2003

Novas fronteiras entre a natureza e cultura

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

No últimos duzentos anos vivemos uma separação entre natureza e cultura que marcou os limites entre as ciências biológicas e as exatas, por um lado, e as humanas, por outro. Estas fronteiras nunca foram pacíficas, movendo-se ao sabor de escaramuças intermináveis – mas em linhas gerais funcionaram. De um lado, tratou-se como objeto a natureza, o mundo em geral e também o homem, procurando-se entender o que os determina. De outro, partiu-se do escândalo que é o seu humano conhecer a si mesmo, misturando as posições do sujeito e do objeto, o que põe problemas enormes, tornando quase impossível a objetividade que foi critério básico nas ciências sociais desde o século XVII. Assim, os pontos de partida eram muito diferentes. Se a separação homem-natureza, desde Galileu e Descartes, dá origem às ciências em geral, as ciências humanas surgem a partir de Rousseau e da problematização desse recorte, quando se percebe quanto é perturbada a relação entre o homem como sujeito cognoscente e como alvo desse mesmo conhecimento.

De qualquer forma, aceitou-se, nestes últimos séculos, a distinção entre algo determinado naturalmente e algo construído socialmente. Esta construção social chamou-se cultura, no sentido técnico do termo, e foi trabalhada pela educação. O sentido mesmo da educação moderna e contemporânea esteve em lidar com essa meleabilidade humana, com o fato de o homem nascer ainda incompleto, e abrir pois, mais que todos os outros entes, espaço para um indeterminado. Este indeterminado nós procuramos determinar mediante projetos cada vez mais explicitados, ainda que bastante diferentes entre si, de formação do ser humano.

Mas o recorte entre natureza e cultura, que abriu condições para essa divisão de tarefa entre as ciências, para seus conflitos e colaboração, entrou em crise devido às neurociências e ao projeto Genoma. As ciências biológicas, numa chave nova, têm avançado sobre territórios que eram da cultura. Até o momento, muito está indefinido, e pode estar sendo alardeada uma vitória ainda não obtida. Contudo, se há uma questão decisiva a discutir hoje nas ciências humanas, em especial na psicologia e na antropologia, é o cenário que se poderá divisar caso providências inteiras do ser humano, que julgávamos definidas pela educação e pela cultura, acabem se mostrando determinadas geneticamente. É prioritário, para que os pesquisadores em Humanas, explorar esse cenário, e saber o desafio que ele nos impõe.


Nos últimos duzentos anos, vivemos uma separação entre natureza e cultura que, grosseiramente, marcou os limites entre as ciências biológicas e “exatas”, por um lado, e humanas, por outro. Essas fronteiras nunca foram pacíficas, movendo-se ao sabor de escaramuças intermináveis — mas, em linhas gerais, funcionaram.

Talvez o traço decisivo das ciências da natureza tenha sido tratar como objeto a natureza, o mundo em geral e também o homem, procurando-se entender o que os determina. Um lema constantemente retomado, desde o século XVII, foi tornar o homem senhor do mundo. A ciência assim engendraria uma tecnologia. À diferença das técnicas dos séculos anteriores, que eram de lavra empírica, sem conexão com o que à época se chamava ciência, desde os inícios da Modernidade a ciência e a técnica se articulam. Lembremos que na Idade Média a ciência ainda é largamente contemplativa. Não há diálogo entre o cientista e o prático. Christopher Hill tem páginas notáveis a esse respeito, em seu livro Origens intelectuais da Revolução Inglesa,[1] especialmente quando enfatiza os contatos que Francis Bacon, por exemplo, manteve com os “mecânicos”, como então se dizia, que eram os artesãos de ponta, os navegadores — em suma, gente de classe mais baixa que a sua, mais voltada ao trabalho quase manual, mas que justamente por isso sabia como lidar com a matéria e conhecia técnicas efetivas, mais que especulações vazias. A ciência moderna nasce, assim, do esgotamento da especulação — e da contemplação —, que os medievais haviam herdado dos antigos. Uma nova ideia de prática — próxima do que Hannah Arendt chamará de fabricação, isto é, de ação sobre as coisas — substitui a primazia da teoria, do olhar descomprometido com os afazeres do mundo e empenhado em, só, conhecer. Conhecer, desde agora, estará ligado a atuar sobre as coisas vistas.

Um segundo ponto a ressaltar, por isso mesmo, é que, especialmente desde Galileu, ocorre o que podemos chamar de substituição da causa final pela causa eficiente. Aristóteles havia definido quatro tipos de causa, que seus comentadores distinguiram como final, eficiente, formal e material. Delas, a mais importante era a final. Um ser caracteriza-se pelo fim (télos) que é o seu. Assim, um ovo distingue-se pelo seu fim, conforme vá resultar em galo, galinha, avestruz. Importa pouco o que efetue essa passagem da potência ao ato, isto é, do ovo que potencialmente é ave à ave, que é seu fim ou télos. A passagem poderia ser efetuada com a ave-mãe chocando ou mediante qualquer outra fonte de calor, mas o essencial é o fim e não o meio.

Ora, o que a Modernidade introduz é exatamente o ponto de vista contrário. Causas produzem efeitos. A ênfase não estará mais no fim, na meta, e sim na relação entre causa e efeito. A melhor prova disso é que, quando falamos em causa, sem adjetivos, entendemos a antiga causa eficiente, aquela que gera efeitos. Isso permite, em primeiro lugar, descobrir as causas do mundo que temos diante de nós. A palavra objeto significa isso: que as coisas sejam colocadas (jeto) à nossa frente (ob). Passamos a vê-las, a olhá-las, a tratá-las como decifráveis. E isso permite, em segundo lugar, uma vez desvendado o mecanismo de causa e efeito, que também causemos os efeitos que desejarmos. É essa a articulação entre a ciência e a tecnologia, hoje mais forte do que nunca, e que começa com a Modernidade. A objetividade no conhecimento é condição para a eficácia na ação, mas ação num sentido muito específico, que é o de produção ou fabricação.

Arendt tem páginas interessantes a esse respeito. Lamenta que tenha passado para segundo plano outro sentido que tem a ação entre os gregos, que era o de ação recíproca entre os humanos, ou práxis. A ação que o mundo moderno celebra é mais que tudo a fabricação de coisas ou de objetos, não a relação entre seres humanos. Por isso é significativo que, quando Thomas Hobbes imagina um Estado construído pelos homens, ele o defina como um mecanismo, como um autômato, análogo aos da relojoaria: o mundo humano é fabricado, não é mais o da praxis recíproca.[2] E o filósofo marxista György Lukács utilizará, na primeira metade do século XX, o conceito de reificação, ou coisificação, para definir essa transformação que o capitalismo efetua, dos homens e de tudo o mais em objeto.[3]

Até aqui talvez eu não tenha enunciado nada de polêmico. Mas agora quero sustentar algo mais controverso: o surgimento das ciências humanas não pode ser entendido como o nascimento de apenas uma, ou umas, a mais entre as ciências. Não é que tenha aparecido a física no século XVII e, cento e tantos anos depois, surgisse com Montesquieu um misto de etnologia, ciência política e sociologia — tudo isso dentro de uma mesma forma de compreensão do mundo. Penso que a diferença é aguda, entre umas ciências e outras. As ciências humanas partem do escândalo que é o ser humano conhecer a si próprio, misturando as posições de sujeito e objeto. Isso formula sérios problemas, tornando quase impossível a objetividade, que é o critério básico das ciências desde o século XVII. Quem parece ter mais bem intuído esse problema foi Rousseau. Recordemos o que observa Claude Lévi-Strauss, em sua conferência “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”.[4] Segundo o antropólogo, Rousseau fundou as ciências humanas ao perceber que nelas é perturbada a relação entre o homem como sujeito cognoscente e como alvo desse mesmo conhecimento. Assim, o mesmo recorte que permite fundar as demais ciências é aquele que as humanas põem em xeque, tematizam, contestam.

Isso se pode comprovar em dois momentos cruciais dos Devaneios do caminhante solitário, obra póstuma de Rousseau. Comecemos pelo episódio em que ele narra como, caminhando distraído, foi derrubado por um cachorrão dinamarquês, no “Segundo passeio” (os Devaneios dividem-se em dez passeios). Cai no chão, desmaia, e quando acorda não sente dor alguma, e sim uma intensa felicidade. Está numa poça de sangue, e não percebe que ele é seu, nem isso o incomoda. Sente-se unido ao mundo que o rodeia. Essa perda da consciência de si, como sendo distinto do mundo, é o melhor que lhe pode ocorrer. Estamos portanto nas antípodas do que caracteriza o cerne do conhecimento científico, tal como Galileu, Descartes e tantos outros o conceberam. Descartes, lembremos, começava a enunciar as verdades a partir do cogito, ergo sum: ou seja, da tese de sua identidade própria com base em seu pensamento. Aqui, nem o pensamento é valorizado (ao contrário, o importante é o sentir), nem a ideia de que alguém se diferencia do resto das coisas.

Um segundo momento está no “Quinto passeio”. Rousseau conta que gostava de ir pela tarde a uma ilha no lago de Biel, na Suíça. Lá, contemplava o movimento das águas. Suas ondas, indo e vindo, inspiravam-lhe de início alguma reflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo. Ainda temos, aqui, o homem racional, o filósofo. Mas logo o movimento tomava conta dele, que perdia totalmente a consciência de si como alguém separado do que vê. Essa perda da separação é fundamental, para Rousseau. Só ela produz a felicidade, que se distingue dos prazeres, tão fugazes quanto ela é permanente.

Essas duas passagens não parecem lidar com a teoria do conhecimento, menos ainda com a epistemologia. Parecem tratar mais de filosofia prática, discutindo questões como a felicidade, a ação, os valores. Quando muito, elas poderiam expressar a crítica — constante em Rousseau — ao conhecimento vão e inútil, indo na mesma linha de sua primeira obra relevante, o Discurso sobre as ciências e as artes. Contudo, Lévi-Strauss entende que temos aqui o que poderíamos chamar a epistemologia própria das ciências humanas. Antes do grande antropólogo do século XX, Durkheim já havia apontado Rousseau e Montesquieu como fundadores das ciências sociais, mas o fizera partindo das análises concretas que ambos realizaram, respectivamente, no Discurso sobre a desigualdade e no Espírito das leis. Não é assim que pensa Lévi-Strauss: ele atribui o papel inaugural de Rousseau a um princípio fundamental que Rousseau descortina, o da pitié — a comiseração, a piedade, o que nos faz sentir-nos próximos de qualquer ser vivo que sofra. Assim, no cerne da epistemologia das ciências humanas teríamos um princípio de comunhão. Para sermos bem explícitos, a recusa da separação entre sujeito e objeto é o que constitui as ciências humanas (e é curioso que o afirme justamente Lévi-Strauss, um dos mais matematizantes dos cientistas sociais…). Finalmente, é por isso que uma ética estará estreitamente vinculada a essas ciências. E isso remete ao que dizíamos, citando Hannah Arendt, sobre a praxis. Essa palavra provém do verbo grego práttein, que indica a ação sobre seres humanos, isto é, uma ação que presume a igualdade e implica a reciprocidade.

Resumindo: temos, de um lado, as ciências naturais, caracterizadas pela exterioridade entre o sujeito e o objeto, bem como pela fabricação de efeitos sobre as coisas; e, de outro, as ciências humanas, distinguidas pela não-exterioridade entre sujeito e objeto, assim como pela ação — sempre passível de reciprocidade — sobre o ser humano.

Por isso, as ciências naturais terão, como conceito-chave, o de natureza (physis) — algo que se pretende descobrir, controlar, manipular. E as ciências humanas se concentrarão no conceito de cultura ou de educação, entendendo-se que o ser humano é formado, construído, em vez de estar pronto ou dado. E aqui, embora o princípio da distinção entre natureza e cultura seja aceito por ambos os lados, isto é, por cientistas da vida e por cientistas do social, temos um ponto sério de conflito. Exemplo da aceitação do princípio está num dos primeiros artigos a serem publicados entre nós sobre o projeto Genoma, de autoria de Fernando Reinach, em que esse cientista alerta que “as características de um indivíduo (o fenótipo) são o produto de uma interação complexa entre suas características genéticas (o genótipo) e o meio ambiente”,[5] conceito, este último, que pode incluir o que chamamos de cultura, formação, educação. Nem tudo é physis.

Mas os conflitos ocorrem, e dizem respeito às fronteiras entre natureza e cultura.

DESDOBRAMENTOS POLITICOS

Antes de aprofundarmos nossos temas, é bom discutir certos desdobramentos políticos desse assunto. O nazismo caracterizou-se, entre outros traços importantes, pela biologização da política. Ele não matou só judeus e “sub-raças”, mas também os próprios arianos que fossem deficientes mentais. Aplicou sistematicamente imagens da natureza, e mesmo da biologia, à política. Tanto as “sub-raças” como os próprios alemães ditos puros, se portassem deficiências, eram desqualificados e até eliminados, como se fossem animais geneticamente falhos. Na verdade, o nazismo foi uma espécie de grande fazenda de criação de gado. Procedimentos cuja aplicação repudiamos no mundo humano, mas que aceitamos no animal, que negamos para o espaço comum constituído pela interlocução (a reciprocidade do práttein, de que tratei acima), mas admitimos para o território da fabricação, foram por ele transferidos para o universo de nossa espécie. Talvez o nazismo tenha sido, e também em alguma medida todo totalitarismo (e isso vale para o comunismo no poder), o estilo de poder que mais se desumanizou, e justamente porque negou o caráter recíproco do que chamamos de relações humanas. A seu ver, não eram relações. Não se davam em mão dupla. Não havia troca. Eram, isso sim, produção, fabrico.

Se o comunismo procedeu muitas vezes do mesmo modo, uma parte da direita — mesmo não sendo nada nazista — igualmente admitiu essa transposição do animal, ou do natural, para o humano. Na França, o político que no início da presidência Giscard d’Estaing era o mais próximo do chefe de Estado, Michel Poniatowski, comentou em 1975 que seu chefe tinha características naturais que o predispunham à liderança — e comparou-o a algumas espécies de pássaros, entre os quais um que nasce com um penacho que o distingue dos demais, para que os comande.[6]

Já a esquerda, historicamente, se caracterizou por considerar a política como ligada à educação. Um marxista consequente não pode entender as determinações biológicas como decisivas. A ciência por excelência, dizia Marx, era a história. Por história, é claro que não se entende a narrativa dos acontecimentos, e sim o caráter histórico — construído com base nas relações de produção — de tudo o que é humano. Contudo, em sua versão stalinista, ou, muitas vezes, quando exerceu o poder, o comunismo se afastou dessas convicções históricas enfatizando seu lado materialista — Stalin, lembremos, fez farto uso de uma obra pouco feliz de Engels, a Dialética da natureza. A ideia de Stalin era que, na expressão materialismo histórico, o primeiro termo prevalece sobre o segundo. (Gramsci, ao contrário, insistia em que era mais importante o adjetivo histórico do que o substantivo materialismo; o marxismo ainda seria marxismo se tivesse injeções de idealismo, mas deixaria de sê-lo caso engessasse o histórico.) Não é casual que Stalin tenha posto em voga o materialismo dialético, do qual o histórico seria simples aplicação à esfera humana.

Uma ontologia tosca (o Diamat, dialektische Materialismus) enquadrava aquela que era, para Marx, a ciência decisiva — a história, ou o materialismo histórico. Reintroduzia-se, assim, a physis, alucinadamente convertida em dialética — com os efeitos tragicômicos que se conhecem, por exemplo, do repúdio à genética de Mendel e as péssimas consequências disso para a agricultura soviética. É possível que essa tenha sido uma tendência dos marxismos no poder, mais do que apenas de sua versão stalinista. É provável que considerassem a referência histórica insuficiente para legitimá-los, para assegurar a permanência de seu regime, e precisassem então reativar a physis.[7] Isso entra em conflito com uma convicção básica do marxismo, a historicidade. — É claro que, assinalando isso, trago água para o moinho dos que consideram os comunismos no poder como não representativos do verdadeiro marxismo. Não quero entrar aqui nessa discussão, porém, porque ela excederia o nosso tempo e espaço.[8]

Se a educação — ou a cultura, entendida como dimensão especificamente humana — é o que mais importa, isso traz uma série de resultados. Por exemplo, se discutirmos o crime, concluiremos que os criminosos tiveram, em boa parte, uma infância infeliz, se formos de Primeiro Mundo; ou, se pertencermos ao Terceiro Mundo, que o contexto social em que nasceram e cresceram os impeliu para a infração à lei. Aceitaremos como atenuante a injustiça presente na macrossociedade, nos países pobres, e, nos ricos, nas relações microssociais. Recusaremos as políticas, distintivas da extrema direita, “duras” com o crime, porque reprimem o efeito, o sintoma, e deixam incólumes as causas. Priorizaremos a recuperação do criminoso e a prevenção do crime mediante políticas sociais. Teremos horror pela pena de morte e por tudo o que agrava o castigo — torturas, espancamento, mas também o isolamento completo, a proibição de visitas íntimas, a ênfase na vingança em vez da ressocialização. (De novo: o marxismo, no poder, aplicou a pena de morte sem nenhum pudor. É possível que essa sua atitude tenha a ver com o mesmo primado da physis a que aludi acima. Em última análise, há duas grandes razões para aplicar a pena de morte. Ou se crê muito no livre-arbítrio, ou — ao contrário — se acredita em determinações naturais, incontomáveis.[9] O livre-arbítrio, cristão, não tem maior guarida no marxismo. Disso se conclui que o Kremlin e seus avatares promoveram uma conversão do humano em natureza.) Em suma, se pudermos mexer na sociedade e em sua estrutura iníqua, reduziremos a um mínimo o mal ou o mal-estar.[10] Sugiro aqui uma definição mínima de esquerda democrática: ela se caracteriza pelo reconhecimento do teor sobretudo social dos conflitos. Isso significa, em primeiro lugar, que os conflitos são legítimos. Excluímos, assim, as doutrinas, geralmente conservadoras, da harmonia social, que seria perturbada por elementos subversivos, infiltrados, externos à boa comunidade — e excluímos igualmente o totalitarismo de esquerda. Este princípio — segundo o qual os conflitos seriam legítimos — constitui o cerne de uma democracia entendida como convívio, como tolerância.

Mas, em segundo lugar, entende a esquerda que os conflitos não são essencialmente naturais. Há, sim, conflitos de base natural, como entre jovens e mais velhos, ou entre homens e mulheres, e talvez os interétnicos. Tais conflitos, porém, somente se tornam significativos quando sobredeterminados pelo elemento social. Daí que o feminismo, quando aposta nas questões naturais, não possa ser de esquerda. Só o será quando deixar claro que a opressão da mulher tem a ver com determinadas estruturas sociais, que por sinal não oprimem somente a ela, mas também a outros grupos, e prejudicam o próprio varão. Da mesma forma, a defesa de uma etnia, ainda que historicamente perseguida, somente será de esquerda quando não assumir, nem em sonho, o sentido de uma vingança contra outra etnia qualquer. Não é o gene o que torna explosivos os conflitos. É a sociedade.

Frisemos este ponto: se reconhecer a legitimidade dos conflitos distingue as políticas democráticas, em geral, afirmar o seu caráter centralmente social é o que caracteriza a esquerda. Não basta, à esquerda, legitimar o conflito. É preciso que ela o engrene em relações sociais. Isso não é simples, nem óbvio. Implica a esperança de que se possa, pelo menos, pôr termo ao alcance antagônico que os conflitos possam adquirir. Por exemplo, se as mulheres padecem numa sociedade machista, e esse fato precede de longe o capitalismo, e subsiste mesmo em ambientes comunistas (o caso de Cuba, tão mencionado pelo próprio Fidel Castro) ou social-democratas, o eixo da discussão de esquerda será que, suprimidas as relações sociais opressivas — a exploração do homem pelo homem —, a condição da mulher haverá de melhorar. A exploração da mulher pelo homem será, pois, um caso da exploração do ser humano pelo ser humano. E, se ela não cessa automaticamente com o fim da opressão mais evidente, é porque a opressão em geral se entranhou de tal forma que se torna necessário um esforço adicional. Mas, em última análise, a emancipação das mulheres contribui para emancipar os próprios homens. Ou seja: aqui, a diferença entre uma política de esquerda que ignora a questão feminina e uma política feminista de esquerda seria que a primeira entenderá a opressão das mulheres como mero caso da opressão em geral, negando qualquer política específica para elas, enquanto a segunda verá, na opressão sobre as mulheres, o ponto estratégico em que se evidencia a opressão em geral. Nos dois casos, a opressão sobre um gênero tem a ver com a opressão sobre a espécie. Mas, para uns, é irrelevante tratar o combate ali, enquanto, para outros (ou outras), é ali que se ata, e desata, o nó da questão.

Podemos tratar, ainda discutindo as relações entre natureza e cultura, do caso dos homossexuais. A discussão sobre o caráter natural ou cultural da homossexualidade reveste-se de bastante ambiguidade. No caso do criminoso, afirmar que ele o é por natureza tem favorecido punições letais — embora, como frisei, devesse, na tradição liberal do direito moderno, legitimar seu tratamento, já que ele não seria responsável por seus atos. Se assim notamos que a naturalização do social não implica um só resultado, mas pode ter distintas implicações, o mesmo se evidencia quando se fala dos homossexuais. Caso eles o sejam por razões genéticas, isso pode estimular a luta para pôr fim à discriminação de que são alvo, porque cortaria os argumentos de que seriam pessoas indecentes ou preguiçosas (a mollitia, literalmente “moleza”, foi um termo usado para designar essa autocomplacência com os prazeres que poderia resultar em masturbação, em homossexualidade, em erotismo intenso de qualquer forma), ou mesmo de que sua sexualidade resulta de um erro dos pais na educação que lhes deram. A homossexualidade seria natural e, portanto, deve ser aceita sem maiores problemas. Mas a mesma tese pode ter efeitos radicalmente diferentes. Porque nem tudo o que é genético está correto: o homossexual poderia ser considerado um erro da natureza, um defeito genético, e ser eliminado já no feto. Aliás, em certos países do Oriente, onde se valoriza mais o homem que a mulher, o exame do feto por ultrassom leva numerosos pais a abortar uma filha indesejada; o que não se faria com homossexuais, que são objeto de maior preconceito? Como a questão é delicadíssima, quero deixar mais do que claro que endosso todo o direito dos homossexuais a exercer sua sexualidade, e que estou discutindo apenas como determinados argumentos podem, ou não, servir a esse propósito. Não estou sequer discutindo se o fator natural pesa mais, ou menos, que o cultural na determinação da homossexualidade. O que quero dizer é que não será com argumentos supostamente biológicos que iremos assegurar a esfera dos direitos. Não é só por ser genética uma determinada sexualidade que ela se verá legitimada. Não é imaginando uma physis de algibeira que vamos instituir a dimensão propriamente humana do direito. O mesmo vale, aliás, para a questão do aborto. Bom número de defensores do aborto discute se o embrião já tem, ou não, vida. Não penso que essa questão sirva para nada, a não ser para desculpabilizar as pessoas envolvidas num ato, como o de abortar, que quase sempre acarreta intensa dor emocional. A discussão não é biológica, é cultural.

OS AVANÇOS NA BIOLOGIA

O projeto Genoma Humano e os avanços nas neurociências trouxeram novidades a esse quadro, permitindo também um sensível avanço da medicina estes últimos anos e nos autorizando a prever que ele continue na mesma linha no futuro próximo. O que nos interessa, aqui, é a possibilidade de encontrar raízes naturais para muito do que era considerado ser de base social ou cultural.

Mas, antes disso, é bom considerar que talvez caibam algumas críticas ao otimismo dos pesquisadores dessas duas áreas, otimismo este que — sobretudo no caso do Genoma — tem conquistado a mídia e os governos. Em primeiro lugar, muito dinheiro é posto nesse tipo de pesquisa, mais que em outros; se igual investimento beneficiasse as humanas, a psicologia, por exemplo, é possível que tivéssemos resultados igualmente impressionantes, mas de sinal oposto. Talvez o fator cultural tivesse maior relevo do que tem recebido. — É verdade, porém, que esse argumento apenas pode ser formulado em tese, porque em seu favor não temos nenhuma prova — e, além disso, ele repousa na hipótese, ainda que forte, de que os resultados de pesquisa dependam em alto grau das somas nela investidas (e sabemos que há campos de pesquisa que não dão em nada, por mais que neles se coloque dinheiro).

Em segundo lugar, e este me parece um argumento bem mais poderoso, as pesquisas biológicas em torno da psique se beneficiam de uma maior disposição do ser humano a se considerar coisa, e portanto a resolver seus problemas como se ele fosse um objeto, do que a se reconhecer como sujeito, e se assumir como responsável por eles. O psicanalista Jorge Forbes, estudando a responsabilidade na psicologia, recentemente analisou um folheto de laboratório farmacêutico, distribuído no Brasil às centenas de milhares de cópias, que diz, ao deprimido, que a depressão que você sente “não é você, é uma doença que pode ser tratada com o remédio tal”. Bastaria medicar. Forbes comenta que assim a pessoa se desresponsabiliza de sua vida psíquica, e conclui: não é possível um tratamento psicológico adequado se o paciente não assumir a responsabilidade por sua psique.

Imaginei um exemplo, a este respeito:[11] um motorista, à noite, derrapa devido a uma mancha de óleo no asfalto, que ele não pôde ver por causa do escuro; com isso, atropela e mata cinco cidadãos. Não é culpa sua, do ponto de vista penal, nem ele responderá por esse ato, do ponto de vista cível. Mas, se ele não assumir a responsabilidade psicológica pelo que fez, jamais conseguirá parar de sonhar com isso, de sofrer por isso. Se ele se limitar, como lhe proporá boa parte da terapia norte-americana de “estar bem”, que é quase uma auto-ajuda, a repetir o mantra segundo o qual não sou culpado, meu carro estava em perfeitas condições, ninguém podia ver a mancha no asfalto, e além disso a polícia e a Justiça me isentaram de qualquer responsabilidade — mantra este, por sinal, rigorosamente conforme aos fatos como eles ocorreram, e que por isso mesmo expressa a mais cabal verdade no plano do direito e mesmo no das relações humanas — pois bem, se ele se persuadir disso, adeus, vida psíquica. Jamais conseguirá superar o trauma, ou pelo menos o drama, que, assim, denega.[12]

Disso, não se conclui apenas que a responsabilidade pode se conjugar em vários modos: há uma responsabilidade jurídica, burguesa, essa que determina que em princípio só respondo — penalmente — pelos atos que livremente cometi, e — civilmente — por aqueles que eu poderia, fosse maior o meu cuidado, não haver praticado; houve uma responsabilidade aristocrática, a de Heráclito e D’Artagnan, que fazia a pessoa responder mesmo pelo que não havia escolhido; e há uma responsabilidade psicológica, digamos assim, que condiciona a cura ou pelo menos o avanço no tratamento a uma assunção, pela pessoa, de determinações que não foram eleitas por ela. Afinal, não fui eu quem escolheu meu sexo, minha nacionalidade, a cultura em que nasci; e no entanto, se os repudiar, se recusar assumi-los, nada serei. E o que quer que eu queira fazer com esses traços que sou eu dependerá, antes de mais nada, de eu os reconhecer como meus. Mas isso é bastante difícil; é mais fácil culpar o outro; e sinal seguro disso é, no Brasil, nosso hábito de nos referirmos ao poder, seja este político ou econômico, por um sujeito oculto “eles”, como que ocultando o fator, constitutivo da Modernidade, de que ninguém governa sem o aval, explícito ou implícito, dos governados.[13]

Talvez por isso a responsabilidade seja, hoje, uma das grandes questões das ciências humanas. Elas lidam com o homem em sua práxis, melhor dizendo, na reciprocidade que nos faz constantemente trocar as posições de sujeito e objeto, de quem pratica e de quem sofre uma ação. Parece ser muito mais fácil nos colocarmos no papel de quem é simples objeto. A medicação é um dos procedimentos mais eficientes para tratarmos a nós e de nós mesmos como coisa. (Estamos analisando a política a partir da saúde, como ficará mais claro na conclusão deste artigo.) Isso significa uma mudança na ideia levantada por Lukács. Quando ele e outros pensadores denunciavam a reificação do homem efetuada pelo capitalismo, esqueceram-se de acrescentar — ou não puderam fazê-lo, presos que estavam ao paradigma da repressão que vem de cima para baixo, não compreendendo aquela que vem de dentro — que, se ela é tão bem-sucedida, é porque tornar-se coisa pode ser um forte desejo nosso. E isso, antes de mais nada, porque nos libera de um enorme peso, o de decidir. Devemos introduzir, nesse fenômeno, a partícula que designa o processo que fazemos sobre nós mesmos, o reflexivo: e falar em auto-reificação do ser humano.

Enfim, se o primeiro argumento — não contra o conteúdo das pesquisas biológicas sobre a psique, mas sobre a ênfase dada a elas — trata do modo de produção dessas pesquisas, o segundo (de longe, o mais forte) aborda-as do ponto de vista de sua recepção. Mostra por que elas têm público assegurado, garantido. Explica seu sucesso, não só em meio à mídia e aos governos, mas junto às pessoas em geral. É claro que nenhuma dessas críticas contesta resultados comprovados e, aliás, como toda descoberta científica, altamente positivos. É verdade também que os resultados da decifração do Genoma Humano, difundidos em fevereiro de 2001, foram um tanto decepcionantes, mostrando que serão necessários ainda muitos anos de pesquisa antes de se chegar a certos resultados alvissareiros com que se acenava. Mas aqui queria passar a outro ponto: é que essas descobertas vêm junto com uma mudança bastante radical na medicina e no modo de se lidar com o corpo e a alma.

DO ZERO AO MAIS

Podemos dizer que até quase nossos dias a medicina procurava zerar as doenças — fazer-nos retornar a um estado de saúde prévio a elas. Toda uma ideia de medicina assim se construiu, e no seu bojo a de Previdência Social, nascida como o maior empreendimento social do pós-Segunda Guerra. Derrotado o biologismo nazista, deu-se à medicina um teor social. Talvez, aliás, possamos expressar o fim daquela guerra como uma vitória do social sobre o biológico. Lembremos que a devastação produzida por uma guerra total tornava óbvia uma preocupação social com a reconstrução. Além disso, percebeu-se que o importante era a paz, o pós-guerra, e que as causas da própria Segunda Guerra remontavam, em larga medida, ao abandono dos povos a seu destino, depois da Primeira Guerra. Boa parte dos revolucionários, desde 1917, fossem eles bolchevistas, fascistas ou nazistas, se compunha de veteranos das trincheiras de 1914, que o liberalismo econômico desdenhara, sem procurar integrá-los, quanto mais recompensá-los pelo sangue que haviam vertido pelas respectivas pátrias. De 1945 em diante, porém, as políticas são mais sociais. Basta imaginar que minha casa tenha escapado incólume às bombas que arruinaram a do vizinho: é inteiramente justo que eu, salvo pela sorte, pelo acaso, contribua para devolver moradia a meu concidadão. É no quadro desse movimento geral de solidariedade que se impõe a Previdência Social, já esboçada nos anos anteriores à Segunda Guerra.

Um de seus desdobramentos foi a convicção de que cabia ao poder público promover a justiça também no tocante à saúde do corpo (da psique seria mais difícil). O pressuposto que se adotou foi conceber um estado de saúde como aniquilação da doença. Vale a pena evocar, aqui, uma obra que prefigura as preocupações sociais que cresceram ao longo do século XX, a Utopia, de Sir Thomas Morus. A certa altura, o filósofo debate o que é o prazer. Sabe-se que em Utopia não há diferenças de roupas, de comida, nem sequer de práticas e crenças. Ora, um dos raros pontos de debate na imaginária ilha perfeita é a natureza dos prazeres e da felicidade. Discute-se se o prazer corporal consiste no “funcionamento calmo e regular do corpo — isto é, de um estado de saúde não perturbado por doenças de nenhuma espécie”, ou se ele requer algo mais que isso: em suma, se o prazer é a ausência de dor ou desprazer, ou se ele é algo mais positivo; em outras palavras, se o bem-estar é um grau zero de mal-estar, ou se é algo mais intenso, quantitativamente mais elevado. Pois o que a Previdência Social estabeleceu, como responsabilidade solidária da sociedade em face dos desvalidos, foi uma ideia de saúde como negação da doença, do bem como supressão do mal, em suma, do bem-estar como aquilo que zera o mal e o mal-estar. E nada mais.

Hoje, porém, com Xenical, Prozac e Viagra, mudam as coisas. Torna-se plausível, imaginável, desejável ser magro mesmo comendo, ser alegre e talvez feliz, mesmo ante uma situação penosa externa e sem ter resolvido seus problemas pessoais, ser viril mesmo com a idade avançando. Aqui comparece uma nova ideia de saúde. Podemos entrar em sua discussão de maneira indireta — pelo viés da pergunta europeia: se a Previdência Social deve ou não cobrir essas despesas. Não há consenso a respeito. Um grande argumento em favor da cobertura social de tais medicamentos indaga: por que os pobres não poderiam ser magros, alegres e potentes? Afinal, se não for assim, somente os ricos se beneficiarão dessa última geração de medicamentos, que já não buscam apenas conter o mal, mas — também — promover o bem; que não procuram somente assegurar a saúde pela negação da doença, mas tencionam expandir a esfera da saúde, ampliando a expectativa de vida e igualmente a sua qualidade. Se não houver uma cobertura social para eles, a desigualdade social se expandirá da cultura para a natureza. Os ricos não terão apenas a melhor educação, mas também o melhor corpo. E poderemos chegar ao pesadelo da justiça social, que seria a divisão dos humanos em duas raças, uma mirrada e outra exuberante.

Contudo, há um bom argumento contrário ao abastecimento dos indivíduos privados pela Previdência: é o que afirma que essa seria uma forma de o Estado tutelar o desejo das pessoas. Como posso decidir quantos orgasmos alguém terá num mês, graças ao Viagra, quantos pastéis poderá comer por semana, graças ao Xenical, quantos dramas poderá deixar insolúveis, graças ao Prozac? Há dois grandes problemas aí. O primeiro é genérico: assim se favorece certa indolência, certa preguiça ante a vida. Ficamos dispensados de cuidar de nós mesmos, porque um produto químico pago pelo Estado o fará: em nosso lugar. Vendemos assim a nossa responsabilidade, ou o direito à irresponsabilidade. Pagamos isso, provavelmente, em termos de conformismo político. Um novo contrato social assim se delineia, mediante o qual o Estado permite um hedonismo sem custo pessoal, moral, mas de alto custo político — porque seu preço é a conversão do cidadão em súdito.

Já o segundo problema é mais específico da sexualidade. O que será de uma vida sexual intensa, ou pelo menos boa, se ela for patrocinada pelos poderes públicos? Sabe-se que o erotismo está estreitamente ligado à transgressão. O desejo tem, no seu cerne, algo anti-social. Freud bem o viu, ao opor o id ao superego. Aqui, porém, com o fornecimento estatal do Viagra, o que se esboça é o superego, a instância dos valores e mesmo da repressão, regendo o uso que se faça do desejo sexual, que estaria mais bem alocado no id. É provável que essa estatização do erotismo acabe causando problemas novos. O que temos de mais perto disso é a experiência descrita no Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, de distribuição de uma droga que deixava todos felizes, embora idiotas.[14] É provável, mais que isso, que a conversão da transgressão em norma, do desejo em algo administrado socialmente, quantificado em tantas vezes ao mês ou por semana, traga no seu bojo certo desinteresse pelo sexo — que, ganhando em performance física, perca, porém, em entusiasmo emocional.[15]

Com isso, saímos da questão da Previdência Social. E chegamos a um argumento contrário, agora, não só ao fornecimento estatal de tais medicamentos, mas a eles próprios. Eles — afirma-se — interferem só nos sintomas, não nas causas. Produzem certa neutralização do mal-estar ou do mal, não a sua mudança. É verdade que se pode responder que, caso queiramos mexer nas causas, poderemos morrer antes — o que bem sabe muita gente que passou anos ou décadas no divã. Esse, aliás, é um problema que a psicanálise e mesmo várias das psicoterapias terão nos próximos anos, e que poderá expressar-se pela voz dos Procons e pela legislação do consumidor: porque elas não dão nenhuma garantia, não assumem responsabilidade alguma. É da essência mesma da psicanálise não dar garantias, simplesmente porque ela procura formar o paciente para ele próprio assumir todas as suas responsabilidades. O psicanalista, assim, constantemente recusará os papéis que o paciente lhe tentará atribuir, até que este último se resolva a assumi-los por conta sua. Mas esperem até o primeiro psicanalista ser condenado pelo suicídio de uma paciente. Li há poucos dias um caso, que acaba de ocorrer nos Estados Unidos, de dois “terapeutas de renascimento” condenados porque causaram a morte de um menino de dez anos. É claro que num caso falamos de uma profissão respeitada, no outro de charlatões; mas não importa: a responsabilidade pelo paciente será cada vez mais patente, e caberá à psicanálise reformular-se diante dessa mudança da sociedade, que em linhas gerais é positiva, embora nesse campo possa não o ser. De qualquer forma, o argumento de que com os medicamentos se lida apenas com o sintoma, não se mexendo nas estruturas, não vai apenas contra o seu fornecimento pela Previdência — vai contra o próprio uso deles.

Mas, para além disso: o que essa medicina está propondo não é a volta a uma situação anterior, ainda que mítica. Não está querendo zerar a doença. Propõe o mais: uma felicidade maior do que antes. E isso está no cerne dos projetos Genoma, das neurociências, até da clonagem: ser capaz de ir além do que jamais se foi. Por exemplo, cogita-se curar, já no feto, doenças que ele um dia possa vir a desenvolver. Pensa-se em se eliminar todo defeito congênito. Se lembrarmos que cerca de um quarto das pessoas, antes mesmo da presbiopia,[16] já tem necessidade de óculos, podemos imaginar que é possível se reduzir a profissão dos oftalmologistas e o comércio das ópticas a bem pouca coisa. Esta, uma primeira etapa do Genoma, na qual se tende a priorizar o tratamento das doenças de causa genética. Mas nada impede que se use o saber adquirido com o projeto para “melhorar” a raça: por exemplo, aumentando a altura de nossos netos, tornando-os mais magros, quem sabe até — neste país moreno de gostos esquisitos, amante a um tempo das nádegas grandes e dos cabelos claros — aloirando nossos nenês. Vejam como nessa série de possíveis mudanças se tem de tudo. Penso que poucos se oporão a uma engenharia genética que reduza a gordura, torne as pessoas mais altas e mais resistentes. Mas não é a mesma coisa fazer loiros nossos filhos.

Já há muito debate ético sobre isso, mas com frequência ele é medíocre. Cito um exemplo, que se evidenciou na novela Laços de família, porém tinha aparecido, anteriormente, na mídia: será correto gerar um filho para, com um transplante, salvar outra pessoa? Essa pergunta é quase idiota, porque é óbvio que se o novo filho não receber amor, e for apenas um instrumento, gerá-lo é indecente — mas, se receber amor, por que não? Por que não essa razão, em vez de qualquer outra? Muitos pais têm um filho a quem chamam de “Júnior”; haverá mais clara evidência de seu narcisismo, de seu egoísmo? E no entanto nem isso torna ilegítima a paternidade, porque posso dar, a meu filho Júnior ou Filho, amor. A pergunta séria é se posso aloirar meu futuro bebê, se é correto aumentar sua altura, quem sabe, um dia, programá-lo para ser campeão de basquete, em suma, se podemos acentuar a diferença social e econômica tornando-a, também, natural (o que já ocorre, em parte, pela qualidade da medicina de que desfrutam uns e outros). E sabemos que pouco adiantará a regulamentação, porque basta um só país no mundo permitir ou tolerar que tudo, nele, se fará (clones, intervenções no feto etc.). Este será um mercado fantástico em especial para micropaíses. É bom lembrar que há hoje umas duas dúzias de Estados que correm o risco de desaparecer fisicamente ao longo do século XXI. Pela primeira vez na história, há países que podem sumir, não como organização política, como identidade nacional, mas geograficamente mesmo, na sua existência física — e isso em decorrência do efeito estufa, ou seja, do aquecimento do planeta, que levará talvez as águas dos oceanos a subirem um metro, nos próximos cem anos, e assim a submergir cidades, como o Rio de Janeiro, e países inteiros, como vários arquipélagos do oceano Pacífico. Alguns deles procuram obter renda de qualquer modo que seja. É o caso de Tuvalu, que com uns 10 mil habitantes se alçou à notoriedade, recentemente, porque vendeu para uma empresa norte-americana, por 300 mil dólares, sua terminação na internet, que é “.tv”. Com esse dinheiro, espera o pequeno país poder pagar sua filiação às Nações Unidas e, assim, dispor de uma tribuna para defender-se da ameaça do efeito estufa a sua própria existência natural. Pois bem, o que impedirá esses Estados independentes de direito, acuados até a morte, de autorizar em seus territórios práticas que sejam proibidas fora deles, mesmo que o sejam por acordos internacionais? É possível, assim, que não bastem as declarações de intenção ética contra o uso de certas novas tecnologias — até porque, se não é ético usar dos resultados do Genoma para promover um apartheid eugênico, para reativar uma separação nazista ou huxleyana entre seres superiores e inferiores, tampouco é ético deixar mais de vinte países e inúmeras cidades, incluindo o Rio de Janeiro, serem tomados pelas águas.

A AMEAÇA ÀS CIÊNCIAS HUMANAS

Se há uma questão decisiva a discutir hoje nas ciências humanas, em especial na psicologia e na antropologia, é o cenário que se poderá divisar caso províncias inteiras do ser humano, que julgávamos definidas pela educação e pela cultura, acabem se mostrando determinadas geneticamente. É prioritário, para os pesquisadores em humanas, explorar esse cenário e saber que desafios ele nos impõe.

Curioso que sejam essas duas províncias as mais imediatamente visadas. É claro que, se avançar a medicação do “mais”, cada vez menos gente quererá pagar um psicólogo e menos ainda um psicanalista. Mas foi justamente Freud quem, no fim da vida, propôs encontrar os condicionantes não só biológicos, mas físicos e químicos, da psique. E Lévi-Strauss mais de uma vez falou no mesmo sentido, em especial no último capítulo do Pensamento selvagem. Por outro lado, porém, essas duas disciplinas talvez sejam as que mexem mais profundamente no mal-estar humano. É compreensível que desejemos, assim, excluí-las, afastá-las de nós, substituindo-as por uma solução, ainda que fabricacional, desse mal-estar. Elas são também, o que não é mera coincidência, as que dão maior peso à proibição do incesto. Será este um ponto nodal dos novos tempos?

O que é a proibição do incesto? Não existe o incesto, e depois dele sua proibição. É a proibição que cria o incesto. Num imaginário mundo anterior à proibição dele, a pessoa não distingue bem quem é seu pai ou quem são seus irmãos. E a melhor prova de que o incesto é uma construção cultural, mais que um dado ou realidade natural, está no fato de que, se todas as sociedades humanas o proíbem, elas o definem, porém, de distintas maneiras. Assim, tomando por exemplo qualquer tribo, veremos que as pessoas-tabu às vezes têm menos genes, ou menos “sangue”, em comum comigo do que algumas permitidas. Mesmo no mundo moderno, a Igreja católica proibiu durante bastante tempo o casamento com o cunhado, ou até mesmo com a irmã da mulher com quem alguém manteve relações sexuais, ainda que extraconjugais, enquanto autorizava o matrimônio com primos e sobrinhos. É convicção básica, entre os antropólogos, que a proibição do incesto significa que há regras — fundamentais — que são da esfera da cultura, não se reduzindo ao mundo natural. A antropologia, que mais que todas as outras ciências investiga as significações que os humanos atribuem a seus gestos, a seus atos, a suas instituições, supõe que o homem inove, em face da natureza, na medida em que cria regras e confere significações. Já na psicanálise, a proibição do incesto significa a aceitação de limites a meu desejo. Sei que não posso ter tudo (ou ser tudo), e que devo, para realizar bem o que posso, abrir mão de muita coisa.

Curiosamente, porém, esse senso comum difundido pelas duas disciplinas — segundo o qual nenhuma regra é sagrada ou natural, mas de todo modo é preciso ter uma regra — elimina boa parte da base para a incorporação das regras. Historicamente, elas foram mais obedecidas quando passaram não por regras, que são artificiais, mas por leis, que são sagradas ou naturais. Um dos vetores que delinearam a Modernidade, já antes de Freud e Lévi-Strauss, foi a lenta corrosão de sua base, de sua legitimidade. Veja-se, por exemplo, Thomas Hobbes. Ele deixa claro, ao tratar do Estado, que este não é uma criação divina nem um dado natural, mas uma construção humana. A obediência ao governante não decorre de um imperativo de Deus — como queriam seus contemporâneos monarquistas, partidários da doutrina do direito divino e do absolutismo régio —, mas de um contrato que atende ao interesse de cada um salvar a própria vida da morte violenta. É provável que o ponto fraco de sua teoria — um ponto fraco não teórico, mas na sua recepção, na sua eficiência para constituir uma base adequada para se aceitar a dominação — tenha estado justamente aí: querendo ele dar um fundamento melhor para a obediência, acabou, porém, por erodi-la, já que ela se tornaria apenas racional, e perderia suas ligações com o medo do inferno. É exatamente isso o que será reativado pelo senso comum a que acima me referi. Se a renúncia à plena e irrestrita satisfação do desejo, promovida pelas regras, entre as quais avulta a proibição do incesto, é determinada por nossos interesses (viver bem e melhor com menos, em vez de viver mal e arriscadamente buscando tudo), e não por um decreto externo a nós, se tal renúncia é expressão de nossa autonomia, e não um Diktat de nossa heteronomia, enuncia-se a imanência da condição humana, em vez da transcendência de um regulador divino ou superior a ela, então é forte a possibilidade de que não entendamos por que essas regras, e sim outras. É provável que nos próximos anos vivamos, assim, uma maior redução das razões de obedecer às regras. O desafio estará em conseguirmos que a autonomia prevaleça, isto é, que obedeçamos a regras que tiveram nosso próprio aval, que nós mesmos decretamos e legislamos.

No caso simbólico, mas também tão específico, do incesto, é possível que seu impacto negativo se reduza. Tomemos o romance de Eça de Queirós, Os maias, recentemente adaptado por Maria Adelaide Amaral para a televisão. No século XIX, foi um escândalo que um irmão se relacionasse sexualmente com a irmã. Era uma obra “forte”, dessas que se trancavam a chave para que as mulheres e sobretudo os jovens não a lessem, para que não tivessem “Ideias”. Mas, no ano 2000, que dizer de uma atração entre irmãos biológicos que não se conheceram nunca — que não são irmãos culturais? Nossa ideia de parentesco está cada vez mais culturalizada, isto é, cada vez levamos mais em conta as relações construídas pelas pessoas do que aquelas que são apenas genéticas. A Justiça tem aceito, cada vez mais, que quem cuidou de uma criança tenha direito a ela mais do que aquele que apenas a gerou. O assunto é, sim, controverso, e justamente o Genoma permite uma reativação dos laços de sangue — mas isso não é fácil, e a opinião dominante hoje parece favorecer o amor efetivamente dado, sobre os laços apenas sanguíneos.

Ora, é essa a relação entre Édipo e seu pai Laio — exatamente análoga à que vivem Carlos Eduardo e Maria Eduarda, em Os maias. Nos dois casos, há um laço de sangue ignorado pelas personagens. Mais que isso, um laço de sangue que em momento algum de suas vidas teve desdobramentos culturais, relacionais. Laio mandou matar o filho recém-nascido. A mãe dos irmãos desapareceu de Portugal antes mesmo que o menino e a menina tomassem conhecimento da existência um do outro. Portanto, se o que digo sobre o pouco horror atual ante o incesto de irmãos vale, também pode se aplicar a uma redução do horror na relação entre pai e filho (o mesmo não diria, porém, quanto à mãe, com quem a relação intra-uterina já tem, como mostrou Melanie Klein, uma significação cultural). Em suma, o que quero dizer é que talvez a própria proibição do incesto regrida, e que isso venha junto com uma relativização, uma colocação em questão das proibições em geral.

Parecemos, em suma, estar vivendo uma disposição a ir. São vários os modos pelos quais essa superação dos limites básicos de nossa cultura se pode dar. Aqui me referi a alguns deles, provavelmente os mais importantes. Tratei da transformação na saúde a que estamos assistindo, com a substituição de uma medicina que zerava os males por uma que se dispõe a produzir um bem positivo, a efetuar grandezas afirmativas. O corpo deixa assim de ter como ideal o mero equilíbrio das forças já dadas e passa a valorizar o avanço de sua saúde, um aprimoramento significativo. Isso, porém, se dá mediante uma hiperbiologização do homem, que é o que ameaça as pesquisas da antropologia e da psicologia, passíveis de serem descartadas em favor das da biologia. O bíos anexaria a psique. Mas esse processo de avanço da natureza sobre a cultura não é simples assim. O que procurei, nas últimas páginas, foi mostrar como essa própria mudança de fronteiras entre natureza e cultura responde a um clamor cultural — difuso, sim, mas que me parece cada vez mais perceptível: o anseio de vencer as barreiras, de derrotar os limites históricos e, talvez, até biológicos de nossa condição. Emblema desses limites tem sido a proibição do incesto.[17] Não é coincidência que as duas disciplinas ou famílias teóricas que mais examinaram esse tabu contra o incesto tenham sido as duas que reputo mais ameaçadas pelo andamento das pesquisas em neurociências e no Genoma, bem como pelos progressos na medicina a que aludi. Estamos diante de mudanças que não se podem entender apenas como uma disputa para se saber qual ciência há de nos explicar. O que se discute é como a saúde humana se tornou um ponto crucial de discussão política. O que está em jogo é que tipo de humanidade queremos, e como podemos, nas próximas décadas, construir um mundo no qual a felicidade seja mais do que o grau zero da dor e da carência: em que ela seja algo positivo.

Notas

[1] Christopher Hill, Origens intelectuais da Revolução Inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Ver também seu O mundo de ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[2] Leviatã, “Introdução”. Várias edições.

[3] Georg Lukács, História e consciência de classe. Rio de Janeiro: Elfos, 1989

[4] Traduzida em português na coletânea Antropologia estrutural dois, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

[5] Fernando Reinach, “Projeto Genoma”, Revista USP, n. 7 (1990), pp. 33-6.

[6] Embora Poniatowski pertencesse a um partido liberal, na tradição orleanista que o presidente Giscard representava, ele se orientou cada vez mais para a extrema direita — o que provavelmente foi a causa de sua saída do governo, logo ele que tinha sido o braço direito de seu chefe, nos anos que precederam sua eleição para a Presidência. Essa deriva extremista talvez possa ser relacionada à sua visão biologizante da política — que, então suporemos, se situaria à extrema direita do espectro político, e não simplesmente à sua direita.

[7] Indício dessa atitude pode se encontrar num livro recente de Marta Hanecker, Tornar possível o impossível; a esquerda no limiar do século XXI, Paz e Terra. É estranhíssimo que, depois de criticar os líderes de esquerda que se perpetuam em seus cargos, ela excetue Fidel Castro, “força telúrica”, assim diz. Como o marxismo é acima de tudo uma ciência da história, enraizar na terra um líder marxista é radicar o poder na natureza, retirando-o das relações entre os humanos, ou seja, da história. Que resta então de marxismo? A esquerda assim pensada se torna um misto de religião, de boas intenções, e de práticas pouco democráticas.

[8] Mesmo sem aprofundar a questão, porém, penso que é hora de sairmos, a esse respeito, da dicotomia sim ou não — isto é, ou o marxismo seria pai inconteste do comunismo, ou nada teria a ver com este último. Uma discussão aprofundada e matizada dessa questão é importante para qualquer crítica ou balanço do comunismo. Aqueles que se situam à direita evidentemente responsabilizam as ideias de Marx pelo que o comunismo fez de ruim, enquanto os críticos de esquerda as isentam. Penso que qualquer avanço nesse rumo — e portanto qualquer discussão do papel que têm ainda hoje as ideias de Marx — exige uma sintonia fina, com todos os matizes que ela há de comportar, promovendo um balanço mais preciso dos pontos em que o marxismo é incompatível com a democracia (por exemplo, sua autodefinição como ciência, que acarreta a desqualificação de todos os divergentes como errados) e daqueles em que ele deixou bases decisivas para pensar a sociedade (acima de tudo, como diremos adiante, a caracterização dos conflitos como essencialmente de teor social, e não biológico, isto é, sexuais, étnicos etc.).

[9] Tal como a crença de que alguém nasceu monstro, deformado eticamente etc. Mas neste segundo caso a pena de morte é aplicada eugenicamente, e não como um castigo — porque falta o pressuposto de que o réu tivesse liberdade para agir de outro modo. Nos Estados Unidos, aplica-se hoje um blend das duas doutrinas, por conflitantes que elas sejam e por contraditório que isso resulte. Lida-se com o condenado à morte como um irrecuperável, um “erro de Deus”, como afirma, no filme Os últimos passos de um homem, um senhor cuja filha foi assassinada por um condenado à pena capital. Por aí, porém, a condenação não pode mais se justificar com base no direito moderno ocidental, que exige, para se aplicar qualquer penalidade, que o réu soubesse o que fazia e que pudesse agir de outro modo. Daí que se enunciem, alternadamente, essa crença e a de que o réu sabia o que fazia. Aliás, há duas doutrinas da culpa no campo penal norte-americano. Uma entende que é culpado quem podia agir de outro modo, e não o fez. Outra se contenta em que o acusado soubesse que era errada, legalmente, sua ação. Fica evidente que a primeira doutrina pouparia mais vidas ao carrasco. Ela permite entender que pessoas com incapacitação psicológica ou social não possam ser condenadas. São as atenuantes ligadas à infância infeliz, ao meio social, que têm o papel de reduzir a real responsabilidade do réu. Como, porém, prevalece a segunda doutrina, isso permite executar inúmeras pessoas que, quando muito, deveriam ser internadas para tratamento. O exemplo clássico da década de 1990 é o caso de Bill Clinton, então governador do Arkansas em campanha pela Presidência, que retornou em meados de 1992 da Costa Leste para seu estado a fim, tão-somente, de ordenar a execução de um condenado à morte notoriamente deficiente mental. Na sua última refeição, em que lhe foi servido um bife especialmente saboroso, ele disse que deixaria metade “para comer depois”. Nem tinha percebido que, para ele, não haveria depois.

[10] Tratei da pena de morte em meu artigo “Os erros de Deus: a pena de morte como extermínio do disforme”, in Filosofia política, nova série, n. 5 (2000), pp. 111-31.

[11] Ver, a este respeito, meus artigos “A fortuna aristocrática”, in A última razão dos reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, e “Da responsabilidade na psicanálise”, in Dora, revista do Instituto de Pesquisas em Psicanálise de São Paulo, ano 2, n. 2, ago. 1999, pp. 13-7.

[12] Aliás, Mario Vargas Llosa tem algumas páginas saborosas, em Tia Júlia e o escrevinhador, tratando de um caixeiro-viajante que, depois de matar uma criança sem querer, quase enlouquece — e somente se cura quando, ainda que de forma bufa, assume o ato que praticou.

[13] A ditadura desresponsabiliza. Mas, desde que há certa liberdade de organização e de eleição, as coisas mudam de figura. Não há dúvida de que boa parte do povo brasileiro, como de outros países do mundo, não tem condições — alimentares nem culturais — de exercer uma liberdade cidadã. A manipulação não é pequena, em matéria política. Seria portanto ingênuo afirmar que os poderes eleitos recebem o aval explícito da maioria do povo. O voto que lhes é dado foi, muitas vezes, deturpado pelo jogo teatral do poder. — Contudo, um aval ao menos implícito ao poder existe. As massas desorganizadas, controladas pela televisão de pior qualidade, acabam endossando as potestades que aí estão. Ignorar esse dado é, primeiro, adotar uma postura demasiado paternalista da política — e, segundo, esquecer que, mesmo que consideremos essas massas como amorfas e passivas, somente responsabilizando-as por suas escolhas é que elas ganharão forma e se tornarão ativas. A cidadania não se dá, se conquista.

[14] Contudo, quem argumenta em favor da distribuição, pela Previdência Social, desses medicamentos tem bastante razão ao alegar que essa é uma forma de evitar a monopolização pelos mais ricos dos avanços médicos. Como atender a essa necessidade, sem porém estatizar Eros? Parece-me que o adequado será que as pessoas que precisem, por exemplo, do Viagra tenham recursos suficientes para escolher se querem comprá-lo — ou se preferem adquirir outra coisa. Sem dar a elas essa oportunidade de escolha, teremos os efeitos, a meu ver negativos, que descrevi acima. Ver meu artigo “Os amantes contra o poder”, in Adauto Novaes (org.), O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 433-44, em que trato, entre outros assuntos, do livro citado de Aldous Huxley.

[15] A compra, com recursos próprios, do Viagra — ou de seus equivalentes — pode ser mais saudável. Contudo, se me permitem o absurdo, e sem que isso constitua nenhum tipo de incitação ao crime, talvez o mais adequado, para preservar o elemento transgressor, fosse furtar esse remédio. Não se costuma dizer, na Bahia, que as fitas do Senhor do Bonfim só valem quando não são compradas — isto é, quando alguém as dá ou quando são furtadas? Pois talvez os remédios para a potência sexual sejam um equivalente pagão disso. Os circuitos normais (estatais ou financeiros) de aquisição do prazer não são os melhores. O desejo vive melhor no registro da dádiva — ou no do furto. E é curioso que dois registros assim tão opostos (o do dom e o da semiviolência) coincidam: é porque ambos repudiam a normalidade, a do Estado, a do dinheiro.

[16] Conhecida popularmente como “vista cansada”.

[17] Ver meu artigo sobre o filme 2001, de Stanley Kubrick: “2001 ou a busca de Júpiter em nós”, Update, São Paulo: Câmara Americana de Comércio, jan. 2001.

    Tags

  • aborto
  • alma
  • amor
  • Aristóteles
  • autonomia
  • bem estar
  • biologização
  • castigo
  • causas
  • Christopher Hill
  • cltura
  • cogito
  • compreensão do mundo
  • comunismo
  • conhecimento
  • consciência de si
  • corpo
  • crime
  • culpa
  • democracia
  • Descartes
  • desejo sexual
  • desumanização
  • determinismo
  • Deus
  • direito
  • Durkheim
  • Édipo
  • efeitos
  • Engels
  • engenharia genética
  • ergo sum
  • erotismo
  • esquerda
  • estado
  • etnologia
  • fabricação
  • felicidade
  • feminismo
  • fenótipo
  • filósofo
  • Francis Bacon
  • Galileu
  • genótipo
  • Hannah Arendt
  • historicidade
  • homossexualidade
  • humanidade
  • idealismo
  • igualdade
  • incesto
  • infração
  • instabilidade
  • irresponsabilidade
  • judeus
  • justiça
  • Lévi-Strauss
  • livre-arbítrio
  • macrossociedade
  • mal
  • mal-estar
  • Marx
  • marxismo
  • materialismo dialético
  • materialismo histórico
  • mecânicos
  • medicina
  • microssociedade
  • modernidade
  • Montesquieu
  • natureza
  • nazismo
  • obediência
  • objetividade
  • objeto
  • Origens intelectuais da Revolução Inglesa
  • physis
  • piedade
  • pitié
  • potência
  • prazer
  • proibição
  • Projeto Genoma Humano
  • psicanálise
  • psique
  • reciprocidade
  • relações de produção
  • relativização
  • renúncia
  • responsabilidade
  • Rousseau
  • satisfação do desejo
  • saúde
  • sexualidade
  • sociedade
  • sociologia
  • Stalin
  • sub-raças
  • sujeito
  • sujeito cognoscente
  • superego
  • tecnologia
  • teoria do conhecimento
  • tolerância
  • transgressão
  • valores
  • verdade