2005

Mapear um mundo sem limites

por Nelson Brissac Peixoto

Resumo

As novas dimensões espaço-temporais instauradas pela globalização econômica e as configurações informes e dinâmicas das megalópoles alteraram por completo nossos modos de percepção e localização. Esses processos em grande escala escapam por completo à experiência individual e aos dispositivos correntes de retratar o mundo.

Como cartografar um mundo sem fronteiras, sem medida, sem limites? A noção de scanning foi introduzida pelos artistas da land art como modo de ver em grande escala, enfatizando a horizontalidade e a distância. É um tipo de observação que, em vez de fixar-se num objeto, se faz percorrendo horizontalmente uma área, por varredura.

Os aparelhos óticos, diz Vinho, alteram radicalmente nossa percepção geográfica. Projetam a imagem de um mundo fora do nosso alcance. A aproximação do próximo e do longínquo abole o conhecimento das distâncias e dimensões. Com a observação instrumental ocorre a passagem da visão à visualização. Planos abstratos substituem o mapa topológico, a memória topográfica dá lugar à ótica geométrica.

Esse modo de percepção busca parâmetros em que a totalidade se configura como resultado de um conjunto de informações, onde heterogeneidade e indeterminação são constitutivas, em vez de serem imediatamente percebidas como imagem. O que está em jogo aqui são os limites da figuração, a incapacidade de a mente humana representar as enormes forças da natureza e da metrópole. As novas grandes escalas demandariam, segundo Fredric Jameson, um mapeamento cognitivo que, através de seu próprio fracasso representacional, evidencie os limites da cartografia, dos dispositivos tradicionais de localização. Abordagem genealógica que mostre como o mapeamento deixou de ser acessível através dos próprios mapas.

A questão que se põe é: que princípios estabelecer para organizar programas em grande escala? Adotar instrumentos de recombinação que configurem espaços não hierarquizados e heterogêneos, engendrar influências e afiliações mutantes e contingentes que resistam a alinhamentos estáveis. Estratégias que provoquem processos em grande medida imprevisíveis sobre os quais não se pode intervir diretamente. Um mapeamento da informidade, da dinâmica e das intensidades de grandes territórios.


Uma combinação de dispersão e integração global criou um novo papel estratégico para as grandes metrópoles, com mudanças maciças em sua base econômica, organização espacial e estrutura social. Uma descontinuidade sistêmica estabelece-se entre a cidade global e seus respectivos países, entre os diferentes setores de uma mesma cidade. O crescimento do mercado global induz a uma descontinuidade nos sistemas urbanos nacionais, fazendo surgir novas formas de interdependência transnacional.[1]

A mobilidade internacional do capital e sua crescente velocidade engendram formas específicas de articulação entre diferentes áreas geográficas. Surgem novas formas de concentração locacional, resultantes da mobilidade do capital e de sua dispersão territorial. Formas de aglomeração de funções centralizadas que não são geograficamente determinadas. Uma mudança na geografia das atividades econômicas que implica a constituição de novas relações entre os vários componentes de cada locação particular.

Um espaço ao mesmo tempo centralizado em locações estratégicas e transterritorial, na medida em que conecta sítios que não são geograficamente aproximados. A integração global depende de uma multiplicidade de linkagens entre os centros financeiros envolvidos: uma – grade complexa de conexões e sítios.[2]

Como as transformações espaciais e tecnológicas da economia globalizada atuam nas grandes metrópoles? A concentração de atividades globalizadas constitui espaços internacionalizados no coração dessas grandes áreas urbanas, na medida em que as maiores empresas produtoras de serviços desenvolvem vastas redes multinacionais com conexões geográficas e institucionais especiais.

Essa mecânica engendraria uma profunda reestruturação urbana dessas metrópoles. Desenvolvem-se grandes projetos de reurbanização de áreas até então de baixa ocupação ou marginais, para novos usos empresariais ou residenciais, acarretando uma reconstrução em grande escala das cidades. A matriz espacial é constantemente reconfigurada, com a formação de novas e altamente instáveis territorializações.[3]

Essas áreas, agora parte do mercado imobiliário global, tornam-se palco de grandes projetos de redesenvolvimento urbano. Eles anunciam um novo modo de reestruturação das cidades: grandes projetos imobiliários que implicam apropriação intensiva dos recursos públicos e do espaço urbano. A mudança de escala, com uma brutal verticalização, a criação de grandes complexos dotados de infra-estrutura autônoma e a reconfiguração urbanística de regiões inteiras são indicativos de uma nova etapa do processo de reestruturação da espacialidade metropolitana. Um conjunto de medidas visando à flexibilização dos regimes legais é implementado para viabilizar a implantação dos projetos, implicando evidente privatização do espaço urbano. O papel da administração pública passa a ser o de estrategista para a implantação de empreendimentos privados internacionais.

Como transformações em cidades como São Paulo responderam a essa mesma dinâmica? A megacidade indica a constituição de novas formas espaciais, resultantes do impacto da globalização.[4] Uma configuração caracterizada pelas conexões funcionais estabelecidas em vas­tas extensões de territórios, mas com muita descontinuidade em padrões de ocupação do solo. As hierarquias sociais e funcionais das megacidades são indistintas e misturadas em termos de espaço, organizadas em setores reduzidos e improvisados, com focos inesperados de novos usos.

A implantação de vias de trânsito expresso e de novos empreendimentos imobiliários e comerciais faz-se em enclaves desconectados do antigo traçado urbano, fragmentando por completo o tecido da área. Surgem núcleos modernizados — áreas de condomínios residenciais, edifícios corporativos, shopping centers e franquias comerciais — que se repetem periodicamente ao longo das principais avenidas.

Ocorre uma completa remontagem da geografia urbana da área, cujo sentido só pode ser entendido em grande escala. Espaços mais distantes tornam-se mais próximos, porque mais acessíveis. Outros mais próximos tornam-se distantes, porque inacessíveis. A percepção do espaço passa a ser determinada pela velocidade, inviabilizando o reconhecimento pedestre, típico das configurações locais tradicionais. Os antigos espaços públicos, agora inacessíveis, perdem toda a significação e uso, transformando-se em terra de ninguém.

Criam-se bolsões, espaçamentos no tecido urbano, ocupados por estruturas consolidadas e programas rígidos. Essas atividades reorganizam-se em ilhas que se conectam por meio de áreas ainda densamente construídas, que passam a ser ocupadas por outras configurações econômicas e sociais. As formas mais extremas de modernização convivem com novas condições urbanas — informais, transitórias, clandestinas — geradas pela integração global.

A desindustrialização tem sido a base em torno da qual giram os outros aspectos da reestruturação espacial e social. As condições para a reorganização da espacialidade metropolitana, para ajustá-la às exigências do capital globalizado, passam necessariamente pelo desinvestimento. Esse processo é uma combinação sequencial de desagregação e reconstrução.

O resultado da desindustrialização é o terreno-vago.[5] Esses espaços indefinidos e incertos encarnam as oscilações, a instabilidade, do tecido urbano nesse processo. Aparentemente desprovidos de atividades, são espaços que existem fora das estruturas produtivas e dos circuitos da cidade, remanescentes das diversas operações de reconfiguração de suas regiões em escalas mais amplas e complexas.

Aqui, a velocidade das transformações no espaço urbano contrapõe-se à inércia material do mundo fabril. Uma proliferação de galpões industriais transformados em depósitos e áreas de demolição convertidas em estacionamentos. O construído permanece, ocupando lugar, convertido em obstáculo. Escombros amorfos que resistem à dinâmica. Degeneração e colapso são os motores do processo.

A dinâmica metropolitana opera uma obstrução de todo sentido de continuidade espacial. Tudo o que se tem são formas dispostas sem proporção nem medida comum. Nesse espaço dominado pelo caos e pela turbulência, cada local não tem mais um tecido em que se encaixar. Espaços fraturados que remetem sempre para outro lugar. Vazios testemunhando atos de remoção. O interstício é o paradigma da metrópole contemporânea.

Território do informe, é uma área dominada por uma dinâmica entrópica. Uma força que aspira todos os intervalos entre os pontos do espaço, abolindo as distâncias, provocando uma lenta dissolução no indiferenciado. Ela põe a questão do limite, dos contornos. Uma contínua erosão da distinção entre interior e exterior, localizado e ambulante, que constituía a condição espacial requerida pela percepção. Ela instaura um terreno mole, indistinto e ilimitado.

As imagens desses espaços não dominados pela arquitetura refletem nossa insegurança de perambular por territórios indistintos e ilimitados. Mas o vazio, a ausência de limites, contém também a expectativa da mobilidade, a possibilidade do outro. O terreno vago é também o espaço do possível. Toda a história da reação ao terreno vago, desde a percepção dos fotógrafos até as intervenções do planejamento urbano, tem sido no sentido de evidenciar a ansiedade diante de sua indefinição e erradicar sua negatividade. Ela reflete a dificuldade de lidar com a cidade em termos de força, de fluxos, em vez de formas.

***

Robert Smithson realizaria, no final dos anos 1960, diversas expedições de reconhecimento através de regiões industriais nos arredores de Nova York. As áreas percorridas nesses itinerários caracterizam-se pela extensão horizontal suburbana e industrial, desprovida de qualquer centralidade urbana. Uma paisagem em transição marcada pela monotonia e pela dilapidação.[6]

Uma narrativa documental que remete às narrativas de viagem, com suas descrições factuais de antigos monumentos, mas invertendo sua sensibilidade pitoresca. Smithson faz um tour por essa paisagem para retratá-la devastada pela industrialização e pelo crescimento urbano. Um mundo sem passado convertido numa conformação geológica em colapso. Um mapa de desagregração e esquecimento. Nenhum dos monumentos citados por Smithson é um lugar ao qual seus habitantes atribuiriam qualquer significado. Ele não faz referência à história ou à antiga configuração urbana da região. Esses canais poluídos e estacionamentos erodidos são vazios numa malha urbana sem nexo.

Um panorama ditado por desagregações arquitetônicas e indistinções urbanas. Onde se evidencia o caráter insustentável dos elementos, o dinamismo da matéria sujeita à infinitas metamorfoses, os deslizamentos, rompimentos, dilacerações e involuções. A instabilidade espacial dessas áreas comprometidas, tomadas por detritos e resíduos industriais, por contínuas operações de fazer e desfazer.

Situações urbanas erodidas a tal ponto que ali só existe um vazio. Os viadutos, autopistas, estacionamentos, canteiros de obras, tubulações expostas e conjuntos residenciais populares são os monumentos das grandes e devastadas extensões urbanas contemporâneas. Esses locais parecem cheios de buracos, comparados com as cidades tradicionais, mais compactas e sólidas. São lacunas monumentais que guardam os vestígios de futuros abandonados, mapas de uma infinita desintegração. Esses lugares são não-lugares, um abismo, rasgando a cidade, criando múltiplos e incompletos pontos de vista. Nessa terra de ninguém desaparecem os contornos, as fronteiras entre locais espalhados num continuum indiferenciado e infinito. Paisagens quebradas bem no meio da cidade, deslocando continuamente nossa percepção.

As casas cortadas de Gordon Matta-Clark também enfatizam o caráter precário e desagregado da paisagem urbana. Criam espaços críticos em que os vários planos, verticais e horizontais, confundem-se, alterando continuamente a percepção do observador. Uma atividade arquitetônica negativa: cortar, escavar, desconstruir. Detectar vazios, buracos existentes na cidade, espaços que restaram — que permitem rever ou desintegrar a sintaxe arquitetônica e urbana. Rasgar a arquitetura, expondo seu funcionamento secreto. Desenterrar fundações, cortar tetos, paredes e pisos, exigindo do observador um trabalho de trapezista, equilibrando-se à beira de abismos.

Os cortes inseridos nas construções, estes espaços negativos, provocam uma indiferenciação perceptiva, uma supressão da diferença entre os planos horizontais e verticais. Dissecações que rompem a unidade e a continuidade associadas à arquitetura para tornar visíveis múltiplas e inesperadas camadas espaciais e temporais. Essas aberturas, atravessando o edifício como um periscópio, mostram a destruição de toda continuidade real entre a cidade histórica e as novas construções, o esgarçamento do tecido urbano aparentemente homogêneo. Enfatizando abruptas adjacências, revelam vínculos desfeitos e aproximações entre os lugares.

Incisões que permitem ir além do que pode ser visto, os estratos, as diferentes coisas atravessadas. Sondas que desvelam informações socialmente escondidas sob a superfície. Uma criação de “ruínas” que revelam outras camadas de significados arquitetônicos e antropológicos, socialmente encobertos. Evidenciam outras maneiras de conceber a propriedade, o público e o privado. A casa cortada ao meio aponta para as camadas de referências passadas inscritas nas edificações e, ao mesmo tempo, para as disjunções no funcionamento da cidade e da sociedade. Esses cortes evidenciam o poder do ausente, do vazio e da eliminação.

Matta-Clark iria adquirir lotes nessas áreas — expondo documentos de propriedade, fotos e mapas — para designar espaços que não poderiam ser vistos e certamente não seriam ocupados. Invisíveis não tanto porque inacessíveis, mas porque não têm nenhuma utilidade, logo que têm um valor só nominal. Indícios da incidência da entropia no meio urbano.

Essa dinâmica de configuração de áreas decaídas, em função de posteriores processos de desenvolvimento e revitalização, com a consequente expulsão dos habitantes tradicionais, foi retratada por Hans Haacke. Um levantamento das propriedades de determinado grupo revela a maior concentração de propriedade imobiliária no Harlem e no Lower East Side, em Manhattan, Nova York. Cruzando informações, Haacke revela as vendas e financiamentos feitos entre os indivíduos e corporações integrantes do sistema, de modo que ficassem ocultos seus principais proprietários. Ele identifica esse tipo de operação imobiliária e torna visível a complexa mecânica de uma lucrativa estratégia de investimento.[7]

Em geral, a arte pública tem servido a projetos de desenvolvimento urbano, contribuindo para desenhar física e funcionalmente os espaços corporativos e públicos. Haacke utiliza-se de procedimentos estéticos para cartografar um outro nível desse processo, invisível à observação imediata: a apropriação de largas parcelas do espaço urbano pelo setor imobiliário especulativo. Ele investiga a área concentrando-se na propriedade imobiliária como fator determinante na configuração da paisagem urbana, revelando o grau em que grandes interesses imobiliários dominam a cidade.

O processo de desativação do território urbano, acompanhado da periferização das áreas que ficaram à margem das vias de transporte, constitui vazios construídos, espaços de uso informal e indefinido: a zona.[8] Esses espaços intersticiais ampliam-se permanentemente, pela contaminação dos vizinhos. Um crescimento contínuo do indiferenciado. A zona é onde tudo pode acontecer: é onde se dão os processos informais.

Aqui o intervalo toma tudo, num movimento turbilhonário de ocupação do espaço. É como se o congelamento do espaço sob essa rigidez entrópica bloqueasse toda possibilidade de ele revestir qualquer configuração nítida. A cidade busca sem parar combater a proliferação entrópica, ao mesmo tempo que a engendra.

A cidade é basicamente um espaço demarcado, compartimentalizado por uma grade das vias de transporte e das funções. Mas a metrópole engendra seu oposto: vias expressas, desertos urbanos, ocupações temporárias, imensas favelas, áreas inteiras ocupadas pelo comércio de rua. Essas formas de espacialidade estendem-se infinitamente, sem pontos de referência. Aqui tudo se distribui num regime de relações de velocidade e lentidão entre elementos não constituídos, segundo composições em permanente variação. Elementos heterogêneos e díspares que formam conjuntos fluidos.[9]

Surgem configurações informes que escorrem e vazam, preenchendo todos os vazios existentes. O nômade — o sem-teto, o camelô, o favelado, o migrante — opera nesses espaços intersticiais secretados pela metrópole. O nômade ocupa o território pelo deslocamento, por trajetos que distribuem homens e coisas num espaço aberto e indefinido: os terrenos vagos, os vazios criados pela implantação de infra-estrutura, os espaços públicos abandonados, os vãos entre as edificações. Sua ação é ditada pelas necessidades de sobrevivência individual. O nômade instrumentaliza tudo o que está a seu alcance: o morador de rua usa a torneira do posto de gasolina, o camelô toma para si um trecho de calçada, o favelado ocupa áreas junto a autopistas e viadutos e faz ligações clandestinas de luz.

***

A estrutura urbana descontínua e variável das cidades torna problemático todo mapeamento. Como cartografar essa geometria de atividades econômicas em mutação, uso indefinido do solo, economia informal sempre se deslocando e bruscas mudanças populacionais? Uma configuração urbana em constante alteração devido a consecutivas operações de implantação de sistemas de transporte, em geral desarticulados. Profundas rupturas no tecido urbano e social, seguidas de ocupações improvisadas e auto-organizadas das áreas remanescentes, gerando um território difuso, desprovido de delimitações precisas entre os diferentes recortes e usos do espaço. Atividades e modos de ocupação que escapam aos dispositivos estruturantes dos novos grandes enclaves corporativos, engendrando configurações fluidas e mutantes.

O espaço demarcado por monumentos, radiais ou fronteiras implica visão de longe, distâncias invariáveis em relação a referenciais inertes, perspectiva central. Aqui se dá o contrário: estar muito próximo, não poder mais ver, ficar sem referências. Uma variação contínua de orientações, ligadas à observação em movimento. O espaço não é visual: não há horizonte, nem perspectiva, nem limite, contorno ou centro. Não há distância intermediária: estamos sempre em seu interior, no meio.

É a questão de uma frota naval: não se vai mais de ponto a outro, mas se toma todo o espaço de um ponto qualquer. Não se trata mais da travessia de um oceano ou continente, mas de um deslocamento sem destinação no espaço e no tempo. Ocupar um espaço aberto, com um movimento turbilhonário cujo efeito pode surgir de qualquer ponto. Perde importância a localização geográfica: trata-se de espalhar-se por turbulência no espaço, ocupando-o em todos os pontos.[10]

Outro tipo de percepção afirma-se aqui. A astronomia criou um padrão de localização para quem está num espaço sem referências: a observação das estrelas. Ela estabelece pontos fixos. Aqui, porém, o observador está sempre em deslocamento, sem referências estáveis. Não se percorre esse espaço como o marinheiro, com uma carta astronômica, mas como o nômade ou o submarino atômico: sem pontos fixos.

Ocorre uma perda das escalas fixas. Não se tem mais como medir os elementos a partir de seu lugar numa dimensão qualquer. As referências não têm um modelo visual, que possa servir a um observador imóvel externo. Temos agora múltiplas medidas relativas a igual número de observadores em deslocamento. Percursos contínuos e sem destinação em espaços não demarcados: tudo o que se tem são diferenciais de velocidade, retardamentos e acelerações. Sobreposição e deslocamento das escalas. Fazer outras conexões entre locais que parecem afastados e desligados uns dos outros.[11]

Impossível cartografar esse espaço desprovido de delimitações. Os limites traçados pelas regiões administrativas ou pelas vias de transporte não servem para contornar esses fluxos imperceptíveis, essas relações de proximidade e distância, que se fazem independentemente de toda métrica. São relações não-localizáveis. Territórios que se armam e se dissolvem por ajustes paulatinos e locais, diferenças que fazem variar uma mesma distância: dissolução das escalas que balizavam a percepção da metrópole. O território passa a ser a distância crítica entre as situações.

A questão das grandes dimensões poderia ser posta assim: em que mapa desenhar essas propagações, esses movimentos imprevisíveis?

Trata-se da relação entre o local e o global. Como passar de uma escala a outra? A exploração intensa de localidades singulares e vizinhanças delicadas, lugares particulares cujo afastamento garante a dimensão global do mapeamento. Por prolongamentos curtos ou mais longos, um fluxo que constrói o mundo lugar por lugar.[12]

As situações são sempre locais e pontuais. Impossível abarcar de outro modo extensões tão vastas, descomunais. Apenas pela justaposição, pelo desdobramento de uma coisa a outra, por linkagens paulatinas e progressivas, vai-se abarcando uma área mais extensa. Uma tessitura que liga lugares vizinhos e os distribui ao longe. Esses caminhos entrecruzados produzem um campo ampliado por expansões e prolongamentos imprevistos.

Como cartografar um mundo sem fronteiras, sem medida, sem limites? Trata-se de um atlas que vai sendo desenhado por esses entrelaçamentos, por conexões e inclusões contínuas. Espalhando-se para cada vez mais longe. As distâncias são substituídas por novas proximidades, redistribuídas segundo outras conexões. Proximidades que de modo algum mimetizam a realidade do terreno, mas que permitem novas passagens, outras interações.

As imagens de sobrevôo são ainda imediatamente espaciais, pressupõem um ponto de vista privilegiado, referências constantes. É preciso mapas que tragam tanto as alterações rápidas das coisas quanto as mais lentas e profundas, geológicas. Em vez de uma arquitetônica clássica, ligada aos sólidos, fixa, pesada, uma carta das passagens, capaz de compreender áreas em convulsão, em transformação contínua. Uma nova cartografia surge desse desdobramento, um novo espaço formado por essas inusitadas rearticulações.

A metrópole constitui um campo desmedidamente ampliado, para além de toda experiência individual. Nenhum aparato visual pode articular seus pontos. Não há nenhuma sequência possível, nenhuma continuidade do tecido urbano. Um espaço que nenhum gesto pode cerzir, que nenhum dispositivo técnico pode integrar.

Como confrontar essas extensões sem contornos nem limites? Trata-se da apreensão de dimensões que escapam por completo à experiência humana individual. A noção de “scanning” foi introduzida por Carl Andre e Robert Morris como um modo de ver em grande escala, enfatizando a horizontalidade e a distância. É um tipo de observação que, em vez de fixar-se num objeto, se faz percorrendo horizontalmente uma área. Se faz por varredura. A distância impõe-se para cada objeto, o horizonte valendo tanto quanto o centro.[13]

A varredura é também um modo de observação próprio do radar e dos satélites. Sistemas de ver possibilitados por equipamentos avançados de observação. Para grandes extensões, escalas transcontinentais, planetárias. A varredura é um dispositivo que não corresponde mais ao dispositivo ocular, à organização do espaço feita pelo olho. A visão periférica, lateral, horizontal, em vez do foco centrado num objeto, serve para enfrentar a grande escala.

Um modo de ver já exigido por configurações pré-históricas, como as linhas de Nazca. Essa trama de linhas traçadas numa planície desértica, pelo simples método de retirar pedras, feita há cerca de 10 mil anos, provoca impacto quando vista do alto, mas é quase invisível do chão. Aqui são as condições da percepção nessa escala que interessam a Morris. De perto, diz ele, as linhas simplesmente não se revelam. É só ao nos colocarmos numa linha, de modo que ela se estenda até o horizonte, que elas ganham alguma clareza.

Além disso, essa definição só ocorre a longa distância, quando o efeito da perspectiva comprime o alongamento e reforça os lados. É só olhando para a frente, em vez de para baixo, por causa da grande extensão das linhas, que as irregularidades desaparecem e o padrão retilíneo emerge. Isso se dá quando, posicionados numa linha, a vemos encontrar o horizonte perpendicularmente. Essas linhas instigam uma observação do espaço, não de objetos.

Uma vez que essas formas são tão grandes, praticamente incompreensíveis do solo, elas pressupõem uma overview. Contradição intrínseca à grande escala: pressupõe-se que a visão do observador seja panóptica, capaz de abarcar as formas abstratas ali delineadas, mas ao mesmo tempo os padrões criados só se podem revelar fragmentadamente. Daí o conceito essencial de mapeamento: fusão do real e do abstrato. O mapa introduz a ideia de uma “visão” que abrange o que nenhum ponto de vista pode abarcar. O mapeamento vem a ser a primeira imagem de uma paisagem que não pode ser apreendida diretamente pelo olho. Um modo de percepção não-ocular.

Os aparelhos óticos, diz Vinho, alteram radicalmente nossa percepção geográfica. Eles projetam a imagem de um mundo fora de nosso alcance. A aproximação do próximo e do longínquo abole nosso conhecimento das distâncias e das dimensões. A percepção completa da situação só se pode fazer por meio de instrumentos. Com a observação instrumental, ocorre uma passagem da visão à visualização. Estamos agora a uma distância incomensurável daquilo que pode ser dado pela experiência. Planos abstratos substituem o mapa topológico, a memória topográfica dá lugar a uma ótica geométrica.

A relação com essas escalas, que escapam à visão, exige outra abordagem. Morris vai sugerir um observador apreendendo em vez de vendo essas grandes configurações. Para ele, os grandes espaços relacionam-se com um modo de visão que propositadamente se afasta de leituras em termos de formas gestálticas, abrangentes. Esse modo de percepção busca parâmetros em que a totalidade se configura como resultado de um conjunto de informações, em que heterogeneidade e indeterminação são constitutivas, em vez de ser imediatamente percebida como uma imagem. Uma abordagem que já anuncia as formas mais contemporâneas de entender os processos de mapeamento, baseados na exploração intensiva e crítica de múltiplas informações.

Não por acaso esses artistas iriam, desde logo, dedicar-se à observação da paisagem industrial e de grandes obras de engenharia, como barragens e aeroportos. Essas estruturas, denotando uma escala imensa, enquanto modo radicalmente novo de organizar o terreno, levando em consideração grandes massas de terra e água, podem gerar inesperada informação estética. Daí esses grandes projetos interessarem, pela possibilidade de extrair desses sítios associações que permanecem invisíveis na semântica convencional do espaço. Uma abordagem que — ao trazer novos parâmetros de distância e duração — corresponde à experiência da metrópole.

Toda a obra de Robert Smithson gira em torno da percepção de reordenamentos intensivos da paisagem. Ele desenvolveu um projeto artístico para um terminal aéreo, então em construção. Para ele, o desenvolvimento de um sítio aeroporto propõe novos problemas de escala. A questão reside na relação entre o terminal e o avião: na medida em que este sobe a maiores altitudes e velocidades, o sentido daquele como objeto muda. Um novo significado baseado no tempo instantâneo, resultando numa imobilização do espaço, mais evidente ainda nas extremas altitudes dos satélites. O relevo do espaço é substituído por uma estrutura cristalina do tempo.

Os mapas de reconhecimento aéreo, feitos a partir de coordenadas do terreno, assemelham-se a grades de linhas. Pontos, linhas e áreas que estabelecem uma sintaxe dos sítios. Para Smithson, os aterros, escavações, estradas e pátios têm potencial estético. Levantamentos topográficos e edificações preliminares podem ser entendidos como um conjunto de obras de arte que desaparecem ao longo do processo. Um novo modo de ordenar o terreno, um tipo radical de construção que abarca grandes extensões de terra e água. Uma abordagem que implica uma escala imensa.

A arte instalada ao redor de um aeroporto deve nos tornar conscientes dessa nova paisagem abstrata, cujas linhas (pistas) transcendem nossas concepções da natureza. Aerofotogrametrias e transporte aéreo, com suas drásticas mudanças de escala, revelam a superfície desse universo mutante de perspectivas e ilusões óticas. Aqui, simplesmente observar no plano do olho não é solução. O mapa aéreo revela quão pouco há para ver. A arte aérea, com foco no espaço não-visual, delineia uma estética baseada no aeroporto como ideia, um ponto imperceptível na imensidão.

O engajamento com a totalidade da área dessas estruturas leva à substituição da paisagem realista por uma nova paisagem abstrata. Uma noção não-objetiva de lugar: como um diagrama. A paisagem passa a parecer um mapa tridimensional: as drásticas mudanças de escala tornam abstrato o mundo. Uma arte remota aos olhos do espectador, como vista por telescópio. Baseada em espaço e tempo não-visuais. A visão em movimento é substituída pela trama esquemática dos programas de observação geodésica. A escala aqui é a da Terra.

Smithson desenvolveu, paralelamente a suas explorações e intervenções em grandes áreas industriais ou desérticas, o dispositivo do não-lugar (nonsites). Esses sítios trazem, por causa de sua inacessibilidade geográfica, de suas escalas, a questão da sua apreensão pelo público. Como dar a ver essas situações complexas e distantes? Daí a realização de exposições em galerias com materiais relativos aos lugares. Mas a relação entre o lugar e o não-lugar nunca será um mero registro, uma representação do que existe no local. O não-lugar é uma espécie de mapa que aponta para um lugar específico, mas um mapa feito de fragmentos (material recolhido, desenhos, cartografia, fotos, filmes, textos) que não pretendem reconstituir sua configuração nem as intervenções ali realizadas.

O não-lugar implica não ver. Ele nega a primazia da percepção. Promove um deslocamento do ponto focal, questionando a possibilidade de mapear. Refuta tanto a localização quanto a visão. Uma reflexão sobre o modo pelo qual concebemos o espaço, que resultaria em mapas tridimensionais abstratos e combinações complexas de materiais, textos e imagens. O não-lugar indica a ilocalizabilidade do lugar.

O não-lugar é um modo de mapear. Inserir a arte no contexto mais amplo da cartografia é um tipo de deslocamento espacial. As obras são situadas numa trama de estruturas de mapeamento cujo conteúdo informativo varia do vazio ao mais denso possível e do convencional ao mais especulativo.[14] Assim, todo reconhecimento de sítios deve ser entendido como reinscrições de mapas, mais do que experiências das quais os mapas seriam apenas instrumentos.

Ininteligível se vista de perto, a situação em grande escala só é completamente intuída a distância, em geral obtida pela introdução de um texto entre o observador e a obra. Não há um objeto primário, ao qual as fotografias e o texto se refeririam. Eles se articulam como uma só coisa. Smithson opera um radical deslocamento da noção de ponto de vista, que não é mais uma função de uma posição fisíca, mas de um modo (fotográfico, cinemático, textual) de confronto com a obra.[15]

Essas situações são paisagens abertas, em que múltiplos e contraditórios pontos de vista revelam um conflito de ângulos e ordens, um senso de simultaneidade que elimina todo quadro ou referência previsto. Uma área surda é uma região onde toda lógica foi suspensa. Aqui não vigoram relações comensuráveis. As paisagens indiferenciadas da entropia demandam evitar qualquer parâmetro visual ou estrutural de orientação espacial ou temporal.[16]

A fotografia aqui interessa não apenas por sua capacidade documental, mas principalmente por seu potencial de colagem, montagem e disposição sequencial. Uma exploração mais radical: em vez de simplesmente fotografar as paisagens do exterior, Smithson coloca-se dentro delas, retratando-as do interior, olhando através delas para outras áreas e focalizando seus elementos em detalhes. Planos abertos, médios ou em close, para baixo ou para cima, mostrando a paisagem nos menores detalhes ou as mais incomensuráveis perspectivas.

As fotografias aéreas mostram paisagens terrestres alteradas, não identificáveis sem horizonte nem profundidade, sem buracos nem saliências, achatadas, geometrizadas, metamorfoseadas em texturas, em configurações formais a serem interpretadas.[17] A visão aérea define um modo distinto de percepção do espaço, que não depende mais da posição ortogonal do observador. A vista aérea não está presa a uma estruturação fixa. Ela literalmente não tem sentido: é possível olhá-la de todos os lados, ela é sempre coerente.

A fotografia aérea levanta a questão da interpretação. Aqui já se anunciam estratégias de utilização do mapeamento por sensoriamento remoto e combinação de dados. Vistas de muito alto, as dimensões esculturais do espaço são tornadas muito ambíguas: a diferença entre ocos e saliências, convexo e côncavo, apaga-se. Eles transformam o real num texto a ser lido e decifrado.[18]

Para Smithson os vôos a baixa altitude eram mais adequados para esse tipo de exploração da paisagem, visto que fotografias a grandes altitudes só mostram quão pouco há para ver. Estas fotos tornam-se um mapa de longitudes emaranhadas e deslocadas latitudes. Distâncias são medidas em graus de desordem. Tornam-se cartas marinhas, que não começam em lugar nenhum e não têm direções. Uma paisagem que, no limite, desafia qualquer visualização.

***

O que está em jogo aqui são os limites da figuração, a incapacidade da mente humana para representar as enormes forças da natureza e da metrópole. Uma organização da produção e do espaço, uma rede de poder e controle, que ainda são de difícil compreensão por nossa imaginação. Não temos ainda o equipamento perceptivo necessário para enfrentar essas novas dimensões espaciais.

Esses espaços desconcertantes tornam impossível o uso da antiga linguagem dos volumes, já que não podem ser apreendidos. Essa mutação do espaço ultrapassou a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição no mundo exterior. Uma situação em que uma nova experiência da tecnologia da cidade transcende a todos os velhos hábitos de percepção corporal, que as descrições de Walter Benjamim da Paris baudelairiana só anunciam. Uma disjunção entre o corpo e o ambiente urbano que indica nossa incapacidade de compreender os processos complexos de reestruturação da metrópole contemporânea, de mapear a enorme rede global de produção e comunicação descentrada em que estamos presos como indivíduos.

Todas as tentativas de mapear a cidade a partir da experiência da rua — a deriva benjaminiana ou os planos afetivos dos situacionistas — implicavam a expectativa de uma renovação da percepção. Mas, no universo totalmente construído e elaborado do capitalismo tardio, não há lugar para essa renovação.[19] Se na cidade tradicional, do mercado, a experiência limitada e imediata dos indivíduos era ainda capaz de abranger a forma social e econômica que a regula, hoje isso não ocorre mais.

A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada à imagina-bilidade, à capacidade de evocar uma imagem forte no observador.

Pressupunha referências visuais, um domínio sensorial do espaço, por meio da experiência e da observação ocular.[20] Mas a configuração atual impede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não permitem mais que as pessoas tenham, em sua imaginação, uma localização correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano. A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem conceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência, pressuposto das intervenções artísticas que visavam um reordenamento do espaço urbano e de sua apreensão pelo observador passante.

Hoje existem sujeitos individuais inseridos em um conjunto multidimensional de realidades radicalmente descontínuas. Um espaço abstrato, homogêneo e fragmentário. O espaço urbano perdeu situabilidade — uma inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência individual.

Instaura-se um problema de incomensurabilidade entre o construído e o projeto, o edificado e o entorno, os diferentes espaços da cidade. Aquilo de que a imagem fotográfica, por mais abrangente que seja, não dá conta. O espaço hoje é sobrecarregado por dimensões mais abstra­tas. O problema de mapeamento, de posicionamento do indivíduo nesse sistema global complexo, é também de representabilidade: embora afetados no cotidiano pelos espaços das corporações, não temos como modelá-los mentalmente, ainda que de forma abstrata. Ocorre uma ruptura radical entre a experiência cotidiana e esses modelos de espaços abstratos.

As novas grandes escalas demandariam, então, um mapeamento cognitivo que, com seu próprio fracasso representacional, evidencie os limites da cartografia, dos dispositivos tradicionais de localização. Uma abordagem genealógica que mostre como o mapeamento deixou de ser acessível por meio dos próprios mapas.[21] Elas requerem um jogo entre a presença e a ausência, a fim de transmitir algo do senso de que essas novas e enormes realidades globais são inacessíveis a qualquer sujeito individual. Realidades fundamentais irrepresentáveis, que não podem surgir diante da percepção.

As periódicas transformações nos parâmetros da experiência e da percepção do espaço e do tempo, comprimidos pelo desenvolvimento da técnica e dos meios de transporte e comunicações, engendram reavaliações nos modos de representar o mundo. As críticas ao mapa como instrumento totalizante, dedicado à homogeneização das diferenças, surgem quando se torna evidente a falta de meios para representar as mudanças de dimensões do espaço-tempo.[22]

Ocorrem então reafirmações da identidade do lugar, em contraposição ao caráter abstrato do espaço. Na impossibilidade de apreender as novas e amplas configurações espaciais, recorre-se a uma estetização do particular. O revival da estética do lugar é típico do impacto da reestruturação flexível contemporânea sobre a espacialidade metropolitana. A tendência é desvincular o espaço urbano, tornado autônomo, das funções, incorporando estratégias estéticas independentes de qualquer determinação. Impõe-se então uma retórica da imagem, das formas de apreensão diretamente vinculadas à experiência e à observação individuais, mas mediadas por um aparato publicitário que tende a tudo converter em cenografia e simulacro. Haveria alguma alternativa a esta política da espacialidade estetizada?

As novas dimensões do mundo globalizado exigem uma nova cartografia: das dinâmicas, dos fluxos, das reconfigurações permanentes e variáveis. As perspectivas aéreas redefiniram a cultura visual, com sua ambição a uma retórica universal, mas guardavam uma proximidade aos mapas: obedeciam às determinações do espaço legível. Espaços-tempos não-visuais, ao contrário, evidenciam os limites do mapeamento convencional. Trazem novos procedimentos que levem em consideração a complexidade e a indeterminação do espaço urbano, que potencializem as conexões geradoras de novos acontecimentos e configurações.

***

A questão que se põe é que princípios estabelecer para detectar o surgimento dessas novas condições urbanas. Para reconhecer as novas formas de ocupação do espaço urbano, largamente informais, e as práticas engendradas por seus agentes econômicos e sociais. E chegar a um procedimento que questione as regulações urbanas existentes e revele as configurações dinâmicas ocultas pelo planejamento e pelos grandes projetos de desenvolvimento urbano.

Trata-se de apreender essa nova dimensão informal: conceber matérias e funções puras, abstraindo as formas em que se encarnam. Um dispositivo abstrato que se define por funções e matérias informais, ignorando toda distinção de forma. Um conjunto operatório de linhas e zonas, de traços e manchas a-significantes e não representativos. Que opera desfazendo realidades e significações dadas, constituindo conjunturas inesperadas e contínuos improváveis.

Uma exposição das relações de forças próprias de uma configuração, do poder de afetar e de ser afetado. As sociedades são uma rede de alianças, irredutíveis a uma estrutura. As alianças tecem uma rede frouxa e transversal, formando sistemas instáveis, em perpétuo desequilíbrio.[23]

Noção de campo, em vez de forma. Ao contrário da estrutura, que se define por um conjunto de posições, o campo é feito só de vetores. Procede por variação, expansão, conquista. A questão não é de organização, mas de composição. Um mundo percorrido por elementos informais de velocidade relativa, parcelas infinitas de uma matéria impalpável que entram em conexões variáveis. Espaço amorfo, informal, ocupado mais por acontecimentos do que por formas.[24]

Paralelamente aos projetos de desenvolvimento urbano, rigidamente estruturados, surgem territórios informes onde novas configurações espaciais e sociais ocorrem. Intervalos ocupados por elementos mutantes e nômades, capazes de engendrar novas relações e acontecimentos imprevisíveis, que escapam por completo ao plano e à estruturação.

Interstícios que reconfiguram permanentemente a trama urbana. Cada dispositivo informal — a ocupação de uma área por sem-tetos, camelôs, favelas ou cortiços, o surgimento de núcleos de atividades imprevistas, apropriando-se do construído e da infra-estrutura — vai redesenhando a região ao se ajustar por acumulação com outras partes locais, uma justaposição que compõe um espaço heterogêneo em variação contínua.

É preciso um repertório urbanístico que se possa usar para explorar as consequências da emergência dessas novas configurações. Abordagens voltadas para o processo: transgredir os limites ditados pela ocupação estruturada e o zoneamento, para tomar o urbano em termos de padrões de interação no interior de territórios permeáveis e abertos. Libertar a cidade das estruturas rígidas e tomá-la como uma rede dinâmica de relações.[25]

Adotar instrumentos de recombinação que configurem espaços não hierarquizados e heterogêneos. Engendrar influências e afiliações mutantes e contingentes que resistam a alinhamentos estáveis. Vastos espaços residuais que possam ser ativados por inovação programática, efeitos tecnológicos e eventos.[26] Estratégias que provoquem processos em grande medida imprevisíveis, sobre os quais não se pode intervir diretamente.

Será o urbanismo capaz de inventar e implementar na escala requerida pelo desenvolvimento demográfico e espacial das cidades? A urbanização pervasiva modificou a condição urbana para além de todo reconhecimento. Um novo urbanismo é requerido aqui, capaz de expandir noções, negar fronteiras, descobrindo incontáveis composições. Manipular a infra-estrutura para permanentes intensificações e diversificações, irrigando territórios com potencial. Gerar uma massa crítica de renovação urbana.[27]

A megaescala possibilita hibridizações programáticas, proximidades, fricções e sobreposições. Só essa escala pode sustentar uma grande proliferação de eventos numa só área, permitir o inesperado. Uma visão em que a cidade se coloque mais como um padrão de eventos do que uma composição de objetos.

Como abordar as mutações extraordinárias e sem precedentes que ocorrem nas metrópoles contemporâneas? Como apreender essas novas condições urbanas no momento mesmo em que estão emergindo? É preciso desenvolver novos modos de observação e atuação a partir de situações de instabilidade, de paisagens dinâmicas ocupadas por múltiplos processos e agentes. Uma crítica à falácia central do urbanismo: a de que a cidade se expressa em sua forma física, em objetos. A cidade é antes um campo de forças em movimento e organização contínua.

Novos fenômenos urbanos criam espacialidades heterogêneas, de usos variados. Atividades econômicas e modos de ocupação do espaço informais, aparentemente desregrados, mas que operam segundo outra lógica, largamente baseada na auto-organização. Sistemas infra-estruturais são ocupados para novos usos, móveis em vez de estáveis, alterando a natureza do espaço público.

Processos altamente instáveis criam zonas habitadas por forças moventes. Situações que ilustram a eficiência em larga escala de sistemas e agentes considerados marginais e informais. A relação entre mutação territorial e auto-organização, num panorama em que inovação e mudança derivam de processos não planejados ou regulados.[28]

Um mapeamento da informidade, da dinâmica e das intensidades de grandes territórios.

Notas

[1] Saskia Sassen, The Global City (Princeton: Princeton University Press, 1991).

[2] Saskia Sassen, Globalization and Its Discontents (Nova York: The New Press, 1998).

[3] Edward W. Soja, Postmodern Geographies (Londres: New Left Books, 1990).

[4] Manuel Castells, A sociedade em rede (São Paulo: Paz e Terra, 1999).

[5] I. Solá-Morales, “Terrain Vague”, em Anyplace (Cambridge: MIT, 1995).

[6] Robert Smithson, A Tour of the Monuments of Passaic, New Jersey, em N. Holt (org.), The Witings of Robert Smithson (Nova York: New York University Press, 1979).

[7] Rosalyn Deutshe, Evictions: Art and Spatial Politics (Cambridge: MIT, 1996); Hans Haacke et al., Manhattan Real Estate Holdings: a Real-Time System, as of May 1, 1971, 1971.

[8] Rosalind Krauss & Yves-Alain Bois, Formless (Cambridge: MIT, 1997).

[9] Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mille plateaux (Paris: Minuit, 1980).

[10] Paul Virilio, L’espace critique (Paris: Christian Bourgois, 1984).

[11] Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mille plateaux, cit.

[12] Michel Serres, Atlas (Paris: Julliard, 1994).

[13] Robert Morris, Continuous Project Altered Daily (Cambridge: MIT, 1995).

[14] G. Shapiro, Earthwards (Berkeley: University of California Press, 1995).

[15] C. Owens, Beyond Recognition (Berkeley: University of California Press, 1992).

[16] R. Sobieszek, “Robert Smithson: Photo Works”, em Robert Smithson: Photo Works (Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art, 1993).

[17] Philippe Dubois, L’act photographique et autres essais (Paris: Nathan, 1990).

[18] Rosalind Krauss, Le photographique (Paris: Macula, 1990).

[19] Fredric Jameson, Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism (Nova York: Duke University Press, 1991).

[20] Kevin Lynch, The Image of the City (Cambridge: MIT, 1960).

[21] Fredric Jameson, Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism, cit.

[22] David Harvey, The Condition of Postmodernity (Cambridge: Blackwell, 1990).

[23] Gilles Deleuze, Foucault (Paris: Minuit, 1986).

[24] Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mille plateaux, cit.

[25] U. Königs, “On Grafting, Cloning, and Swallowing Pills”, em Daidalos, nº 72, Berlim, 1999; P Versteegh, “Urban Mapping”, em Fields (Amsterdã: The Berlage Institute, 1997).

[26] J. Kipnis, “Towards a New Architecture”, em Folding in Architecture (Londres: AD, 1993).

[27] Rem Koolhaas, S,M,L,XL (Roterdã: 010 Publishers, 1995).

[28] Rem Koolhaa.s et al, Mutations (Bordeaux: Actar/Arc en Rêve, 2000)

    Tags

  • administração pública
  • arte pública
  • Carl Andre
  • cartografia
  • cidade
  • comunicação
  • desenvolvimento urbano
  • desindustrialização
  • dimensões espaciais
  • distância
  • economia globalizada
  • espacialidade metropolitana
  • espaço
  • espaço urbano
  • estetização do particular
  • estrutura urbana
  • exterior
  • fotografia
  • geografia
  • geografia urbana
  • globalização
  • Gordon Matta-Clark
  • Hans Haacke
  • horizontalidade
  • identidade do lugar
  • interdepedência tranasnacional
  • interior
  • mapa
  • mapa aéreo
  • mapeamento
  • megacidades
  • mercado global
  • mercado imobiliário
  • mobilidade do capital
  • não-lugar
  • non-sites
  • ocupação urbana
  • ótica geométrica
  • overview
  • paisagem abstrata
  • paisagem urbana
  • perspectiva
  • perspectiva central
  • proximidade
  • representação
  • Robert Smithson
  • scanning
  • simulacro
  • simultaneidade
  • tecnologia da cidade
  • tempo
  • terreno-vago
  • território
  • urbanismo
  • visualização