2002

Notas sobre a noção de autonomia na civilização indiana

por Charles Malamoud

Resumo

Apesar das grandes desigualdades sociais e da opressão que pesa sobre os mais desfavorecidos, a Índia vem mantendo, desde sua independência do colonialismo britânico, um regime político que pode ser qualificado de democrático (eleições regulares, justiça independente, imprensa livre, respeito às minorias religiosas etc.). Para entender essa contradição é preciso considerar, historicamente, que o tradicional sistema de castas, segundo estudiosos atuais, não é tão fechado quanto se supõe, e que as doutrinas fundamentais do hinduísmo comportam uma relativa autonomia do político. A palavra de ordem adotada por Gandhi e os nacionalistas foi swârâj, que significa “o fato de ser seu próprio soberano”. Para o hinduísmo o sol é a causa última da soberania e a liberdade é o fruto de uma conduta virtuosa. Ser livre é saber limitar suas necessidades. A ascese é condição de emergência do indivíduo livre que deve, antes de tudo, libertar-se da servidão do karma, isto é, das infelicidades resultantes dos atos de vidas anteriores. A meta não é tanto abster-se de agir, mas agir de forma desinteressada. Esse foi também o papel de Gandhi na formação do civismo indiano: soberania do indivíduo e capacidade de agir pelo bem. Na mitologia indiana, conta-se que os deuses só conseguiram vencer seus adversários demoníacos quando entregaram a Indra “seus corpos mais caros”. É a forma ideal do coletivo: união de iguais para formar um grupo pela distância que cada um aceitou instituir em relação a si mesmo.


Pode a Índia atualmente recorrer à sua própria tradição para nomear e também para pensar os princípios sobre os quais se fundamenta sua vida pública? Como se sabe, a União indiana ufana-se de ser a maior democracia do mundo: 1 bilhão de homens, no subcontinente, vivem num Estado governado por uma constituição e regras muito semelhantes àquelas em vigor nas democracias ocidentais. Mais precisamente, a Índia tornou-se nação independente ao cabo de um período histórico caracterizado simultaneamente pela luta contra a dominação britânica e pela assimilação das formas políticas e jurídicas da legalidade que prevalecem na Grã-Bretanha. Diferentemente do que se produziu na maior parte dos Estados nascidos da descolonização, a adoção do regime democrático, cujo modelo é proposto pelo próprio colonizador, não é, na União indiana, apenas questão de palavras; em larga medida, ela se traduz nos fatos e determina ou revela a existência de um domínio do político que não é pura aparência. Convém buscar compreender seu estatuto e sua gênese, tentar perceber como se delineia sua autonomia em relação ao que se refere ao social, ao econômico e ao religioso.

Há várias maneiras de abordar este tema. O que se apresenta de forma imediata e inevitável ao espírito é a lista, que se pode estender ao infinito, dos aspectos da realidade indiana que são incompatíveis com a democracia: a vertiginosa desigualdade das condições de vida, as incontáveis formas de opressão e de exploração de que padecem os mais desfavorecidos e que incluem, de maneira disfarçada mas efetiva, mecanismos que transformam o endividamento numa verdadeira escravidão, sobretudo no campo; a violência sistemática da polícia em relação aos pobres; as zonas de não-direito que são, para as autoridades, certos distritos onde a população é majoritariamente “tribal”; a repressão dos movimentos insurrecionais ou separatistas, a corrupção em todos os níveis. Todos esses obstáculos à democracia são regularmente assinalados pelos observadores e denunciados e analisados com rigor pelos jornalistas, responsáveis políticos e juristas indianos. Contudo, não se poderia concluir disso que a demo cracia indiana é uma ficção. Desde a independência, o poder político sempre foi exercido por eleitos, as eleições realizam-se regular e livremente, e exceto durante o breve período de quase ditadura de Indira Gandhi (“estado de emergência”, 1975-77), os partidos enfrentam-se em debates intensos, a imprensa é livre, a justiça independente, o exército mantém-se afastado da vida política, os direitos das minorias religiosas e linguísticas são reconhecidos e, na prática, amplamente respeitados. (Ao menos, pode-se dizer que, em geral, as discriminações de que são vítimas as minorias não são homologadas pelo sistema legal, nem mesmo favorecidas pelo jogo das instituições estatais.) Os assassinatos de dirigentes desencadearam repressões em massa e brutais, mas não ocasionaram a suspensão durável da legalidade nem a instauração de um regime policial. Em vez de negar a realidade de um ou de outro aspecto da vida indiana, cumpre admitir, esforçando-se por analisá-la, essa contradição entre uma sociedade tragicamente não igualitária, atravessada de violências, e um regime político que, no conjunto, pode ser qualificado de democrático.

Os estudos sobre as formas e o grau de realidade da democracia política na Índia independente desembocam necessariamente em considerações históricas. A ideia comumente aceita é de que a democracia como regime político e a noção de indivíduo como sujeito político são construções modernas, inspiradas em modelos europeus, e sobre as quais devemos nos perguntar como puderam se ajustar à sociedade indiana tradicional. Quando se pensa no contraste entre sociedade e tradição, de um lado, política e modernidade, de outro, pressupõe-se que, no caso da Índia, o traço determinante da ordem social tradicional é o sistema de castas: a. sociedade em seu conjunto é formada de castas ligadas entre si por relações de caráter hierárquico. A hierarquia das castas está fundada sobre critérios religiosos e, para o hinduísmo, religião dominante na Índia, enraíza-se na ordem natural das coisas, um indivíduo pertence por nascimento a determinada casta e todo o seu comportamento, seu papel na sociedade, a esfera de sua atividade dependem dessa filiação. No interior mesmo da casta, a família, unidade de culto, unidade econômica, determina estritamente o destino de cada indivíduo. A tarefa do Estado, isto é, tradicionalmente, do rei, é zelar para que esse sistema se perpetue e funcione sem obstáculo. Tal é o esquema implícito, tirado de uma leitura não errônea, porém muito redutora, daquilo que ensinam os textos normativos da Índia clássica, leitura que, convém sublinhar, foi amplamente estimulada pela administração britânica: era cômodo, para o colonizador, governar o país apoiando-se sobre textos antigos e venerados que podiam ser interpretados como códigos. Cabe lembrar aqui que os começos da colonização coincidem com o nascimento e os primeiros desenvolvimentos dos estudos sobre a Índia antiga, e com a descoberta pelo Ocidente — e também., em certa medida, a redescoberta pelos indianos — dos textos da Antiguidade. Essa visão da sociedade indiana tradicional e do lugar que nela ocupa o sistema de castas assim interpretado foi o objeto de críticas muito diversas: historiadores, antropólogos e mesmo filólogos a contestaram ou relativizaram. O trabalho deles constitui um dossiê bibliográfico enorme, do qual se pode ter uma ideia estudando o debate suscitado pela obra de Louis Dumont, Homo hierarchicus (Paris: Gallimard, 1966) e consultando (por exemplo) os volumes 6 e 13 da coleção Purushârtha, intitulados respectivamente Casta e classe na Ásia do Sul (Paris: Editions de l’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1982) e Da realeza ao Estado no mundo indiano (ibid., 1991). Entre os discípulos de Louis Dumont, que consideram estabelecido que o sistema de castas é de fato a estrutura determinante da sociedade e mesmo da civilização indianas, e que a hierarquia, no sentido dado por Dumont a esse termo, é o princípio explicativo dessa estrutura, há alguns (T N. Madan, M.-L. Reiniche, H. Stern, em particular) que sublinham que o dispositivo das castas não é um encaixe, um empilhamento de unidades fechadas que ocupam cada qual um lugar definido de uma vez por todas, e que determinam de maneira unívoca e mecânica o campo de ação dos indivíduos e dos grupos: ao contrário, a hierarquia atualiza-se constantemente em processos de diferenciação que incidem tanto sobre as instituições quanto sobre as categorias de pensamento e os estilos de vida. As doutrinas fundamentais do hinduísmo, teoria da ordem do mundo da qual a hierarquia social é apenas um elemento, comportam também uma combinatória das “metas do homem” que autoriza (religiosamente, ritualmente) uma autonomia relativa do político, elas ensinam igualmente os caminhos da “renúncia” ascética individual (fundadora, na Índia, da noção de indivíduo) que pôde, interpretada por Gandhi e seus discípulos, aplicar-se à iniciativa social e política. Portanto, foi dos recursos íntimos de sua tradição imemorial que os criadores da Índia moderna tiraram a energia e as maneiras de agir que lhes permitiram levar a Índia à independência e ao mesmo tempo à democracia.

Esses debates são mencionados aqui muito rapidamente para suscitar, não para satisfazer, a curiosidade do leitor. De minha parte, gostaria de destacar outra faceta desses problemas: há, nos textos da Antiguidade indiana, termos que poderiam corresponder ao que a Antiguidade grega e romana denomina “liberdade” e “comunidade política”? Em seu combate por uma Índia independente, os nacionalistas adotaram como palavra de ordem o termo hindi swârâj, transposição do sânscrito svárâjya, que significa literalmente “o fato de ser seu próprio soberano” e também “domínio de soberania”. Em seus empregos mais antigos, esse termo pertence ao vocabulário da função real: certos reis são subordinados a reis mais poderosos; outros são “reis por si mesmos”; outros, ainda, são “reis por si mesmos” e além disso exercem sua soberania sobre outros reis. Nos Tratados chamados Brâhmana (compostos entre os séculos x e v antes de nossa era e incluídos no corpus do Veda), as cerimônias de consagração real são graduadas conforme o tipo e o nível de soberania ao qual o rei pode aspirar. Ou então uma mesma cerimônia real, no caso o rájasítya, pode ser analisada de modo a fazer aparecer sequências destinadas a conferir ao novo rei esse ou aquele elemento do poder real: entre esses elementos, o svârâjya, a “soberania autônoma” (Taittiriya-Brâhmana ii 7,6,1-8; Pancavimça-Brâhmana XIX 13,1; Aitareya-Brâhmana vii 31). Metaforicamente, o sol tem por domínio de soberania o tempo, simbolizado pelo ano: este é o seu svárâjya. Com isso, o sol é o modelo e também a causa última de toda soberania (Satapatha‑Brâhmana 4,1,23). É significativo que os textos que ensinam o desenrolar e a razão de ser desses ritos declarem que a “soberania por si mesma” faz daquele que dela se revestiu um ser autônomo não apenas no plano do poder terrestre mas também no plano espiritual: ele circula à vontade, sem. obstáculo, naquele além que é o “mundo de brahman”, o mundo do “absoluto”, assim como uma vaca vai e vem numa pastagem que seria uma floresta sem limites.

“Liberdade”, “autonomia” são noções designadas, nos antiquíssimos textos aqui mencionados, por palavras compostas cujo primeiro elemento, como em svárâjya, é sva-, equivalente, quanto ao sentido, do grego auto-. O sânscrito possui uma série de adjetivos que qualificam “aquele que vai e vem segundo sua própria vontade”, “que não se submete senão a seu próprio poder”, “que segue seu próprio desejo” etc. Nessa lista (aberta), a palavra svatantra tem importância particular: literalmente, é svatantra “aquele que segue seu próprio texto”, tantra tendo, ao que parece, o sentido de “texto prescritivo, corpus de regras que constituem uma textura, um tecido textual”. A liberdade designada pelos nomes formados por esse adjetivo é muito exatamente a autonomia. À diferença de svárâjya, “soberania própria”, que pôde ser adotado pelos modernos para nomear a independência nacional, svatantra refere-se com mais frequência à liberdade do indivíduo. Assim, lemos nas Leis de Masnu (século I antes de nossa era?) que jamais uma mulher tem o estatuto de svatantra: ela está sempre sob a dependência de um outro, do homem que é seu pai, seu esposo ou seu filho (se ela sobrevive a seu esposo) (Manu v, 147-149). Para aqueles que, por sua condição social, podem aspirar a ela, a autonomia pessoal é um bem precioso que cumpre esforçar-se por conquistar e preservar. Mas observamos também, nos textos da Índia antiga, que essa liberdade não é uma questão de direito político. É antes uma virtude ou o fruto de uma conduta virtuosa: ser livre é saber limitar suas necessidades (dominando-as, submetendo o corpo à soberania do espírito de maneira a não depender de outrem). Um homem deve sempre concentrar-se naquilo que depende dele, evitar lançar-se em empreendimentos cujo resultado depende de forças que escapam a seu controle. Tal é o conselho do poeta Bhartrhari (século vii de nossa era): a felicidade é não depender senão de si, a infelicidade é estar subjugado à vontade de outrem. “Se é estar vivo viver subjugado, o que é então a morte?” “Alimentemo-nos de esmola e vistamo-nos de espaço. Sobre o dorso da terra instalemos nossa cama. Os senhores, os poderosos, que mais poderíamos fazer?” (Estar vestido de espaço é estar nu.) A forma perfeita da vida livre é portanto a autonomia do mendigo asceta: o prestígio que lhe valem sua ascese e a força espiritual que lhe está associada fazem que ele não precise mendigar seu alimento; longe de estar subordinado aos que lhe dão esmola, sua postura é antes a de uma divindade que aceita as oferendas dos fiéis. A ascese é a condição de emergência do indivíduo livre e a noção de liberdade não tem outro ponto de aplicação senão o indivíduo que conquistou essa forma de soberania. Entretanto, lemos no Raghuvamça, poema de Kâlidâsa (século v de nossa era) este elogio do rei perfeito: “Destruindo o pecado por seu olhar, expulsando as trevas ao pôr em evidência a verdade, ele fazia com que seus súditos fossem sempre independentes (svatantra). Agia assim como um sol nascente” (Raghuvamça XVII, 74). É portanto o povo, o conjunto das “criaturas” (prajâ) que desse modo tornou-se livre pela ação do rei. Mas seria um erro ler nesse texto a ideia de que o rei zela pela independência do reino, ou que outorga a seu povo liberdades políticas: o contexto (e somos guiados também pelos comentários antigos) mostra que os súditos só são svatantra porque o rei coloca cada um deles na obrigação de não se deixar subjugar pelo mal.

Ser escravo das paixões ou mesmo das necessidades, depender de outrem para a conduta de sua vida, eis aí infelicidades transitórias e de certo modo superficiais se comparadas à servidão fundamental que impõe a lei do karma. Desde o século vi antes de nossa era, pelo menos, afirma-se na Índia, nas religiões nascidas no solo da Índia, a ideia de que todo ser vivo só morre para renascer, indefinidamente: ele está preso ao fluxo incessante das existências. Em cada um de seus nascimentos, a forma de sua nova vida resulta, segundo um mecanismo complexo mas rigoroso, dos atos que ele executou em suas existências anteriores. Os atos que efetuamos quando nascemos para uma vida humana e que são suscetíveis de uma avaliação moral têm sempre consequências — imediatamente, nesta vida, ou mais tarde, numa vida futura. À medida que agimos, reiniciamos o movimento, semeamos os grãos cujos frutos, doces ou amargos, serão necessariamente colhidos. Em geral, cada ato tem sua eficácia própria e não devemos supor que um ato bom anule um ato mau. Essa forma de destino perpetuamente posto em marcha é vista como uma infelicidade, o tipo mesmo da servidão. Todas as regras da moral e da piedade são apenas diretivas para uma vida boa, incitações a agir de maneira a preparar renascimentos felizes. Mas a verdadeira sabedoria é tomar consciência do mecanismo e tornar-se capaz de libertar-se dele. É possível não agir? Pode-se esgotar, sem renová-la por outras ações, a carga das ações passadas? Uma doutrina aparece nos séculos que precedem imediatamente o início de nossa era; posta em forma na Bhagavad-Gita, ela será um credo comum a todo o hinduísmo. A ideia geral é que a meta não é tanto abster-se de agir quanto agir de maneira completamente desinteressada, por dever religioso e social, jamais por desejo de usufruir do fruto dos atos. Não é a ação enquanto tal, é o investimento afetivo na ação que desencadeia a causalidade do karma. Quanto ao desejo, ele próprio está ligado àquele erro de julgamento que o indivíduo comete quando imagina que seu ego é uma realidade. A “libertação” (moksha, mukti) advém quando o indivíduo, tendo liquidado, isto é, sofrido completamente todas as consequências dos atos acumulados nas vidas anteriores, é capaz de não mais ter desejos e de não mais crer em sua própria realidade. Nos textos antigos, a liberdade, em vez de ser pensada em termos de “direitos” cívicos e políticos, é antes concebida como a aptidão a libertar-se dos desejos geradores de atos, e como o estado daquele que não está destinado a renascer. Se a doutrina do ato desinteressado permite a cada um, em princípio, visar à libertação ao mesmo tempo que executa os atos apropriados à sua situação na sociedade, há no entanto estilos de vida que favorecem mais que outros o encaminhamento para a libertação. Eles procedem do ascetismo extremo e, mais precisamente, daquilo que se chama a “renúncia”. O asceta “renunciante” que quer consagrar-se à “libertação” desata todos os laços que o prendem à sociedade. No limite, rompe inclusive com os ritos religiosos. Ele sai do mundo. Soberano de si mesmo, está pronto para a liberdade, isto é, para a consciência de que sua alma individual só tem realidade quando se funde na alma universal. Seria ingênuo, baseando-se simplesmente numa similitude de vocabulário, buscar na “libertação” visada pelo renunciante (e que está tão próxima do aniquilamento) uma prefiguração do ideal de liberdade individual invocado pelos regimes democráticos ocidentais e, semelhantemente, pela Índia moderna. É preciso no entanto ter presentes no espírito esses dados linguísticos e ideológicos para compreender o papel de Gandhi e de seus discípulos na formação do civismo indiano: o indivíduo constrói-se por observâncias ascéticas, a liberdade é em primeiro lugar a soberania sobre si mesmo e a capacidade de agir pelo bem, sem buscar satisfazer um desejo. A não-violência, forma mínima do não agir ascético, é o idioma no qual cada um é levado a pensar a dignidade e a liberdade, o svatantra, dos outros.

Outro traço da democracia (cuja compatibilidade com a liberdade individual é altamente problemática) é que as decisões que afetam a vida de uma coletividade são tomadas, diretamente ou por delegação, por essa coletividade. É possível encontrar na tradição indiana mitos que colocariam em evidência essa concepção do sujeito político? De maneira inesperada, é o relato destinado a justificar um procedimento ritual que nos fornece um ponto de apoio. Esse rito é o juramento pelo qual, segundo os textos védicos, um homem que deseja oferecer um grande sacrifício, e os sacerdotes de que ele necessita para realizá-lo, comprometem-se a coope-Tar lealmente, a buscar não se prejudicarem durante toda a duração dessas operações complexas e perigosas. Esse juramento pronunciado em comum constitui, num grupo de iguais solidários, a equipe dos participantes do sacrifício: cada um se faz hospedeiro e hóspede, acolhedor e acolhido, de todos os outros. Assim é estabelecido o quadro contratual, provisório mas indispensável, no qual poderão se efetuar a distribuição de tarefas e o escalonamento dos estatutos. Esse rito do juramento sacrificial, chamado tânûnaptra (sobre esse ponto, ver C. Malamoud, atire le monde, rite et pensée dans l’Inde ancienne [Cozer o mundo, rito e pensamento na Índia antiga], Paris: La Découverte, 1989, pp. 225-240), tem por mito fundador o relato sobre a formação do laço político na sociedade divina. Os deuses enfrentavam sempre seus adversários demoníacos em ordem dispersa, e eram sempre vencidos. Eles decidem então unir-se. E, certamente, escolhem um chefe, o deus Indra. Mas o que é notável é a maneira como se ligam pelo seguinte juramento. Cada deus é constituído não de um mas de vários corpos. Todos os deuses separam-se de “seus corpos mais caros”, que eles põem em comum, no centro do círculo que formam. A totalidade desses “corpos mais caros” produz uma massa brilhante como o sol, ao mesmo tempo substância e emblema da autoridade de Indra. Os deuses comprometem-se por juramento a permanecer solidários, e condenam-se a privar-se para sempre da parte mais preciosa deles mesmos se vierem a faltar à solidariedade que os liga aos outros membros do grupo.

Esse mito admite duas leituras simultâneas. Pode-se ver nele o esquema de uma alienação radical: os deuses, para se unirem, devem escolher um senhor e colocam-se na impossibilidade de desobedecer-lhe, já que lhe deram como refém a parte de seu ser que mais prezam. Por outro lado, se notarmos que o poder e o esplendor de Indra são feitos da reunião desses corpos divinos, vemos que cada um dos deuses exerce ele próprio esse poder e participa desse esplendor por intermédio daquela parte de si mesmo da qual ele consentiu separar-se, mas que nem por isso é menos dele. Essa é a forma ideal do coletivo: iguais unem-se entre si e constituem um grupo, não por vínculos diretos que se estabelecem entre os indivíduos, mas pela distância que cada um aceitou instituir entre si e si. Cada um está ligado aos outros pela esperança de reunificar-se e, desde então, pela tensão que mantém juntas as partes de seu ser cindido. À alienação evidenciada na primeira interpretação corresponde, na segunda, a fabricação de uma transcendência.

 

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