2010

Modernidade: o deslimite da razão e o esgotamento ético

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Para entender a contemporaneidade, é preciso entender, primeiro, as relações entre a pulsão anti-genealógica no âmbito das revoluções tecnológicas e seu culto da inovação incessante, pois, desde que a ciência perdeu seu estatuto de autonomia do pensamento e converteu-se em infraestrutura econômica, suas reflexões e saberes passaram a constituir o conteúdo da razão instrumental, que se volta para a autoconservação da vida biológica, de modo a confinar o pensamento no âmbito do reino da necessidade e, assim, eclipsar a questão já enunciada pelo materialismo antigo, segundo a qual “é uma infelicidade viver na necessidade. Mas não é necessário viver nela”.

A contemporaneidade inaugura o desencantamento psíquico e cultural, a começar pelo “desaparecimento dos vestígios do pecado original”, expressão que Baudelaire concebe para um mundo que, desprovido de referência a valores transcendentes, é incapaz de criá-los ou reconhecê-los, com o esgotamento de suas capacidades éticas, com a destruição de populações inteiras pela miséria e da natureza por razões econômicas. “O mundo vai-se acabar, não por uma guerra, mas pelo aviltamento dos corações” – escreveu ele.

A modernidade é dominada, então, pelo princípio da realidade produzido pela razão instrumental, pragmática, funcionalista e despersonalizadora, indiferente aos objetos sobre os quais exerce poder e dominação. Impõe, desse modo, o reino da necessidade como medida e conteúdo da “vida do espírito”, liquidando a experiência da liberdade, inaugurada no Ocidente pelos gregos com a ideia da contemplação, seguida pela meditação religiosa medieval e pela especulação filosófica renascentista, que encontravam na reflexão os temas que mereciam dedicação, tempo; ou seja, aqueles que não se limitavam à necessidade material, mas que se abriam para o saber.

A modernidade é a imersão cada vez mais profunda na matéria. Por isso, o homem contemporâneo só tem tempo para suas urgências, e sua curiosidade é insaciável. Contudo, ao mesmo tempo, contenta-se com pouco e não se interessa em aprofundar-se em questões vitais. Eric Fromm refere-se a um aspecto da cultura moderna que consiste em “buscar incessantemente tempo livre para, quando ele surgir, matá-lo por não saber o que fazer com ele”.

Nos anos 1840, Marx analisava o trabalho alienado por meio do trabalhador que, quando estava no trabalho, estava fora de si, porque não realizava livres atividades física e espiritual, mas sim martirizava seu corpo e arruinava seu espirito. Só se sentia, portanto, junto a si mesmo quando fora do trabalho. Pode-se afirmar que, hoje, fora do trabalho tampouco o trabalhador encontra-se junto a si. A organização institucional do tempo é um dos atributos mais eminentes da dominação.

O sentimento de não se dispor de tempo abrange a sociedade inteira, não apenas quem se encontra sobrecarregado pelo trabalho, mas também os desempregados, todos respirando “uma atmosfera rica em comunicação”, preenchida pela proliferação das indústrias de entretenimento e da cultura de massa, adaptadas ao homem desumanizado e supérfluo. O “turbo-capitalismo produz exclusão e as pressões da concorrência, estresse e depressões, inviabilizando laços estáveis. Perda do tempo é perda de autonomia e de experiência”. Por isso Walter Benjamin escreveu que “as rugas em nosso rosto decorrem das paixões destinadas a nós, senhores que não estavam em casa”. A circulação e o acúmulo do capital determinam, segundo Aquatias, tempos mortos e movimento perpétuo, indigência e vulnerabilidade, circunstância que se manifesta no “tédio dos jovens das periferias”, na fragilização do sentido de pertencimento a mundo comum, sentimento de desvalorização de si, com o déficit simbólico que isso implica.

O capitalismo contemporâneo manifesta seu “ethos” anti-comunicativo, pois dissolve as condições da comunicação, reduzida a simples informação. Promovendo uma “satisfação ilusória de desejos”, o capitalismo de consumo é “uma prisão a céu aberto”, em que “a garantia de não morrer de fome é obtida em troca do risco de morrer de tédio”.


Já se caracterizou a modernidade como o “desaparecimento dos vestígios do pecado original”. Com esta expressão Baudelaire concebe um mundo sem nenhuma referência a valores transcendentes, incapaz de criá-los ou de reconhecê-los, com o esgotamento de sua capacidade ética na dizimação de populações inteiras pela miséria e da natureza por razões econômicas: “o mundo vai se acabar, não por uma guerra, mas pelo aviltamento dos corações”.

A modernidade é da razão instrumental, formal e despersonalizadora, para a qual importam apenas a eficiência e o sucesso, segundo a crença em um novo controle humano do universo, no qual o indivíduo é capaz de fazer sempre mais e de gerir inteiramente a vída, o corpo e, assim, dominar riscos. Ela é também a do desencantamento psíquico que reduz todos os problemas da existência à questão econômica: “o rápido progresso da cultura material de nossa época se víu acompanhado de uma regressão generalizada da cultura não material […]. Quando as normas se tornam inseguras e a moral problemática, ressurge o medo e a vída coletiva retrocede a formas primitivas”[1].

Analítica, a razão produz a catástrofe das significações, pois “substitui a Lei pela regra e a regra pela fórmula, para o funcionamento automático do pensamento”; criando um princípio de realidade que reduz todos os aspectos da vida à autoconservação, impondo o reino da necessidade como medida e conteúdo da “vida do espírito”. Liquida-se, assim, a experiência da liberdade, inaugurada no Ocidente pelos gregos com a ideia de contemplação, tempos depois pela meditação religiosa medieval, a que se seguiu a especulação filosófica da Renascença.

Esta tradição encontrava na reflexão as coisas que merecem que se dedique o tempo, aquelas que não se limitam às condições materiais, mas se abrem para o saber desinteressado e livre da necessidade. Assim, a filosofia significava um saber a serviço da vida liberada do medo, que se reapropriava da potência de existir e de pensar, confiscada pela submissão à angústia diante da fragilidade do corpo biológico e de suas carências materiais, bem como de sua destruição pela morte violenta na vida civil. Razão pela qual o aperfeiçoamento das formas de espaço público nas democracias garantia o máximo de segurança, sobrevivência, bem estar e paz, e a ciência propiciava o conhecimento dos fenômenos naturais a fim de restringir o poder da contingência sobre a vida de cada um. Por isso Epicuro escreveu: “É uma infelicidade viver na necessidade, mas não é necessário viver na necessidade”.

A modernidade é a imersão cada vez mais profunda na matéria, é atrofia do espírito e perda coletiva da “rainha das faculdades”, a Imaginação. Neste sentido, Adorno observa no capitalismo contemporâneo o desaparecimento do “esquematismo da imaginação”; essa faculdade que permitia passar dos dados imediatos da sensação à constituição de um objeto no espaço, a seu sentido, é suplantada pela indústria da cultura, que já oferece seus objetos “esquematizados” para o consumo. Assim, a sociedade que administra o pensamento é uma “prisão a céu aberto”, em que “a garantia de não morrer de fome é obtida em troca do risco de morrer de tédio” (Vanheigen).

“Sociedade do conhecimento” e suas “técnicas da informação” constituem uma atmosfera carregada de “comunicação”; nela, no entanto, as decisões políticas escapam da sociedade, como os usos do tempo e do sentido da vida de cada um, baseados na circulação ininterrupta das revoluções tecnológicas e do capital no mercado financeiro. Diferentemente da noção de crise econômica, os impasses sociais se anunciam como questionamento da cultura capitalista, adaptada esta às contingências do mercado, da produção pela produção, do consumo alienado, do automóvel à indústria bélica e o consequente comprometimento do planeta, nosso “corpo inorgânico”. As indústrias do conhecimento promovem saberes a serviço exclusivo da economia, abrangendo todos os aspectos da existência, do mundo do trabalho aos laços afetivos, do âmbito da intimidade até a educação. Seu poder de controle se expressa em uma sociedade desmotivada e sem projeto, dominada pela “queda tendencial do valor espírito”, mundo empobrecido pelo extraordinário achatamento da experiência do tempo, plasmado na imediatez e na pressa.

Da Grécia clássica ao espaço público iluminista predominou a “cultura teórica” e a grande importância conferida ao tempo autônomo, a scholé, “as coisas a que dedicamos nosso tempo, ou aquilo que merece o emprego do tempo”. “De onde, por meio de uma notável evolução, o sentido de ‘estudo’, encontrado em Platão”[2]. Transmitida ao scholion, o comentário (scholion) significa “lazer”, “tempo livre”, “tranquilidade” e também “preguiça”. Quanto ao advérbio scholei, é “lentamente”, é “com vagar e ócio”, “à vontade”.

Nas palavras de Joaquim Fontes, os “comentários ou escólia são uma espécie de luxo, um capricho (de aluno atencioso), uma brincadeira (de professor aplicado), um jogo nas margens dos discursos: um convite para que o leitor se transforme também em “flâneur”[3]Oscilando entre o rumor da praça pública e a scholé, a sociedade encontrava nesta o espaço para a liberdade do pensamento, à distância do atarefamento da vita activa e do tempo da produção e do consumo, controlado por cronômetros. Este é o mundo da universalização da técnica e da ideologia da racionalidade tecnológica, em que todas as escolhas políticas passam por decisões técnicas, no “esquecimento da política” substituída pelo “discurso competente” do especialista. Nesse sentido, autores ideologicamente tão diversos como Junger e Weber, C. Schmitt e Adorno refletem acerca do continuum da “razão ocidental”, e sobre a “crescente racionalização dos meios” na ciência, abrindo caminho para um formalismo vazio e sem fundamento, para a ordem puramente convencional das coisas e de todas as relações entre os individuos, tanto na técnica quanto na política, voltadas, ocasionalmente, a qualquer conteúdo e finalidade.

Hannah Arendt, por sua vez, observava as consequências de a autoconservação se transformar em conteúdo da política e de toda a ciência, sendo que a liberdade se exerce para além do reino da necessidade. Neste, toda a vida é pautada pela carência, de que participam a ciência e a técnica; porque a ciência vence a natureza para fins de auroconservaçao, e a política faz da luta contra a miséria seu conteúdo – e não o que deve ser superado na dimensão da liberdade e da alegria de viver – Adorno considera que nosso tempo é o que menos liberdade possui. Nesse sentido, Castoriadis estabelece uma distinção entre oikos – espaço dos negócios privados e da reprodução do vivo -, eklesia – locus onde se delibera e se decide sobre os negócios comuns e públicos – e Ágora, onde os homens se encontram fora da esfera política. Razão pela qual a Ágora é o lugar dedicado à scholé.

Dos humanistas florentinos à modernidade iluminista à qual pertencem os frankfurtianos, predominou a “cultura teórica” como laço agregativo, diversamente da sociedade contemporânea, que responde pela “informação” e pela “comunicação”, configuradas na ideia de uma “sociedade do saber”. Esta veio a significar a mobilização de todos os conhecimentos a serviço da inovação. Horkheimer e Adorno analisam a ideologia da racionalidade tecnológica, hegemônica na modernidade, produtora da confiança na ciência e na técnica como aptas a solucionar a totalidade das questões sociais e humanas.

Nesse sentido, os comportamentos individuais e coletivos, o equilíbrio do corpo e da mente, o direito, a economia, a educação e a arte adaptam-se às constantes evoluções das performances dos sistemas técnicos, sua coerência dependendo da redução da complexidade desses fenômenos. Esta “tecnologia da inteligência” consiste, como foi analisado por Hegel e Weber, antes de Horkheimer, Benjamin e Adorno, na compartimentação crescente dos saberes e sua consagração como “especialidade”. Compartimentação do conhecimento, entendimento de “tabelião”, razão “protocolar” é como se compreendem as “competências”.

Esse universo de “desencantamento da cultura” atesta a perda de seu papel filosófico e existencial na mundo inteiramente tecnologizado. Razão, pela qual “as instituições escolares (compreendida a universidade) se encontram numa missão de acolhimento de populações incertas na qual a relação com o saber se tornou uma preocupação muito acessória e esporádica”[4]. Tudo se passa, na especialização do conhecimento como construída no presente, na perspectiva do rompimento com a tradição cultural não mais considerada prioritária para o conhecimento especializado e que, já predominante nas ciências da natureza, abrange também as ciências humanas e a filosofia[5]. O sentido próprio à universidade é o de articular herança e inovação, continuidade do mundo e sua renovação. O elogio do “moderno” e da adaptação a razões imediatas resulta na adesão ao “concreto”, o que culmina em diversas formas de anti-intelectualismo que confiscam o que procede do mundo da cultura, das ideias e do pensamento autônomo, aquele que procurava a ” verdade” em si mesma e, assim, um saber não instrumental. De onde a tendência a pesquisas tecnicistas que prescindem de qualquer referência a um mundo cultural e histórico. Assim, “nada mais suscita nos estudantes a admiração ou a perplexidade […]. Trata-se de uma educação que produz uma ‘cultura da incuriosidade’, que nada surpreende e imune ao maravilhamento”[6].

A atitude antigenealógica do presente tem o sentido de impor uma lógica ao saber, como se este não tivesse nenhuma dívida simbólica com o passado, como se a geração presente devesse tudo a si mesma: “uma revolta antigenealógica é uma rebelião contra a lei das origens”[7]. Em consequência, tende a desaparecer a ideia de sucessões científicas e diferenciações de valores, bem como as hierarquias a esses valores associadas. No contemporâneo, essa indiferenciação se dá entre infraestrutura e superestrutura, a aceleração das revoluções tecnológicas impregnando a superestrutura que a elas se ajustam. Nesse sentido, Benjamin escreve: “Na época em que Marx empreendeu sua análise, o modo de produção capitalista ainda estava em seus primórdios[…]. Como as superestruturas evoluem bem mais lentamente do que as infraestruturas, foi preciso mais de meio século para que a mudança advinda nas condições de produção fizesse sentir seus efeitos em todas as áreas culturais[…]. A dialética dessas condições está também mais nítida na superestrutura do que na economia”.[8] A ideologia dominante é, assim, a dos dominados, o que se reconhece em particular no estilo de vida das periferias metropolitanas, com seu modo de vestir, tatuagens, rap, funk e vocabulário que se expandem por toda a sociedade.

As produções culturais encontram-se sob o impacto da obsolescência constante. No Eclipse da razão, Horkheimer considera que até o início do século XX foi possível acreditar na coexistência das “ciências da natureza” e da filosofia, as primeiras voltadas para a “objetividade científica”, a filosofia para questões teóricas, metafisicas e especulativas. Não se configuravam plenamente nem a proscrição da filosofia, nem sua sobrevida apenas residual, impossibilitada de ocupar uma posição crítica, uma das consequências do linguistic turn. No Eclipse da razão, Horkheimer reflete acerca do pensamento lógico-analítico e sua crescente formalização, no plano da cientificização de todos os campos do conhecimento e da vida. Em suas considerações sobre o pragmatismo como ideologia da sociedade industrial e a cultura dos esportes, Horkheimer observa que “os esforços teóricos tendem a uma inteligência atlética, muscular”. A crítica à linguagem se faz por ter ela cedido em sua autonomia, transformando-se em instrumento, só valorizada por sua operacionalidade: “Quanto mais as ideias se tornam automáticas, instrumentalizadas, menos vê-se nelas pensamentos com significado próprio. São consideradas como coisas, como máquinas. A linguagem tornou-se apenas um instrumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade mo­ derna[…]. O significado é suplantado pela função ou efeito no mundo das coisas e dos eventos”.[9] Dessa escrita e desse discurso não se pode dizer que sejam nem verdadeiros nem falsos, dada a neutralização e a formalização em que operam, de tal modo que a linguagem pode tanto ter afinidade com a moralidade quanto com seu contrário:

A verdade e as ideias foram radicalmente funcionalizadas e a linguagem é considerada um simples instrumento[…]. A diferença entre pensamento e ação é anulada, todo o pensamento é considerado como um ato; toda reflexão é uma tese, e toda tese uma divisa ou um lema […]. Assim que um pensamento ou palavra se tornam um instrumento, podemo-nos dispensar de realmente refletir, isto é, de examinar detidamente os atos lógicos envolvidos na formulação verbal desse pensamento ou palavra […]. Como se tem observado, a vantagem desse pensamento próprio à matemática – o modelo de todo pensamento neo­positivista – reside nessa “economia intelectual”. Complicadas operações lógicas são levadas a efeito sem real desempenho de todos os atos intelectuais em que estão baseados os símbolos matemáticos e lógicos. Tal mecanização é na verdade essencial à expansão da indústria[10]

A linguagem tornou-se apenas mais um instrumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade moderna: “Para os semanticistas contemporâneos, a sentença puramente sem sentido faz sentido”[11]. Analogamente ao mundo abstrato da mercadoria e da lógica do consumo, é o princípio da indiferença (Gleichgultichkeit) e da abstração que rege a cultura, indiferença entre coisas e homens e homens e coisas.

Se, em suas origens, o capitalismo moderno possuía uma ética, e seu “espírito” era a ocupação, a Beruf, simultaneamente profissão de fé protestante e “vocação para ganhar dinheiro”, ainda era possível ao trabalhador ser senhor de seu tempo. Weber lembra que quando se aumentaram os salários nos primórdios da industrialização, o operário trabalhou menos, pois escolhia dispor de seu tempo: “O homem não anseia por natureza ganhar cada vez mais dinheiro, mas deseja simplesmente viver segundo seus costumes e ganhar tanto dinheiro quanto necessite para isso”[12]. Assim, se o trabalhador não se reporta diretamente a um tempo livre e social que anteriormente se denominava otium, ao menos sente-se inclinado a tomar o tempo como “seu” tempo, de modo que, mesmo sendo um produtor preso

à subsistência, ele é, antes de tudo, um homem que “existe”. Esse tempo para existir é um “dom do tempo”. O otium como “cuidado”, Sorge ou cura, consiste em práticas liberadas da preocupação com a sobrevivência material, livre do negotium. E o proletário protestante, embora alienado e obcecado pela carência, ainda não fora totalmente proletarizado e pauperizado; por isso, ao compartilhar dos rituais de culto de que se encarregam os clérigos, participava da esfera do otium. O trabalho, ao contrário, como ethos do capitalismo, virá a se tornar vocação aos negócios e Beruf, instituindo-se o atarefamento como estilo de vida. Weber indica também a passagem da crença nos preceitos religiosos à confiança nos empréstimos de dinheiro e na solvência das dívidas, sendo isto requerido pelo espírito de inovação que é ruptura com a tradição. Agora, nesta uma nova figura da sociabilidade – para a qual a confiança é cálculo e interesse – a amizade torna-se crédito e amortização da existência.

Conhecido como progresso, o capitalismo perdeu seu espírito, sua ética do trabalho e do ascetismo, convertendo-se em um fim em si mesmo. No progresso ligado à produção, ao consumo e à alienação do tempo que é “negócio”, a alienação corresponde à proletarização da vida. Se, no trabalho, a proletarização é perda do sentido do trabalho e do saber-fazer, o consumo alienado é perda do saber-viver, é perda do tempo.

Para analisar a “gramática da reificação”, Adorno e Horkheimer, mas também Benjamin, tratam da mutação do papel da cultura e da linguagem no capitalismo contemporâneo, cuja expressão mais aguda foi a afasia dos campos de batalha, a intrusão violenta do real na vida psíquica, que determinou dessubjetivação e despersonalizações. A formalização e racionalização constituem um sintoma político, pois a lógica e suas leis resultam em não poder-se “colocar A sem B e C e assim por diante, até o fim do alfabeto do assassinato”[13].

Os frankfurtianos não dissociam a universalização do pensamento analítico, formalizador e abstrato, da crescente dessensibilização da sociedade. Com efeito, a “frieza burguesa” se encontra, para Adorno, na indiferença com que se aceitou os campos de extermínio na Alemanha nazista; ela é o contrário da compaixão, prolongando-se “da virtus romana e dos Medici até a efficency da família Ford”[14]. Ao tratarem dos carrascos da Segunda Guerra Mundial, Adorno e Hannah Arendt consideram, respectivamente, a “volatilização da culpa” e a “banalidade do mal”, na indiferença diante da dor do Outro: Eichmann em Jerusalém se dizia “culpado diante de Deus, mas não responsável diante dos homens”. A desresponsabilização dos atos provém da organização burocrática e do “sistema de especialistas”: “O universo formal, matriz da competência, esconde um outro em que a verdadeira realidade se concentra, em que os poderes se reforçam tanto mais quanto menos se tem os meios de dominá-los.

Nessa relação, [a responsabilidade] se dissocia das pessoas, constitui-se a partir de sistemas instrumentais, e se exprime por intermédio da linguagem de especialistas”[15]. Essa linguagem desafetivada e neutra é estranha à compaixão. Esta não é considerada “uma fraqueza nascida do temor e do infortúnio […]. A doutrina da pecaminosidade da compaixão é uma velha herança burguesa[…]. A compaixão não resiste à filosofia, e o próprio Kant não foi uma exceção. Para Kant, ela é ‘uma certa sentimentalidade’ e não teria em si a dignidade da virtude”[16]. Dissociada a moral com respeito a sentimentos e paixões, consolida-se o conceito de homem que, por sua vez, coincide, para Horkheimer e Adorno, com o advento do homem como conceito, pura abstração e “alvo em uma ‘área de tiro”‘. Do pensamento formalizado, do qual se dissociam as palavras e as coisas, procede o pensamento por tickets e estereótipos, próprio da indústria da cultura.

Em outras palavras, a indústria cultural é misóloga e se pauta pela semiformação, semiformação que é o verdadeiro antagonista da cultura como experiência de autoconhecimento, agregadora e civilizatória. Se Adorno diz serem a semiformação e o semiculto os inimigos da cultura, é pelo ressentimento antiintelectual que se instalou na falência dos ideais humanistas na educação e na cultura, e pela democratização de um ensino sofrível para a massa. Neste aspecto, a indústria cultural e a cultura média midiática encontram-se nos fundamentos da violência contemporânea, nos fundamentalismos religiosos, nos preconceitos raciais e ódios étnicos, isto é, no “niilismo ocidental”. Como escreve Abdelwahab Meddeb:

Este movimento começou com os anarquistas no século XIX. Foi ilustrado por Dostoiévski em Os possuídos. Ele agenciava seus adeptos nos meios onde havia grande frustração […]. O revolucionário típico nasce nas esferas semiintelectuais – frequentemente de professores obscuros, isto é, pretendentes a intelectuais que não dispõem de meios de reconhecimento; e é, também, entre os semiletrados que se recrutam os terroristas muçulmanos […]. Com o aumento demográfico e a difusão de um ensino medíocre, estes semiletrados constituem uma imensa massa corroída pelo ressentimento[17].

O pensamento por clichês é o duplo do discurso competente das academias, intransigente das certezas que professa, mascarando a conduta agressiva interna aos sistemas filosóficos e científicos. Pois “todo ser vivo que se pretende devorar tem que ser mau. A sublimação deste esquema antropológico é perceptível até mesmo na gnoseologia. No idealismo – e especialmente em Fichte – domina inconscientemente a ideologia que o não Eu – l’autrui – e no fundo tudo o que lembra a natureza – é inferior, a fim de que o pensamento da autoconservação possa devorá-lo sem escrúpulos. Isso justifica seu princípio e aumenta sua avidez”[18]. Transformadas em força econômica, a Ciência e a Técnica constituem também a base moral da sociedade. Associam-se, assim, pensamento analítico e fim da ideia de experiência na vida e no pensamento. O mundo da técnica se pretende autoengendrado, e sua natureza é a de ser

tanto menos experimentada quanto mais ela é analítica, o que significa que induz a contraexpertises; em um sentido específico, sua expertise é sem experiência, pois esta não é o que procede de uma especialidade que lentamente chegou à maturidade. “É claro que todo saber é analítico, que toda síntese passa por seu momento de análise, que toda técnica é o que articula estes momentos […]. Mas o expertise é o que justamente reduz o saber a esta dimensão analítica e que assim perde toda experiência.[19]

O capitalismo contemporâneo manifesta seu ethos anticomunicativo, pois dissolve as condições da comunicação de valores e experiências, reduzida a simples instrumento de informação. Sem perguntar-se pelos “fins últimos” ou pelo “Sumo Bem”, a ciência moderna não procura mais o sentido, mas a intervenção eficaz.

Sua infraestrutura intelectual foram as revoluções científicas que privaram a Terra de centro fixo e das esferas perfeitas do cosmos antigo, substituído pelo mundo descentrado da física moderna e pelo espaço infinito. A cosmologia grega entendia a natureza segundo a harmonia das esferas, que dependia da não-intervenção dos homens na natureza, segundo um ordenamento divino ou natural pré-dado. Com efeito, a interrogação ética não se separava da questão metafísica, uma vez que esta estabelecia o campo do necessário e do contingente, do possível e do impossível. Se o necessário é, como escrevia Aristóteles, aquilo que acontece sempre, o impossível é o que não poderia nunca acontecer. Assim, é necessário que a água molhe, que o fogo queime, que a pedra caia, mas impossível que o fogo molhe.

Quando os estoicos preconizavam “viver em conformidade com a natureza”, compreendiam que era preciso aceitar os acontecimentos e querê-los: “O universo é como que mutilado quando se recusa tanto a conexão e o encadeamento das causas, quanto de suas partes. Ora, tu rompes este encadeamento, no que ele depende de ti, quando estás descontente dos acontecimentos e, em certa medida, tu os destrói”.[20]

Assim, quando um acontecimento natural contraria sua causalidade necessária, diz-se que foi produzido por uma ação ou causa contrária à sua natureza e tal contranatureza chama-se violência. Essa causa violenta é a técnica, a ação humana que intervém no curso natural das coisas. Quanto ao universo antropocêntrico da Idade Média cristã, a natura loquax é obra de Deus, quando se preparava o homem não para a cidade, mas para a santidade, para o mais alto, o mais elevado, o sublime. Assim, Dante pôde descrever a viagem da alma pelo céu das estrelas fixas até o paraíso, de onde podia contemplar a pequena silhueta da Terra e seu “vil semblante”, viagem em tudo oposta à ascensão vertical moderna, que nada tem de metafisica, apenas facultando reconhecer que a Terra é azul. Esse olhar exterior não é o coroamento do movimento transcendente de almas noéticas ao supralunar, mas sobrevoo da imaginação técnica.

A arte de erguer os olhos na direção dos astros tornou-se uma disciplina científica, no âmbito da triunfante ciência da natureza. Dessa transformação e dessa perda, Jean-Pierre Vernant observa, quando relata sua primeira viagem à Grécia, nos primeiros anos de sua formação de helenista:

Viajava de noite de ilha em ilha; estendido no convés, olhava o céu por cima de mim, onde a Lua brilhava, luminoso rosto noturno que projetava seu claro reflexo, imóvel ou oscilando sobre a obscuridade do mar[…]. O que eu estou vendo é Selene, dizia para comigo, noturna, misteriosa e brilhante. Muitos anos depois, ao ver na tela de meu televisor as imagens do primeiro astronauta lunar saltitando pesadamente, com seu escafandro de astronauta, no espaço triste de uma desolada periferia, à impressão de sacrilégio que senti juntou-se o sentimento doloroso de uma ferida que não poderia ser curada: meu neto, que como toda gente viu essas imagens, já não será capaz de ver a Lua como eu a vi: com os olhos de um grego: A palavra Selene tornou-se uma referência meramente erudita: a Lua, tal como hoje surge no céu, já não responde mais por esse nome[21].

Na revolução científica moderna o céu não é mais a morada do divino, e o que ilumina a noite é a luz artificial. Por isso Benjamin, ao tratar da Paris do século XIX,refere-se ao capitalismo como religião. E, na senda de Baudelaire, considera que a cultura capitalista necessita não de fé, mas de crenças – de onde a presença atuante de um mercado religioso. Benjamin anotou que, com a eletrificação, a Via Láctea foi secularizada e a mercadoria entronizada: “As estrelas representam, em Baudelaire, a imagem ambivalente [Vexierbild] da mercadoria. Elas são o retorno em massa do sempre igual”[22]. Nada mais escapa às leis do mercado e da monotonia da repetição.

Ao mesmo tempo em que o Céu desceu à Terra, esta separou-se do Sol, ficando a vagar no espaço cuja abóbada não é mais um céu protetor, de que Pascal, no século XVII, evocava os perigos, quando escrevia que “o silêncio dos espaços infinitos” o mergulhava no pavor. A ciência agora sem Deus deixa o homem perdido em um astro à deriva: “Vendo a cegueira e a miséria do homem, observando o universo mudo e o homem sem luz, abandonado a si mesmo e como que perdido neste recanto do universo, sem saber quem o pôs aqui, o que veio fazer, o que se tornará ao morrer e incapaz de qualquer conhecimento, eu principio a ter medo como um homem que tivesse sido levado dormindo para uma ilha deserta e medonha e fosse despertado sem saber onde se acha e sem meios de escapar”[23]. Com o fim do céu transcendente surgem as esferas eidéticas transcendentais, designando não mais um cosmos ordenado e perfeito, e sim raios geométricos que se propagam no espaço infinito.

Se as colunas de Hércules definiam um espaço finito, a física da luz e a fisiologia do olho provam que a “abóbada elevada” não passa de aparência e ilusão, “o azul do céu nem é azul, nem é céu”, nele não há mais matéria de admiração e de orientação, como o manifesta a etimologia de desejo:

A palavra desejo deriva do verbo desidero que, por sua vez, provém do substantivo sidus (mais usado no plural, sidera), significando a figura formada por um conjunto de estrelas, isto é, de constelações. Porque se diz dos astros, sidera é empregado como palavra de louvor – o alto – e,na teologia astral ou astrologia, é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus, siderado: ser atingido ou fulminado por um astro […]. Os intermediários siderais, eternos e etéreos, exalam diáfanos envoltórios com que protegem nossa alma, dando-lhe um corpo astral que a preserva da destruição quando ingressa na brutalidade da matéria, no momento da geração e do nascimento. Pelo corpo astral, nosso destino está escrito e inscrito nas estrelas e considerare é consultar o alto para nele encontrar o sentido e guia seguro de nossas vidas. Desiderare, ao contrário, é estar despojado dessa referência, abandonar o alto ou ser por ele abandonado. Cessando de olhar para os astros […], desiderium significa uma perda, privação de saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta […], é desastrar-se[24].

Rompendo com o apreço medieval pela estabilidade e seu desprezo da mudança, alertando para a vanitas vanitatis do mundo – “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” – os tempos modernos iriam reaver a Fortuna, a divindade romana da sorte, apta para a nova religião mercantil e marítima da globalização dos séculos XV e XVI:

Nas quatro posições fundamentais da roda da fortuna, subir, parar no alto, descer, ficar na terra, os tempos modernos não reconhecem apenas os riscos da vita activa, mas também os estágios típicos das chances dos empreendedores […]. Enunciando o conceito de correr riscos calculados no horizonte da incerteza em um campo de ação global designou-se o fundamento da cultura da agressão e do empreendimento para além das fronteiras conhecidas nos tempos modernos[25].

A divisa do mundo científico é, agora, o plus ultra, que não significa apenas ir mais longe, mas é o princípio do “cada vez mais longe”.

Horkheimer e Adorno analisam o sentido e as consequências do desenvolvimento da nova ciência, contemporânea ao empreendimento da conquista, e a mutação dos rumos da civilização europeia globalizadora, o novo conhecimento ligado às capacidades humanas de dominação da natureza – desde a ótica e a dióptrica até a extração das riquezas minerais:

O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem por complacência em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que está a serviço de todos os fins na economia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim também está à disposição dos empresários não importa de que origem […]. A técnica é a essência desse saber que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital[26].

Nesse sentido, o frontispício da primeira edição do Novum Organum de Bacon, de 1620, ilustra, simultaneamente, o progresso no conhecimento e seu valor industrial. A nau com as velas enfumadas pelo vento avança no oceano, ultrapassando o antigo limite simbólico das colunas de Hércules e do mundo conhecido onde está gravada a inscrição: “Muitos passarão, a ciência avançará”. E tudo o que a ciência tiver a possibilidade de fazer ela fará. Horkheimer e Adorno reconhecem no deslimite da razão moderna um elemento paranoico, vinculado ao medo e à angústia a que só restam a razão calculadora e o desejo de converter o desconhecido em algo previsível e controlável.

Semelhante ao terror na política, a ciência nasce do desejo de segurança, da angústia e do medo. Ao tratar da Revolução Francesa, Engels escreve: “O reino do terror, nós o compreendemos como o reino das pessoas que inspiram terror às outras. Ora, é bem o contrário: é o reino de pessoas que estão, elas próprias, aterrorizada”[27]. As práticas terroristas na política são o duplo do terror que a natureza hostil produz no homem.

Assim, os procedimentos da ciência e da técnica modernas procuram submeter a natureza a homens tomados pelo pânico. A ciência converte a natureza em objeto disponível e manipulável, o mundo é apenas “ocasião para seu delírio”, o que se expressa nas Memórias de um doente dos nervos – obra que Freud iria analisar no quadro dos delírios de onipotência – em que Schreber anota que, entre as almas dos mortos que o perseguem e assombram, algumas indicam o “firmamento” como endereço e morada.

À semelhança da onipotência presente no mito e na magia, que à distância dos objetos procura dominá-los, a ciência moderna, como o Prometeu do mito grego, quer dominar a natureza aplacando suas ameaças e forças desconhecidas, exercendo sobre ela violência e poder, tomando-se como “um império dentro de um império”. E a ciência e a técnica, que pretendiam restringir o poder da contingência sobre a vida e transformar a terra em um lugar seguro, resultaram em que “qualquer parte do espaço tornou-se, virtualmente, um território de risco […]. O acidental não corresponde mais ao jogo de dados, ele provém de sua própria previsão[…]. Na época da grande ameaça nuclear, as cosmogonias só têm lugar em um imaginário separado da realidade tangível da destruição. Esta dramaturgia do risco e do alerta esconde mal [o não dito] de que toda catástrofe faz parte do devir da biosfera, consagrando-se a impotência diante dela”[28]. Com isso, a contemporaneidade habituou-se à ideia de que todos os espaços da Terra virtualmente estão convertidos em territórios de risco. Que se pense no “buraco de ozônio” e a sensação de catástrofe iminente, sendo que a percepção da catástrofe se converteu em um modo de relação com o mundo. Contra isso, seria necessário desvendar o que há de incerto nas próprias escolhas técnicas, produtoras de segurança e de riscos. E isso porque, ao vencer a exterioridade da natureza e a alteridade do mundo ameaçador, a razão científica “identifica o animado ao inanimado, assim como o mito “identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a angústia mítica radicalizada”[29].

Racionalização do mito e mitificação da razão significam que a ciência não vence o medo, mas o transforma em conteúdo do pensamento racional que, para dominar o desconhecido, mobiliza força e poder sobre todas as coisas. Assim como o mito exigia sacrifícios de sangue para aplacar as forças naturais, a ciência moderna considera as catástrofes produzidas pela ciência e pela técnica acidentes de percurso do progresso, e a violência constitutiva de todas as relações: “Não existe continuidade da barbárie à civilização, mas há uma linha reta do estilingue à bomba de megatons”[30]. As proposições da ciência são autoidealizações onipotentes voltadas à autoconservação, presas à natureza imediata governada pela lei do mais forte: “a paranoia”, escrevem Adorno e Horkheimer, “é a sombra do conhecimento”[31]. Também a política,voltando-se para a autoconservação, torna-se vontade de domínio, como na fusão de teologia e política, baseadas, ambas, na ideia de “proteção”: “os protetores, os condottieri, os senhores feudais, as ligas, sempre protegeram e simultaneamente exigiram resgate daqueles que dependiam deles. Cuidavam, dentro de seus domínios, da reprodução da vida[32].

Em Mínima Moralia e em As estrelas descem à Terra, Adorno recusa a sabedoria “burguesa e mefistofélica” de ratificação do Mal existente, a que opera no adágio de que a injustiça é o meio da justiça, e que tudo que existe merece desaparecer. Seria “desolador pensar que no universo infinito não se faça outra coisa senão comer ou ser comido”[33]. Eis o que é, para Adorno, a história da naturalização da violência no interior da cultura, e o que inviabiliza perceber que a vida em sua imediatez é inseparável de tudo “que é opressivo e destruidor”. A autoconservação é impulso cego de autopreservação, que não transcende a ordem adversa da natureza e a da servidão política, prolongando assim seu domínio no interior da cultura que deveria dominá-las. Trata-se aqui do automatismo cego do desenvolvimento da ciência e das leis do mercado. A partir da Conquista, não é mais a Terra que gira ao redor do Sol, mas o capital que circula por toda a Terra.

Desse modo, a ciência – como cartomantes e quiromantes, ocultistas e astrólogos – explica e domina o mundo ao preço da força e do embotamento da razão, utilizada como “bola de cristal”: “a exclusividade das leis lógicas se origina nessa univocidade de função, em última análise no caráter coercitivo da autoconservação. Esta culmina sempre na escolha entre sobrevivência ou morte, escolha essa na qual se pode ainda perceber um reflexo no princípio de que, entre duas proposições contraditórias, uma só pode ser verdadeira e só uma falsa”. O mundo criado à sua imagem e semelhança é o da evidência e seu mito da falsa clareza. A crença na ideia de um progresso contínuo se assemelha à consulta ao horóscopo, cuja poder de atração é o mesmo do mito e da ideologia, é sua “racionalidade irracional”. Adorno encontra aqui as condições provedoras de atitudes irracionalistas e a proliferação de personalidades autoritárias, ressentidas e manipuladoras: “a superstição, a crença em determinações místicas ou fantásticas do destino do indivíduo, tal como a estereotipia, […] podem ser compreendidas como expressões da fraqueza do Ego”[34].

Sob o domínio do medo e da perda do domínio sobre a própria vida, a ciência se conduz por autorregulação e procede à fabricação do humano a partir da matéria inerte. A biologia sintética, a igual título do mercado que não reconhece limites, deve autorregular-se, de tal forma que o moderno é o mundo da desinibição e do desrecalque generalizado: ”A ciência agora não aumenta seu poder mas sim aumenta o coeficiente de risco, incerteza e contingência de suas decisões”[35]. Porque nada escapa ao mercado, Yves Roussel reconstitui o campo em que a guerra se transformou em produção e negócio econômico. A partir da Primeira Guerra Mundial, a produção de canhões e obuses ligou-se a inovações para um “equilíbrio do terror”, associando cientistas e produtores: “Os cientistas tornaram-se organizadores e administradores. O ato de invenção tornou-se pesquisa”[36]. Até então o cientista era o intelectual, pois o sistema acadêmico operava como a instância legitimadora do verdadeiro, a comunidade científica se constituía como condição necessária de suas enunciações e da produção de sentido e reflexão. Em seu ensaio “Verdade e poder”, Foucault interroga o estatuto político da ciência: “Não se trata de saber qual o poder que pesa do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos”[37]. Trata-se de interrogar a maneira pela qual o poder forma um saber, bem como a questão do papel do intelectual hoje. Na hegemonia da razão instrumental, o intelectual não produz mais sentido, não toma mais a palavra em público como “maître de vérité”.

O “intelectual universal” analisado por Foucault era portador de um saber reconhecido e respeitado, desempenhando o papel de consciência de todos, elaborada com suas reflexões e conhecimentos. Ele foi substituído pelo “intelectual específico”, cujo emblema foi Max Oppenheimer, um dos cientistas que participaram, durante a Segunda Guerra Mundial, do projeto Manhathan, empreendimento científico e industrial que culminou na fabricação da bomba atômica. Como cientista, sua argumentação em defesa da nova arma fez-se por formulações tipicamente técnicas. Pois se o intelectual universal garantia sua autoridade intelectual e moral por seu discurso, o intelectual específico tem seu poder justificado pela eficácia dos conhecimentos de que é o autor, produzindo uma legitimação diferente daquela que presidia a medicina de Pasteur, fundamentada esta em uma perspectiva inteiramente humanista[38].

Com o advento da sociedade da administração da vida, a ciência encontrou-se a meio caminho entre “fantasias paranoicas e realidades funcionais”, produzindo novas formas de ameaça e de medo. Hoje o homem tem muito mais a temer do que as catástrofes naturais, pois assiste à emergência de um modo desconhecido até agora de evolução:

A questão que concerne o estatuto do progresso é principalmente o fato que o progresso mudou de medida. O ideal progressista da época das Luzes era um progresso antropocêntrico e antropocentrado. Sabe-se que de agora em diante a medida do progresso se encontra nos instrumentos de investigação da natureza que escapam à escala humana. Com a biologia não é apenas o controle da natureza que triunfa, mas o controle da evolução, como o diz François Jacob, já que “o homem tornou-se o primeiro produto da evolução capaz de dominar a evolução”[39].

Trata-se, aqui, de um novo ateísmo que não desaloja mais deus mas o próprio homem, que recusa toda sacralidade à vida, dissociando a vida humana do valor humano. O progresso só tem por fim o próprio progresso e o poder como princípio de todas as relações.

Da ideia de finito, de seu acabamento e perfeição, ao infinito como abertura e ilimitação, o mundo volta a fechar-se. Escreveu Valéry:

Em nossos dias toda a terra habitável já foi reconhecida, inventariada, repartida entre as nações. A época dos terrenos baldios, dos territórios livres, dos lugares que não pertencem a ninguém, ou seja, a era da livre expansão, terminou. Já não resta mais nenhum penhasco que não ostente uma bandeira; não há mais vazios nos mapas; não há mais regiões sem alfândegas e sem leis […]. Começa o tempo do mundo finito[40].

A este mundo que tende à entropia, Adorno contrapõe suas Mínima Moralia, revivendo o ideário humanista da “doçura dos costumes” e da paixão desinteressada das coisas do espírito que o bem viver supõe, características do cosmopolitismo e do enciclopedismo europeu: “Goethe, que tinha a clara consciência da iminente impossibilidade de quaisquer relações humanas na sociedade industrial emergente, buscou, nas novelas dos anos de peregrinação de Wilhelm Meister, representar a civilidade como referência salvadora entre homens alienados. […] Para ele o humano consistia numa autolimitação, que súplice assimilava a inexorável marcha da história, a desumanidade do progresso, a atrofia do sujeito”.

Na busca “da delicadeza perdida”, Adorno reserva para uma teoria renovada a tarefa da crítica e da emancipação, em que a relação com a natureza seja a da reciprocidade e da reconciliação, não do poder e da dominação. Se os homens produzem pacificamente os meios de destruição de si mesmos e do planeta, trata-se de realizar a crítica do presente, a possibilidade da desindustrialização do mundo e a redefinição do ter e do ser, em um outro princípio de realidade a que Marcuse dá a imagem de Orfeu e de Narciso, personagens que evocam a dimensão contemplativa do homem, subsumida pela cultura que valoriza o excesso e o ativismo incessante.

Se “crise da cultura” é, para Adorno, “crise na capacidade de amar”, uma teoria crítica renovada deve promover um outro princípio de realidade, antiprodutivista e criador de tempo livre, já que o amor é “a ocupação dos ociosos” e dos preguiçosos: “são os preguiçosos que movem o mundo. Os outros não têm tempo algum”[41].

Notas

  1. Cario Mongardini. Miedo y sociedad, trad. Pepa Linares. Madrid: Alianza Editorial, 2007, pp.18 e 41. 
  2. “Nas Leis, 820c, o termo scholé é aplicado às discussões científicas, por oposição aos jogos e brincadeiras” (Cf. Joaquim Brasil Fontes, Eros tecelão de mitos, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 29). 
  3. Cf. J. B. Fontes, op. cit., p. 30. 
  4. Cf, Dany-Robert Dufour, A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal, Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2003, p, 148. 
  5. Já nos anos 1960, Jaspers se dedicava à discussão da ideia de universidade na época em que seu sentido começava a perder-se em meio à redução de sua finalidade a problemas técnicos. Acrescente-se, hoje, a inscrição do debate no âmbito das condições materiais da sociedade e do àumento da produção como um fim em si mesmo, e a pesquisa como mercadoria na lógica da amortização rápida de investimentos. 
  6. Cf. P. Zawadizki, “Scientisme et dévoiements de la pensée critique”, in Eugêne Enriquez, Claudine Haroche, Jan Spurk, Désir de penser, peur de penser (orgs). Lyon: Parangon, 2006, p. 93. 
  7. Esta expressão foi cunhada por Thomas Macho, no quadro de suas análises sobre o empreendimento revolucionário do pensamento gnóstico no cristianismo primitivo. Cf. “Umsturz nach innen. Figuren der gnostischen Revolte”, in T. Macho e P. Sloterdijk, eds., Welrevolution der Seele, Artmeis-Winkler, Munich-Zurich,1993, p. 498. Face ao progresso das ciências positivas, as disciplinas formadoras – aquelas que exigiriam conhecer o mundo cultural e suas significações – caíram em “desuso”, de tal forma que o passado não é propriamente esquecido, mas ignorado. Tudo o que constitui o ideário humanista é considerado tão admirável quanto inútil e, por isso, não merecedor de ser tomado em consideração. 
  8. W. Benjamin. A obra de arte. trad. José Lino Grünnewald. São Paulo: Abril Cultural, 1975. 
  9. Cf. Horkheimer, “Meios e fins”. in Eclipse da razão, trad. Sebastião Uchoa Leite, RJ: Editorial Labor do Brasil, 1976, pp. 30-31. 
  10. Cf. Horkheimer, Eclipse da razão. op. cit. 
  11. Horkheimer, idem, pp. 29-30. 
  12. Cf. Max Weber, A ética protestante, edição de Antônio Flávio Pierucci, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 74. 
  13. Cf. H. Arendt, The Origins of Totalitarism, New York: Harcourt, 1978,p.170. 
  14. Horkheimer e Adorno, Dialética do esclarecimento, trad. Guida de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 98. 
  15. G. Balandier, Le Grand dérangement, Paris: PUF, 2005, p. 67. 
  16. lbid. 
  17. Cf. A. Meddeb, “O Islã entre civilização e barbárie”, trad. Dorothée du Bruchard, in Civilização e barbárie, org. Adauto Novaes, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
  18. Cf. M. Horkheimer, Theórie Critique, Paris: Payot, 1978, p. 134. 
  19. B. Stiegler, La Télécratie contre la démocratie, Paris: Flammarion, 2006, p. 260. 
  20. Cf. Marco Aurélio, Meditações, trad. Lúcia Miguel Pereira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1957. 
  21. Cf. “Introdução” a O homem grego, sob direção de Jan-Pierre Vernant, trad. Maria Jorge Vilar Figueiredo, Lisboa: Presença, 1991, p. 8. 
  22. Cf. Benjamin, arquivo JU 62,5, in Passagens, trad. Irene Arão e Cleonice Mourão. Ed. UFMG, 2006, p. 385. 
  23. Pascal, Pensamentos, trad. Sérgio Milliet, frg. 693, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 217. 
  24. Cf. M. Chaui; Adauto Novaes (org.), Laços do desejo, in O Olhar, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p 22. 
  25. Cf. P. Sloterdjik, Ações de risco, in Weltinnenraum des Kaptials, ed Suhrkamp, 2005, p. 78. 
  26. Cf. Dialética do esclarecimento, trad. Guido de Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983, p. 20. 
  27. Carta de Engels a Marx, setembro de 1870. 
  28. Cf. Jeudy J.P, Le Désir de catastrophe, Paris, Aubier 1990, p. 24. 
  29. M. Horkheimer e T. Adorno, Dialética do esclarecimento, trad. Guida de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 
  30. T. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt: Shurkamp, 1980. 
  31. M. Horkheimer e T. Adorno, op. cit. 
  32. Idem, op. cit. 
  33. Adorno. Minina moralia, trad. Luiz Eduardo Bicca, São Paulo: Ática, 1992. 
  34. Cf. T. Adorno, As estrelas descem à Terra, trad. Pedro Rocha de Oliveira, São Paulo: Unesp, 2008. 
  35. G. Marramao, Passage a Decidente, trad. Heber Cardoso, Bahia: Conocimiento, p. 37. 
  36. Cf. Jena-Christophe Goddard; Bernard Mabille (org.), “L’lntellectuel et le pouvoir”, in Le Pouvoir, Paris: Vrin, 1994. 
  37. Cf. “Poder e verdade”, in L’Arc, n. 70, 1977, p. 18. 
  38. M. Castillo, La Bioéthique à l’épreuve des pouvoirs, in Le Pouvoir, op. cit., p. 316. 
  39. M. Castillo, op. cit., p 318. 
  40. Cf. Regards sur le monde actuel, Paris: Gallimard. 
  41. F. Ponge, Le Parti pris des choses, Paris: Gallimard, 1970. 

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