2009

Nós, civilizações, sabemos que somos mortais

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

Em 1919, Paul Valéry publicou numa revista inglesa dois ensaios intitulados “A crise do espírito”. Num deles, o autor tenta definir o conteúdo da civilização europeia, e propõe para isso vários critérios. Um é que havia no europeu a propriedade singular de unir uma extrema capacidade de difusão a um intenso poder de absorção. Outro é que eram europeus os povos que tivessem sofrido três principais influências: a de Roma, a do cristianismo e a da Grécia. Outro ainda descreve a mentalidade europeia, na véspera da Primeira Guerra Mundial, recorrendo ao conceito de modernidade. Modernidade, para Valéry, era a “livre coexistência, em todos os espíritos cultos, das ideias mais diferentes, dos princípios de vida e de conhecimento mais contrários”. Em 1914, a Europa era moderna, nesse sentido especial. Ela “talvez tivesse chegado ao limite desse modernismo. Cada cérebro de certa importância era uma encruzilhada de todas as raças da opinião; todo pensador era uma exposição universal de pensamentos. Quantos materiais, quantos trabalhos, quantos cálculos, quantos séculos espoliados, quantos estilos de vida heterogêneos adicionados foram necessários para que esse carnaval fosse possível e entronizado como forma da suprema sabedoria e do triunfo da humanidade!”.

É uma síntese perfeita. A civilização europeia, que, por ora, pode-se chamar de civilização ocidental, impregnada pelos valores da antiguidade greco-romana e do cristianismo, transformara-se, na modernidade, em uma espécie de civilização-mundo, produzida pelo poder de difusão do Ocidente, graças ao qual europeizou as outras civilizações, e por seu poder de absorção, graças ao qual o Ocidente recebeu influxos de todas as outras civilizações.

Há algo de etnocêntrico nessa descrição de Valéry. Outras civilizações, e não apenas a europeia, podem contribuir para a formação de uma civilização-mundo. O que é preciso destacar é que, no caso presente, essa mescla de particularidade e universalidade parece ser mais decisiva do que em outras civilizações. Como outras, ela é uma particularidade cultural, por mais vasta que seja, e nesse sentido é distinta de todas as outras particularidades culturais. Há, nessa particularidade, os elementos que permitem legitimar o enraizamento nacional ou étnico. É na própria tradição ocidental que se verificam os valores de tolerância e de respeito à alteridade que tornam possível a sobrevivência da identidade local. Ao mesmo tempo, o Ocidente é uma universalidade sincrética; no sentido que lhe confere Valéry, um microcosmos em que todas as influências culturais do mundo se encontram e  se amalgamam em novas sínteses. O mundo inteiro chega até ela. Mas ela se estende ao mundo inteiro.

São essas as mutações que estão no horizonte, na etapa atual do capitalismo globalizado. A primeira, individual, assinala a passagem do homem uni-identitário para o homem bi-identitário. A segunda, civilizacional, assinala a passagem de um mundo dividido em culturas e civilizações estanques para um mundo caracterizado por uma civilização-mundo, em que o homem contemporâneo possa estruturar sua dupla identidade, a local e a universal. As duas mutações são interdependentes. Ou seja: é impossível pensar a mutação individual sem a civilizacional e vice-versa.


Não quero falar aqui sobre a mutação de seres humanos no sentido biológico – a emergência de um Adão pós-violento no laboratório, pela manipulação genética – nem no sentido político – a irrupção de uma espécie pós-burguesa na cena da história. Estou pensando em duas formas interligadas de mutação, uma de caráter psíquico e social e outra de caráter cultural.

A primeira é o processo pelo qual o homem, que durante milênios se socializou segundo os parâmetros de uma só cultura, está sendo confrontado, na fase do capitalismo global, com a necessidade de transcender a perspectiva uni-identitária.

No período áureo dos estados nacionais, exigia-se do homem que tivesse apenas uma identidade hegemônica, definida pela nacionalidade. Era-se só brasileiro, ou francês, ou alemão. Com a erosão dos estados nacionais, surgiram no horizonte novos agrupamentos, baseados no sangue, na etnia, ou na religião, mas de modo geral manteve-se a exigência uni-identitária. Não precisamos mais ser hegemonicamente portugueses ou argentines, mas continuamos obrigados a ser hegemonicamente afrodescendentes ou muçulmanos.

No entanto, é cada vez mais evidente que na atual etapa do mundo só poderemos manter a nossa autonomia se nos tornarmos tão universais quanto o próprio capitalismo globalizado. Ao mesmo tempo, não podemos nos desprender da cultura a que pertencemos. Noutras palavras, precisamos ser ao mesmo tempo locais e cosmopolitas, cidadãos do nosso país e cidadãos do mundo. Só esse modelo pode livrar-nos, seja da desagregação psíquica a que nos reduziria a perda de nossa identidade de origem, seja da heteronomia a que ficaríamos condenados se não pudéssemos sair do gueto em que a ideologia uni-identitária quer nos aprisionar.

A maior ou menor facilidade de realizar essa mutação vai depender de uma segunda mutação, assinalando a passagem de uma fase em que a humanidade está dividida em culturas e civilizações particulares para uma nova etapa, em que ela acede ao que podemos chamar de civilização – mundo. Pretendo explorar aqui a hipótese de que essa segunda mutação esteja a ponto de ocorrer, tomando como foco nossa própria cultura – a ocidental.

Abordar esse tema brevemente é uma tarefa formidável, que exige alguma preparação. Para isso, talvez seja prudente fazer um excurso terminológico, definindo o conceito de mundo ocidental e distinguindo entre cultura e civilização. Acreditem em mim, ganharemos tempo com esse aparente rodeio.

Comecemos com a noção de mundo ocidental. É o substrato geográfico tanto da cultura como da civilização. Mas Ocidente com relação a quê? A oeste de quem? Do ponto de vista dos índios que habitavam a América na era das descobertas, a Europa estava situada no Oriente. Expliquemos rapidamente que essa designação convencional é o resíduo histórico de uma época em que o Império Romano estava dividido em duas metades, a do Ocidente e a do Oriente, e que o que hoje chamamos Ocidente corresponde ao espaço que se estendia a oeste de Constantinopla e era ocupado pelo Império Romano do Ocidente. O mundo ocidental se ampliou, depois das grandes descobertas marítimas, para abranger a América e algumas colônias inglesas da Oceania. Durante a Guerra Fria, o termo Ocidente tinha um conteúdo mais amplo, designando todos os países do chamado “mundo livre”, e, nesse caso, Israel e Japão fariam parte do bloco ocidental. Entretanto, nas condições atuais, creio que haveria consenso em dizer que os limites do mundo ocidental incluem a Europa, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá, os Estados Unidos e a América Latina.

Quanto à cultura, há mais de meio século os antropólogos Kroeber e Kluckhohn analisaram 160 definições desse termo, e esse número só fez crescer nos últimos anos. Se quisermos reduzir nossa tarefa a proporções manejáveis, convém simplificar cirurgicamente nosso trabalho, dando da cultura apenas duas definições. Uma designa a cultura no sentido convencional da palavra, como um conjunto de obras e atividades, no campo ou das artes (literatura, música, pintura, teatro, dança, cinema) ou dos saberes (filosofia e ciência). Outra é a cultura no sentido antropológico: conjunto de representações coletivas articuladas por uma língua e uma religião comuns, e abrangendo crenças, símbolos, valores, assim como predisposições, mentalidades e atitudes padronizadas.

Vamos, enfim, à civilização. Em seu uso tradicional, ela se opõe à barbárie. É uma dicotomia altamente ideológica, de forte conteúdo hierárquico e etnocêntrico, muito usada na época áurea do imperialismo para desqualificar os países extraeuropeus. A carga polêmica inerente à polaridade se manteve quando os alemães inventaram a fatídica dualidade civilização – cultura. Para eles, a civilização era associada à França, vista depreciativamente como a esfera dos valores utilitários e da reprodução material, enquanto a cultura, a Kultur, era associada à Alemanha, vista como a esfera dos valores ideais e da reprodução simbólica. O tom belicoso não desapareceu quando Rosa Luxemburgo remanejou a antítese, substituindo “civilização” por “socialismo”, e falando em “socialismo ou barbárie”. A palavra “civilização”, em seus vários avatares, só perdeu seu conteúdo militante quando passou do singular para o plural: não mais civilização, como um padrão normativo, mas civilizações, como entidades coletivas que são o que são, sem julgamentos de valor. É nesse sentido plural que o conceito de civilização foi apropriado pelas mais recentes filosofias de história, de Spengler a Toynbee e Huntington. Assim, Spengler fala em oito civilizações, e Toynbee, em 21. Para Huntington, são nove as civilizações que sobrevivem no mundo, a ocidental, a latino-americana, a africana, a islâmica, a sínica, a hindu, a ortodoxa, a budista e a japonesa.

Para nossos fins, convém reter o caráter plural da palavra. As civilizações são entidades culturais, nos dois sentidos da palavra cultura, abrangendo por um lado um repertório de obras e realizações exemplares e por outro proporcionando um conjunto de crenças e símbolos que dão coesão à comunidade e geram em seus integrantes um sentimento de filiação identitária. Nisso, elas não diferem de outras entidades culturais, como clãs, etnias, províncias, nações. O que transforma as civilizações em entidades culturais sui generis é sua escala, histórica e geograficamente. Elas têm uma profundidade temporal mais ampla, porque muitas vezes sua origem remonta há vários séculos, e uma extensão espacial mais vasta, porque ultrapassam os limites de grupos particulares e formam grandes agregados humanos unidos por laços de natureza linguística ou religiosa. A civilização é a cultura em sua extensão máxima, em sua forma mais abrangente.

Encerrada essa digressão terminológica, podemos dizer, agora, que esse conjunto geográfico e político chamado mundo ocidental tem características suficientemente comuns para que possamos falar numa comunidade cultural homogênea?

Não, se nos limitamos a uma perspectiva estreitamente cultural.

Talvez, se adotarmos uma perspectiva civilizacional.

No primeiro sentido da palavra cultura – repertório de criações literárias, musicais, filosóficas-, não seria exato dizer que o mundo ocidental tenha uma cultura comum, porque fronteiras de toda ordem impedem o uso de um termo tão genérico. Fronteiras geográficas, em primeiro lugar, porque pelo menos desde o advento dos estados nacionais cada nação tendeu a desenvolver sua própria cultura, em direções às vezes diametralmente opostas entre si. O nacionalismo cultural fez com que os alemães transformassem Goethe num semideus, que os ingleses considerassem Shakespeare superior a todos os seus rivais de além-Mancha, e que os franceses se julgassem obrigados a proclamar urbi et orbi a supremacia de Racine. O que nos força a falar, em vez disso, em cultura francesa, italiana ou brasileira. Fronteiras internas ao próprio conceito de cultura, em segundo lugar, porque a cultura, como vimos, se compõe de literatura, música, arquitetura, filosofia. Cada uma dessas articulações já é um universo em si. Podemos, a rigor, conceber algo como uma história dessas disciplinas, no âmbito do Ocidente. Como se sabe, Otto Maria Carpeaux fez uma história monumental da literatura ocidental. Mas nem Carpeaux ousou fazer uma história da cultura ocidental. Mesmo que isso fosse tecnicamente factível, seria esse exercício algo mais que o somatório mecânico de uma história da música do Ocidente, da pintura do Ocidente, ou da filosofia do Ocidente? E será que mesmo um conceito aparentemente mais operacional, como arquitetura ou filosofia ocidental, não seria ao mesmo tempo estreito demais e amplo demais para servir de moldura à filosofia e à arquitetura que se fazem em nossos dias? Ele seria estreito demais, porque estamos vivendo uma fase de globalização cultural, em que as interações não se fazem mais dentro de fronteiras geográficas, sujeitas a rótulos como Ocidente ou Oriente, mas através delas. E amplo demais, porque a globalização desencadeou, como rea­ ção, forças centrífugas que vão numa direção neonacionalista. Num caso, o termo Ocidente perdeu sua pertinência por ser particularista demais, e, no outro, por não ser suficientemente particularista.

No segundo sentido da palavra, é mais difícil ainda encontrar um mínimo de unidade. E isso porque a cultura dos antropólogos só faz sentido em unidades relativamente restritas. Como vimos, pode-se falar na cultura de uma tribo ou de uma nação. Mas o mundo ocidental é muito mais amplo: ele é multiétnico e multinacional. Podemos imaginar uma só cultura nesse agregado de nações, abrangendo vários países, com línguas, costumes e religiões diversas? A resposta é negativa. Não acredito que um francês esteja disposto a aceitar que sua cultura, baseada no individualismo, no racionalismo e na doutrina dos direitos do homem, se subordine à mesma entidade etnográfica que a cultura alemã, baseada nos valores da comunidade, da história e das individualidades coletivas. Os ingleses se orgulham do seu pragmatismo, em contraste com o intelectualismo francês. Dizem que, numa negociação recente no âmbito da União Europeia, o delegado francês objetou do seguinte modo a uma fórmula proposta por seu colega inglês: “Sim, isso funciona na prática, mas será que funciona também na teoria?”

Mas essa unidade, tão difícil de encontrar quando trabalhamos na perspectiva da cultura, talvez possa ser reconstruída na perspectiva da civilização. Olhando de fora, no interstício das culturas e acima delas, a perspectiva civilizacional descobre afinidades que talvez sejam visíveis para o senso comum – afinal, quando alemães e brasileiros se defrontam com vietnamitas percebem-se, intuitivamente. como participantes da mesma cultura mas que não podem ser vistas com ajuda dos instrumentos ,usados pelos historiadores e antropólogos.

Elas são captadas mais pelo que Pascal chamava esprit de finesse que pela observação rigorosa.

Dentro dessa linha, podemos arriscar a afirmação de que existe, de fato, uma cultura ocidental que seja mais que a totalização aritmética da cultura francesa, italiana, alemã ou brasileira.

Isso é verdade no que diz respeito ao primeiro sentido da cultura. A literatura, a arte, a filosofia dos países que compõem o mundo ocidental se filiam a uma tradição cultural cuja origem é o mundo greco-romano, ao qual se incorporou, com a conversão de Constantino, o pensamento judaico-cristão. Nesse sentido, podemos dizer que a Bíblia, Ilíada, Eneida, Suma Teológica, Catedral de Chartres, a Divina comédia, Capela Sistina, Hamlet, Candide, Crítica da razão pura, Comédie humaine Fonnegans Wake são obras paradigmáticas nas quais todos os integrantes do mundo ocidental se reconhecem. Sentimos que o mesmo sopro histórico perpassa por todas elas. São marcadas por um passado que remonta a Jerusalém e Atenas, por uma história comum que atravessa a cristandade medieval e a Renascença, a revolução francesa e a revolução bolchevista. Os intelectuais do Ocidente não mais se comunicam em latim, mas a circulação de ideias e paradigmas dentro do mundo ocidental só faz crescer, e todos os países do Ocidente passaram, segundo ritmos temporais diversos, pelo romantismo, pelo realismo, pelo simbolismo, pelo modernismo, e agora pelo pós-modernismo.

Isso é verdade, também, no segundo sentido, em que a cultura é entendida como conjunto de crenças, valores, atitudes, predisposições. Sem dúvida, esse conjunto variou historicamente. Os valores vigentes na Alemanha de Bismarck ou de Hitler não são mais os mesmos da Alemanha de Angela Merkel, da mesma maneira que a mentalidade dos vikings que aterrorizaram a Europa na Idade Média não é mais a mesma dos escandinavos de hoje, mais interessados em defender o meio ambiente que em incendiar catedrais em nome de Odin. Mas podemos afirmar, que apesar de correntes contrailuministas influentes (Herder e seus “descendentes”) que estimularam um irracionalismo contrário às ideias centrais das Luzes, a experiência do Iluminismo marcou decisivamente a história de todos esses países. Ora, a essência do Iluminismo é o amor à liberdade individual, o respeito pelos direitos humanos, a tolerância, a responsabilidade pessoal, a abertura para a inovação e o progresso.

Na perspectiva da civilização, vai se delineando assim algo que parecia improvável: uma certa semelhança de família entre as várias culturas nacionais do Ocidente. Surge, de fato, algo como a cultura ocidental. Por um lado, ela não é mais um agregado mecânico de obras e realizações nacionais, mas um espaço aberto de trocas e influências, em que Sterne se cruza com Machado de Assis, o mestre Eckhart com Guimarães Rosa, Kafka com Moacyr Scliar, Niemeyer com Le Corbusier e Bach com Villa-Lobos. E, por outro lado, ela se apresenta como conjunto de símbolos e valores originários do Iluminismo, voltados para a autonomia individual, de caráter secular, e articulados por três variantes de uma religião comum (o cristianismo) e por línguas derivadas de um mesmo ancestral (o indo-europeu).

Por razões históricas, o mundo ocidental se tornou hegemônico. Ele foi o primeiro a se modernizar, como destacou Max Weber, o grande teórico da modernidade. Para Weber, a modernidade é o produto de processos cumulativos de racionalização que surgiram no Ocidente, e que se deram em várias esferas sociais. Na economia, a modernidade implicou a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e de gestão e a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. Na política, a modernidade acarretou a substituição da autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência e de uma administração burocrática racional. Mas nem a modernização política nem a econômica teriam ocorrido sem a modernidade cultural. Ela implicou a secularização das visões do mundo tradicionais (Entzauberung) e sua diferenciação em esferas de valor (Wertsphären), até então embutidas na religião: a ciência, a moral, o direito e a arte. A modernidade cultural foi causa e efeito da modernidade como um todo. Foi efeito porque a cultura não se teria modernizado sem os impulsos oriundos da esfera econômica e política, e causa, porque foi a modernidade cultural que rompeu os grilhões tradicionais que inibiam o livre exame e o progresso da ciência e das artes.

Podemos dizer que a modernidade influenciou as duas faces da cultura ocidental contemporânea: a que a vê como um repertório de artes e saberes e a que a vê como um acervo de crenças, símbolos e valores. A primeira, porque é ao dinamismo e à vontade de renovação permanente da modernidade que a cultura ocidental deve sua vocação mais característica, a busca incessante do novo, manifestada dramaticamente no vanguardismo do século XX. E a segunda, porque o individualismo e o racionalismo da modernidade deixaram seus rastros nas crenças e padrões de comportamento embutidos na civilização ocidental.

A maior pujança econômica do mundo ocidental, em grande parte condicionada por seu acesso precoce à modernidade, é um dos fatores responsáveis pela globalização. Para alguns, a globalização é sinônimo de ocidentalização, e, mais especificamente ainda, de americanização. Alguns teóricos acham que isso é uma simplificação excessiva. Para eles, a Disneylândia, o blue jeans e o McDonald’s não correspondem a um projeto imperialista do Ocidente, mas a uma nova fase, transnacional e não simplesmente internacional, de organização capitalista da produção e do consumo. A nova realidade é o fast food, não o McDonald’s, o fast food corresponde aos ritmos mais velozes da vida neste começo de século, e pouco importa a nacionalidade das empresas que encarnam essa realidade.

Seja como for, e mesmo descontando manifestações de globalismo que vêm do Oriente (cozinha japonesa, filmes iranianos), é verdade que na prática a globalização significa a difusão mundial da cultura ocidental, nos dois sentidos da palavra.

No primeiro sentido, a globalização implica a irradiação planetária da literatura ocidental, da música ocidental, do cinema ocidental. É um fenômeno indesejável, na medida em que acarreta riscos de sobrevivência para as culturas locais. Mas o que me parece negativo não é essencialmente a absorção indiscriminada da cultura ocidental, mas a importação do lixo cultural que vem do Ocidente. A alta cultura do Ocidente tem e terá sempre um sentido libertador. O que intoxica as consciências é a indústria cultural, venha ela do Ocidente ou de uma produção local. A indústria eletrônica de massas do Ocidente é deletéria por ser indústria de massas, não por ser ocidental.

No segundo sentido da cultura, a globalização implica a irradiação mundial das crenças e valores ocidentais. De novo, é algo indesejável na medida em que os valores exportados são ligados ao que existe de pior na civilização ocidental: o utilitarismo crasso, a mercantilização da vida, a propaganda belicista. Mas não vejo nenhum inconveniente na globalização de outros valores, como o respeito à integridade da mulher e a tolerância religiosa. Confesso que perco a paciência quando me dizem que criticar a excisão clitoridiana da menina berbere ou muçulmana é uma tentativa de impor a outras culturas valores que só têm vigência na cultura ocidental. Se isso é verdade, tanto pior para a cultura local; acima da dignidade das culturas está a dignidade dos seres humanos.

Sem dúvida, a cultura ocidental é muitas vezes etnocêntrica, mas muitas vítimas desse etnocentrismo internalizaram o euronarcisismo, mesmo quando queriam combater o Ocidente. É o que fizeram os defensores da tese dos “direitos asiáticos”. Para eles, a doutrina dos direitos humanos seria uma construção meramente ocidental, inaplicável a outras culturas. A cultura asiática, dizem eles, se baseia na solidariedade, ao passo que a ideologia dos direitos humanos derivaria de uma cultura individualista inaceitável para os povos asiáticos. O professor Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, discorda radicalmente dessa tese. Para Sen, é um malentendido resultante da conjunção de duas ideologias, que parecendo opostas são na verdade complementares: o etnocentrismo ocidental, que reivindica para o Ocidente o monopólio das ideias liberais, afirmando que elas jamais floresceram em outras regiões do mundo, e o nacionalismo autoritário da Ásia, que endossa esse julgamento, transformando-o em avaliação positiva. O que os ocidentais consideram uma deficiência se converte numa superioridade: os asiáticos realmente não são nem tolerantes nem liberais, e isso é excelente, porque esses valores nada têm a ver com os povos asiáticos. É óbvio que a bandeira dos valores asiáticos é levantada apenas pelos governantes dos países autoritários, que pretendem com isso justificar um regime de força, e não pelos dissidentes, mas não é isso que está em jogo. A questão está em saber se há alguma base para a tese dos valores asiáticos. A resposta de Sen é negativa. Os intelectuais ocidentais constroem uma entidade imaginária chamada “Oriente” por meio do exame seletivo da tradição asiática, considerando apenas aqueles elementos que mais se distanciem da imagem que a Europa tem de si própria. Com isso, cristaliza-se uma cultura ··exótica”, a cultura oriental, que supostamente dá mais valor à autoridade que à razão e desconhece os princípios da tolerância e do respeito mútuo, que seriam, pelo contrário, os pilares da civilização ocidental. Os nacionalistas asiáticos aceitam essa construção. Ora, ela é inteiramente falsa, porque baseada numa seletividade inaceitável. Sem dúvida, houve importantíssimos pensadores do Ocidente que defenderam os valores da razão e da liberdade, mas houve também autores igualmente influentes que advogaram uma filosofia autoritária, como Platão. Inversamente, houve de fato pensadores asiáticos que defenderam posições autoritárias, como Confúcio e o indiano Kautylia (século IV a.C.), mas são numerosas as correntes intelectuais que se bateram pela razão e pela tolerância. Para ficarmos apenas na Índia, há toda uma literatura secular e agnóstica em páli e sânscrito. O imperador Ashoka (século III a.C.) espalhou em todo o seu reino editos gravados em pedra, prescrevendo liberdade e tolerância para todos, sem excluir as mulheres e os bárbaros. O imperador mongol Akbar praticou há 400 anos uma política de neutralidade religiosa por parte do Estado, no mesmo momento em que Giordano Bruno era queimado por heresia em Roma. Apesar de muçulmano, Akbar aboliu as medidas que discriminavam os hindus, convidou para sua corte sábios e artistas hindus e confiou a um general hindu o comando de suas forças armadas. Fora da Índia, há também belos exemplos de tolerância. O judeu Maimônides, perseguido pelos cristãos espanhóis no século XII, encontrou refúgio na corte do sultão muçulmano Saladino. Há uma carta de 1526, na qual o rei do Congo comunica ao rei de Portugal que não toleraria a escravidão em seu reino.

Mas, mesmo se admitirmos que essas ideias nasceram no Ocidente, não se segue que sua validade seja limitada apenas ao Ocidente. A circunstância de que a Declaração dos Direitos Humanos tenha nascido numa Assembleia dominada por representantes do Terceiro Estado não significa que esses direitos só tivessem validade para a classe burguesa. Sustentar o contrário seria de um mecanicismo reducionista que os melhores pensadores marxistas repudiaram. De nada valeria termos nos libertado do determinismo econômico apenas para cairmos nas garras do determinismo cultural. É preciso entender que uma coisa é gênese e outra é validade. A Declaração de 1789 brotou num contexto burguês, mas vale para todos os homens, servindo para condenar, antes de mais nada, as infrações a esses direitos praticadas pela própria burguesia. Do mesmo modo, a teoria dos direitos humanos pode ter nascido no Ocidente, mas adquiriu validade universal, servindo para pôr no banco dos réus o próprio Ocidente, cujo país-líder, os Estados Unidos, executa uma política unilateralista e imperialista que viola todos os direitos universais. Não é por outra razão que o governo norte-americano se recusa a aderir ao instrument que hoje em dia traduz melhor que qualquer outro a universalidade dos direitos, independentemente de todas as jurisdições nacionais: o Tribunal Penal Internacional.

Essa questão tem consequências para o processo de modernização. Se os valores da liberdade e da autonomia são efetivamente restritos à cultura ocidental, todo país que deseje se modernizar precisa importar do Ocidente essas crenças e estruturas motivacionais. Modernização seria sinônimo de ocidentalização. Mas, se é verdade, como afirma Sen, que outras culturas possuem tradições próprias que apontam para os valores da liberdade e da tolerância, o que é meio caminho andado para uma visão secular do mundo, bastaria um processo de filtragem da tradição para reforçar aqueles elementos da cultura que fossem compatíveis com a visão do desenvolvimento como exercício da liberdade.

Em 1919, Paul Valéry publicou numa revista inglesa dois ensaios intitulados “A crise do espírito”. Num deles, o autor tenta definir o conteúdo da civilização europeia, e propõe para isso vários critérios. Um é que o europeu tinha a propriedade singular de unir uma extrema capacidade de difusão a um intenso poder de absorção. Outro é que eram europeus os povos que tivessem sofrido três influências principais: a de Roma, a do cristianismo e a da Grécia. Outro ainda descreve a mentalidade europeia, na véspera da Primeira Guerra Mundial, recorrendo ao conceito de modernidade. Modernidade, para Valéry, era a “livre coexistência, em todos os espíritos cultos, das ideias mais diferentes, dos princípios de vida e de conhecimento mais opostos”. Em 1914, a Europa era moderna, nesse sentido especial. Ela “talvez tivesse chegado ao limite desse modernismo. Cada cérebro de uma certa importância era uma encruzilhada de todas as raças da opinião; todo pensador era uma exposição universal de pensamentos (…) Quantos materiais, quantos trabalhos, quantos cálculos, quantos séculos espoliados, quantas vidas heterogêneas adicionadas foram necessários para que esse carnaval fosse possível e entronizado como forma da suprema sabedoria e triunfo da humanidade!”

É uma síntese perfeita. A civilização europeia, que para nossos fins podemos chamar de civilização ocidental, impregnada pelos valores da antiguidade greco-romana e do cristianismo, se transformara, na modernidade, em uma espécie de civilização-mundo, produzida pelo poder de difusão do Ocidente, graças ao qual europeizou as outras civilizações, e por seu poder de absorção, graças ao qual o Ocidente recebeu influxos de todas as outras civilizações.

Há algo de etnocêntrico nessa descrição de Valéry. Outras civilizações, e não apenas a europeia, podem contribuir para a formação de uma civilização-mundo. O que desejo salientar é que em nosso caso essa mescla de particularidade e universalidade parece ser mais decisiva que em outras civilizações. Como outras, ela é uma particularidade cultural, por mais vasta que seja, e nesse sentido é distinta de todas as outras particularidades culturais. Encontramos, nessa particularidade, os elementos que permitem legitimar nosso enraizamento nacional ou étnico. É na própria tradição ocidental que vamos encontrar os valores de tolerância e de respeito à alteridade que tornam possível a sobrevivência de nossa identidade local. Ao mesmo tempo, o Ocidente é uma universalidade sincrética, no sentido de Valéry, um microcosmos em que todas as influências culturais do mundo se encontram e se amalgamam em novas sínteses. O mundo inteiro chega até ela. Mas ela se estende ao mundo inteiro.

São essas, voltando ao ponto de partida, as mutações que estão no horizonte, na etapa atual do capitalismo globalizado. A primeira, individual, assinala a passagem do homem uni-identitário para o homem bi-identitário. A segunda, civilizacional, assinala a passagem de um mundo dividido em culturas e civilizações estanques para um mundo caracterizado por uma civilização-mundo, em que o homem contemporâneo possa estruturar sua dupla identidade, a local e a universal. As duas mutações são interdependentes. Impossível pensar a mutação individual sem a civilizacional, e vice-versa.

Para a formação dessa civilização-mundo, todas as civilizações existentes podem contribuir. Não atribuo à nossa própria civilização nenhum privilégio especial nessa direção, o que seria uma nova e indesejável forma de messianismo. Acredito, porém, que, apesar de todos os crimes que perpetrou ao longo da história, de todas as guerras, de todos os genocídios, de todas as formas de opressão colonial e imperial, a civilização ocidental contém elementos significativos que permitem articular essa dupla identidade. Nesse processo, pelo qual as várias civilizações se transcendem em direção à civilização-mundo, um papel especial cabe à civilização ocidental, e nisso Valéry tem razão.

Ele tem razão de outro ponto de vista: se a civilização ocidental tende à sua própria superação, desaguando numa civilização-mundo, isso significa que ela é mortal. A primeira frase do texto de Valéry ficaria famosa: “Nós, civilizações, sabemos que somos mortais.” Valéry continua: “Ouvimos falar de mundos desaparecidos, de impérios submersos com todos os seus homens e engenhos, descidos ao fundo inexplorável dos séculos com seus deuses e suas leis, suas academias e suas ciências puras e aplicadas, com suas gramáticas, seus dicionários, seus clássicos, seus românticos e seus simbolistas, seus críticos e os críticos dos seus críticos […] Percebíamos na espessura da história os fantasmas de imensos navios, outrora carregados de riqueza e de inteligência. Mas esses naufrágios, afinal, não nos diziam respeito. Elã, Nínive, Babilônia eram belos nomes, e a ruína total desses mundos tinha tão pouco significado para nós quanto sua própria existência. Mas França, Inglaterra, Rússia, são também belos nomes […] E vemos hoje que o abismo da história é suficientemente profundo para todos. Sentimos que uma civilização é tão frágil quanto a vida.”

Sim, a civilização ocidental é tão efêmera quanto a assíria, e os arautos do declínio do Ocidente, durante todo o século XX, não se cansaram de anunciar sua morte. Mas nem todas as mortes são moralmente equivalentes. A civilização ocidental pode morrer por suicídio, sufocada por emissões de carbono ou pelos detritos que ela não cessa de produzir. Não é uma morte heroica: é um Apocalipse medíocre, um mundo que termina, como disse T.S. Eliot, not with a bang, but a whimper [não com um estrondo, mas com um gemido]. Ela pode morrer, também, assassinada. Os perpetradores serão, talvez, os proletários globais que ela própria engendrou – os inassimilados e inassimiláveis do capitalismo planetário. É uma morte científica porque rigorosamente prevista por uma das mais coerentes teorias do Ocidente – o marxismo. Ou os assassinos podem ser guerreiros de Deus, armados com o que a ciência e a tecnologia ocidental têm de mais aperfeiçoado, inspirados pelo mesmo zelo sagrado com que seus antepassados conquistaram a Espanha, e que se dispõem a se vingar de séculos de humilhação criando um califado mundial que subordine a civilização ocidental ao Islã. É uma morte absurda, como todas as que se dão num campo de batalha, mas que não deixa de ter uma certa grandeza wagneriana, porque se trata, verdadeiramente, de um crepúsculo dos deuses, uma Gotterdämmerung.

E há uma bela morte, que resulta não da derrota do Ocidente, mas de sua vitória. Podemos sonhar com essa morte utópica, que não é uma fonte de melancolia, mas de júbilo. É o sonho de uma civilização ocidental convergindo com outras civilizações para formar uma civilização-mundo, usando para isso o que o Ocidente sempre teve de melhor, o ideal de universalidade. Pois a essência da civilização ocidental é sua constante interação com todas as culturas e civilizações, como afirmou Valéry, em contraste com outras civilizações, caracterizadas pela clausura e pela autossuficiência, na Ásia e na América pré-colombiana. Ao contrário de Samuel F. Huntington, que vê todas as civilizações como entidades estanques, é preciso conceber a civilização ocidental como uma totalidade aberta, porosa a todas as influências e disponível para todos os sincretismos. Morrendo a civilização ocidental pode legar à posteridade um mundo condizente com essas características. Será um mundo em que uma sinfonia de Beethoven seja reconhecida como cultura local no sertão do Ceará, em que uma broa de milho tenha a mesma dignidade literária que uma madeleine proustiana, e em que o Taj Mahal, a abadia do Mont Saint-Michel e a catedral de Brasília povoem da mesma forma o imaginário arquitetônico mundial. Será um mundo em que os valores positivos do Iluminismo, presentes em outras culturas, mas unificados doutrinariamente no Ocidente, tenham se implantado em toda parte, criando condições para uma democracia mundial, regida pela razão e plenamente compatível com o pluralismo cultural.

Essa morte que significa vida é a única digna de uma civilização que produziu a ideia cristã da transcendência, em que a morte não é a negação da vida, mas o acesso à verdadeira vida.

Nota

1 Artigo apresentado na palestra ocorrida no Rio de Janeiro a 30 de setembro de 2008, em Belo Horizonte a 1 de outubro de 2008 e em São Paulo a 2de outubro de 2008..

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