir a santíssima trindade: “O verdadeiro, o bom e o belo mantêm-se bem próximos. Adicionai às duas primeiras qualidades alguma circunstância rara, resplandecente, e o verdadeiro será belo, e o bom será belo” .[17] A ruptura tarda. Um século mais tarde, o Marx maduro também não conseguirá desembaraçar-se das velhas normas, e nem parece desconfiar da gravidade do tema: ele insiste em falar nas imutáveis “leis da beleza”.

Para concluir, uma segunda observação. Da estética acima comentada pode-se dizer que, paradoxalmente, ela mascara a sua própria razão de ser, sua destinação definitiva. Realmente, o que cabe acentuar é que no século XVIII começa a invenção do Homo aestheticus. Convém lembrar que, ao tempo de Descartes, o bon goût ainda estava próximo da razão, e ostentava uma dimensão objetivamente ética. Agora, com Kant, o gosto torna-se subjetivo e liga-se à sensação. Palavras como sensível, gosto, prazer, volúpia se aproximam, adquirem certo esplendor e encontram o seu denominador comum no corpo humano. Se Thomas Morus, como vimos, faz o elogio do prazer e da volúpia, é ao menos curioso observar que Montaigne lhes é adverso, entre seus ensaios, há um intitulado “Devemos fugir da volúpia ainda que nos custe a vida”,[18] que bem poderia figurar entre os apotegmas e os parergos da Nova floresta de nosso casto Manuel Bernardes. É que os espaços se conquistam lentamente. Mas logo os preconceitos passam a dissolver-se, e o homem percebe enfim que o prazer nada tem de secundário, que ele não pode ser desconsiderado como mero acidente descartável. O prazer passa a ser visto, assim, como essencialmente extensivo à realidade corpórea, e, por isso, à própria condição humana. O corpo é prazer em sua própria intimidade, o prazer pertence ao seu estatuto ontológico, e a obliteração de seu comércio gera a atrofia, conduzindo àquilo que Nietzsche batizou, com justeza, de ressentimento. Por esta e outras vias, a estética conquista aos poucos a sua identidade específica e os seus altos lugares: sua medida situa-se então nada menos do que na reinvenção da realidade humana.

E observe-se que isso tudo é histórico de ponta a ponta: trata-se realmente de uma aventurosa conquista. A parcialidade de Hegel, quando pretende ver no fremir do tom musical algo como o nascimento do espírito, a vontade secreta do mundo sensível em idealizar-se, não deixa de ter certa razão: pense-se na grande música do passado. Mas o som de Debussy, wagnerianamente, é volúpia pura. A nudez do bom selvagem traz na tessitura de sua pele todo um novo modo de ser, que torna profundamente carente a velha alternativa que obriga a escolher entre materialismo e espiritualismo. Mas este já é outro tema — tema para outro fragmento.

Notas

[1] Cito o original: “Les autres forment l´homme; je le récite et en représente un particulier Wen mal forme […]” (Essais, ed. Maurice Rat, Paris, Gamier Frères, 1958, vol. III, capítulo 2, P. 18). A tradução de Sérgio Milliet, é forçoso que se diga (São Paulo, Abril, coleção “Os pensadores”, 1980, p. 367), parece livre demais. Ei-la: “Outros autores têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E o que assim apresento é bem mal conformado”. Faço algumas observações. 1) Entendo que o artigo definido não pode ser suprimido; Montaigne quer inovar, ele se opõe à totalidade da tradição, a todos os outros. 2) O verbo formar, usado duas vezes na mesma frase, não pode ser suprimido: o verbo está vinculado ao conceito de forma, de importância medular justamente na tradição metafísica que Montaigne pretende superar. 3) Prefiro o verbo recitar. O verbo tem (e tinha) basicamente o mesmo significado em francês, em português e em latim: Montaigne o escolheu.

[2] Falando, o homem distingue o que é proveitoso e o que é nocivo, e, por consequência, o justo do injusto (Política, 1253 a 10). O interessante, em Aristóteles, está nessa dependência entre o falar e a política. Pois em pouco tempo desfaz-se a relação entre o animal político e o animal racional: este chega a ostentar a distinção da autonomia — e da despolitização.

[3] Montaigne, op. cit. As duas primeiras frases foram omitidas na tradução de S. Milliet. A terceira também.

[4] A tradução de Milliet inverte o sentido da frase: “Deparamos em qualquer homem com o Homem”. Onde está o texto original?

[5] Idem, ibidem.

[6] Diderot, Suplemento à viagem de Bougainville, in A filosofia de Diderot, trad. J. Guinsburg, São Paulo, Cultrix, 1961, pp. 159 e 161.

[7] Montaigne, op. cit., livro I, capítulo XXXI, p. 101.

[8] Idem, ibidem, p. 102.

[9] Idem, ibidem, pp. 105-6.

[10] Diderot, Oeuvres, Paris, NRF, Bibliothèque de Pléiade, 1957, p. 996.

[11] Thomas Morus, A utopia, trad. Luís de Andrade, São Paulo, Abril, coleção “Os pensadores”, 1979, pp. 252-3.

[12] Diderot, Suplemento à viagem de Bougainville, trad. J. Guinsburg, p. 154.

[13] Idem, ibidem, p. 159.

[14] Idem, ibidem, p. 158.

[15] Idem, ibidem, p. 159.

[16] Cf. J. Guinsburg, in Diderot, op. cit., p. 20.

[17] Diderot, Oeuvres, ed. cit., p. 1.197.

[18] I, 33.

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