Mundos possíveis
por Adauto Novaes
O verdadeiro fim do mundo é a destruição do espírito, o outro é condicionado pela experiência que consiste em saber se o mundo subsistirá depois da destruição do espírito.
KARL KRAUS, Apocalipse
BREVE INTRODUÇÃO
No ensaio Notre destin et les lettres, o poeta Paul Valéry narra que, ansioso por saber para onde vamos, quis interrogar o diabo, mas desistiu de imediato porque, mesmo sendo diabo, certamente nada poderia dizer. Acontece, diz o poeta, que o espírito – esta potência de transformação – subverteu o mundo de tal maneira que acabou por voltar-se contra o próprio espírito: um mundo transformado pelo espírito, no qual as invenções aceleradas nascem e modificam em pouco tempo os costumes, a política, a ética, as mentalidades, a vida social, enfim, o mundo das transformações técnicas e científicas “não oferece mais ao espírito as mesmas perspectivas e as mesmas direções de antes e impõe a ele problemas inteiramente novos, inúmeros enigmas”. É que, na realidade, não sabemos mais pensar no futuro com confiança, pois “perdemos nossos meios tradicionais de pensar e prever”. Assim, o futuro é como todo o resto: não é mais o que era. Mais que enunciar o fim de uma civilização, a célebre frase de Valéry nos propõe um enigma: fim das ideias de futuro tal como o pensamento moderno soube construir ou, simplesmente, fim do futuro? É a estas questões que os ensaios deste livro procuram responder.
Mas, antes de falar do futuro – tema central do livro -, o rigor exigiu que alguns ensaístas voltassem às noções de tempo: como interrogar de outra maneira as proposições herdadas dos estoicos e de Santo Agos tinho, para quem o tempo é sempre um enigma vertiginoso: “Como seriam o passado e o futuro”, escreveram eles, “uma vez que o passado não existe mais e o futuro não existe ainda?”. Entre outros autores que são analisados, Valéry traz uma resposta possível: o que não existe mais está no coração do que existe. O futuro – o que não existe ainda – se faz no ver. E “ver é prever”. “O objeto próprio, único e perpétuo do pensamento é: o que não existe.” Tendemos a pensar que, nesta passagem, Valéry retoma o Livro XI de Santo Agostinho, que escreve: “O futuro não existe, quem o nega? Mas, apesar disso, sua espera já está em nosso espírito. O passado não existe mais, quem duvida? Mas apesar disso a lembrança está ainda em nosso espírito. O presente é sem extensão, é apenas um ponto fugidio, quem o ignora? Mas apesar disso a atenção é duradoura”. Ao falar da espera, da lembrança e da atenção, Agostinho põe em evidência o espírito – ou o trabalho permanente da inteligência como potência de transformação -, que é a chave para abarcar as três dimensões do tempo. Mas o que acontece com esta potência de transformação quando a modernidade procura transformar o espírito em coisa supérflua, como afirma ainda Valéry?
Ao escrever no prefácio às Cartas persas, de Montesquieu, que a barbárie é a era dos fatos e que nenhuma sociedade se estrutura e é organizada sem as coisas vagas – os ideais de futuro -, Valéry dialogava com outros pensadores: lemos, por exemplo, no Tractatus, de Wittgenstein, que a principal conquista da ética consiste na afirmação da intemporalidade da vida, isto é, ao seu não pertencimento ao universo dos fatos. É certo que vivemos a era dos fatos produzidos pelo desenvolvimento tecnocientífico. Lemos ainda nas notas escritas por ele em 1947: ”A visão do mundo verdadeiramente apocalíptica é aquela segundo a qual as coisas não se repetem. Não é desprovido de sentido, por exemplo, acreditar que a época científica e técnica é o começo do fim da humanidade; que a ideia de um grande progresso, como a do conhecimento último da verdade, nos cega; que, no conhecimento científico, nada há de bom ou de desejável, e que a humanidade que o persegue corre para a sua perda.
Mais radical e sombria é a visão de Heidegger sobre o futuro. Na famosa entrevista aos editores do semanário alemão Der Spiegel, publicada no dia seguinte à sua morte, em 1976, Heidegger afirma que a técnica planetária dos tempos modernos transformou-se na potência que determina a história. Diante dessa nova realidade, diz ele, “não estamos assustados. Digo que não temos nenhum caminho que corresponda ao ser da técnica”. Mais: no movimento mundial que conduz ao advento do Estado absolutamente técnico,
a filosofia não poderá produzir efeito imediato que mude o estado presente do mundo[…] mas isso não vale apenas para a filosofia; vale também para tudo o que é preocupação e aspiração do lado do homem[…] a filosofia dissolve-se em ciências particulares: a psicologia, a lógica, a politologia […] agora, a cibernética toma o lugar da filosofia.
Sobre o estado atual e o futuro do pensamento, Heidegger, para quem a ciência não pensa, diz que “talvez” o único caminho do pensamento seja o silêncio, para impedir que ele seja espetacularizado: “Talvez sejam necessários também trezentos anos antes que haja ‘um efeito”‘.
Por fim, ao falar de maneira enfática sobre o papel do pensamento no futuro, Heidegger conclui assim a entrevista:
Não conheço nenhum caminho que leve a mudar de maneira imediata o estado presente do mundo, a supor que tal mudança seja possível aos homens[…] O pensamento não chega a pensar até o fim a incerteza na qual está. Mas sua maior incerteza consiste em dizer que hoje, tão longe quanto se possa ver, não existe ainda um “grande” pensador[…] aquilo que se exige do que é dado a pensar é muito grande. Podemos talvez nos pôr apenas numa passagem: construir caminhos estreitos, não indo muito longe.
Não saberíamos dizer se seria correto esperar pelo “grande pensador”, “síntese” do pensamento, que apresentaria ideias diretivas e organizadoras do mundo. Muitos pensadores, observa Jacques Bouveresse no ensaio “O que é orientar-se no pensamento”, veem vantagens nesta ausência quase total de ideias diretivas: “Musil fala de uma espécie de ‘democracia dos fatos’ que nenhuma síntese consegue mais organizar a partir de agora. É preciso acrescentar hoje, visivelmente, uma espécie de ‘democracia das ideias’, entre as quais nenhuma, e principalmente as ideias da ciência, pode mais ser autorizada a impor às outras sua superioridade, sua autoridade ou sua lei”.
As observações de Musil/Bouveresse não seriam o reconhecimento, no plano dos conceitos, de que o futuro não é mais o que era?
A tradição nos diz que reinventamos sem cessar o futuro, o tempo do possível. Seria assim hoje, quando se sabe que a técnica é capaz de desencadear processos sem controle e sem volta sem nossa intervenção, sem nossa reinvenção? Em um ensaio escrito para o livro coletivo Repensar a democracia, o filósofo Jean-Pierre Dupuy cita as observações feitas por Kevin Kelly sobre o descontrole no processo de convergência entre a nano e a biotecnologia: “Foi preciso muito tempo para compreender que a potência de uma técnica era proporcional à sua ‘incontrolabilidade’ (out-of-controlness) intrínseca, à sua capacidade de nos surpreender engendrando o inédito. Na verdade, se não nos inquietamos diante da técnica é porque ela não é revolucionária o bastante”.
DO “SENTIMENTO” DE MUTAÇÃO À EXPERIÊNCIA
Não se trata principalmente de atar o fio rompido da tradição ou de inventar um sucedâneo ultramoderno destinado a preencher o intervalo entre o passado e o futuro. Ao longo desses exercícios, o problema da verdade é deixado em suspenso; preocupa-se apenas em saber como mover-se nesse intervalo – a única região talvez na qual a verdade poderia aparecer um dia.
HANNAH ARENDT
Ao escrever sobre o futuro, o poeta Paul Valéry expressava um sentimento partilhado por muitos pensadores de sua época: a célebre frase “nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais” prenuncia e enuncia o início do fim da civilização ocidental (civilização europeia), escrita logo após a Primeira Guerra Mundial, época de grandes invenções – aviões, armas químicas etc. Foi preciso muita ciência, escreve Valéry, para matar tantos homens e arrasar tantas cidades em tão pouco tempo, transformar as mentalidades, alterar a política e a ética. Mas tudo era obscuramente pressentido. Um dos sintomas é descrito por Karl Kraus como indício da militarização definitiva e radical da sociedade: o soldado que volta para casa não se deixará integrar facilmente à vida civil: “[…] a guerra terá sido para ele um brinquedo de criança comparada à paz. Deus nos livre da ofensiva que nos espera! Uma atividade terrificante, que não mais será dominada, porá as mãos sobre as armas e prazeres em todas as situações da vida. Ver-se-á chegar ao mundo mais morte e doença do que a guerra exigiu dele”. Uma doença particular é apontada por Musil como o “egoísmo organizado”, que, para Walter Benjamin, traduz-se no fim da faculdade de trocar experiências: “Uma das razões desse fenômeno”, escreve ele em O narrador, “salta aos olhos: o valor da experiência caiu de cotação. E parece que a queda continua indefinidamente. Basta abrir o jornal para constatar que, desde a véspera, uma nova queda foi registrada, que não apenas a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo moral sofreram transformações que jamais pensamos serem possíveis. Com a guerra mundial vimos o início de uma evolução que, desde então, nunca mais parou”. Era apenas o esboço do que viria a ser a civilização tecnocientífica (191 milhões de mortos em guerras e massacres no século XX), um tempo já marcado por audaciosas descobertas através das quais a ciência passou à ação. Foi também um tempo no qual “a atitude contemplativa ou descritiva” e os valores cederam o lugar à vontade de potência. Menos de trinta anos depois, novos acontecimentos deixavam mais claro o “sentimento” de mutação: era o tempo da ameaça de uma guerra atômica mundial depois de Hiroshima e a crença no fim do homem e do humanismo, como pensavam a Escola de Frankfurt e a filosofia de Heidegger. Pode-se dizer, sem o risco de errar muito, que presenciamos não a derrocada desta ou daquela ideologia, mas de todas as ideologias. A menos que, como diz Musil, o domínio dos fatos se transforme em uma “ideologia não oficial”. A filosofia, escreve ele, ganhou um ligeiro (!)
atraso diante dos fatos, “o que a induziu a pensar que o espírito voltado para os fatos era antifilosófico; na realidade, não ter filosofia é a filosofia que convém ao nosso tempo”. Sem ideologia, sem filosofia. E também sem experiência porque, como nos lembra Agamben,
sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária; a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente […] É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável – como em momento algum no passado – a existência cotidiana […] Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da Terra (digamos o patio de los leones, no Alhambra), a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência delas. Não se trata aqui, naturalmente, de deplorar essa realidade, mas de constatá-la.
Em um comentário aos textos de Agamben, Didi-Huberman atribui outro sentido à ideia de experiência. Não se pode dizer, afirma ele, que a experiência tenha sido destruída: “É preciso dizer, ao contrário, que a experiência é indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e clandestinidades de simples lampejos na noite”. É este sentido também que ele atribui à expressão L’expérience interieur em Bataille: fissura, não saber, prova do desconhecido, errância nas trevas. Seria esta a experiência que nos resta, sem expressão e sem nome, “simples lampejo” nas trevas? Hoje, com o domínio global da tecnociência, passamos do “sentimento” à “experiência”, ainda que errática, das mutações, verdadeira revolução que abarca todos os domínios: basta passear pelos novos vocábulos: correntes transumanistas, pós-humanistas, convergência das nanotecnologias, informática, ciências cognitivas, robótica etc., ligadas a desenvolvimentos recentes das biotecnologias.
Ao dizer que o futuro não é mais o que era, Valéry estava apenas reconhecendo que as imagens que tínhamos do futuro perderam sentido e que a modernidade não pode mais desdobrar seu pensamento: “Ninguém mais sabe que ideias e que modos de expressão estarão inscritos na lista das perdas, que novidades serão proclamadas”. Valéry põe no centro de suas preocupações a questão do tempo e escreve que a dificuldade de reconstituir o passado, mesmo o mais recente, é comparável à dificuldade de construir o futuro: “O profeta está no mesmo saco que o historiador. Deixemos os dois aí”. Ou seja, o profeta – aquele que anuncia o futuro – e o historiador – aquele que pensa o passado – estão em baixa. Eis nosso problema: porque estamos em meio a dois mundos, temos dificuldade de ver o presente e o futuro: “Os físicos nos ensinam que em um forno incandescente, caso nosso olho pudesse subsistir – nada veria[…] Esta formidável energia leva à invisibilidade, à igualdade insensível. Ora, uma igualdade desta espécie não é outra coisa senão a desordem em estado perfeito”. Não sabemos, portanto, ver a desordem do mundo atual. Vivemos a era dos fatos, o “presente” eterno, sem passado nem futuro, e isso obscurece a visão do mundo. Mais: até mesmo a ideia do presente não é mais a mesma: em um mundo acelerado, sem o tempo lento do pensamento, o presente é substituído pelo imediato – mais precisamente pelo imediatismo das coisas -, pelo provisório e pelo fim das grandes narrativas e da ideia de estilo nas artes. Dou um exemplo inspirado em Musil, não no sentido de elogio do arcaico, mas como tentativa de entender o que acontece com a ideia de presente: dispomos, diz ele, de uma organização técnica e comercial que nos permite construir uma catedral gótica em alguns anos, ou até mesmo em algumas semanas. Mesmo que ela seguisse, coerente, o plano original, ainda assim seria uma obra pobre: faltaria a ela o aporte do tempo e das gerações sucessivas, “o ilogismo, o caráter orgânico que só aparece no inorgânico e outras qualidades da mesma ordem. A duração impressionantemente longa dos impulsos da vontade inerente à expressão da alma gótica decorre, pois, da lentidão […]”. (Uma catedral exigia, muitas vezes, trezentos anos para ser concluída.) Musil considera que este novo gosto do imediatismo denota um espírito grosseiramente mecanicista, uma civilização sem cultura e cínica. Um ganho do saber técnico e uma perda do sentimento lento e impreciso da vida. Tomemos outro exemplo, no plano político, que era o uso da sátira. Ela tende a desaparecer? Antes, a sátira anunciava o que podia acontecer, não como o adivinho, mas, diz Jacques Bouveresse, “como um sentimento de tentar desesperadamente impedir que a realidade lhe dê razão”. Agora é o momento, como escreve Musil, no qual o capitalismo invade o domínio do espírito com suas formas mais grosseiras e imediatas; o passado é posto no esquecimento e o futuro é a antecipação sistemática de acontecimentos presentes. Ou seja, as noções originais de tempo são substituídas.
Devemos, entretanto, ler com cuidado o que Valéry escreve sobre as noções de tempo. Ele nos diz, por exemplo, que, por uma generalização imaginária do instante, o homem, criando o tempo, constrói não apenas perspectivas aquém e além de seus intervalos de reação, mas muito mais: ele vive muito pouco no próprio instante. Seu pensamento sobre o tempo é cheio de nuances: Valéry não chega a afirmar com clareza, mas nos induz a pensar que a modernidade aboliu “uma das mais extraordinárias invenções da humanidade – o passado e o futuro”, para em seguida dizer que o “o objeto próprio, único e perpétuo do pensamento é: aquilo que não existe”. É o mesmo sentido que Nietzsche dá à ideia de passado. Viver naquilo que outros viveram e não apenas no que eles deixaram, “assumir na alma tudo isso, o que há de mais antigo e o que há de mais novo, as perdas, as esperanças, as conquistas, as vitórias da humanidade; reunir tudo isso enfim em uma única alma e condensá-lo num só sentimento: eis que deveria resultar em uma felicidade que o homem, até agora, ignorava ainda – a felicidade de um deus”. O pensamento trabalha a partir daquilo que se conserva do passado nos fatos e nas ideias. Ao analisar os ensaios de Valéry sobre passado e futuro, Édouard Gaede pergunta: O que a memória faz sobreviver? O que guarda este fenômeno prodigiosamente banal e obscuro da repetição? Como, enfim, “os dados da sensibilidade, concebíveis de início unicamente na sua extensão espacial, adquirem profundidade temporal? Como o mundo, tal como ele é, desdobra-se de um mundo tal como ele foi e o eu presente se reconheça em um eu passado?”. Uma das respostas possíveis é dada por Agamben: em seu livro, escrito originalmente em francês, Les corps à venir. Lire ce qui n’a jamais été écrit, ele desloca o centro da atenção das referências históricas.para dar atenção ao curso das coisas fora das grandes teleologias conceituais. Aqui, diante da visão “apocalíptica” do mundo contemporâneo, ele se dedica a pensar a noção de gesto e sua temporalidade profunda, como observa o filósofo francês Georges Didi-Huberman:
Como certos textos seus mais recentes, Giorgio Agamben é um filósofo, não do dogma, mas dos paradigmas: os objetos mais modestos, as imagens mais diversas tornam-se para ele[…] a ocasião de uma “epistemologia do exemplo”, uma verdadeira “arqueologia filosófica” que, de maneira ainda bastante benjaminiana, “retoma em sentido inverso o curso da história, assim como a imaginação” e restabelece o curso das coisas fora das grandes teleologias conceituais. A revelação das fontes aparece aqui como a condição necessária – e o exercício paciente – de um pensamento que não procura de imediato tomar partido, mas que
quer interrogar o contemporâneo na medida de sua filologia oculta, de suas tradições escondidas, de seus impensados, de suas sobrevivências.
Somos, portanto, herdeiros de pesada herança e de obras grandiosas tanto como sujeitos individuais como seres universais porque o homem que reflete sobre seu passado “é levado, apesar dele, a refletir sobre o passado do Homem”. Sem nostalgia. Quando se proclama que falta síntese ao nosso tempo, dominado pelos fatos, corre-se o risco do elogio aos ‘bons velhos tempos” com sua síntese de uma “filosofia” vulgarizada do liberalismo com a crença cega na racionalidade técnica e no progresso. Não é isso o que pretendemos no novo ciclo de conferências.
Mas sabemos, por definição e pela prática da história, que é impossível criar uma imagem do futuro sem a lembrança do passado e sem a percepção e dados do presente de maneira crítica. O que se quer dizer é que presente, passado e futuro formam uma trama indissociável. Retiremos um destes tempos e a ideia de tempo desaparece. Vemos apenas acontecimentos e não o presente, como se supõe. Em um ensaio – “A situação de nossa geração”-, Musil narra que, apesar da grande crise do Ocidente na passagem de 1900, ainda assim foi um período de grande atividade ética e estética: “Acreditava-se no futuro, em um futuro social e em uma nova arte. Esta, é certo, apresentava aspectos mórbidos e decadentes; mas estes dois caracteres negativos eram apenas a tradução circunstancial da vontade de ser outro, de agir de maneira diferente da do homem do passado; acreditava-se no futuro, desejava-se suscitá-lo…”.
Para ver o presente, precisamos, pois, recorrer às lembranças do passado e imaginar o futuro. Ver é rever e prever. Apenas um exemplo do abandono da ideia de tempo: antecipar de maneira acelerada os acontecimentos ganhou hoje a forma de especulação em todas as áreas da atividade humana, não apenas na economia, a mais evidente delas. Como escreve Frédéric Gros, especular é antecipar um valor a fim de extrair benefícios das variações deste valor: “Não se compram mais bens. Compram-se e vendem-se possibilidades de lucro”. Especula-se também sobre a sensibilidade, sobre as afetividades…
Até há pouco, recorríamos a três modalidades quando falávamos do tempo:
- passado como existência necessária: nem Deus pode desfazer o que foi feito;
- presente como existência factual: ele é assertivo: o que é, é;
- futuro como existência contingente: o tempo do possível.
Estas três modalidades serão mais bem explicitadas adiante.
Temos, hoje, condições de responder à velha questão: “para onde vamos”? É isso que os conferencistas do ciclo O futuro não é mais o que era pretendem esclarecer. Tendemos a concentrar a reflexão do ciclo sobre a ideia de futuro a partir de três eixos:
- Breve incursão sobre a natureza do tempo. O que é o tempo?
- Uma análise da relação geral que os homens estabeleceram com o futuro ao longo da história: mitologias e mitos originários, profetismos políticos, milenarismos etc.
- Que relação podemos ter hoje com nosso futuro quando os ideais revolucionários e a própria ideia de esperança estão em baixa e quando a tecnociência, a biotecnologia e a informática se apresentam como videntes e pretendem (nova ideologia) dar resposta a tudo e a tudo prever?
Mas, ao propor uma reflexão sobre o futuro, é preciso fugir da armadilha ou risco de predeterminar a história. Sabemos que o curso da história permanece imprevisível e incontrolável. É o que diz, por exemplo, Wittgenstein: “Quem conhece as leis segundo as quais a sociedade se desenvolve? Estou convencido de que o espírito mais inteligente não tem a mínima ideia. Se você combate, você combate. Se você espera, você espera. Pode-se combater, esperar, e mesmo crer, sem crer cientificamente”. Um comentário do filósofo Jacques Bouveresse ajuda a esclarecer nossos propósitos. Ele diz que Wittgenstein recusa qualquer interpretação intelectualista da história e afirma que a evolução das sociedades “resulta essencialmente de desejos, esperanças, crenças, recusa e aceitação que nada têm de científico[…]”. Eis o problema: hoje, as promessas científicas de futuro abolem desejos, esperanças e até mesmo as crenças, como foi analisado no ciclo e livro A invenção das crenças.
Para tentar entender o enigma de “o futuro não é mais o que era”, leiamos ainda Valéry: o futuro é a parte mais sensível do instante, ou seja, o que não existe ainda se revela no coração daquilo que existe, como sua “mais sensível parcela”. Espírito e vida, comenta Édouard Gaede em seu “Máscaras e espelho“, juntam-se assim em um movimento em direção ao novo ao qual se engajam todas as coisas e mesmo todas as ideias. Gaede cita Valéry: “Todo nosso ser, e não apenas nosso espírito, ocupa-se com o que será, uma vez que ele só procede por atos, mais ou menos ativos, mais ou menos complexos. Respirar, nutrir-se, mover-se é antecipar.[…] O futuro confunde-se, em cada um de nós, com o próprio ato de viver.[…] A vida, em resumo, não é senão a conservação de um futuro”. Para projetar nosso futuro, perguntemos, pois: como vivemos hoje?
ENTRE PASSADO E FUTURO
Comecemos com um diagnóstico.
Lemos no prefácio de Hannah Arendt ao livro Between past and future que “o apelo ao pensamento se faz esperar no estranho entre-dois” que afeta o tempo histórico. Temos consciência, diz ela, de que este intervalo de um tempo é “inteiramente determinado por coisas que não existem mais e por coisas que não existem ainda”. O intervalo impensado entre dois mundos cria enigmas que só o espírito, esta “potência de transformação”, pode desvendar. Mas, como escreve ainda Hannah Arendt, “razões misteriosas” levam o espírito hoje a deixar de exercer suas funções. Ela cita Tocqueville: “Porque o passado não esclarece mais o futuro, o espírito anda nas trevas”. Ou, como escreve o poeta Paul Valéry de forma elegante, o “futuro não é mais o que era”. Seremos anacrônicos se fizermos o elogio das “duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro”? Agamben nos ajuda ao dizer, em sua conferência O que é o contemporâneo, que é contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com seu tempo, “nem está adequado às suas pretensões; neste sentido, ele é inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”.
Sejamos, pois, anacrônicos.
Hannah Arendt fala do impensado. Entendemos por impensado não apenas o que não foi pensado ainda, e que nos convida a uma retomada a partir dos vestígios que se abrem para outro vir a ser do conhecimento. O impensado hoje, momento de passagem entre dois mundos, dá-se também no “vazio de pensamento”. É certo que vivemos um momento de mutação produzido pela revolução tecnocientífica. É difícil negar o predomínio da técnica no mundo contemporâneo. Tendemos a concordar com Heidegger quando ele diz que há uma cisão entre ciência e técnica de um lado, e pensamento de outro. Aceitemos sua frase ousada: “a ciência não pensa”. Esta “constatação” é, segundo ele, parte da estrutura interna da ciência: “‘A ciência não pensa’ não é um reproche, mas uma simples constatação da estrutura interna da ciência: é próprio de sua essência que, de uma parte, ela dependa daquilo que a filosofia pensa, mas que, de outra parte, ela mesma esqueça e negligencie o que exige ser pensado”. Mais: “No que se refere à técnica, minha definição da essência da técnica é, para dizer em termos concretos, que as ciências modernas da natureza fundam-se no quadro do desenvolvimento da essência da técnica moderna e não o inverso”.
Diante das grandes transformações produzidas pela tecnociência, resta-nos a tentativa de entender o que nos acontece, como aconselha o poeta e filósofo Michel Deguy. E assim, diz ele, um último traço de inquietação e de autovigilância se impõe: “Pode ser que a mutação em curso seja tão integral, tão complexa, afetando todos os campos, setores, instrumentos, conceitos, e eu, seu interlocutor, seja tão ignorante, tão marginal e ‘inativo’, que me torne incapaz de compreendê-la convenientemente e até de me referir a ela – para além dessas generalidades que acompanham, sem incomodá-la, a pau-metamorfose que está em curso…”.
ESPÍRITO DO TEMPO
A decadência da civilização europeia, os primórdios da civilização técnica e suas grandes mutações são definidos como o momento no qual o espírito torna-se coisa supéeflua. Frase mais espantosa se pensarmos que por espírito Valéry entendia não apenas “potência de transformação”, mas também e principalmente a inteligência das coisas. As ideias de espírito e tempo sempre estiveram juntas no pensamento de Valéry: “O que há de superior, de melhor em nós, tem sempre o valor de futuro”. Como o passado é o tempo da impotência, o futuro é o tempo do possível, “dopo der em estado puro, o tempo do espírito”, observa Édouard Gaede, leitor de Valéry: se o passado fez o homem, é ele quem fará o futuro. Mais: “O valor do futuro consiste em ser universal porque, se somos diferentes por nosso passado, somos iguais diante do futuro”. Iguais em possibilidade de invenções. Sabemos também que, no fundo, o espírito é aquilo que tem o poder de duvidar de tudo. Como diz Alain, ele está acima de todos os mecanismos – ordem, virtudes, deveres, dogmas – e, por isso, pode “julgá-los, subordiná-los, substituí-los pela própria liberdade, que nada deve a não ser a si mesma”. Ora, se o fundamento do espírito consiste em duvidar, nada é mais contra o espírito do que o “espírito” do nosso tempo. Tempo de certeza científica. A primeira de todas as certezas garante que tudo pode ser explicado e provado e que a ciência nada pode ignorar. Tal maneira de pensar torna-se por si só um sistema. Lemos a cada dia um anúncio da ciência sobre o futuro das coisas. Ela promete até mesmo dizer, a partir das análises da neurociência feitas no momento do nascimento, quando a pessoa vai morrer. É uma maneira de dizer que não podemos mudar o futuro – nenhuma ação do homem conta. Até mesmo o acaso é abolido. Eis a fonte de resignação e passividade na vida cotidiana, com reflexos na política, nos costumes, na moral: somos chamados a nada fazer para mudar o que acontece e o que acontecerá. Esta pode ser uma das possíveis explicações para a ideia de espírito como coisa supérflua. Mas cientistas e neurocientistas insistem em dizer que há espírito no trabalho da técnica. Pode ser. Resta, entretanto, a pergunta: onde está o espírito que nega?
Dois pensamentos de Valéry, aparentemente enigmáticos, podem servir de resposta: durante toda uma eternidade, o anjo (o próprio Valéry, segundo Degas) “não cessou de conhecer e não compreender”. A tradição nos descreve a figura do anjo como o mensageiro, o feliz mensageiro que vem anunciar o novo, novos tempos. Ora, o que Valéry, Wittgenstein e muitos outros anunciam são catástrofes não compreendidas porque “entramos no futuro de costas” (Valéry). O anjo de Valéry nos remete ao Angelus Novus de Walter Benjamin, anjo que “parece querer afastar-se daquilo que está olhando”, anjo da história voltado para o passado, que vê apenas catástrofes e ruínas e parece não compreender o que vê. Mas a “tempestade o impele de maneira irresistível para o futuro, para o
qual ele dá as costas, enquanto diante dele o monte de escombros cresce até o céu”. Relacionemos a frase “o anjo não cessou de conhecer e não compreender”, talvez a última frase do último poema do poeta, a outra: “O espírito nada realiza por si mesmo”, que significa que o que foi feito não foi feito pelo espírito apenas. A ideia da experiência jamais toma o lugar da experiência, adverte Alain. Mas o problema é que o espírito vem sempre a reboque e, por isso, conhece as coisas, mas não as compreende. Ele precisa de um segundo momento para refazer as coisas através da análise, fazê-las de outra maneira. O pensamento das coisas nasce desta experiência em vez de precedê-las. O espírito cinde-se, pois, em dois, como escreve Michel Deguy: “Da mesma forma que as leis do ‘livro da natureza’ não são lidas a olho nu, as leis do intelecto não são lidas imediatamente nas produções do espírito falante; existe aí uma diferença irritante, uma vez que nada parece mais próximo, mais homogêneo, do que os pensamentos do espírito e as leis do espírito”. Da mesma maneira, o “Eu” de Valéry cinde-se em dois – aquele que se deixa levar por toda sorte de fabricações do pensamento, e aquele que controla, restabelece. Seriam as leis do espírito o pensamento do pensamento? Ora, tudo hoje se processa no campo da evidência imediata. A vida social e a vida política estruturam-se no já feito, na representação apenas e nos símbolos sem reconhecer que existem nelas um “segredo”, coisas dessimbolizadas que devem ser chamadas à expressão. A tecnociência não quer e não pode penetrar nas leis do espírito.
A tarefa política primordial consiste, pois, em desdobrar o trabalho do espírito, não ficar apenas nos pensamentos propostos pelo espírito (isso a tecnociência faz de forma admirável), mas ir às leis do espírito e das próprias coisas. Mais: é evidente que vivemos a era dos fatos. Falta ao mundo aquilo que Valéry designa, no ensaio “A política do espírito”, como mitos, ou coisas vagas (ideais políticos, utopias etc.). Não há política sem mitos, diz ele, uma vez que toda sociedade só existe, funcionalmente, à base de mitos:
[…] toda estrutura social é fundada sobre a crença ou sobre a confiança. Todo poder se estabelece sobre propriedades psicológicas. Pode-se dizer que o mundo social, o mundo jurídico, o mundo político são essencialmente mundos míticos, isto é, mundos cujas leis, as bases, as relações que as constituem não são dados propostos pela observação das coisas, por uma constatação, por uma percepção direta; mas, ao contrário, recebem sua existência, sua força, sua ação de impulsão e de repressão; esta existência e esta ação são tão mais potentes quanto mais ignorarmos que elas vêm de nós, de nosso espírito.
TEMPO E HISTÓRIA
A ideia de decadência ganhou força na virada do século XX e conquistou a imaginação de muitos pensadores e poetas. No centro de tudo está o domínio da civilização científico-técnico-industrial do Ocidente em contraposição ao espírito, isto é, à cultura, às artes e ao pensamento. Ainda que volte seu olhar para um passado perdido, Wittgenstein pensa que o espírito de alguns poucos pode sobreviver: “Disse um dia, e talvez estivesse certo: da antiga cultura só restará um amontoado de escombros, e para terminar, um amontoado de cinzas, mas haverá espíritos que flutuarão sobre essas cinzas”. Em outra frase, “fortemente agressiva”, como observa Bento Prado Júnior, ele conclui: “Que eu seja compreendido ou apreciado pelo cientista ocidental típico, isto me é indiferente. Porque ele não compreende o espírito segundo o qual escrevo”. E mais: “Meu próprio pensamento sobre a arte e os valores é muito mais desencantado do que podia ser o dos homens de há cem anos. O que não quer dizer que, por isso, seja mais justo. Isto significa apenas que, no primeiro plano de meu espírito, estão os fenômenos da decadência, o que justamente não era o caso para eles”. Isso, Wittgenstein escreveu em 1948. Ora, sobre 1848, cem anos antes, Paul Valéry escreve a célebre frase: “O fim do mundo finito começa”. Por mundo finito pode-se entender o mundo da cultura europeia ou mesmo o humanismo iluminista. Talvez seja mais apropriado concordar com Michel Deguy: é o “fim do mundo ‘finito”‘. A era da globalização, que começa em 1500 com os descobrimentos, conclui seu trabalho com o domínio da tecnociência.
Como estamos entrando no futuro de costas, como diz Valéry, tendemos a concentrar o novo ciclo de conferências no “tempo futuro”. De que maneira a ideia de futuro é traduzida hoje no mundo dominado pela técnica? Repetimos: o “futuro” está não apenas banalizado, mas, antes, dominado por “certezas científicas”: ele aparece como absolutamente predeterminado. Haveria uma passagem da ideia de probabilidade ao das estatísticas? No projeto de um livro – A forma do tempo -, Jean-Pierre Dupuy dedica um capítulo à ideia de futuro. Ele descreve o que denomina “metafísica do futuro” e analisa também o que chama de profecia no sentido puramente laico e técnico. Os profetas formam hoje “uma legião nas sociedades fundadas na ciência e na técnica: a experiência do tempo da profecia”, escreve Dupuy, “é facilitada, encorajada, organizada e mesmo imposta por muitos elementos de nossas instituições. Por todo lado, vozes mais ou menos autorizadas proclamam o que seria o futuro mais ou menos próximo: o tráfego da estrada do dia seguinte, os resultados das próximas eleições, as taxas de inflação e crescimento do próximo ano”. Profecias mais espetaculares são feitas pela biotecnologia e pela neurociência: breve, a inteligência artificial será equiparada à inteligência humana; no futuro, dizem os cientistas, será possível criar a relação direta cérebro/cérebro, conectar dois ou mais cérebros uns aos outros. É o que eles denominam “neurociência da interação social”. Para fundamentar sua “profecia laica”, Dupuy parte da ideia central proposta por seu primeiro grande teórico, Pierre Massé, que diz: a planificação “visa a obter, pela concentração e pelo estudo, uma imagem do futuro suficientemente otimista para ser desejável e súficientemente crível para desencadear as ações que engendrarão sua própria realização”. Por fim, Dupuy escreve sobre destino e acaso a partir do que aconteceu durante a Guerra Fria ao relembrar que, por dezenas de vezes, faltou muito pouco para que a humanidade desaparecesse em vapores radiativos. Dupuy apoia-se nas Memórias escritas por Robert McNamara. Fracasso da política de dissuasão?, pergunta Dupuy, que conclui: “É o contrário: foram exatamente essas incursões na vizinhança do buraco negro que deram à ameaça de aniquilamento mútuo seu poder dissuasivo. Foi esse flerte repetido com o apocalipse que nos salvou. Acidentes são necessários para precipitar o destino apocalíptico, mas, contrariamente ao destino, um acidente pode não se produzir”.
As primeiras palavras de Hans Jonas no seu livro O princípio responsabilidade nos advertem que Prometeu, a quem a ciência confere forças jamais conhecidas, está definitivamente desacorrentado. O vazio do pensamento, que se expressa também através do atual relativismo dos valores, segundoJonas, só pode ser curado com a “antecipação da própria ameaça” tecnocientífica que nos cerca: “É apenas nos primeiros clarões de sua tempestade que nos vêm do futuro, na aurora de sua amplidão planetária e na profundeza de suas apostas humanas, que podem ser descobertos os princípios éticos… A isso dou o nome de ‘heurística do medo’. Apenas a previsão da deformação do homem nos fornece o conceito do homem que nos permite premunir”. Diante da ameaça da própria existência do humano, Jonas vai além: a fundação de tal ética deve estender-se até a metafísica; só ela permite ao homem se perguntar por que homens devem existir no mundo e, “portanto, por que vale o imperativo incondicional de preservar sua existência para o futuro”. A ética, para Jonas, consiste em garantir a existência do futuro. Mais: garantir a existência do futuro para o outro através da noção de medo. Reconheçamos o alcance limitado de tal proposta diante do tamanho do problema.
O QUE É ESTE TEMPO DE PASSAGEM OU INTERVALO?
Duas questões se põem de início: por que a ideia de tempo está ligada ao trabalho do espírito? (sem passado nem futuro, o espírito anda nas trevas); por que o tempo presente está em luta em duas frentes – contra a rememoração e contra a experiência – e tende ainda a abolir o passado e o futuro, transformando, assim, o espírito em coisa supérflua, descartável e impossível? Que mundo é este que se contenta em existir apenas no presente eterno? Como não dar razão a Kierkegaard quando afirma que “os filósofos têm inteira razão ao dizer que não se pode compreender a vida senão retornando ao passado. Mas eles se esquecem desta proposição não menos verdadeira, a saber, que a vida só pode ser vivida projetandose no futuro”?
Logo depois da Primeira Guerra Mundial, ponto de partida da mutação tecnocientífica que domina hoje todas as áreas da atividade humana, uma ideia torna-se central no pensamento de Valéry, Musil, Hannah Arendt, Spengler, Wittgenstein, Adorno, Walter Benjamin, a Escola de Frankfurt e muitos outros: O Espírito está em perigo mortal. A pergunta é: de onde vem este perigo? É que estamos vivendo, como define Valéry, “uma imensa transformação das ideias e dos valores. O saber é, a partir de agora, dominado pelo poder de ação”. O trágico, como nos lembra Édouard Gaede no ensaio O paradoxo da civilização, é que aquilo que o espírito produziu de mais racional “provoca uma separação cada vez maior entre as forças postas a serviço do homem e as inteligências que as comandam”. No mundo no qual predomina a ideia de força, o que é feito do espírito? A resposta de Valéry é clara: o espírito torna-se impossível impossível porque supérfulo. Lemos em quase todos os seus escritos sobre a atualidade a advertência: O Espírito está em perigo mortal. É certo também que o resultado do trabalho do espírito, isto é, a fabricação dos objetos técnicos que estão à nossa disposição, volta-se contra o próprio espírito: há mais de sessenta anos, Hannah Arendt alertava: cientistas afirmam que computadores podem fazer coisas que um cérebro humano não pode compreender. Proposição alarmante, diz ela, “porque a compreensão é verdadeiramente uma função do espírito, jamais o resultado automático da inteligência. Se estamos cercados de máquinas que não podemos compreender o que fazem, ainda que as tenhamos concebido e construído… isso significa que embaraços teóricos das ciências da natureza em seu mais alto nível invadiram nossa vida cotidiana”. Valéry vai além: “As mais perigosas máquinas talvez não sejam aquelas que rodam, que transportam ou transformam matéria ou energia. Existem outros engenhos que não são de cobre ou de aço batido, mas de indivíduos estritamente especializados: organizações, máquinas administrativas, construídas imitando o espírito naquilo que ele tem de impessoal”. O que há de mais aterrador para o espírito no mundo contemporâneo não são apenas as guerras e os massacres, mas aquilo que se pode denominar, como nos lembra Jacques Bouveresse, a mobilização administrativa total em tempos de paz, o “triunfo definitivo da organização” que corresponde ao advento do Estado-formigueiro de que fala Valéry de maneira premonitória: “Uma confusão reina ainda; mais um pouco de tempo e tudo se aclarará; veremos enfim aparecer o milagre de uma sociedade animal, um perfeito e definitivo formigueiro”. Mais trágica para a ideia deste “tempo futuro” é a relação que faz Wittgenstein entre ciência e futuro. Ele escreve em 1947:
A concepção apocalíptica do mundo consiste em dizer que as coisas não se repetem. Não é desprovido de sentido, por exemplo, pensar que a época científica e técnica é o começo do fim da humanidade; que a ideia do grande progresso é uma cegueira, como aquela do conhecimento finito da verdade; que no conhecimento científico nada existe de bom ou de desejável e que a humanidade que se esforça em buscá-lo precipita-se numa armadilha. Não é claro que este não seja o caso.
Esta visão trágica do mundo está muito próxima dos catastrofistas atuais que anunciam o “desaparecimento do tempo”, segundo Jean-Pierre Dupuy; isto é, o autoaniquilamento da humanidade, em decorrência da utilização da tecnociência de maneira autônoma (em relação ao pensamento e à ética) e sem nenhum limite.
Ora, o triunfo “impessoal” da organização, mais que tornar o trabalho do espírito coisa supérflua, leva a seu aniquilamento, uma vez que aquilo que verdadeiramente podemos saber não é senão o que nós mesmos podemos fazer: “a obra do espírito só existe em ato” e a ciência tende a abrir mão do trabalho do espírito. Em relação ao tempo, vivemos hoje o mundo das facilidades admiráveis, como narra Valéry no seu Balanço da inteligência, que reduzem cada vez mais a força da atenção e da capacidade mental e da duração. É o momento da “impaciência, da rapidez de execução, da variação brusca da técnica que apressa as obras”. Tempo da velocidade.
TEMPO E ACONTECIMENTO
No livro Les transformations silencieuses, François Jullien nos diz que a filosofia ocidental dedicou o melhor do seu pensamento a esta “obscuridade fascinante” que é a noção de tempo. Sem me referir às várias noções analisadas por ele, destaco uma que nos interessa mais de perto – a relação entre tempo e acontecimento:
O erro da linguagem comum, dizem os físicos, consiste em atribuir ao próprio tempo as características dos fenômenos temporais alojados nele; isto é, confundir o “tempo” com o que se desenrola nele. A física só reconhece este curso do tempo desvestido de tudo o que nos acontece, independentemente de tudo o que se passa nele, e cuja estrutura garante o mesmo estatuto a todos os instantes; enquanto é apenas segundo a flecha temporal dos fenômenos, constituindo o vir a ser e do qual a física não se ocupa, que se entendem os “acontecimentos”.
Por flecha do tempo entenda-se aquilo que não se refere ao próprio tempo, mas àquilo que se desdobra em seu seio. Ora, o que se desdobra no “seio do tempo” hoje é não apenas a sucessão de acontecimentos sem história, mas o recalque “na sombra, tornando secundários e dependentes todos os momentos adjacentes”. A conclusão é de François Jullien: “É verdade que é do acontecimento que se fala e, mesmo, só se fala dele; ou, dito de maneira inversa e valendo como definição: a partir do momento que se fala dele, a própria fala faz o acontecimento”‘. Esta ideia de acontecimento que nos cerca redefine a noção de “tempo”. Em que medida, no mundo veloz e volátil, “o acontecimento não seria feito de aparecimento abrupto, como ele mesmo se define (e-venit) mais que uma maturação? Ou, em que medida devemos conceber como um encontro com aquilo que ela supõe de Exterior, e mesmo de não integrável, no lugar de ser um resultado?”. Entendamos por resultado aquilo que diz Valéry: o que não existe mais está no coração do que existe, “o passado sendo o próprio ser”. Por “encontro Exterior”, Jullien quer certamente dizer acontecimento sem fundamento, sem passado nem futuro.
SONHO, RELIGIÃO, FETICHE
Borges não cessou de escrever sobre o tempo e o sonho. Mais do que contrapor realidade e imaginação, o sonho é fusão de tempos ou de estados alterados do próprio tempo. O sonho de Coleridge é um belo exemplo. Borges narra que, no verão de 1797, o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, momentos depois da leitura de uma passagem de Purchas, que se referia à edificação de um palácio por Kubla Khan, caiu em sono e sonhou. O texto de Purchas germinou sonhos: imagens visuais e palavras; “ao cabo de algumas horas acordou com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema com cerca de trezentos versos. Recordava-os com singular clareza e pôde transcrever o fragmento que perdura em suas obras. Uma visita inesperada o interrompeu e lhe foi impossível, depois, recordar o resto”. Em outro texto, Borges cita ainda Coleridge: “Se um homem atravessa o Paraíso em um sonho e lhe derem uma flor como prova de que lá esteve e, ao acordar, encontra uma flor em sua mão… Então?”. Coleridge possuído por outro tempo.
A Igreja, por seu lado, teme mais o devaneio que o sonho. No combate ao devaneio e ao tempo livre, ela propõe formas muito eficazes que têm como efeito ocupar o corpo e fatigar o espírito, controlar o tempo: “Rezar e trabalhar”. Em um ensaio sobre a melancolia, Jean Starobinski mostra que, sem tempo para pensar e ter prazer, ou melhor, sem “tempo vazio”, o homem que reza e trabalha aprisiona o devaneio e a melancolia. Com efeito, escreve ele, o trabalho tem por tarefa ocupar inteiramente o tempo que não é dado à oração e aos atos de devoção:
Sua função consiste em tapar as fendas por onde o demônio poderia entrar, por onde também o pensamento preguiçoso poderia escapar. Assim, o devaneio, que se arriscaria a tornar-se vagabundo e culpado, absorve-se e se fecha em uma atividade fixa: uma implantação salutar se realiza. O trabalho orienta, em um sentido concreto e inocente, energias que sem ele se dispersariam a todos os ventos e a todas as tentações. Ele interrompe o vertiginoso diálogo da consciência com seu próprio vazio, interpõe resistências e obstáculos…
Simplificando: tempo livre é coisa do diabo.
Muitos autores associam a religião ao mito. É certo que os dois trabalham com a ideia de futuro: uma e outro sempre buscaram obscuros métodos para que o homem pudesse conjurar a sorte e, de certa maneira, saberem de antemão o que acontecerá: céu para os bons, inferno para os desavisados; matarás o pai e transarás com a mãe… Os mitos são intemporais porque impenetráveis: para falar da origem do mundo ou do homem, das instituições ou mesmo dos costumes, recorre-se a heróis, deuses e lendas imemoriais. O caráter anistórico – outro tempo, outro mundo – seria o traço peculiar do mito?
Podemos, também, de certa maneira, estabelecer uma relação entre mito e fetiche, e, assim, falar de fetichismo religioso, fetichismo dos objetos míticos, da mesma maneira que podemos falar do fetichismo da mercadoria: todos são dotados de propriedades mágicas sem relação com seu uso ou sua utilidade. O fetichismo, neste sentido, é promessa de realização de felicidade futura sempre adiada.
MAS, AFINAL, O QUE SE ENTENDE POR TEMPO?
Muitas são as imagens que temos do tempo: dizemos com simplicidade: “o tempo passa”, ou, como quer Pascal, “o tempo cura as dores”. Seria mais correto dizer, com Ronsard, que não é o tempo, mas somos nós que passamos? Ainda assim, está posta, para estes autores, a prevalência do tempo sobre o sujeito (Pascal) ou do sujeito sobre o tempo (Ronsard). Penso que um poeta – Jorge Luis Borges – desfaz esta contradição: “O tempo é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me leva, mas sou o rio; é um tigre que me dilacera, mas sou o tigre; é um fogo que me consome, mas sou o fogo”. Melhor síntese, impossível. O poeta diz expressamente que o tempo não é uma coisa (o rio que flui), nem pura subjetividade. A subjetividade é o próprio tempo, da mesma maneira que “o mundo… é o núcleo do tempo”, como escreve Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção: “o tempo natural, diz ele, não é um tempo das coisas sem subjetividade”. Mas Merleau-Ponty nos alerta: a subjetividade não é a origem: “É visível, com efeito, que não sou autor do tempo […] não sou eu quem toma a iniciativa da temporalização… ele funciona sozinho[…] repousa sobre si mesmo[…] ele é apenas esboço natural de uma subjetividade”. Merleau-Ponty fala de um “naturante eterno”, no qual “cada presente reafirma a presença de todo o passado e antecipa todo o futuro”. Lidamos, pois, permanentemente com o tempo natural e o tempo histórico. Mais: o tempo natural funda o tempo histórico “no sentido de que ele é seu solo”, da mesma maneira que o tempo histórico funda o tempo natural no sentido de que ele é condição de sua aparência: ”A alternativa do naturado e do naturante transforma-se pois em uma dialética do tempo constituído e do tempo constituinte”. O tempo seria, pois, uma construção de linguagem, o que levou Faulkner a escrever que “o passado jamais morreu, ele nem mesmo passou”. O espírito de síntese de Alain nos diz: o tempo é a forma universal da mudança:
Sabemos muitas coisas sobre o tempo, por exemplo, que jamais existem dois tempos simultâneos, que o tempo não tem rapidez, que o tempo não pode ser revertido, que não existe tempo imaginário; que o tempo é comum a todas as mudanças e a todos os seres e que, por exemplo, para se chegar à próxima semana é preciso que todos os homens e todo o universo caminhem juntos. Há abundância de axiomas sobre o tempo, mas que são obscuros como todos os axiomas. O próprio Deus, diz Descartes, não pode fazer com que o que aconteceu deixe de ter acontecido.
É certo que o tempo existe em nós e que pode ser medido, por exemplo, na distância entre o desejo e a posse do seu objeto, que não é outra senão o sentido da duração, “este sentimento do tempo que antes se contentava com a velocidade da corrida dos cavalos e hoje pensa que a rapidez é muito lenta e que as mensagens elétricas nos fazem morrer de tédio” (Paul Valéry). O tempo toma forma, pois, através dos nossos sentidos. Os estoicos nos dizem que temos apenas o presente a suportar. Passado e futuro não podem nos atormentar “uma vez que um não existe mais e o outro não existe ainda”. Alain nos adverte: aqueles que se torturam com o passado e o futuro deveriam pensar no presente:
Este amoroso maltratado, que rola na cama sem dormir e que pensa em vinganças, o que restaria da tristeza se ele não pensasse no passado nem no futuro?[…] Os acontecimentos jamais são aqueles que esperamos; quanto à pena presente, justamente por ser muito viva, você pode estar certo de que ela diminuirá. Tudo se transforma, tudo passa. Esta máxima nos deixou tristes muitas vezes; consolar-nos é o mínimo que às vezes ela pode fazer.
Eis o problema: estaríamos vivendo a disjunção entre tempo naturado e tempo naturante? Relembremos Merleau-Ponty: o sujeito é naturante na medida em que é “o movimento de uma vida que desabrocha” e no qual “ele faz o tempo no lugar de se submeter a ele”. Até bem pouco, vivíamos tempos plurais – naturado e naturante: pergunta-se: vivemos hoje a instauração de um tempo sem relação com o tempo histórico que toma forma no veloz, no volátil, na rapidez técnica que acelera nossas vidas? Tempo naturado quer dizer tempo fixo, “acabado”, que pode “esquecer” passado e futuro. Tempo imóvel. Ora, como diz Bergson, jamais existe imobilidade verdadeira se entendermos, com isso, uma ausência de movimento. Talvez o que se passa hoje seja uma cisão entre pensamento e ciência que dificulta a percepção do tempo. Esta cisão pode ser expressa na bela imagem de Bergson tomada aqui, não no seu caráter científico, mas como uma metáfora:
O movimento é a própria realidade, e o que chamamos imobilidade é certo estado de coisas idêntico ou análogo ao que se produz quando dois trens andam na mesma velocidade, no mesmo sentido, em duas vias paralelas: cada um dos trens aparece então como imóvel aos viajantes em cada trem. Mas uma situação deste gênero, que é excepcional, parece-nos uma situação regular e normal, porque é a que nos permite agir sobre as coisas e que permite também às coisas agirem em nós: os viajantes dos dois trens só podem se dar as mãos através da porta e dialogar se estão “imobilizados”, se andam no mesmo sentido e na mesma velocidade.
O trem do pensamento vem a reboque do trem da tecnociência. O trem da tecnociência age sobre nós, mais que agimos sobre ele.
O certo é que hoje espaço livre e tempo livre tendem a desaparecer; assim, com a perda do tempo livre, o homem perde também a liberdade: para sentir o tempo, ele busca excitantes:
A fadiga, a confusão mental às vezes nos dominam tanto que tendemos a lamentar ingenuamente os Taiti, os paraísos de simplicidade e preguiça, as vidas na forma lenta e inexata que jamais tínhamos conhecido. Os primitivos ignoram a necessidade de um tempo finamente dividido. Não havia minutos nem segundo para os antigos[…] Mas nossos movimentos hoje são regulados em frações exatas do tempo […] Nosso corpo é submetido a uma trepidação perpétua; a partir de agora, ele precisa de excitantes brutais, bebidas infernais, emoções breves e grosseiras para sentir e agir.
Em última análise, o que está posto em questão é a liberdade do espírito.
A noção de tempo é uma das mais problemáticas: ela é, dizem vários pensadores, uma construção de linguagem e, ao mesmo tempo, uma palavra que guarda grande diversidade de sentido e forma. Seu enigma é assim pensado por Valéry: “Uma vez que as coisas se transformam, nós o percebemos apenas em parte. Chama-se tempo esta parte oculta, sempre oculta, de qualquer coisa”. Traduzamos esta “parte oculta” como a passagem de um regime de funcionamento a outro, “passagem que diversos signos nos tornam sensíveis”. Durante uma crise, escreve ainda Valéry; o tempo não tem o mesmo papel que no estado ordinário das coisas. No lugar de medir a permanência, ele mede a variação – “medida que dá o tempo longo ou o tempo curto. A marca-limite do tempo curto é o retorno do espírito sobre o que aconteceu para se dar conta do que aconteceu – (Surpresa). Houve desordem por densidade”. Ninguém é capaz de negar que vivemos um tempo de desordem por densidade. Maravilhosas máquinas que “economizam o trabalho de cálculo, os símbolos e os métodos que permitem fazer entrar toda uma ciência e alguns signos, as facilidades admiráveis criadas para fazer ver o que era preciso antes fazer compreender, o registro direto e a restituição à vontade de imagens” produzem também outro funcionamento temporal: a aceleração do tempo. Valéry pergunta se tantas potências auxiliares não viriam a reduzir pouco a pouco a força de nossa atenção e a capacidade mental contínua ou a duração ordenada. O exemplo que ele dá do tempo acelerado que afeta o trabalho de criação de obra de arte e de obra de pensamento é o da ausência de estilo.
Como se criaria um estilo, isto é, como seria possível a aquisição de um tipo estável, de uma fórmula geral de construção e décor (que são frutos apenas de experiências muito longas e de certa constância nos gostos, necessidades, meios), se a impaciência, a rapidez na execução, as variações bruscas da técnica pressionam as obras […] De onde vem esta impaciência do novo?
Eis a resposta: “É que passou o tempo no qual o tempo não contava”. Hoje o tempo é contado em números através de máquinas que nos governam. Elas moldam seus criadores, isto é, os homens contemporâneos, segundo elas mesmas. As ideias de precisão e exatidão, que são sua essência, “não podem tolerar o vago e o capricho social; seu bom funcionamento é incompatível com situações irregulares”. Eis a grande mutação por que passa a ideia de tempo: como somos o tempo, ou melhor, como o homem é a encarnação e o ser que dá forma ao tempo (“O tempo é a substância da qual sou feito; o tempo é um rio que me leva, mas sou o rio…”), a tecnociência tende a eliminar os indivíduos “imprecisos, do seu ponto de vista, e a reclassificar os outros, sem levar em conta o passado – nem mesmo o futuro da espécie”. Passado e futuro deixam de participar do tempo; enfim, é a potência de um presente eterno que nos domina. Esta hipótese – por mais radical que possa parecer – é bem menos trágica que a hipótese proposta por Jean-Pierre Dupuy em seu projeto de livro sobre o Tempo: ele não afasta a ideia de uma catástrofe última que seria o desaparecimento do tempo no sentido do autoaniquilamento da humanidade. O que, de certa maneira, não deixa de ser uma tautologia: se o tempo é o próprio homem, o fim do humano… Pensamos que, mesmo que dominado pela tecnociência, o homem guarda ainda vestígios de humano, vestígios do tempo. Pelo menos, ele não consegue definir “o tempo que nos resta”.
Sejamos, pois, imprecisos, não programados e de duração infinita. Mais: somos, sim, o presente, sujeitos a flutuações: eis a trajetória proposta por Valéry:
Afastamentos. Distrações. Intensidades. A lembrança, o retorno ao Presente. O presente é disputado por seus conteúdos possíveis […] É aquilo que tenho em comum comigo mesmo. Todo o “tempo” está contido no presente, do qual ele constitui, sob diversos aspectos, a forma grosseira dos desvios […J A lembrança é uma das vibrações da corda cuja tensão é o presente. A ideia e a invenção são uma outra. A variação da tensão dá a ideia da rapidez ou da lentidão do tempo? […] O tempo verdadeiro não é sucessão de acontecimentos, mas ao contrário sucessão do Mesmo. A restituição do Mesmo, o reconhecimento do Mesmo pelo mesmo é o ato fundamental[…] O presente seria o sistema de forças que resistem à dispersão, à propagação ao infinito das excitações. Ele é forçado a não se distanciar mais do que certa grandeza, de certo ponto. Todo tempo é compreendido no intervalo de duas tensões.
Em outro fragmento do seu Cahier, Valéry anota: “A duração é da natureza de uma resistência. O homem que sustenta um peso no braço estendido opõe-se a algo. A quê? – Não diretamente à queda do peso – mas à dor crescente”.
TEMPO E PERCEPÇÃO
Em suas notas de trabalho para um curso sobre a passividade, Merleau-Ponty escreve sobre a relação entre tempo e percepção e nos alerta a não nos limitarmos à imagem estática do mundo percebido presa a um instante: “Considerar”, escreve ele, “não percepções abstratas, em atitude isolante[…] mas retomar a análise do mundo percebido mais que sensorial. Por exemplo, toda minha percepção, a cada momento, não é senão relação de uma ação humana, a plenitude absoluta é resultado de análise isolante; (o) mundo sensível (está) cheio de lacunas, de elipses, alusões, os objetos são ‘fisionomias’, ‘comportamentos’ – ( existe) espaço antropológico e espaço físico”. Merleau-Ponty nos mostra ainda que a noção de instituição da verdade exige que a subjetividade não seja inicialmente para si, “mas o titular= x de uma experiência […] idealização ou generalização lateral”. Em consequência, “que o objeto seja não correlato a meus atos apenas, mas provido de um duplo horizonte através do qual ele pode tornar-se objeto para outrem e não para mim apenas”. Por fim, Merleau-Ponty evoca Paul Valéry para reafirmar que o sujeito, ao entender a percepção do mundo dessa maneira, dá mais do que ele tem porque propõe aos outros enigmas a serem decifrados, e os faz trabalhar. Estes enigmas estão no passado e no futuro. Recebe-se apenas incitação ao novo.
FAZER, REFAZER, RECRIAR
Paul Valéry é um pensador que tratou o tempo de maneira original, durante todo o tempo. E é ele que ocupa grande parte de seus famosos Cahiers. São de Valéry as famosas frases em que um olhar atento vê mais que boutades: “Entramos de costas no futuro”, “O futuro não é mais o que era”, “Passou-se o tempo no qual o tempo não contava”, ”Ao criar o tempo, o homem constrói não apenas perspectivas aquém e além de seus intervalos de reação. É mais que isso, ele vive muito pouco no próprio instante. Sua morada principal está no passado ou no futuro”. Como nos lembra Édouard Gaede em um dos ensaios sobre a relação Nietzsche e Valéry, as perguntas postas por Valéry são: o que se conserva do tempo nos fatos e nas ideias? O que a memória faz sobreviver? O que guarda o fenômeno prodigiosamentebanal e obscuro da repetição? Como Bergson, Valéry propõe a ideia de duração para falar do tempo das coisas. Ele escreve, por exemplo, no Preâmbulo para uma exposição de arte italiana no Petit Palais em 1935, sobre os efeitos de confusões e dissipações que nos inflige o movimento desordenado do mundo moderno. As artes, escreve ele, não se acomodam com a precipitação e, horrorizado, sem poder imaginar o que nos acontece hoje, quando as coisas duram dias, e, na melhor das hipóteses, meses, Valéry exclama: “Nossos ideais duram dez anos!”.
Em outro texto, Peças sobre a arte, ele escreve ainda:
O cuidado da duração das obras já se enfraquecia e cedia, nos espíritos, ao desejo de espantar: a arte se viu condenada a um regilne de rupturas sem freio[…] Enfim, a Moda, que é a mudança em alta frequência do gosto de uma clientela, substituiu sua mobilidade essencial às lentas formações dos estilos, das escolas, dos grandes renomados. Mas dizer que a Moda se encarrega do destino das Belas-Artes equivale a dizer que o comércio aí se mistura.
Mas eis uma das questões fundamentais: “Como os dados da sensibilidade, concebíveis de início unicamente na sua extensão espacial, adquirem uma profundidade temporal? Como o mundo, tal como ele é, desdobra-se de um mundo tal como ele foi e o eu presente se reconhece no eu passado?”. É que o espírito está sempre em busca de coisas vagas, e isto o afasta do instante porque “o objeto próprio, único e perpétuo do pensamento é: o que não existe”. Enfim, “somos feitos de dois momentos e como atraso de uma ‘coisa’ sobre si mesma”.
No mesmo ensaio, Gaede cita a segunda Consideração intempestiva de Nietzsche, que nos faz lembrar a situação de um mundo que se basta no presente, sem buscar pensar a condição humana:
Veja a manada que pasta e passa diante de você: ela não sabe o que é ontem, o que é hoje. Ela se movimenta, come, repousa, digere, movimenta-se de novo, e assim, de manhã à noite, e a cada dia, conhecendo apenas prazeres e dores efêmeras que a sujeitam ao instante ignorando em consequência a melancolia e a saciedade[…] Assim, o animal vive de maneira a-histórica: porque sua existência resume-se inteiramente no presente, tal como um número sem que subsista uma estranha fração; ele não sabe enganar, nada dissimula e aparece em cada momento tal como é: só pode, portanto, ser sincero.
Mas a originalidade de Valéry está na forma material que ele dá à noção de tempo. Para ele, tudo acontece através do fazer. Mais: tudo gira em torno do que ele denomina “Função RE”: repensar, rever, reconhecer, reencontrar etc. Como nota Jean-Michel Rey no seu livro Paul Valéry – l’aventure d’une oeuvre, tudo acontece na retomada e no retorno, na repetição intensiva: “O efeito mais geral desta função é o movimento da ordem de uma recomposição que se efetua no tempo, dando sentido às diferentes interpretações […] O fazer não anda sem o desfazer e o eventual geração atual, para quem o que importa é a ideia de que o tempo deve ser medido, reduzido ao instante presente, e mesmo dominado pelo time is money, Valéry adota a ideia de refazer o tempo e a duração como método: “O uso, ou a mania, o método de muitos ‘jovens’ de minha geração era a de não aceitar de si mesmo nada que não fosse longamente estudado, feito e refeito em um número infinito de vezes, como no tempo no qual o tempo nada custava, quando os artistas consumiam sua duração a completar suas obras”. Pa cientemente, pensadores e artistas buscam nas obras feitas significações novas que elas guardam em estado de vestígios. Isso exige tempo.
Muito se escreveu sobre a ideia que os estoicos têm do tempo. Eles dizem: “Só temos o presente a suportar. Nem passado nem futuro podem nos afligir, uma vez que um não existe mais e outro não existe ainda”. É verdade, comenta Alain. Passado e futuro só existem quando pensamos. São opiniões e não fatos, e temos muito trabalho “para fabricar nossos lamentos e nossos temores”. Isso não quer dizer que não podemos ou devemos pensar o passado e o futuro. Se o tempo é uma “ficção”, a ausência de pensamento sobre ele – passado, presente e futuro – é o grande problema do nosso tempo.