1992

Narrativa silenciosa

por Charles Malamoud

Resumo

À primeira vista, há na cultura da antiga Índia (XI d.C.) traços que indicariam ao europeu a descoberta de um terreno conhecido. São alguns deles: profundidade histórica, que data dos séculos XV e XVI (a.C.) e constitui ininterrupta tradição; conhecimento e amplo uso da escrita; todo um sistema de belas-artes, acompanhado de tradição crítica; obras de pensamento; notável avanço científico; ampla civilização material; valorização do tipo ou estereótipo do homem “cultivado”, e uso do sânscrito, idioma próximo do sistema linguístico europeu. Tal lista é infindável até que se mergulha no estudo da Índia e, consequentemente, descobre-se outro mundo, estranho.

Qual é a origem de tal estranheza? Ela decorre sobretudo da rejeição da noção ocidental de tempo, inclusive no que se refere ao discurso histórico.

Nesse sentido, cabem algumas simples constatações, por parte não só de europeus modernos como de muçulmanos árabes e persas.

Por rica que tenha sido a produção literária da antiga Índia hindu, foi só no século XlI d. C. que surgiu algo parecido com um relato histórico. O “Rajatarangini” aproxima-se da epopeia ocidental, sobretudo no que há nela de sucessão coerente de acontecimentos irreversíveis. Por outro lado, ele anuncia uma mudança de era cósmica segundo a teoria do tempo cíclico presente nas Leis de Manu e nos “Purana”, que, apesar do título – que significa “Antiguidades” –, trata do futuro cíclico do cosmo. E eis a primeira dificuldade que o estudioso ocidental enfrenta na tentativa de entender a Índia: a inexistência de uma cronologia. Por isso, se é possível estabelecer a tradição a que pertence uma obra – normalmente, uma interpretação de um clássico atemporal –, é, por outro lado, muito difícil compará-la a outra tradição

Assim, o que se sabe sobre a história da Índia é desde seu exterior.

Nesse sentido, o clássico dos clássicos – o Veda – é exemplar, pois nele – poema mitológico – a lógica e a sucessão temporal não são só negligenciadas como são abertamente destruídas

Posto isso, é possível supor, por fim, os três silêncios ou vazios que sente o ocidental acostumado com a ideia de começo. A fundação, relacionada a um lugar, momento ou história; a repetição, de começos, de modo que se perca qualquer referência primordial, e a origem – da condição humana – ou a consequência sem causa, razão pela qual todo ser nasce em dívida (indefinida) para com os deuses e deve se sacrificar por eles ou oferecer-lhes libações.

Mas nem tudo é vazio ou silêncio. Não para quem se detém melhor no estudo do “Veda”, pois se há, sim, nele, a negação da singularidade dos lugares e momentos, há, ao mesmo tempo, um esforço constante, quase delirante, para distinguir no real – dizível ou pensável – planos de referências entre os quais se estabelecem correspondências rigorosas sob formas de simbolizações recíprocas. São os “nidana” ou vínculos.


Não deixa de ser um empreendimento estranho, vir da Europa para falar da Índia no Brasil, neste ano do quinto centenário. O que estamos comemorando é a descoberta de um continente que parece não ser a Índia. O Novo Mundo é novo, e renova o mundo inteiro precisamente por ter surgido como o inesperado — e porque interrompeu a tentativa de encontrar a Índia, de chegar ao mesmo por outra via, completando assim o mundo antigo.

Por outro lado, a descoberta de 1492 é o típico acontecimento histórico: seja qual for a interpretação que a ela se dá, as causas e consequências a ela atribuídas, trata-se de um fato indubitavelmente inscrito na realidade, com data exata, analisável e, ao mesmo tempo, inaugural. É um começo, um típico começo — ao tratar-se, repito, de história humana.

Mas a Índia, pelo menos em alguns aspectos essenciais da sua cultura, convida-nos a tomar alguma distância com relação a essas noções que acabei de enumerar: acontecimento singular, história, começo. Ela parece furtar-se a eles ou abordá-los reticentemente. Dir-se-ia que ela pertence a um mundo diferente daquele onde 1492 pôde ocorrer e, sobretudo, ser pensado. Mas, justamente, se conseguirmos definir e compreender essa estranheza hindu, talvez estejamos melhor preparados para surpreender-nos — como sempre é conveniente fazer — com aquilo que nos é familiar.

O que tenho a dizer refere-se à antiga Índia. Segundo um costume bem estabelecido no Ocidente, chamo de antiga Índia aquela anterior ao momento em que a penetração muçulmana tornou-se maciça, por volta do ano 1000 da nossa era.

Existe uma cultura ou culturas hindus, e também sem dúvida uma civilização da antiga Índia, seja qual for o sentido dado a esses termos e o ponto de vista adotado para definir a oposição ou a complementaridade entre cultura e civilização. Para a cultura ocidental é um problema saber como, a que preço, com que consequências, pode incluir no seu horizonte esta figura do outro, que é a tradição hindu. Em outras palavras, é surpreendente que a Índia seja percebida, e com razão, apresso-me a dizer, como algo tão exótico e desconcertante.

À primeira vista, realmente, a cultura ou a civilização da antiga Índia possui muitos traços que deveriam dar aos europeus a impressão de estarem em terreno conhecido. Eis alguns desses traços mais importantes:

  • Uma grande profundidade histórica. Os mais antigos documentos textuais da Índia remontam, segundo as opiniões mais aceitas, aos séculos XV e XVI anteriores à nossa era, e desde então existe uma ininterrupta tradição.
  • Instituições estatais, comprovadas desde a Antiguidade. O imperador Asoka, no século III antes da nossa era, era sem dúvida um grande reformador e um grande conquistador, porém beneficiou-se de técnicas e concepções sobre a arte de governar levadas à prática diversas gerações anteriores.
  • conhecimento e o uso da escrita. Também neste âmbito o reinado de Asoka pode nos servir de ponto de referência. Se as inscrições mandadas gravar por esse soberano são as mais antigas que chegaram ao nosso conhecimento, elas dão testemunho de tal domínio e refinamento no uso da escrita que só podem ser fruto de longos séculos de elaboração.
  • Um sistema completo de belas-artes. Artes da palavra — poesia, teatro –,
  • artes plásticas, música, sendo que a produção de obras artísticas era acompanhada da constituição de uma coleção de conhecimentos e teorizações bem articuladas para cada uma das artes, especialmente dramaturgia e poesia. A isso deve-se acrescentar reflexões muito inspiradas sobre a natureza da emoção estética, que tiveram início já nos primeiros séculos da nossa era.
  • A existência de obras de pensamento — desde o período mais antigo — sobre as quais nos perguntamos, desde Hegel, se podem ser consideradas filosóficas no sentido grego do termo; de qualquer forma, não há dúvida de que são especulações discursivas.
  • notável desenvolvimento de certas ciências, especialmente da matemática.
  • Uma civilização material que conseguiu maravilhar e fazer delirar os viajantes: The wonder that was India, segundo a expressão de Basham.
  • E mesmo a presença na Índia clássica de diversos tipos ou estereótipos do personagem “cultivado”, intimamente relacionado com a vida urbana. Ao lado do sista, o homem que tem autoridade devido ao zelo com que observa as regras morais mas sobretudo à sua competência em um âmbito bem definido do saber, encontra-se o jovem príncipe ou o jovem cidadão livre, que passa o tempo em busca de prazeres refinados, que supõem a aptidão para apreciar todas as artes; também encontramos a cortesã que deve conhecer não só as técnicas do amor, mas também as do canto, da música e da dança, a arte de recitar e compor poemas, de inventar enigmas. Cultura leiga com a qual se desfrutava e raciocinava, transformando-se assim em objeto de saber.

A tudo isso é preciso acrescentar, neste levantamento de traços que deveriam nos tornar a Índia familiar, um elemento muito importante: a língua principal da antiga Índia é o sânscrito, como se sabe um parente próximo das grandes línguas da cultura europeia, especialmente do grego. Este parentesco é acompanhado de semelhanças estruturais notáveis: por exemplo, diferentemente do que se constata com frequência nas línguas não indo-europeias, em sânscrito existe um verbo ser e os pensadores hindus usam todas as formas desta raiz verbal, de uma forma que não espantaria os leitores de Platão, de Aristóteles… ou de Heidegger.

Seria possível estender até o infinito essa enumeração disparatada. A partir do momento em que nos enfronhamos no estudo da Índia, somos tomados pelo sentimento de que a Índia é realmente diferente, e nos sentimos cheios de indulgência por esses viajantes europeus da Antiguidade e da Idade Média que tornavam a Índia um mundo fantástico.

De onde vem essa estranheza? Para dizê-lo de maneira muito esquemática e muito brutal: ela vem do fato de que a Índia parece rejeitar ou ignorar, no discurso que ela elabora sobre sua cultura, o tempo histórico.

Vamos partir de algumas constatações simples, feitas não só pelos europeus modernos, mas também pelos muçulmanos árabes e persas. Na imensa produção literária da Índia hindu, não há, por assim dizer, nada parecido com um relato histórico até Rajatarangini, que data do século XII da nossa era. Evidentemente é preciso deixar-se envolver pela paixão ideológica para ver nas epopeias esboços de história, ou mesmo para imaginar que elas contêm elementos que podem ser diretamente utilizados pelo historiador. Sem dúvida elas têm a vantagem de ser relatos lineares e de implicar uma diacronia mais ou menos coerente de acontecimentos que se encadeiam numa ordem irreversível. Mas é preciso logo assinalar que os acontecimentos das epopeias são apresentados, nos próprios textos, como signos anunciadores de uma mudança de era cósmica e que a sucessão dessas eras é a característica de um amplo sistema de ciclos indefinidamente recomeçados. Já encontramos a teoria desse tempo cíclico nas Leis de Manu, mas sobretudo nos Purana: apesar do seu nome, que significa Antiguidades, essas imensas enciclopédias onde está condensado o saber religioso do hinduísmo não tratam do passado da humanidade, mas do futuro cíclico do cosmo.

Outros traços negativos nos chocam ainda mais, tornando estranhamente difícil o trabalho cotidiano do pesquisador: a indiferença da Índia hindu pela cronologia. Sabe-se que o comentarista é necessariamente posterior à obra que ele comenta, mas é apenas uma caricatura dizer que, nas obras hindus, esta é quase a nossa única certeza. Essas cronologias relativas podem ser estabelecidas com bastante precisão no interior de cada tradição, mas surgem dificuldades quase intransponíveis quando se deseja comparar as tradições entre si, e quando se trata de situar no tempo os textos originais. Cada uma das grandes escolas de pensamento, cada um dos saberes que constituem a cultura hindu, apresenta-se como o desenvolvimento — comentários e sobrecomentários — de uma coleção de aforismos (sutra). De forma geral, torna-se impossível, a uma distância de alguns séculos, situar no tempo esta obra inicial.

Acrescentemos de passagem o problema representado pela homonimia. Na história do pensamento hindu existem dois autores famosos, ambos chamados Patanjali: um deles é gramático e o outro, o teórico da ioga. A história hindu é feita de uma forma — isto é, tão desprovida de elementos concretos — que faz com que durante muito tempo se colocasse a seguinte pergunta: esses dois autores são um mesmo homem? Atualmente o problema ainda não foi totalmente resolvido, e se coloca em diversos outros casos.Eis um fato ainda mais paradoxal e desconcertante. A Índia orgulhava-se de ter produzido um grande tratado de política denominado

Arthasastra, frequentemente comparado — por boas e más razões — ao Príncipe de Maquiavel. Nesta obra são expostos com extrema minúcia muitos aspectos da vida econômica e social. O rei deve controlar tudo, regulamentar tudo; assim ficamos conhecendo a maneira como devem ser organizados a produção agrícola e artesanal, o trabalho das minas, a irrigação, as diversas formas de comércio; aprendemos também quais são as normas para a arrecadação do imposto, a administração de justiça, a construção de cidades, a estrutura do exército, os objetivos e meios da diplomacia, o montante das multas, os salários dos funcionários etc. Pois bem, apesar desse luxo de informações técnicas, apesar do seu objetivo, que é tão evidentemente mundano, esse livro é redigido de forma tal que se torna impossível saber onde, quando e por quem ele foi composto. A incerteza cronológica abrange séculos: entre o século III antes do início da nossa era e o IV posterior, todas as datas são plausíveis; não há nada na língua nem no conteúdo que constitua um argumento decisivo. Isso significa também que esse livro não contém nenhuma referência a qualquer acontecimento histórico. O rei ao qual esses conselhos são dirigidos é anônimo, intemporal e reina sobre um reino abstrato.

Por fim é preciso repetir, depois de tantos outros, que, se os historiadores modernos puderam apesar de tudo construir uma história da Índia antiga — sem dúvida cheia de lacunas e incertezas e paradoxos dos quais citei alguns exemplos — foi principalmente porque puderam ser utilizados dados externos à Índia, os quais forneciam indicações cronológicas. Uma dessas indicações essenciais é a expedição de Alexandre da Macedônia, no século IV antes do início da nossa era, ao noroeste da Índia. Fato histórico de grande alcance, porém do qual a memória hindu não guardou nenhum vestígio. O próprio nome de Alexandre só será introduzido na Índia e adotado pelas línguas hindus sob a forma árabe-persa de Iskander, depois do ano 1000 da nossa era.

E ainda melhor que isso: o imperador Asoka, já mencionado, que unificou sob seu poder praticamente todo o território da Índia e fez conhecer suas ideias e sua história por meio desses verdadeiros documentos históricos que são suas famosas inscrições disseminadas por todo o império, esta figura eminente, eminentemente histórica, do mundo hindu, é na verdade uma descoberta ocidental. Antes que os ocidentais encontrassem e decifrassem suas inscrições, para os hindus — e isso apenas entre os budistas — Asoka era o herói de uma lenda muito vaga, com poucas relações com a história.

E como acabei de mencionar o budismo, gostaria de abrir um parêntese para ressaltar que este desdém pela cronologia, esta falta de atenção pela singularidade histórica dos acontecimentos, pela maneira em que eles se encadeiam e formam aquilo que consideramos a vida real e temporal de homens e sociedades, este desdém e esta desatenção, repito, são com frequência o fato da Índia hindu.

O budismo, pelo contrário, é a obra de um fundador, cuja biografia, embora também sob a forma de lenda, é apresentada pelos seus próprios adeptos, desde o início da tradição, como bem localizada no tempo e no espaço. Por outro lado, desta inscrição inicial, os budistas hindus conservarão o gosto dos lugares santificados pela presença das relíquias de Buda, bem como o gosto desta forma elementar de relato histórico que são as crônicas, e, portanto, também uma grande familiaridade com o uso da escrita. Tais elementos explicam, em parte, que o budismo tenha sido adotado pela China.

Totalmente diferente, repito, a cultura da Índia hindu neste sentido. Poder-se-á talvez notar que fui levado diversas vezes a associar a falta de interesse pelo concreto temporal à falta de interesse pelo concreto espacial. Na verdade o sânscrito, que se tornou nas épocas clássicas a língua de toda a Índia, foi o veículo de obras que, compostas por autores hindus, manifestarão quase tanto distanciamento com relação à geografia quanto à história — com algumas poucas exceções, mais aparentes que reais, entre as quais o romance de Dandin denominado Aventuras dos dez príncipes.

As constatações que acabei de fazer — que poderiam ser matizadas, mas também infinitamente multiplicadas — não são suficientes. É preciso tentar aprofundá-las, sistematizá-las; ver se o silêncio, as lacunas, as abstenções não serão porta-vozes de um discurso feito não só de sintomas mas também de signos.

Para isso há que ir aos extremos, aos textos mais antigos, que também são os mais audaciosos. Quero falar do Veda. Estamos aqui no âmbito da mitologia, da especulação sobre o ritual e, sobretudo, da poesia. Aqui os desafios à lógica são formulados com audácia, com uma espécie de júbilo. Tratando-se de deuses ou do poder da palavra, os poetas não se limitam a negligenciar as pressões do encadeamento temporal: eles se dedicam a destruí-los. Assim, afirmam que tal deus é filho daquele, mas que este por sua vez é filho do primeiro. Ou ainda que os deuses, naturalmente, foram criados, mas que no entanto “eles estavam lá todos juntos, testemunhas, quando as águas primordiais receberam o primeiro germe”.[1] Em outras palavras, na verdade não há começo, e a própria ideia de desenvolvimento linear de séries de acontecimentos a partir de um ponto inicial é negada. As cosmogonias védicas são reiteradas, repetidas continuamente, batendo umas contra as outras como as ondas. Isto não significa que sempre houve um tempo antes do início do tempo, mas sobretudo que tudo está sempre lá antes, e uma multiplicidade de pontos de vista são oferecidos simultaneamente para ordenar os fatos, naquilo que pode ser compreendido como um feixe de sequências temporais. Em suma, uma teoria do não-começo.

Desta teoria subjacente às cosmogonias, gostaria de propor três ilustrações que, nesses textos védicos, referem-se à atividade dos homens.

1) Começarei pela noção de fundação — nas analogias que ela pode oferecer com a de descoberta: um lugar, um momento, o início de uma história. Ainda aqui, tratando-se da Índia, é a história de uma ausência, e o título que os organizadores dessas conferências deram à minha palestra — a narração silenciosa — é totalmente apropriado.

Fundar uma cidade ou um santuário: designar, dando-lhe um nome, um lugar onde, de ora em diante, residirão homens ou deuses. Esses componentes da noção de fundação — um acontecimento inicial, suscitado ou pelo menos reconhecido e assumido por uma vontade humana; um espaço singular, geograficamente determinado; uma residência —, longe de serem acolhidos como dados simples, na Índia védica são observados à distância e contornados com precaução antes de serem admitidos.

Diferentemente da Índia das épocas clássicas e da Índia tradicional que ainda hoje podemos perceber, a Índia do Veda silencia sobre as fundações. Neste vasto maciço de homens e orações, de instruções sobre o ritual, de especulações e delírios sobre as correspondências entre os rituais e o mundo, as palavras e o homem que são os textos védicos, procuraríamos em vão algum relato sobre fundação, ou mesmo a menção de um lugar do qual se poderia pensar que está lá porque foi fundado e convida os homens a rememorar e a celebrar o momento e a razão de ser desse começo. E o que nos coloca na pista dessa ausência é em primeiro lugar uma falta imediatamente constatável: são encontrados no Veda nomes de rios e montanhas (sem que possamos distinguir os lugares místicos dos reais), de regiões (geralmente derivados do nome dos povos que as habitam), mas os termos que poderiam ser interpretados como nomes de localidades são extremamente raros, obscuros e mencionados de passagem, a título de precisão anexa. Dos vinte e três topônimos recenseados pelo Vedic index de Mac-donnell e Keith sob o item “lugares”, só quatro ou cinco aplicam-se com certa certeza a estabelecimentos humanos. Os outros, na medida em que as passagens onde figuram são compreensíveis, designam lugares que têm um nome particular como, por exemplo, Munimarana, “morte de um sábio”, ou Vinasana, “lugar onde se perde (nas areias o rio Sarasvati)”; neste último caso, trata-se de um ponto de referência: o Madhyadesa, “país do meio”, é delimitado ao norte pelo Himalaia, ao sul pela cadeia de Vindhya, ao leste pelo confluente do Ganges e de Yamunã, a oeste pelo Vinasana. Nunca esses nomes servem de pretexto ou ocasião para esboçar uma descrição do lugar que designam, para evocar uma história ou lenda ou mesmo para sugerir um “porquê” etimológico.

Esta pobreza toponímica não deve ser considerada como um indicador do caráter nômade da sociedade védica: com toda a certeza, a Índia do Veda, mesmo dos hinos mais antigos, está bem instalada numa paisagem de aglomerações de cidades (grama), de campos cultivados (ksetra, urvarã); também há diversas referências anônimas e genéricas a cidades e fortalezas (pur). E se a floresta (araya) é evocada com tanta frequência, é precisamente por ser o intervalo que separa as grama: interstício que também é uma imagem sensível do vazio. Mas embora seja certo que a “realidade” védica fosse sedentária, os textos nos oferecem uma glorificação, se não do nomadismo, pelo menos da vida em movimento:

Múltipla é a prosperidade daquele que vai e vem […] é mau aquele que fica entre os homens. Indra é o companheiro do viajante. Semelhante a flores são as pernas daquele que vai e vem; seu corpo torna-se largo e dá fruto, todos seus pecados desaparecem, mortos pela fadiga do caminho […] Veja a proeminência do sol, que nunca se cansa de ir.[2]

Deste ensinamento formulado na lenda de Sunahsepa, podemos estabelecer relações entre o que nos é dito em outro Brahmana: os deuses têm certa superioridade sobre seus adversários, os Asura, porque se movimentam em seus carros e descobrem pelo caminho os rituais apropriados, enquanto os demônios permanecem inertes.[3] Além disso, é preciso lembrar que o termo por nós traduzido como “cidade”, grama, significa etimologicamente “grupo de homens”, o que explica que samgrama possa ter a acepção de “batalha”.

Esses indicadores, contingentes sem dúvida, assim como heterogêneos, nos ajudam no entanto a captar em toda sua amplidão o fato de que não existe templo na religião védica: não é apenas o edifício enquanto estrutura que é recusado; a Índia do Veda afasta-se também da ideia de que o encontro de homens e deuses deve ocorrer sempre em lugares fixos. Isto não quer dizer que as diferentes formas de culto possam ser celebradas em qualquer lugar: o terreno onde serão instalados os fogos e os altares deve satisfazer exigências precisas (orientação, declive, natureza do solo, vegetação, proximidade de um rio etc.), porém essas características são abstratas, não implicam nenhuma localidade; qualquer lugar que as possua pode ser apropriado. É esta mesma rejeição que manifesta, na Índia védica, a ausência de peregrinação; a peregrinação é um movimento destinado a chegar a uma localidade singular, com nome próprio. (Em compensação, no hinduísmo pós-védico templos e lugares de peregrinação desempenham importante papel, e a geografia pode ser construída em torno de pontos fixos; no entanto, ela permanece parcialmente abstrata, já que os lugares não se reduzem à sua unidade material: um mesmo lugar pode ser repetido, multiplicado numa pluralidade de lugares que se equivalem simbolicamente, que se correspondem de uma à outra extremidade da Índia, ao possuírem as mesmas características e o mesmo nome. Além disso, uma rede subterrânea simbólica une todos os rios ao Ganges, de forma que todos participam da natureza do Ganges.)

Sobre o local do sacrifício, embora deva ser escolhido, constituído pelos limites nos quais se encerra, e preparado e inaugurado com toda solenidade, não se poderia afirmar que seu estabelecimento possa ser assimilado a uma fundação. Trata-se apenas do lugar onde o sacrificador coloca (por um certo tempo) seus fogos, que são transportáveis. O caráter sagrado do terreno estende-se às cerimônias que nele sejam efetuadas. Os próprios fogos que, ao serem acesos, constituem para o novo dono da casa o verdadeiro início de sua vida ritual autônoma, não sobrevivem a ele: quando o dono da casa morre, os fogos utilizados para o sacrifício servem para acender a fogueira que consumirá seu cadáver e depois serão apagados; como os outros utensílios do culto, os fogos não são transmitidos de geração em geração. Parece-me que não é conveniente chamar de “fundação” um gesto que cria aquilo que, por definição, só deve durar tanto quanto seu criador.

O local do sacrifício, quando os textos se estendem sobre o que supostamente revela melhor sua natureza essencial, isto é, seu nome, não é considerado assim no momento em que assume uma forma, mas quando, pelo contrário, após o encerramento das operações de sacrifício, ele surge como o depósito ou o resíduo que permanece após a ação: o que foi durante um tempo a residência dos deuses torna-se logo o resíduo estável, coagulado em sua territorialidade, do sacrifício. Todas as ambiguidades, todas as conotações negativas do “resto” como refugo são transferidas para o que “permanece”. Eis o quase-mito e as escorregadelas semânticas ativadas pelo Veda para introduzir esta ideia: o termo védico para “local”, e mais especificamente para “local de sacrifício”, é vastu, derivado da raiz vas (habitar). Pois bem, ficamos sabendo que, no início dos tempos,

os deuses, através do sacrifício [efetuado por eles mesmos], elevaram-se ao céu. Mas o deus que reina sobre o gado [Passupati, isto é, Rudra] foi deixado aqui. Por isso ele é chamado de vastavya: porque foi deixado para trás no vastu.[4]

Em outras palavras, Rudra tem uma relação muito particular com o “local” por ter sido abandonado no local pelos outros deuses; mas de fato o próprio local é considerado o local do resto, como local sob o ponto de vista do resto.

2) O desenrolar do sacrifício. Se a cosmogonia védica é uma acumulação de falsos começos ou de começos relativos, a vida aqui na terra, em compensação, impõe começos a todo momento. Na Índia como em outros lugares, todos os começos são acompanhados de rituais que têm a função explícita de enaltecer a cada vez o acontecimento e de apaziguar os poderes que poderia prejudicar. Sobretudo os ritos cercam de um aparato de repetições e referências à tradição a novidade que o começo introduz no estado das coisas: os ritos atenuam o começo, tornando-o menos temível. Mas os próprios ritos, quando se trata de abordar a execução efetiva dos atos que os compõem, precisam ser iniciados. Os tratados védicos do sacrifício consagram longas exposições aos procedimentos pelos quais se entra no ritual. Interrogam-se, com uma gravidade que denota, na minha opinião, uma espécie de terror, sobre o sentido a ser dado ao ato de começar uma sequência ritual: trata-se de um primeiro movimento que traz em si toda a violência do ataque. Fazer um sacrifício não é, naturalmente, assumir o risco de encontrar o desconhecido. Não há nada mais regulamentado, mais estereotipado do que rito. A dificuldade está em outro lugar: pôr-se a executar um sacrifício é fragmentar em segmentos que se sucedem no tempo uma seleção de atos que o projeto de sacrifício toma em sua unidade. O início dessa execução é uma agressão. Mas a violência inerente ao começo, a todos os começos, pode ser diluída: o rito é acompanhado por fórmulas que, recitadas em um certo tom, conseguem incluir simbolicamente na operação inicial todas as seguintes; e essas fórmulas próprias para o começo são recitadas em cada uma das etapas posteriores; assim, sendo a totalidade do rito reafirmada em cada parte, sendo o início lembrado em todos os momentos da continuação, a inevitável fragmentação perde seu efeito destruidor; o começo está em todas as partes e em nenhuma.[5]

3) As origens da condição humana: efeitos sem causa. Os homens, portanto, celebram rituais. Por quê?

Todo ser [na verdade, todo homem] ao nascer tem uma dívida para com os deuses, os videntes [que deram a conhecer aos homens a Revelação védica], aos Pais [ou seja, aos ancestrais], aos homens. Sacrifica-se para saldar esta dívida que, desde o nascimento, se tem para com os deuses; é para eles que se sacrifica, que se oferecem libações. E, se repetirmos o Veda, temos uma dívida desde o nascimento para com os videntes; é para eles que o fazemos, e aquele que recitar o Veda é chamado de “guardião do tesouro dos videntes”. E, se desejarmos a progenitura, é porque temos uma dívida desde o nascimento para com os Pais; é para que sua progenitura seja contínua e ininterrupta. E, se oferecermos hospitalidade, esta é uma dívida que temos desde o nascimento para com os homens; é por eles que o fazemos, que oferecemos hospitalidade ou comida (…)[6]

Trata-se de dizer aqui por que se executam rituais (inclusive este ritual que é a procriação). Pois bem, o rito por excelência, o sacrifício, compreende uma “extração por corte”, avadana, sobre a pessoa do sacrificador, ou sobre o corpo da vítima que é seu substituto. Mas esse termo avadana pode ser derivado de outra raiz verbal, e passaria a significar “pagamento, forma de apaziguar um credor”. Esta consideração sobre as dívidas congênitas tem portanto como ponto de partida um jogo sobre as duas acepções de avadana: a “extração por corte” é executada por ser uma “forma de apaziguar o credor”. Que credores são esses que devem ser apaziguados pelas extrações? A resposta está clara, mas o que origina o silêncio que reside nestes textos é, já dissemos, a origem da dívida. Quando, como, o que foi emprestado? Ou de que falta o homem é culpado para encontrar-se em posição de devedor de um bem que é sua própria pessoa?

Se os textos estimulassem uma resposta, teríamos necessariamente, de uma ou outra forma, um mito de origem, o relato de uma queda, talvez, mas de qualquer maneira o relato de um acontecimento gerador de consequências. De fato, o homem nos é descrito como um ser endividado desde o nascimento, não por herança nem hereditariedade, mas por definição, por constituição. Sentimo-nos evidentemente tentados a reduzir o absurdo dessa noção de dívida sem empréstimo (de consequência sem causa). A palavra “dívida” não seria uma maneira enérgica de dizer simplesmente “dever” ou “obrigação”? Adotar essa escapatória seria tornar o texto insípido ou trair a língua. Diferentemente das palavras que, em um grande número de línguas, designam a “dívida” como um aspecto ou caso particular do dever, e estão ligadas etimologicamente a verbos que significam “dever”, o sânscrito ma não tem etimologia. Pertence ao vocabulário técnico do direito e das relações econômicas. Tem naturalmente segundas acepções, “falta” e também “negativo”, “menos”, na língua da matemática; mas precisamente essas são transposições de um valor inicial “dívida” irredutível e indecomponível, além do qual é impossível ir; assim como a dívida constitutiva, a palavra que a representa não tem pré-história.

Portanto, o homem é definido por esta metade de discurso, por esse discurso-silêncio que os textos bramânicos lhe consagram.

Ele é devedor, não se sabe o que pediu emprestado; tudo sucede como se tivesse emprestado sua própria pessoa. O fato é que tem credores e lhe é indicado o meio de pagar-lhes. Existem algumas medidas que permitem sua recuperação. Mas, no começo, existe esta privação de posse inicial, acontecimento sem contorno e sem nome.

4) Crítica da origem, crítica do começo como separado da continuação, crítica da causalidade — assim se explicita no Veda a esquivança ao tempo e a negação de levar a história a sério. Deve-se ver nessas formas de ser e de dizer uma nostalgia da eternidade, e mais gravemente uma nostalgia daquilo que é indistinto e inarticulado, um pensamento mínimo que se contentaria em dizer estupidamente “que tudo deve ser em tudo e reciprocamente”? Não me parece. O que é chocante e, na minha opinião, apaixonante, no procedimento hindu, pelo menos no procedimento dos poetas teológicos do Veda, é que a negação da singularidade dos lugares e dos momentos é acompanhada por um esforço constante, quase delirante, para distinguir no real (ou antes, no dizível e no pensável) planos de referência entre os quais se estabelecem correspondências rigorosas sob a forma de simbolizações recíprocas. Neste sentido, a história da palavra sânscrita nidana é instrutiva. Literalmente significa “vínculo”. Nos textos budistas, significa “causa”, mais precisamente porque um efeito é ligado à sua causa. Nos textos védicos, designa a correspondência estrutural entre elementos homólogos situados em planos diferentes.

Para terminar, darei um exemplo dessas correspondências. Trata-se, no Veda, de um rito destinado justamente a construir o ano, isto é, a substituir o tempo como duração inarticulada por uma secessão regulamentada de elementos temporais discretos e, naturalmente, recorrentes. O mestre pergunta ao aluno:

“Quantos dias há no ano?” “Dez. Pois o sacrifício que permite construir o ano é homólogo à estrofe denominada viral, que é feita de versos de dez sílabas.” “Mas quantos de verdade?” “Nove, porque existem nove sopros vitais, e graças aos sopros vitais o sacrifício é executado.” “Mas quantos de verdade?” “Oito, porque a estrofe gayatri, que é a quinta essência do Veda, está composta por versos de oito sílabas.” “Mas quantos de verdade?” “Sete, porque existem sete formas métricas na poesia védica e de acordo com essas formas métricas o sacrifício é executado.” “Mas quantos de verdade?” “Seis, porque existem seis estações no ano.” “Mas quantos de verdade?” “Cinco, porque existem cinco formas de sacrifício.” “Mas quantos de verdade?” “Quatro, porque as vítimas que podem ser sacrificadas são quadrúpedes.” “Mas quantos de verdade?” “Três, porque há três mundos.” “Mas quantos de verdade?” “Dois, porque o homem que sacrifica e constrói o ano através do seu sacrifício é bípede.” “Mas quantos de verdade?” “Um, porque o ano inteiro é este dia, depois deste dia.”[7]

Este é, conclui o texto, o upanisad, isto é, o sistema de conexões que forma o tecido inteligível do ano.

Pensamento de uma fantástica sistematização, não desenfreada, mas pelo contrário, rigorosamente obsessiva, do qual vocês supõem acertadamente que não desejo ser propagandista nem sugerir que encontre não sei qual sabedoria salvadora — mas do qual quis mostrar que não era nem simplista nem simplesmente caracterizado por faltas, parece-me que devemos levá-lo em consideração quando nos interrogarmos sobre o tempo e a história.

Tradução de Cláudia Schilling

Notas

[1] Rg-Veda, X, 82, 5.

[2] Aítareya-Brahmana, VIl, 15.

[3] Satapatha-Brahmana, VI, 8.1.1.

[4] Ibidem, I, 7.3.1.

[5] Cf. Charles Malamoud, “Sans lieu ni date, note sur l’absence de fondation dans l’Inde vedique”, em Marcel Detienne (ed.), Tracés de fondation, Louvain-Paris, Peeters, 1990, pp. 183-91.

[6] Satapahta-Brahamana, 1, 7.2.1-6. Retomamos aqui um tema desenvolvido em “Le Malen-contre de La Boétie et les théories de l’Inde ancienne sur la nature de la société”, em Miguel Abensour (ed.), L’esprit des lois sauvages, Paris, Seuil, 1987, pp. 173-82.

[7] Satapatha-Brahamana, XII, 2.2.13.

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