2010

Metafísica e tecnociência: uma cooperação impossível?

por Paul Clavier

Resumo

Ao longo do século XX ocorreu uma série de interferências entre a ambição tecnocientífica e a vocação metafísica. A primeira interferência e a mais conflituosa entre elas se deu quando, nos anos 1920, os filósofos do Círculo de Viena quiseram submeter o significado dos enunciados metafísicos a critérios de verificação empírica. Programaram, portanto, a eliminação da metafísica pela análise lógica da linguagem. Escreveram uma página da história do confronto entre metafísica e técnica lógico-científica. Esta página hoje parece virada.

Para tirar lições disso, é necessário voltar a algumas questões elementares: onde param as ciências (e, para começar, que ciências? As ciências formais, lógico-dedutivas? As ciências observacionais, históricas, sociais?) e onde começa a metafísica? Será que é possível passar das primeiras para a segunda ou será que são condenadas a se desconhecer? Ouve-se dizer, frequentemente, que as ciências se ocupam do encadeamento dos fenômenos de acordo com causas e leis: elas estão interessadas no “como”, ao passo que a metafísica cuidaria do “porquê” das coisas.

Entretanto, a metafísica não é a única a entrar no nível do “porquê”. Metafísica e ciências da natureza entram com frequência em concorrência. Determinadas questões com fama de metafísicas (o que é a alma, a liberdade, o acaso, a natureza, Deus?) são estudadas, pelo menos parcialmente, pelas ciências da natureza (as neurociências, por exemplo, para a relação corpo-espírito; a Física estatística, para a noção de acaso). O que então distingue a investigação metafísica da investigação das ciências da natureza não é a área de pesquisa, mas o nível de inteligibilidade em que cada uma pretende se situar. Parece que a investigação metafísica pretende atingir um nível de realidade mais profundo ou mais fundamental, ao passo que a investigação científica se limita prudentemente a certas classes de fenômenos, a tipos de objetos observáveis (organismos vivos, células, fluidos, gases) ou a modelos teóricos precisos (partículas, campos, supercordas etc.). As entidades com as quais o metafísico trabalha não são assim tão fáceis de delimitar: são conceitos mais genéricos (a existência, os indivíduos, as propriedades etc.) ou que aparentemente escapam de qualquer verificação experimental (Deus, a alma, a liberdade etc.)

A metafísica não é condenada a ser superada por qualquer tentativa de “clarificação lógica do pensamento”. A análise lógica da linguagem permite que a metafísica se supere, para tanto, ela precisa desistir de se apresentar como uma ciência dedutiva a priori.

Seria, talvez, necessária, uma correção do que constitui um preconceito ou até um pressuposto maciço na abordagem das mutações do pensamento: a tecnociência seria o antípoda da metafísica, enquanto a metafísica seria o antídoto da tecnociência. A tecnociência representaria um empreendimento concreto de subjugação da natureza, usando o conhecimento científico como instrumento de dominação. A metafísica, por sua vez, seria a atitude abstrata de interpretação da natureza, usando a especulação como meio de contemplação. O que vale desta teoria? A indeterminação do termo “tecnociência”.

Nossa percepção da relação entre metafísica e tecnociência está possuída pelas declarações bombásticas dos metafísicas que, de Platão a Heidegger, se deleitaram em acusar “a técnica” de todos os males.

É preciso notar a coexistência possível dos dois projetos. Não existe antinomia entre o empreendimento da fundação metafísica e a ambição de dominação tecnológica. Há muitas vezes mais do que uma simples coexistência entre ambas as atitudes.

O verdadeiro embate é aquele que opõe o objetivismo e o subjetivismo ético. Podem ambas, a metafísica e a tecnociência, fechar-se num subjetivismo ou, ao contrário, escolher enfrentar as questões éticas de um ponto de vista objetivo.

A redescoberta de normas éticas objetivas é uma mutação árdua, porém necessária, para que o humanismo de amanhã não seja um humanismo da renúncia, ou seja, uma renúncia ao humanismo.


Lamentei muito a impossibilidade de apresentar esta conferência em português. Aproveito o ”Ano da França no Brasil” [2009] para pedir desculpas por esta limitação. No entanto, encontrei no grande Machado de Assis outro incentivo. Se abrirmos Esaú e Jacó, capítulo XLIII, podemos ler isso: “O discurso é magnífico, e não há de morrer em S. Paulo; é preciso que a Corte o leia, e as províncias também, e até não se me daria fazê-lo traduzir em francês. Em francês, pode ser que fique ainda melhor”.

Fiquem tranquilos: não tenho a pretensão de fazer um discurso magnífico, mas posso lhes assegurar que a versão original está em francês. Ele, no entanto, deve muito a Machado de Assis, como vocês vão ver. É para mim a ocasião de agradecer aos tradutores e ao seu trabalho técnico a serviço de trocas metafísicas.

Interesso-me pelas relações entre metafísica e tecnociência. É comum desde Bergson deplorar o destino de uma humanidade que geme, “meio esmagada sob o peso dos progressos realizados por ela”, reclamando “um complemento de alma”. A restauração da metafísica (em William James, por exemplo) deve teoricamente trazer esse consolo. Daí um contraste e uma tensão conflitante entre:

  • de um lado, as tecnociências que são o derradeiro desenvolvimento das ciências dos fatos e que só conseguem promover uma “humanidade de fato”, segundo a expressão de Husserl, isto é: sem valor;
  • do outro lado, a metafísica, que zela pela reconstituição de uma alma da humanidade, enfrentando questões extremas, vertiginosas (“Por que haveria algo em vez de nada?”; “O que é o Ser? A Verdade? O Bem?”; “Será que Deus existe?”; “Qual o lugar do homem no universo?” etc.).

Metafísica e tecnociência: este título evoca uma oposição radical entre duas perspectivas. Sêneca dizia que não se pode admirar ao mesmo tempo Diógenes e Dédalo. Diógenes é o filósofo cínico, contemporâneo de Platão, um tecnófobo realizado. Denunciando todo conforto como supérfluo, ele procura um homem despojado de todos os artefatos e que seja digno deste nome. Dédalo: ferreiro, arquiteto, escultor. É aquele que inventa um meio (perigoso) para o homem sair do labirinto. Se Sêneca tem razão, então as duas vocações são antagônicas. Metafísica e tecnociência: é quase o cartaz de um jogo entre dois times que em tudo se opõem: França – Itália ou, se preferirem, Brasil – Argentina (não vou precisar se coloco o Brasil do lado da metafísica e a Argentina do lado da tecnociência ou o contrário…).

Quero que esse jogo seja um amistoso, no qual cada time ensine ao outro a dar o melhor de si. O que não significa que considero ambas as abordagens como equivalentes. Um amistoso não termina obrigatoriamente num empate. Eu gostaria de convidá-los a examinar suas semelhanças e sua interdependência. Permitam que eu as compare com Pedro e Paulo, os gêmeos antagônicos de Machado de Assis em Esaú e Jacó. A prodigiosa encenação desse tandem conflituoso não impede Machado de sugerir que eles também podem ser considerados “como uma só pessoa” (é o ponto de vista da personagem Flora, que não consegue escolher entre os dois e até pergunta: “Quais dois?”. Também é o ponto de vista do sábio conselheiro Aires, que “consente à unificação de Pedro e Paulo”). Aqui também não vou correr o risco de dizer que metafísica é monárquica e carioca, enquanto a tecnociência seria republicana e paulista. Quero, ao contrário, sugerir que a oposição metafísica/tecnociências não remete a uma divisão sociopolítica, mas que é antes de tudo intrapessoal. Poderíamos dizer que a fronteira entre metafísica e tecnociências não passa entre os Estados nem entre as categorias socioprofissionais, mas pelo coração de cada ser humano. Minha hipótese é que a busca metafísica e o empreendimento das tecnociências são de certa maneira gêmeos, como os átrios e ventrículos do coração.

Eu gostaria em primeiro lugar de sugerir a existência de pontos de interseção e de articulação entre a abordagem metafísica e a das ciências.

Voltarei depois para o tandem ciências/técnicas, tentando aí também corrigir uma concepção exclusivamente dualista. Afirmarei para terminar que nossa paranoia crônica diante da influência crescente das tecnociências é muitas vezes apenas o resultado de nossa própria timidez metafísica.

TRÊS INTERFERÊNCIAS

Historicamente, ocorreu ao longo do século XX uma série de interferências entre a ambição tecnocientífica e a vocação metafísica. Vou identificar três tipos de interferências, que mostram uma grande proximidade entre ambas as abordagens (embora a proximidade às vezes seja a de um corpo a corpo: “Beijo meu rival, mas é para sufocá-lo”, diz Nero nas palavras de Racine).

  • Primeira interferência: nos anos 1920, o Círculo de Viena desenvolveu um projeto lógico-científico e a eliminação da metafísica: tratava-se de reduzir a “enunciados protocolares”, por meio de uma técnica de análise lógica, o significado de qualquer proposição. Mesmo não obtendo o sucesso esperado, parece que essas tentativas provocaram uma clivagem duradoura entre cientificidade e metafísica. Durante algumas décadas, o questionamento metafísico contemporâneo abandonou a metodologia das condições de veracidade e dos fatos experimentais para se ater às categorias de “sentido”, de “vivência” etc. Essa clivagem provocou, entre outros, a separação lamentável entre “filosofia analítica” e “filosofia continental” (esta última denominação sendo muito europeucêntrica). A rivalidade entre as duas correntes pode ser considerada como uma luta até a morte entre ambição metafísica e ambição tecnocientífica.
  • Segunda interferência: ilustres representantes da exegese histórica da filosofia (Martial Guéroult, Jules Vuillemin) analisaram o trabalho filosófico em termos de “tecnologia dos sistemas filosóficos” (é o título dado por Martial Guéroult à sua cadeira de história da filosofia no College de France). Esta denominação sugere uma inesperada proximidade de tratamento, como se a metafísica fosse solúvel no axiomático, como se as grandes posturas metafísicas (sobre a necessidade e a contingência, sobre o teísmo e a causalidade) se reduzissem a manipulações de símbolos mediante definições e regras de inferência.
  • Houve, finalmente (terceira interferência), as tentativas de transbordamento das ciências da natureza no campo da metafísica: elas cabem no que Althusser diagnosticava como “filosofia espontânea dos cientistas” (aula de 1969, publicada em 1974). Ainda não estamos curados desta doença, como o mostra o sintoma recorrente de controvérsias entre criacionistas e materialistas, ou ainda o uso selvagem da Física relativista ou quântica para decidir as questões do acaso e da racionalidade do Universo etc. Mas o vírus evoluiu: apesar de Althusser denunciar sob o conceito de filosofia espontânea dos cientistas a dominação do idealismo sobre o materialismo (por “filosofias da ciência”, religiosas, espiritualistas ou idealista-críticas), a filosofia espontânea dos cientistas hoje acolhe tanto o reducionismo das neurociências quanto o fundamentalismo religioso. Coloco Filosofia Espontânea dos Cientistas dentro do debate tecnociência/metafísica porque se trata de uma instrumentalização de resultados científicos com pretensão de chegar a uma metafísica.

Eu gostaria de voltar à primeira das três interferências, que também é a mais conflituosa. Os filósofos do Círculo de Viena quiseram submeter o significado dos enunciados metafísicos a critérios de verificação empírica. Programaram, portanto, a eliminação da metafísica pela análise lógica da linguagem. Escreveram uma página da história do confronto entre metafísica e técnica lógico-científica. Esta página hoje parece virada. O próprio Carnap reconheceu os limites e os fracassos de um projeto desses. Para tirar lições disso, precisamos voltar a algumas questões elementares: onde param as ciências (e, para começar, que ciências? As ciências formais, lógico-dedutivas? As ciências observacionais, históricas, sociais?) e onde começa a metafísica? Será que é possível passar das primeiras para a segunda ou será que são condenadas a se desconhecer? Ouvimos dizer frequentemente, pelo menos desde Buffon, que as ciências se ocupam do encadeamento dos fenômenos de acordo com causas e leis: elas estão interessadas no “como”, ao passo que a metafísica cuidaria do “porquê” das coisas. Temo que uma simplificação desse tipo seja falaciosa. A maioria das teorias científicas não se limita em modelizar relações entre variáveis (a massa, a distância, a aceleração etc.) a fim de prever fenômenos, dadas certas condições iniciais e as leis sobre a interação. Elas também propõem a explicação de fenômenos por meio de entidades e de propriedades responsáveis por esses fenômenos. A ciência newtoniana tem como ambição responder à pergunta: por que será que os planetas se movem seguindo uma elipse na qual o Sol ocupa um dos centros? Além do mais, as ciências da natureza não nos informam sempre sobre o “como”: a Física contemporânea não se aventura mais a explicar como as forças gravitacionais agem nem como as partículas efetuam saltos quânticos.

A metafísica então não é a única a entrar no nível do “porquê” (por que há algo e não nada?, por que isso existe e não aquilo?). Metafísica e ciências da natureza entram com frequência em concorrência. Determinadas questões com fama de metafísicas (o que é a alma, a liberdade, o acaso, a natureza, Deus?) são estudadas, pelo menos parcialmente, pelas ciências da natureza (as neurociências, por exemplo, para a relação corpo-espírito; a Física estatística, para a noção de acaso). O que então distingue a investigação metafísica da investigação das ciências da natureza não é a área de pesquisa, mas antes o nível de inteligibilidade em que cada uma pretende se situar. Parece que a investigação metafísica busca do lado das condições ou dos elementos extremos da realidade (diziam antigamente que a metafísica era a ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios). Ela pretende atingir um nível de realidade mais profundo ou mais fundamental, ao passo que a investigação científica se limita prudentemente a certas classes de fenômenos, a tipos de objetos observáveis (organismos vivos, células, fluidos, gases) ou a modelos teóricos precisos (partículas, campos, supercordas etc.). As entidades com as quais o metafísico trabalha não são assim tão fáceis de delimitar: são conceitos mais genéricos (a existência, os indivíduos, as propriedades etc.) ou que aparentemente escapam de qualquer verificação experimental (Deus, a alma, a liberdade etc.). Não seria necessário então proibir a metafísica por causa dessa indeterminação que subtrai a qualquer forma de teste racional suas afirmações? Era essa a intenção de Carnap e suas razões merecem ser ouvidas:

À pergunta “Qual o princípio supremo do mundo?” (ou “das coisas”, “do ser”, “do sendo”), diversos metafísicos respondem, por exemplo: a Água, o Número, a Forma, o Movimento, a Vida, o Espírito, a Ideia, o Inconsciente, a Ação, o Bem etc. Todavia, se pedir a um metafísico em que condições um enunciado do tipo “x é o princípio de y” é verdadeiro ou falso, enfim, quais são as marcas distintivas ou a definição da palavra “princípio”, ele responderá com palavras ambíguas e indeterminadas: “x é o princípio de y” deve significar “y procede de x” ou “o ser de y depende do ser de x”. É verdade que estas palavras possuem na maioria das vezes um significado claro: dizemos, por exemplo, de uma coisa ou de um processo y que ele “procede de x” quando observamos que as coisas ou os processos da espécie de x são muitas vezes ou sempre seguidos da espécie y (relação causal no sentido de uma sequência submetida a uma lei)[1].

Quero ponderar que a crítica de Carnap não é a priori sobre a existência de questões metafísicas, mas sobre a ambiguidade e a indeterminação das ferramentas conceituais mobilizadas no tratamento dessas questões. É claro que recorrer a definições precisas em metafísica é sempre desejável. Este recurso se revela delicado, porém não é impossível (penso na formalização rigorosa de Alfred Freddoso das noções de criação, de conservação, de contribuição de uma causa para uma operação etc.). A metafísica não é condenada a ser superada por qualquer tentativa de “clarificação lógica do pensamento”. A análise lógica da linguagem permite que a metafísica se supere, que ela faça melhor do que fez até agora: para tanto, ela precisa desistir de se apresentar como uma ciência dedutiva a priori. É nítido que o projeto de metafísica descritiva de Strawson (Individuais, 1959) deve muito às críticas carnapianas. Na mesma ordem de ideias, pudemos assistir à reintrodução dos conceitos metafísicas de substância, de propriedades, de disposições, de um modo mais modesto. (Rom Harré e E. H. Madden os retomaram em Causal Powers, Blackwell, 1975.) O debate metafísico sobre a existência de Deus, por exemplo, é de novo o objeto de debates argumentados (menos na França, onde ele continua extremamente esquentado e partidário). Os protagonistas desse debate (Richard Swinburne, em primeiro lugar) não se contentam mais com pronunciamentos confessionais, mas submetem as proposições metafísicas sobre a existência de Deus ou sobre a objeção do mal aos critérios técnicos da investigação indutiva e da inferência para a melhor explicação. A cooperação entre metafísica e racionalidade técnica é, portanto, possível. Ela apenas requer mais modéstia de ambos os lados.

Proponho consequentemente corrigir o que constitui um preconceito ou até um pressuposto maciço na abordagem das mutações do pensamento: a tecnociência seria o antípoda da metafísica, enquanto a metafísica seria o antídoto da tecnociência. A tecnociência representaria um empreendimento concreto de subjugação da natureza, usando o conhecimento científico como instrumento de dominação. A metafísica, por sua vez, seria a atitude abstrata de interpretação da natureza, usando a especulação como meio de contemplação. O que vale desta teoria? Aqui esbarramos numa primeira dificuldade: a indeterminação do termo “tecnociência”, que às vezes é mostrado como um espantalho, outras vezes como uma bandeira, ou ainda como um programa ou uma ameaça. Nossa percepção da relação entre metafísica e tecnociência está possuída pelas declarações bombásticas dos metafísicas que, de Platão a Heidegger, se deleitaram em acusar “a técnica” de todos os males (poderíamos, aliás, sugerir que a própria “desconstrução” da filosofia por Heidegger funciona por meio de uma técnica lógico-poética).

Primeiro, é preciso notar a coexistência possível dos dois projetos: aqui, o exemplo de Descartes pode bastar. É dificil imaginar uma mente mais metafísica que a de Descartes. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de relevar sua constante preocupação em usar a ciência das máquinas para melhorar a qualidade da vida ou em extrair as consequências dos princípios da Física em áreas bem técnicas como a mecânica, a medicina e até a moral (que Descartes tendia a conceber como uma medicina das paixões). Enfim, segundo a fórmula do Discurso do Método frequentemente citada, “em nos tornar como mestres e possuidores da natureza”. Afinal de contas, não existe antinomia entre o empreendimento da fundação metafísica e a ambição de dominação tecnológica. A não ser que se duvide da sinceridade de Descartes no seu projeto metafisico de fundamentação primordial da ciência sobre a certeza de si do ego, deve-se reconhecer a coexistência pacífica das duas perspectivas. Eu gostaria de sugerir que há muitas vezes mais do que uma simples coexistência entre ambas as atitudes. Interessemo-nos pelo que a metafísica deve à tecnologia na sua própria prática. Desde os seus primórdios, a investigação metafísica foi tributária de modelos científicos técnicos. Platão não parava de comparar Deus a um geômetra, o demiurgo a um arquiteto, a um escultor ou a um metalurgista. A metafísica aristotélica da ação e da potência, assim como sua teoria das causas, é baseada em analogias com o modelo medico ou artesanal. A teoria cartesiana do conhecimento (o problema da validação de nossas ideias claras e distintas como instrumentos de análise e de explicação do mundo material) é fundamentada (Princípios IV, 204 ss.) no modelo da descodificação: a probabilidade de uma teoria ser verdadeira é avaliada pela relação entre o número reduzido de hipóteses e o comprimento das mensagens que ela permite descodificar. Finalmente, como lembrei anteriormente, o fascínio pelos instrumentos de análise lógico-linguísticos – colocados a serviço da eliminação da metafísica num primeiro momento – serve hoje para nutrir uma corrente extremamente fecunda de “metafísica analítica” (David K Lewis, Peter Simons,Jonathan Lowe).

Para concluir este ponto, não acredito no embate entre a metafísica e a tecnociência. O verdadeiro embate – e voltarei a ele na minha conclusão – é aquele que opõe o objetivismo e o subjetivismo ético. Podem ambas, a metafísica e a tecnociência, fechar-se num subjetivismo ou, ao contrário, escolher enfrentar as questões éticas de um ponto de vista objetivo. Para ser conciso, digamos que o objetivismo ético sustenta que existem verdades éticas objetivas (por exemplo: “a escravatura é ruim”, visto que há razões objetivas para não tratar o ser humano como um objeto). Lembro en passant que o famoso “discurso” de Esaú e Jacó versava sobre a abolição da escravatura… Por enquanto, volto para o tandem ciência/técnica.

Uma oposição mal parametrizada

Henryk Skolimowski afirmava: “A ciência cuida do que é, a tecnologia do que tem que ser (what is to be)” (“The structure of thinking in technology”, Technology and Culture 7, 1966, pp. 371-383). Igualmente, Herbert Simon opõe o cientista, que lida com o que é, ao engenheiro, que cuida do “que as coisas deveriam ser (how things ought to be)” (The Sciences of Artijficial,1969).

Podemos e devemos contestar esta dicotomia clara, porém enganosa. A atividade científica é tributária de uma metodologia da observação que depende, ela mesma, em grande parte de técnicas. Qual é a relação entre ciência e técnica, afinal? Como o sugere Bachelard, “os instrumentos são teorias materializadas”. Foi mostrado recentemente que a teoria da Relatividade Restrita se inspirou muito no problema técnico da sincronização de relógios. Ao ler o artigo original de 1905 ou a exposição fundamental de Einstein de 1916, é marcante o cuidado todo especial que o autor dedica às condições concretas de observação e à materialização das referências geométricas. Repetem habitualmente que a Relatividade Restrita nasceu do fracasso da experiência de Michelson e Morley; destinada a evidenciar por meio de um dispositivo técnico o movimento da Terra- em relação ao éter, supondo que a luz se propagaria mais rápido num sentido que no outro. Peter Galison salientou a que ponto a descoberta einsteiniana, cito, “mescla dispositivo técnico e metafísica” (“Einstein’s Clocks: the Place of Time”, Critical Enquiry, 2000, p. 387). A meditação sobre a sincronização dos relógios de Berna está na origem de uma das maiores revoluções especulativas de todos os tempos.

Vamos refletir também sobre a fórmula de Paul Langevin: “O concreto é apenas um abstrato que virou familiar pelo uso “. Essa fórmula parece defender uma primazia do conhecimento fundamental sobre a abordagem aplicada. Para começar, o abstrato é dado como estrutura causal das interações fundamentais (as leis de Newton) e o elemento abstrato, fundamental, entraria aos poucos na nossa manipulação concreta: aprendemos a perceber a atração dos corpos por um centro de gravidade que não vemos; aprendemos a conceber a revolução da Terra em volta do Sol (embora continuemos a ver o Sol se levantar e se pôr). Este roteiro inclui, porém, um parâmetro decisivo: o abstrato não se revela sozinho, não se torna familiar por si só. Langevin diz corretamente que é o uso que torna este abstrato familiar: o uso dos quadrantes solares, o uso das máquinas balísticas, o uso dos relógios elétricos sincronizados. Portanto, não há apenas um “desvio” pela técnica. A técnica é o caminho real da manipulação da abstração científica.

Inversamente, a noção de ciência desinteressada, meramente contemplativa, é um mito. Ficamos muitas vezes com o retrato que Platão fez de Tales no Teeteto (174 a), em que o distraído sábio, a cabeça perdida no céu estrelado, cai num poço (dispositivo técnico de adução dos recursos hidráulicos). Evocam também a raiva de Platão, criticando Arquitas por ele recorrer a instrumentos e maquetes para entender a astronomia (relatado por Plutarco, Vida de Marcellus, XIV, citado por P. M. Schuhl, p. 13). No entanto, outras tradições nos dão de Tales, pai do racionalismo, um retrato bem diferente: sua ciência astronômica teria lhe permitido não somente prever o eclipse de 585 a.C., mas também uma colheita abundante de olivas. Durante a entressafra, nos conta Aristóteles (Política I, 11, 1259a6), ele teria feito uma opção sobre todas as prensas de óleo de Mileto e Quios, que ele pôde realugar a preço de ouro no momento da colheita. A invenção da geometria, dizem, é ligada à necessidade de distribuir com equidade as terras aráveis nas margens do Nilo em função dos diferentes níveis de cheias. Não se escapa da fórmula de Auguste Comte: “Saber significa prever para prover”.

Obviamente, toda pesquisa científica não é determinada do início ao fim por questões de prospectiva, de gestão planificada (dos estoques, dos fatores climáticos, orçamentários, políticos e sociais). Mas o desejo de saber é sempre motivado por um ganho: trate-se de um lucro intelectual (a contemplação de uma estrutura regular subjacente à diversidade dos fe­ nômenos, a alegria de entender etc.) ou material (aumento dos recursos alimentares, energéticos etc.). Podemos afirmar que ciência desinteressada não existe. Portanto, só se pode opor ciência e técnica sob este aspecto.

As oposições que estruturavam a percepção antiga do “maquinismo” (o que chamaríamos hoje de “mentalidade tecnicista”) precisam ser tomadas com reserva. P. M. Schuhl enumerava três: 1º) a oposição sociológica entre profissões “servis e mecânicas” e profissões “liberais”; 2º) a oposição ética entre vida econômica e vida contemplativa (negotium/ otium ou ascholia/ scholè); 3º) a oposição ontológica entre arte e natureza (contingência e necessidade, tempo e eternidade).

A primeira oposição é muito conjuntural e caricatural. A substituição do orador pelo engenheiro não é uma inovação do século XX. Várias épocas conheceram uma onda tecnófila (o fim ‘do Quattrocento, é claro, mas também o século XVIII europeu, século do “Dicionário racional das artes, das ciências e das profissões”, mais conhecido sob o nome de Enciclopédia), e talvez já o Alto Império Romano…

A segunda oposição deriva da segunda: ela é a qualificação moral de uma divisão do trabalho (tipicamente platônica). Ela possui apenas um valor relativo à situação produtiva descrita pela primeira oposição.

A terceira esquece que o esquema tecnicista é empregado o tempo inteiro para descrever as operações da natureza.

Sugiro, por conseguinte, que a diferença entre ciência e técnica é uma diferença de grau antes que de natureza. A diferença reside no prazo da previsão (“saber significa prever”) e as perspectivas de provimento (“para prover”). Quanto mais uma pesquisa entrar no longo prazo, mais “fundamental” ela será. A rigor, quando o prazo de previsão é infinitamente longo, estamos na pesquisa das leis mais gerais, das estruturas de conjunto, das constantes fundamentais. Parece-me dificil admitir que uma pesquisa científica possa se proclamar indiferente ou impermeável à questão das aplicações e das “consequências técnicas”. Uma teoria da gravitação que não permite calcular uma velocidade de satelização está incompleta. É verdade que não basta saber calcular uma velocidade de satelização para colocar satélites em órbita. Evidentemente, poderíamos imaginar uma sociedade à la Samuel Butler, onde a invenção das máquinas é proscrita, mas é provável que o congelamento da pesquisa aplicada acompanhe o da pesquisa fundamental. A pesquisa “aplicada” pressupõe a pesquisa fundamental. E, reciprocamente, a pesquisa fundamental pressupõe técnicas comprovadas ou possibilidades técnicas novas. O vínculo entre ciência e técnica é vital e recíproco: não há somente consequências técnicas das ciências, há também influências da técnica sobre a ciência. E é errôneo reduzir essas interações às aplicações militares da Física Nuclear. Já aconteciam na época de Arquimedes, que teria fabricado espelhos ardentes capazes de incendiar a frota inimiga. Ou Tales, que desviou e canalizou em 508 a.C. o rio Hális para permitir a passagem do exército de Cresus (Heródoto, Investigação, I, 75.)

Precisamos então acabar com o mito do sábio genial e desinteressado, cujos segredos seriam roubados por um tecnocrata medíocre, porém bom de negócios, para desvirtuar a ciência do seu objetivo puramente especulativo e transformá-la em instrumento de dominação e de exploração da natureza. Acho que este mito deve ser denunciado por pelo menos dois motivos:

1º) Primeiro, por causa da interdependência entre os recursos técnicos e as possibilidades científicas. Lembremos que os instrumentos de cálculo e até a ferramenta matemática ou a linguagem formal podem ser considerados como um elemento técnico da pesquisa científica. O cálculo das matrizes ou os números complexos serviram como instrumentos de descobertas científicas.

2º) Mas também, e principalmente, porque quando você distribui os papéis dessa maneira está supondo que a ciência e a técnica são atividades determinadas por intenções, que o sábio é, por essência, desinteressado, e o técnico, obcecado pelo ganho de tempo, sedento de lucro e de dominação e desprovido de escrúpulos éticos.

Eu gostaria agora de voltar ao vinculo vital e constante que une a atividade científica de pesquisa e a exploração dos meios técnicos.

Podemos ficar seduzidos pelo contraste aparente entre a ciência (que consiste numa teoria articulada em princípios, variáveis pertinentes, relações repetíveis entre estas variáves e proposições dedutíveis umas das outras) e o know-how (ciência aplicada ou até aquisição de um procedimento sem dispor de sua teoria, gestos e habilidade), o que Michael Polanyi chamou em 1958 “tacit knowledge” em Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy.

Proponho contestar essa oposição: a gente nunca iria confiar num procedimento técnico sem achar que sua eficácia é justificada. Recorrer a um procedimento porque “funciona” subentende que funciona porque o procedimento é baseado em leis físicas, princípios naturais regulares. O fato de que esses procedimentos e habilidades ainda não estejam teorizados não significa que sejam da ordem do pré-teórico ou do infrateórico.

Uma observação interessantíssima de Leibniz sugere o contrário: “A arte mecânica, por menor e mais desprezível que seja, sempre pode fornecer algumas observações ou considerações dignas de interesse. Quanto aos conhecimentos não escritos que se encontram espalhados entre os homens das várias profissões, estou convencido de que eles vão bem além de tudo o que se encontra nos livros, tanto em quantidade quanto em importância, e que a melhor parte do nosso tesouro ainda não foi registrada. No entanto, não significa que seja impossível transcrever esta prática, já que no fundo se trata apenas de uma outra teoria, mais composta e mais específica que a teoria comum”. (“Discours touchant la méthode et la certitude et l’art d’inventer pour finir les disputes et faire en peu de temps de grands progres”, Gerhardt, v, pp. 181-182.)

P. M. Schuhl indica outro texto de Leibniz que vai no mesmo sentido: as Initia et Specimina Scientiae novae generalis pro Instauratione et Augmentis Scientiarum ad publicam felicitatem, VII, 69. Eu gostaria de tirar três ensinamentos desse texto:

1º) Leibniz inverte a noção de consequência técnológica da ciência para substituí-la pela noção de impulso, de empuxo, de lançamento tecnológico. A arte mecânica serve de ponto de partida, de estimulante, de trampolim.

2º) O oposto da unidade dedutiva das ciências formais, o saber técnico, é marcado pela “grande quantidade”, mas a dispersão deste saber não tira nada do seu valor “admirável”, “importante” que faz com que ele seja “a melhor parte do nosso tesouro”.

3º) A antítese prática/ teoria está destruída: prática e teoria só diferem pelo grau de composição e de especificidade. Em outras palavras, a oposição entre racionalismo e empirismo não é decisiva. É possível imaginar uma homogeneidade relativamente grande entre a abordagem científica e a abordagem tecnicista, tanto na concepção racionalista quanto na concepção empirista.

A PERGUNTA “QUEM?”

Ao tentar destruir, ou pelo menos atenuar, a dualidade ciência/técnica, como também a dualidade metafísica/tecnociência, eu não quis banalizar as questões levantadas pela tecnociência. Eu quis chamar a atenção sobre a necessidade de formular, de novo e sempre, a pergunta: “Quem?”. Ocorre que nem a ciência nem a técnica nem a tecnociência é um “quem”. São atividades ou áreas de atividades que pressupõem sempre agentes mais ou menos racionais, mais ou menos livres. Tratar essas atividades como processos autônomos equivale a ceder a uma fantasia tecnicista (a crença segundo a qual “funciona sozinho”). Esses processos são sempre desencadeados, que eu saiba, por agentes humanos. E mesmo se a máquina se descontrola, mesmo se certos efeitos parecem escapar do controle dos indivíduos ou das coletividades humanas, isso de qualquer maneira não tira a responsabilidade daquele(s) que desencadeou (desencadearam) o processo.

Por isso, tendo a dar razão a Joseph Pitt contra Jacques Ellul (“The Autonomy of Technology”, em Durbin (ed.), Technology and Responsibility, Dordrecht & Reidel, 1987), que considera que a autonomia da tecnologia em relação às forças sociais constituídas, às organizações econômicas e às estruturas políticas é um fato, mas que a autonomia da tecnologia em relação ao agente humano é uma ficção. Por mais complexo que seja o processo decisório que conduz à “dominação tecnocientífica”, este processo está ou esteve dependendo num dado momento da vontade de agentes humanos. Hoje ainda, os projetos de transumanismo não engatam como reações em cadeia inelutáveis. A lei de Gabor, que afirma que “tudo o que é tecnicamente possível será realizado um dia”, esquece de precisar: por “quem”. A extrema dispersão das competências técnicas e a complexidade dos circuitos decisórios servem de pretexto para invocar o descontrole automático da tecnociência. Somos fascinados pelo roteiro trágico de uma maquinação que nos ultrapassa, provavelmente porque a margem de manobra nos parece doravante reduzida, os esforços necessários nos parecem heroicos, e porque os resultados não se medem mais na escala de um pleito eleitoral nem de uma carreira nem de uma geração, mas provavelmente numa escala muito maior.

Para concluir, eu gostaria de fazer um último diagnóstico: o motivo pelo qual preferimos denunciar a perda de controle humano sobre a atividade técnica e agitar a ameaça de um reino tecnológico subjugando o homem, é que não estamos mais à altura de nossa responsabilidade metafísica. Hesitamos em formular uma concepção objetivista da existência humana (nem estamos de acordo para dizer quem é ou quem não é uma pessoa humana por inteiro). Desistimos de formular os princípios de uma ética universalista:

a norma proposta por Hans Jonas “de uma vida autenticamente humana sobre a terra” não desembocou em definições convergentes dos direitos da pessoa. E em nome de um princípio de autonomia, aceitamos que a dignidade da vida humana seja negociável. Por isso substituímos com tanta facilidade a ética (o conhecimento das obrigações para conosco, para com outrem e para com a natureza) por um conjunto de procedimentos sem valor intrínseco. A teoria da justiça, de John Rawls, assim como a Foundation of Bioethics, de Thomas Engelhardt Jr., podem ilustrar este diagnóstico. Ambas as obras pretendem atingir uma perfeita neutralidade axiológica. Elas recobrem com um “véu da ignorância” qualquer concepção metafísica do Justo, do Bem, da dignidade humana. Só resta então imaginar procedimentos de cooperação e de entendimento entre alienígenas morais (moral aliens) ou cossignatários de um contrato social. Igualmente, Bruno Latour, em suas Políticas da natureza, reinvindica “a abstenção metafísica”. Abster-se de fazer metafísica, na minha opinião, equivale a adotar implicitamente uma metafísica da abstenção.

Creio que esta capitulação da ambição metafísica possui mais custos que benefícios.

Primeiro, é inexato dizer que esta abordagem seja metafísicamente neutra. A ética processual (na qual o princípio de autonomia neutraliza o universalismo ético) tem como intenção não favorecer nenhuma concepção do Bem: assim sendo, a ética processual admite que é bom não favorecer nenhuma concepção do Bem. A ética processual destaca os procedimentos de concordância como condição técnica de uma coexistência pacífica dos agentes morais. Ela se vangloria de ser uma ética pragmática, uma ética da responsabilidade, preterindo uma ética da convicção. Num regime democrático, é verdade que os procedimentos de concordância são as condições necessárias para a implementação de normas éticas. Porém, elas não podem em nenhum caso ser consideradas como condições suficientes da qualidade intrínseca dos atos sobre os quais a concordância verte. Não é porque uma ação ou um comportamento são reconhecidos ou aceitos como moralmente bons, neutros ou ruins que eles são bons, neutros ou ruins. É, ao contrário, porque uma ação ou um comportamento é intrinsecamente bom, neutro ou ruim que é imperativo entrar em acordo a respeito, antes por meio de uma argumentação racional que pela pressão emotiva. Podemos supor também – por que não? – que as ações e os comportamentos são desprovidos de valor objetivo: neste caso, no entanto, abdicamos de qualquer perspectiva ética. É notável que Camus e até um Sartre tenham ambos desistido da ideia segundo a qual a moral seria uma construção arbitrária e absurda. Em O homem revoltado (1951), Camus dá este grito: “Se não pudermos afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância […] o assassino não está nem certo nem errado. Podemos pôr ‘lenha nos crematórios como nos dedicar à cura dos leprosos (…) na falta de um valor superior que guie a ação, vai-se no sentido da eficácia imediata. Nada sendo nem verdadeiro nem falso, nem bom nem ruim, a regra será de se mostrar eficiente, isto é: o mais forte”. E em A cerimônia do adeus (1974), Sartre termina confessando que é preciso pendurar a ética num absoluto. Ele reconhece o valor da fórmula de Dostoiévski (“Se Deus não existe, tudo é permitido”) e afirma: “Matar um homem é ruim. É absolutamente, diretamente ruim.[…] A moral e a atividade moral do homem é como um absoluto no relativo”.

A reintrodução do absoluto na perspectiva ética faz parte da agenda das mutações da experiência do pensamento do século XXI. Cabe-nos exigir essa reintrodução, através de um debate argumentado sobre os fundamentos da obrigação, sem o autoritarismo ou a hipocrisia que comprometeram essa exigência.

Se aceitarmos que a meta de uma ética universalista e objetivista seja confiscada em proveito de uma ética processual, então perderemos o direito de nos queixar da tirania tecnocientífica. Se houver uma vitória da tecnociência sobre a vocação metafísica do ser humano (sua vocação para buscar a definição da Verdade, do Bem e das obrigações objetivas que daí derivam), somos seus cúmplices. Contudo, nada nos autoriza a abaixar os braços. A busca de concepções metafísicas convergentes é uma perspectiva apaixonante, visto que ela resulta na reconciliação de Diógenes com Dédalo e de Pedro com Paulo. É a mutação vindoura a mais promissora na experiência do pensamento. A busca de leis universais nas ciências da natureza fundou a revolução científica. A elaboração de padrões nos processos técnicos produziu a era da comunicação. A redescoberta de normas éticas objetivas é uma mutação árdua, porém necessária, para que o humanismo de amanhã não seja um humanismo da renúncia, ou seja, uma renúncia ao humanismo.

Notas

  1. Rudolf Carnap, “Le dépassement de la métaphysique par l’analyse logique du langage” (1933), Manifeste du cercle de Vienne et autres écrits, sob a dir. de A. Soulez, PUF, 1985, p. 155. 

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