2009

Justiça, estranha virtude…

por Francis Wolff

Resumo

Poderíamos classificar as virtudes em duas categorias. Aquelas mediante as quais buscamos o nosso próprio bem e as que só visam ao bem dos outros. Dentre as primeiras, constariam a temperança, a força, a prudência, a honra, a esperança, etc. O universo das segundas incluiria a generosidade, a caridade, a devoção, a liberalidade etc. Mas a justiça é uma virtude estranha. Ela não parece ajustar-se a nenhuma das duas categorias. O homem justo não visa a seu próprio bem nem tampouco ao dos outros, já que ele se considera como um outro e trata todos como a si próprio. Quem é justo em seus julgamentos julga de modo imparcial, sem favorecer qualquer das partes ou a ele mesmo, sem prejudicar ninguém, nem a ele mesmo. O indivíduo que é justo em uma partilha de bens não toma mais do que a parte que lhe cabe, deixando para cada um dos demais um quinhão igual: novamente, ele se considera igual aos outros, nem mais nem menos. Enquanto o homem generoso ou o caridoso pode tudo dar, até a própria camisa, o homem justo dá a cada um o que lhe cabe, sem egoísmo, sem altruísmo. Trata-se de uma virtude «cega» diante daquele a quem ela se destina. Daí o paradoxo : a justiça é, em um certo sentido, plenamente voltada para o outro, é atenta aos outros, mas é totalmente cega diante do outro, diante de sua singularidade, de sua pessoa.

Mas a justiça tem outra particularidade que a torna uma virtude decididamente diferente de todas as outras. Não mais em relação aos seus fins e sim ao seu princípio. É sem dúvida a única virtude moral na qual as emoções, as índoles e os sentimentos não desempenham nenhum papel — e nem devem fazê-lo, sob hipótese alguma. Quem se deixa levar por suas emoções, mesmo que benévolas, por seu temperamento, mesmo que bem-intencionado, por seus sentimentos, mesmo que afetuosos, cessa de ser justo. Pode ser caridoso, generoso, pródigo, magnânimo, etc., mas justo, não. Em outras palavras, é uma virtude que, embora moral e não intelectual (como a sabedoria, a prudência, a inteligência, a lucidez, etc.), deve situar-se inteiramente sob o domínio da razão. Se a justiça é uma virtude, é não apenas uma virtude cega, mas também uma virtude « fria ». E é a única. Logo, o segundo paradoxo : ela é, em um certo sentido, a mais social das virtudes e é também a mais intelectual.

É a dupla razão que explica porque a justiça é a única virtude que é menos personificada em seres concretos (mesmo se, às vezes, surge algum « Salomão ») do que em símbolos (a balança), em instituições (a Justiça, o Tribunal) ou em fórmulas. A fórmula da justiça é : «a cada qual o que é seu» (suum cuique tribuere, como diziam os romanos). Mas todo o problema é saber o que deve ser de cada um. Consideremos um bolo a ser dividido entre dez pessoas. Como proceder? «dez partes iguais, diz o Justo, pois a cada qual um quinhão igual». Mas ergue-se uma voz : «Seria injusto ! Deve-se dar mais aos melhores e menos aos piores, pois a cada qual segundo seus méritos». Mas uma outra voz se faz ouvir : «Seria injusto! Devemos dar mais não aos que são melhores, pois como poderíamos mensurar tal fato, e sim aos que mais trabalharam e se esforçaram em prol do grupo, pois a cada qual segundo suas obras». Uma outra voz, porém, ainda brada: «Seria injusto ! Devemos dar mais bolo aos que têm mais fome, pois a verdadeira justiça significa a cada qual segundo suas necessidades». Como decidir entre essas diferentes aplicações da mesma fórmula?

Para tentar responder a esta pergunta, pode-se comparar três modelos que ilustram as estranhezas da justiça, a mais coletiva das virtudes individuais, a mais racional das virtudes desinteressadas, a mais simples de definir em termos gerais e a mais difícil de ser determinada nos casos particulares, a mais cobiçada das virtudes e a menos virtuosa — já que é cega, surda e muda: o modelo aristotélico, para o qual a justiça deve ser a aplicação rigorosa de modelos matemáticos; o modelo platônico, em que a justiça constitui uma relação harmoniosa entre os homens, pressupondo uma relação harmoniosa consigo mesmo; e o modelo rawlsiano, segundo o qual a sociedade justa é aquela onde desejaríamos viver sem saber a priori que poderíamos estar ali.


Ser virtuoso, na linguagem corrente, é saber conter e limitar seus desejos, é ser convenientemente “ascético”: não fumar, não beber álcool, só comer o que é necessário para manter-se vivo, só fazer amor para manter a vida da espécie, em suma, manter o desejo nos limites da necessidade. A virtude por excelência seria a continência, para não dizer a castidade. Em francês, uma “dame de petite vertu” [dama de pouca virtude] é uma prostituta; um homem de grande virtude é um abstinente.

Esse uso que restringe a virtude humana a essa virtude particular, a continência, é estranho, para não dizer perverso, pois pareceria indicar que a virtude consiste em lutar contra a própria natureza. Ora, não é esse, de modo algum, o sentido geral do termo “virtude”: as virtudes de uma planta são, ao contrário, suas qualidades naturais, das quais ela tira seus poderes benéficos; no mesmo sentido, Platão observava que a virtude de uma faca é ser cortante, a virtude da terra é sua fertilidade;[1] em outras palavras, a virtude de uma coisa qualquer ou, melhor dizendo, sua “excelência”, não é aquilo que refreia sua natureza, mas sim o que lhe permite realizá-la e, assim, exercer do modo mais perfeito possível sua função. A virtude de um homem deveria, pois, ser o que lhe permite, do melhor modo, ser o que ele é e realizar da maneira mais excelente o bem do homem.[2] Encontramos esse sentido original tão logo falamos das virtudes humanas no plural. As virtudes de um homem ou de uma mulher, o que louvamos ou admiramos nele ou nela, são simplesmente suas qualidades morais ou intelectuais. Assim considerada, a virtude não é de forma alguma aquilo que, do exterior de nossa natureza, vem constrangê-la — como uma prescrição imposta e dolorosa —, mas, ao contrário, aquilo que, do interior de nossa natureza, vem regulá-la, a fim de que sejamos ao máximo “nós mesmos”. Longe de se opor ao nosso bem, ela seria, ao contrário, a condição dele. Pelo menos era esse o ponto de vista da maioria dos filósofos da Antiguidade, como Platão, Aristóteles ou os estoicos. Mas, então, o que se dá com a justiça, virtude tão estranha e inclassificável?

A justiça, virtude inclassificável

Se admitimos que as virtudes de um homem são as qualidades que o tornam “bom” — que o fazem ser “mais homem” e melhor homem que os outros —, a questão que se coloca imediatamente é a seguinte: “bom” talvez — mas para quem? A resposta a essa pergunta geral parece, de fato, permitir uma primeira divisão de todas as virtudes entre aquelas pelas quais um homem visa a seu próprio bem e aquelas que visam somente ao bem dos outros. Nas primeiras, incluiríamos, por exemplo, a temperança (esta virtude que nos permite regular nossas vontades e nossos desejos imediatos em função de nosso interesse superior), a força (sobretudo a força moral, que nos dá firmeza, constância e determinação em nossas resoluções), a prudência (pela qual nossa vida obedece a normas racionais), a honra (que é o valor que atribuímos à imagem que damos de nós mesmos), a esperança (que nos permite atravessar os momentos ruins de nossa vida com os olhos fixos num futuro melhor), e muitas outras do mesmo gênero. Sem essas virtudes, seríamos menos bons, no sentido de que nossa própria vida seria menos boa. Vamos chamá-las, por convenção, de virtudes “egocentradas” (o que não quer dizer egoístas, pois o egoísmo, ao contrário, é um vício). Existem, porém, outras virtudes, por exemplo, a generosidade, a caridade, o devotamento, a liberalidade… Louvamos o generoso, o caridoso, o devotado, não pelo bem que eles fazem a si mesmos, mas pelo bem que fazem aos outros. Sem tais virtudes eles seriam menos “bons”, mas não porque elas tornam sua vida melhor, mas porque permitem tornar melhor a vida dos outros — e frequentemente em detrimento de seu próprio bem: quanto mais um homem é generoso, mais ele dá aos outros o seu tempo ou os seus bens, menos ele se dedica a si mesmo. Quanto mais damos de nós mesmos, menos resta para nós mesmos. (Alguém objetará, talvez, que o generoso, o caridoso, o devotado experimentam uma satisfação, e talvez até uma alegria, em fazer assim o bem aos outros; ser bom, portanto, não traz o bem somente aos outros, mas à pessoa mesma. Pode ser, mas essas satisfações são eventuais consequências psicológicas da virtude, não é a virtude mesma, não é seu sentido, não é, em todo caso, sua finalidade.) Podemos, portanto, opor às virtudes que, por definição, visam a tornar nossa vida melhor, aquelas que têm por finalidade intrínseca tornar melhor a vida dos outros, e que podemos qualificar de “alocentradas”.

À primeira vista, é nessa segunda categoria que parece necessário enquadrar a justiça. Com efeito, aquele que é justo não busca tirar vantagem para si mesmo: em um julgamento, não se superestima; numa partilha, não tenta obter mais do que sua parte; e em suas ações comuns, como em suas escolhas, não cria prejuízos para os outros, tentando fazer valer seu próprio interesse. Por isso, muitos filósofos na Antiguidade definiam a justiça como um “bem estrangeiro” (ela cumpre o bem do outro).[3]

Mas será realmente o caso? O fato é que Platão, em sua obra consagrada à justiça (a República), tem como principal objetivo refutar tal tese. Sem dúvida, um homem justo não cria prejuízos para os outros,[4] mas a definição da virtude de justiça não pode limitar-se a essa descrição exterior da conduta: ela deve buscar-lhe a razão e remontar a seu fundamento na alma do homem justo. Ora, segundo Platão, existem três componentes em nossa alma que estão na origem de todas as nossas atitudes, pensamentos e condutas.[5] A parte desejante, sobretudo os desejos de reprodução do corpo (alimentação, sexualidade) graças à qual nos mantemos vivos, como indivíduo e como espécie. A parte emotiva, sede da cólera, que comanda todas as reações às agressões do exterior; sem emoção, não poderíamos viver muito tempo, ficaríamos submetidos passivamente às vicissitudes da existência. A parte intelectual, enfim, é a sede do pensamento racional, do raciocínio e do conhecimento verdadeiro das coisas: sem ela, nossa vida se assemelharia à dos bichos, ao passo que podemos prever, calcular, medir objetivamente o que é bom e o que não o é. Mas, apesar de seus três componentes, a alma é una. Cada um deles é indispensável ao conjunto, desde que se contente em exercer sua função própria e respeitar a hierarquia natural que quer que o intelecto comande, pois é o único capaz de prever, de compreender os interesses superiores do conjunto da alma por inteiro, e que comande em particular a parte inferior, o desejo, que, por definição, está sempre insatisfeito. Para tanto, o intelecto deve se servir da força da parte emotiva para manter o desejo dentro de seus limites. Quando cada um desempenha seu papel, obedecendo à hierarquia geral e em vista do bem da totalidade da alma, esta funciona perfeitamente. Ela, em particular, possui as quatro virtudes, que são a prudência (virtude própria à parte intelectual, quando exerce corretamente sua função e comanda), a coragem (virtude própria à parte emotiva, quando obedece ao intelecto para conter as agressões externas ou as exigências internas do desejo), a temperança (virtude da alma por inteiro, quando o intelecto consegue refrear o desejo graças à força da emoção) — e, enfim, a justiça, ela também virtude da alma inteira, que procede desse equilíbrio perfeito entre as três partes.[6] A justiça, portanto, nada mais é do que a resultante das três virtudes egocentradas, que são a prudência, a coragem e a temperança. Como corolário, nenhum homem que tenha a alma perfeitamente equilibrada, na qual o desejo irracional é controlado pela emoção comandada pela razão, nenhum homem temperante, corajoso, prudente poderá cometer injustiças; não sentirá nenhum desejo ou necessidade disso. A virtude de justiça é, pois, mal definida, segundo Platão, pelas condutas que são apenas sua manifestação externa e ocasional: ela deve ser definida pelo permanente estado de alma do homem justo, alma equilibrada, na qual todas as partes funcionam à perfeição, conformando-se à hierarquia natural. A justiça é ainda mais mal definida como um “bem estrangeiro” porque, ao contrário, ela é o bem da própria alma — e, assim, uma virtude egocentrada, como é a saúde para o corpo. Um corpo em boa saúde é equilibrado; todas as suas partes, seus diferentes órgãos, seus diferentes membros, seus diferentes sentidos exercem corretamente suas funções e com vistas ao maior bem do conjunto do organismo. De igual modo, uma alma em boa saúde é equilibrada; todas as suas partes funcionam com vistas ao bem do todo.[7] A verdadeira definição da justiça é o perfeito equilíbrio da alma.

A virtude de justiça é, portanto, uma virtude egocentrada, como a coragem e a prudência (como quer Platão), ou uma virtude alocentrada, como a generosidade ou a caridade (como quer Aristóteles)? Ela visa ao bem daquele que a possui ou ao bem dos outros?

De fato, a justiça parece não entrar em nenhuma das duas categorias. Se a justiça fosse egocentrada, o homem justo não procuraria, numa partilha, ter a justa parte que cabe a cada um: ele julgaria com prudência, com temperança, com coragem qual é a parte que lhe cabe — sem se preocupar com a dos outros. Se a justiça fosse alocentrada, o homem justo procuraria, numa partilha, atribuir a todos os demais a parte que lhes cabe — sem se preocupar consigo mesmo. Aliás, é isso que faz o homem caridoso: a caridade consiste em poder dar aos outros cegamente, não em compartilhar equitativamente. O homem justo não visa nem a seu próprio bem nem ao dos outros, já que ele mesmo se considera igual aos outros, e trata cada outro como trata a si mesmo.[8] Aquele que é justo em seus julgamentos julga de maneira imparcial, sem favorecer quem quer que seja, nem a si mesmo, sem desfavorecer ninguém, nem sequer a si mesmo. De igual modo, numa partilha de bens, ele não toma mais do que a parte que lhe cabe: ele se considera igual aos outros, nem mais nem menos. Enquanto o homem generoso ou o homem caridoso podem dar tudo, até mesmo sua camisa, o homem justo age sem egoísmo mas também sem altruísmo. Por isso é que a justiça não entra em nenhuma das duas categorias: o homem justo não busca nem o seu bem, na medida em que é o seu, nem o bem dos outros, na medida em que é o dos outros. Pode-se entrever o bem que ele visa: é o da comunidade de que faz parte,[9] enquanto tal.

Dessa visão intrínseca da justiça, podemos tirar um segundo indício, que nos fornece um segundo paradoxo da justiça, uma segunda característica que a torna inclassificável. A deusa grega da justiça é Têmis. Frequentemente é representada como uma mulher de olhos vendados, segurando uma balança. A balança é um símbolo evidente: uma pessoa justa, por exemplo, um árbitro entre as partes, deve pesar os argumentos e as reivindicações de uns e de outros, sem favorecer ninguém e tornando o julgamento o mais equitativo, isto é, equilibrado entre os dois pratos da balança; é também, por exemplo, o juiz penal, até mesmo o Juiz supremo, o bom Deus, que, no juízo final, segundo as representações populares, pesa os bens e os males, as boas e as más ações cum­pridas por cada homem em sua vida, e atribui a cada um, para o outro mundo, a quantidade exata, isto é, proporcional, de recompensa (ou seja, bens) aos que agiram bem, e a quantidade exata — proporcional — de castigo (ou seja, males) aos que agiram mal. Um juiz justo é o contrário de um justo parcial; um Deus justo é o contrário de um Deus vingativo. O símbolo dos olhos vendados de Têmis também se explica facilmente: segundo o adágio familiar, que remonta à Idade Média, “a justiça não faz acepção de pessoa”, ou seja, ela não considera a condição daquele que cometeu a falta, por exemplo, se é rico ou pobre, se é um homem poderoso ou um miserável, um homem influente ou modesto.[10] Ela os trata a todos de maneira igual, considerando somente o que eles fizeram, eventualmente também por que o fizeram, sem considerar quem eles são. Daí o segundo paradoxo: a justiça é, em um sentido, inteiramente voltada para os outros, mas, noutro sentido, é totalmente cega aos outros, à sua singularidade, à sua personalidade. Enquanto a caridade, por exemplo, é uma preocupação para com o outro, porque essa outra pessoa, diante de mim, é o que ela é (porque é pobre, desmunida, fraca, infeliz) ou porque é em tal relação particular comigo (meu irmão, meu amigo, meu vizinho, meu próximo), a justiça é cega, e tem que ser cega àquilo que esse outro é em si mesmo e em relação a mim. Se a caridade fosse cega, não seria mais caridosa, e sim indiferença; mas, se a justiça não fosse cega, não seria mais justa, e sim favoritismo.

Dessa “cegueira” da justiça se tira uma conclusão importante sobre o homem justo: não somente ele faz abstração daquilo que são pessoalmente os outros, mas, reciprocamente, não faz entrar em seus julgamentos seus próprios sentimentos pessoais, faz abstração daquilo que pessoalmente é ele mesmo; ele mesmo não é ninguém. O homem justo é imparcial no duplo sentido do termo: deve julgar cada “outro” como se fosse qualquer “outro”, deve julgar como qualquer outro deveria julgar. Ele é cego ao que os outros são, e o que ele é para os outros deve ficar invisível. Por mais raro que seja o homem justo, ele, todavia, não é ninguém especial, é simplesmente como cada um deveria ser. Isso cria uma terceira estranheza da justiça. A maioria das outras virtudes são qualidades da distinção, ou seja, da superioridade intelectual ou moral: assim,o homem corajoso se eleva acima dos outros porque é capaz de suportar; o homem magnífico, porque é capaz de despender; o homem generoso, pelos sacrifícios de que é capaz; o homem magnânimo, porque se mostra digno das maiores honras, etc. Mas o que caracteriza o homem justo é que ele não se eleva acima do comum, ele julga e age como todo mundo deveria julgar e agir se cada um estivesse no lugar de um outro, ou seja, se todo mundo se colocasse no lugar de todo mundo. Enquanto a maioria das virtudes são “aristocráticas” (elas mostram a superioridade de um indivíduo acima da comunidade), a justiça é uma virtude “democrática” (ela mostra a capacidade que um indivíduo tem de se igualar, e mesmo de se identificar com a comunidade). Isso, porém, não a torna mais fácil ou mais acessível: talvez seja ainda mais difícil pensar em nome do comum do que buscar se elevar acima do comum. O homem justo é esse homem singular que, superiormente, é como todo mundo. Seríamos tentados a concluir disso que a justiça é não somente uma virtude para a comunidade, mas uma virtude da comunidade mesma, uma virtude que não poderia, pois, encarnar-se verdadeiramente num indivíduo porque seria somente social, a virtude por excelência da sociedade.

Outra particularidade da justiça levaria talvez à mesma conclusão. Pois essa virtude se distingue das outras não somente em seus fins mas em seu princípio. De fato, temos o costume, desde a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, de distinguir entre as virtudes morais e as virtudes intelectuais.[11] Por definição, as virtudes “morais” regulam nossos costumes e nosso caráter; põem em jogo nossas emoções e nossos sentimentos. Quando possuímos esta ou aquela virtude moral, nossos afetos são convenientemente medidos, no sentido de que não são nem excessivos nem insuficientes, são controlados e adaptados às circunstâncias. Aristóteles fala a esse respeito de “justa medida”[12] nem demais, nem pouco demais, justo o que é preciso. As virtudes morais são, portanto, objeto de habituação e de educação, pois esta tem por finalidade e, pois, por efeito forjar o caráter, ensinando a domar os afetos: assim ocorre, por exemplo, com a coragem (saber controlar o medo), com a temperança (saber controlar os prazeres), com a brandura (saber controlar a raiva), com o tato (saber controlar as reações para não ferir os outros), etc. As virtudes intelectuais (como a sabedoria, a prudência, a inteligêcia, a lucidez, etc.) são muito menos educáveis ou controláveis, e de modo algum apelam à justa medida das emoções. Ora, aqui a justiça parece novamente um caso à parte.[13] Pois ela é incontestavelmente uma virtude moral, no sentido de que rege — ou deveria reger — nossos costumes, nossas maneiras de viver junto, nossa moral coletiva. Chega a ser provavelmente a virtude moral por excelência, talvez não porque, como desejava Platão, ela seria a resultante das outras,[14] mas porque uma comunidade (ou uma sociedade) que fosse justa e onde todos os seus membros fossem justos seria uma sociedade perfeita, já que nenhuma outra virtude seria necessária para o bom funcionamento[15] da sociedade. Um bom conhecimento é um conhecimento verdadeiro, uma boa sociedade é uma sociedade justa (ou, como diz John Rawls, “A justiça é a primeira das virtudes das instituições sociais, assim como a verdade é a primeira dos sistemas de pensamento”).[16]  Mas, num outro sentido, ela parece uma virtude puramente intelectual, porque as emoções, os caracteres e os sentimentos não participam dela em nada — e mesmo não devem de modo algum participar. Aquele que se deixa levar pelas emoções, mesmo benévolas (ou seja, alocêntricas), aquele que deixa falar seu caráter, ainda que bem educado e, pois, bem disposto, não pode ser justo; uma decisão em que entrem sentimentos, mesmo afetuosos, deixa de ser justa. Quando temos bons sentimentos, podemos ser caridosos, generosos, pródigos, magnânimos, etc., mas não justos. Obviamente, é necessária a justa medida para se ser justo; isso é evidente: ser justo é outorgar nem demais nem pouco demais (a balança), justo o que é preciso: nem punição excessiva nem insuficiente (é a pena justa), retribuição (é o justo salário), cumprimentos ou censuras (é o justo juízo), etc. Mas não se trata de saber ou de poder medir seus sentimentos ou seus afetos, já que, justamente, eles em nada são necessários: o julgamento do justo, a pena justa, a justa retribuição ou a justa atribuição são determinados e mesmo calculados de maneira puramente intelectual, são o efeito e a consequência justamente de uma medida, que é a operação racional por excelência, em oposição a todas as avaliações empíricas ou aproximativas.

É uma virtude moral inteiramente sob o controle da razão. Já que um homem justo julga como todo homem deveria julgar, abstração feita de suas particu­laridades pessoais, um homem justo julga no lugar de todo outro — ele julga em nome do universal, julga racionalmente. Virtude ao mesmo tempo moral e intelectual, ela é inteiramente moral em seus efeitos (regula os costumes e as condutas sociais, fornece a boa medida) e completamente intelectual em seu princípio (os bons costumes, as condutas sociais e a boa medida só obedecem à razão). É uma virtude não somente cega, é uma virtude “fria”, e mesmo a única virtude moral fria. Daí o quarto paradoxo: é ao mesmo tempo a mais moral das virtudes (do ponto de vista da moral social), e é também a mais intelectual. Mas isso decerto explica o seguinte: ela depende, em cada um, daquilo que só depende de todos. Repetindo o que já é sabido: é uma virtude social, a virtude da comunidade como tal.

O justo não visa, portanto, nem ao bem dos outros, como o homem generoso, nem ao seu próprio, como o homem temperante: ele visa ao bem da comunidade. O justo é cego às pessoas e ele mesmo não é ninguém: é, por assim dizer, o ponto de vista da comunidade sobre si mesma. O justo é, ao mesmo tempo, moral e intelectual, é a racionalidade mesma na moralidade, porque é a moralidade da comunidade.

Resta saber sobre como esta virtude se exerce, quais são os seus domínios, quais são as suas virtudes, se assim podemos dizer, e suas obras. Elas se deduzem do que acabamos de dizer.

As obras da justiça

Mais do que para qualquer outra virtude, o domínio da justiça se deixa melhor apreender por negação. É difícil dizer o que é justo, é mais fácil dizer o que é injusto. A criança sente isso, a criança já o sabe confusamente. A injustiça se manifesta para ela em dois tipos de circunstâncias. A criança punida quando não fez nada de mal, ou que assiste ao espetáculo de um inocente denunciado e perseguido, experimenta pela primeira vez um sentimento de revolta diante da injustiça: por que me punem, a mim? Ela experimenta o mesmo sentimento quando assiste, impotente, ao espetáculo do culpado impune ou mesmo recompensado: “não é justo!”. A injustiça, antes de tudo, são os “infortúnios da virtude” ou as “prosperidades do vício”. Por isso é que a ideia da Justiça suprema, a do Juízo Final, implica que cada um seja definitivamente recompensado ou punido, em função e em proporção do que fez, a fim de que sejam finalmente compensadas em definitivo, no além e para a eternidade, as injustiças imanentes a este mundo. Mas existe um outro domínio em que se manifesta a injustiça. A criança, constatando que, sem razão, recebe menos que o irmão numa partilha de guloseimas, por exemplo, experimenta o mesmo sentimento de injustiça: por que ele e não eu? Tem o mesmo sentimento quando assiste, impotente, ao espetáculo de alguns que morrem de fome quando outros acumulam tamanhas fortunas que não sabem o que fazer delas. Essas duas circunstâncias em que se manifesta a injustiça correspondem, respectivamente, aos dois domínios em que se realiza a justiça, e que chamamos, desde Aristóteles, de “corretiva” e “distributiva”.

A justiça corretiva restabelece um equilíbrio; pode ser, às vezes, concedendo bens, recompensas, honras, gratificações, em nome de uma comunidade, mas é geralmente infligindo um mal (o castigo) a um membro de uma comunidade em proporção do mal que ele fez a um outro membro ou à própria comunidade: é a principal função do juiz — seja ele árbitro de futebol, encarregado de apitar os pênaltis; seja ele juiz em matéria penal, encarregado de punir os criminosos; ou Juiz divino; encarregado de decidir a sorte das almas post-mortem.

A justiça distributiva, por seu turno, atribui a cada membro de uma comunidade uma parte adequada na partilha de um bem comum — receitas, direitos, poder, etc. (Mas, às vezes, pode ser também repartindo males, corveias por exemplo, encargos, obrigações devidas por cada um à comunidade). No segundo caso, busca-se estabelecer um equilíbrio; no primeiro, busca-se restabelecê-lo. No primeiro caso, a justiça atribui a um membro de uma comunidade o mal (às vezes o bem) que ele merece; no segundo caso, ela atribui a cada membro de uma comunidade os bens (às vezes os males) que cada um merece. Mas o homem justo age igual em todos os casos: sempre se trata, segundo a célebre fórmula do direito romano, de cuique suum tribuere, atribuir a cada um o que lhe cabe. Eis o que é a justiça, eis o que o justo é, é simples. Mas o que é, por outro lado, difícil é saber o que é justo, pois o fenômeno da justiça é justamente saber o que cabe a cada um.

No caso da justiça corretiva, a dificuldade parece mais prática do que teórica: é preciso, como se disse, tratar a priori todos os membros da comunidade de maneira igual, para só levar em conta a posteriori o que eles fizeram de ruim, as circunstâncias em que o fizeram e as intenções e os móveis por que o fizeram. De fato, convém saber avaliar o mal cometido segundo duas escalas totalmente independentes: a das consequências ruins, do lado das vítimas, e a do princípio ruim, do lado do autor. É preciso, por um lado, saber avaliar a gravidade do mal sofrido, isto é, o peso dos danos infligidos às pessoas e aos bens; por outro lado, é preciso saber avaliar a gravidade do mal cometido, isto é, a importância da falta, sobretudo a existência ou não da intenção de prejudicar e seu grau: o mal foi feito de maneira voluntária ou não, deliberada ou não, premeditada ou não, etc.? Um gesto inábil que causou trinta mortes será punido mais severamente do que o mesmo gesto que só causou danos materiais; mas o mesmo gesto que fez trinta mortos será punido bem mais severamente se tiver sido realizado voluntariamente, com o objetivo de fazer o máximo de vítimas. Essa última escala é a da causalidade da pessoa (ela quis assim?), a outra somente a causalidade mecânica avaliada por seus efeitos (quais são as consequências funestas do gesto?) — e considera-se que um sistema penal é moralmente injusto se só levar em conta esta última (seria o mesmo que punir os animais ou as coisas), prova de que o castigo propriamente dito incide sobre a falta (a culpa, por oposição ao dolum, o dolo). Em matéria de justiça corretiva, há duas escalas porque há duas maneiras de “corrigir um mal”, segundo o ponto de vista a partir do qual ele é avaliado: com relação a seu princípio (o culpado) ou com relação a suas consequências (os danos ou prejuízos causados às vítimas); seria, com efeito, igualmente injusto, para as vítimas, não se levar em conta o mal que elas realmente sofreram, tanto quanto seria injusto, para o culpado, não se levar em conta o que ele realmente quis fazer. A dualidade desses dois pontos de vista explica a dificuldade de julgar e o sentimento de injustiça que, por vezes, têm estes e aqueles, diante de uma decisão que parece privilegiar (e que, de fato, forçosamente privilegia) um dos dois pontos de vista. O juiz justo deve saber avaliar o quantum de pena proporcionalmente ao mal: deve, para tanto, por um lado, avaliar o mal segundo cada uma dessas duas escalas e, pelo outro, avaliar a parte que convém atribuir a cada uma na avaliação global da pena a infligir. Há injustiça em se deixar um crime impune ou em se condenar um inocente, mas há também injustiça em se condenar um criminoso de maneira pesada demais ou leve demais, sem levar em conta essas duas escalas, ou não combinando, como convém, suas partes respectivas. Mas, enquanto as duas primeiras avaliações dependem do juiz, a última depende bem mais do sistema penal, pois os códigos jurídicos se diferenciam pela parte que atribuem, na avaliação da pena, à culpa com relação ao dolum — os sistemas considerados os mais “arcaicos” tendem a assimilar a gravidade da falta à do dano. Seja como for, a dificuldade da justiça corretiva consiste sempre em avaliar o mal que foi feito: justamente, ela só deve levar em conta o que cada um fez e, de modo algum, o que cada um é; disso, ao contrário, ela deve fazer abstração e tratar todas as pessoas igualmente.

Mas, no caso da justiça distributiva, há uma dificuldade conceitual suplementar. Trata-se, aqui, de novo, forçosamente, de ficar cego ao que as pessoas são e tratá-las todas igualmente — mas não de modo tão simples, nem no mesmo sentido que no caso da justiça corretiva.

Tomemos o exemplo de uma comunidade de crianças numa classe de primário e de uma torta que a professora deseja dividir entre elas. Qual é a distribuição justa? Já que, para ser justo, é preciso ser imparcial, ou seja, não favorecer quem quer que seja, parece impor-se o princípio de que a distribuição deve ser igualitária e que é preciso dar a cada um o mesmo pedaço: às meninas como aos meninos, aos negros como aos brancos, aos pequenos como aos grandes. Uma divisão desigual seria discriminatória. A justiça consiste, portanto, na igualdade de tratamento de todos os membros de uma comunidade.

Mas seria realmente justo? Suponhamos que a professora pense mais ou menos assim: “A justiça não consiste em tratar todo mundo da mesma maneira, os bons e os maus, mas em favorecer, em encorajar e recompensar o bem, assim como em desfavorecer, desencorajar e punir o mal. Seria, então, mais justo se eu desse uma parte maior aos melhores alunos e uma parte menor aos piores. Ora, eu acabo justamente de corrigir um dever de matemática e as notas que dei dependem do número de exercícios corretos e de resultados justos. Vou então dividir a torta proporcionalmente à nota obtida e isso será justo — em todo caso, muito mais justo do que dar a todos a mesma coisa”. O verdadeiro princípio de justiça seria, pois, não “a cada um a mesma coisa”, mas c`a cada um segundo suas obras”. Esse princípio não é igualitário, mas é mais justo do que a igualdade, que trata igualmente bons e maus.

Mas, justo no momento de cortar a torta conforme esse princípio, a professora volta a refletir: “Essa divisão será realmente justa? Afinal, aquele que obteve uma nota ruim trabalhou muito, esforçou-se muito e, principalmente, fez grandes progressos. E aquele outro, sem dúvida, teve uma boa nota, mas é de tão dotado para a matemática que terminou depressa seu trabalho sem o menor esforço e, depois, mostrou-se muito arrogante diante dos outros. Seria justo levar em conta somente os resultados? O que seria realmente justo, moralmente, seria tratar cada um não ‘segundo suas obras’, mas ‘segundo seus méritos’, em outras palavras, segundo os esforços ou os sacrifícios investidos, em suma, segundo o valor moral das pessoas”. A moral consiste, com efeito, em diferenciar o bem do mal, a tratar bem a boa conduta (estímulos, elogios, recompensas) e a tratar mal a má conduta (reprimendas, correções, castigos). Um problema prático, entretanto, se coloca: como avaliar o “mérito”, isto é, o valor moral das pessoas, neste caso o das crianças? Que critério escolher? Deve-se levar em conta os sacrifícios investidos, a intenção de fazer bem ou os progressos obtidos? Esses três critérios remetem a três concepções diferentes da “moralidade”. Difícil decidir. O princípio “a cada um segundo suas obras” talvez seja menos moral do que o princípio “a cada um segundo seus méritos”, mas é muito mais cômodo de aplicar, ao menos por um juiz ordinário no seio de uma comunidade, muito menos bem colocado do que o “Juiz supremo”, no topo dos céus, capaz de “sondar os rins e os corações”. É bastante fácil medir um trabalho (uma quantidade de trabalho; ou uma obra mais ou menos exito-sa), mas é incontestavelmente mais delicado medir o valor moral das pessoas. Contudo, seria a única maneira de repartir a torta de modo justo, ou seja, moralmente justo.[17]

Mas será tão certo assim? Podemos imaginar que, no momento em que a professora se pergunta se vale mais um princípio de igualdade puro (que não levanta problema mas põe todo mundo no mesmo plano), um princípio de proporcionalidade (fácil de aplicar), ou um princípio de proporcionalidade ao mérito (o único que parece moral), uma outra ideia lhe venha, ainda mais perturbadora: “Afinal de contas”, pensa ela, “não estou retribuindo ou dando nota a um trabalho nem recompensando o mérito: tenho que cortar a torta, que é uma obra coletiva (suponhamos, ao menos) da qual alguns participa­ram, enquanto outros não fizeram nada. É justo que eu dê mais àqueles que fizeram mais, e que dê a cada um, não na proporção de seu trabalho escolar nem de seus esforços pessoais, mas simplesmente de sua contribuição à obra comunitária”.

Em seguida, podemos imaginar um último raciocínio, um último escrúpulo da professora: “O que é uma torta”, pergunta-se ela, “senão um alimento? Ora, há crianças que têm em casa tudo que precisam, outras que nunca comem torta, algumas que até não comem o suficiente ou comem mal. O realmente justo não seria distribuir a torta em partes iguais, mas sim dar mais àqueles que têm mais fome e menos àqueles que não têm fome nem sequer vontade de comer torta. O verdadeiro princípio de justiça distributiva seria então ‘a cada um segundo suas necessidades’”.

Aqui estamos, portanto, diante de uma única definição da justiça, mas de cinco conceitos incompatíveis que aplicam a mesma definição. “A cada um a parte que lhe cabe”, segundo o que ele é, tal é a definição geral da justiça distributiva que aplica, pois, o princípio de proporcionalidade:[18] a cada M (membro da comunidade) cabe uma parte do bem comum proporcional a algo de M, essa fórmula é constante, e o que é variável, a cada vez, é o ponto de vista a partir do qual os membros da comunidade são considerados e a qualidade neles julgada essencial. Assim, segundo o conceito “a cada um a mesma coisa”, que é o princípio de distribuição, onde a proporcionalidade equivale a uma igualdade pura e simples, o que é considerado como essencial é, neste caso, o fato de fazer parte da comunidade, de ser membro dela, tanto quanto qualquer outro. Mas ser membro de uma comunidade nunca é trivial, em nenhuma comunidade que seja. Se é, por exemplo, o princípio que rege a distribuição dos direitos entre cidadãos num regime democrático, esse igualitarismo só se estende justamente aos cidadãos, o que exclui, por exemplo, às vezes, as mulheres, sempre os menores, os estrangeiros, os criminosos, etc. Não existe justiça que estenda realmente uma igual distribuição do que quer que seja a todos os seres humanos,[19] ainda que a declaração dos direitos humanos tenha tentado proclamar que, justamente, todos os homens, pelo simples fato de ser homens, isto é, de participar da comunidade humana, gozam de certos direitos, ditos prerrogativos (ditos às vezes “formais”): entretanto, diante de qual jurisdição, ou de qual instituição, eles todos podem igualmente reclamar o reconhecimento e o gozo desses direitos?

Consideremos o segundo conceito: “a cada um segundo suas obras”. É o conceito que nos parece justo aplicar quando se trata de atribuir notas a um exame ou classificar candidatos a um concurso público ou a um emprego.[20]

Não se leva em conta aquilo que as pessoas são (por isso as provas são anônimas), nem seus esforços ou méritos, nem seus dons ou facilidades, somente o que elas fizeram e podem fazer. A qualidade aqui considerada essencial não é o valor da pessoa, mas o valor de suas produções. É também, portanto, o conceito que se emprega quando se fala, por exemplo, de preço justo das mercadorias.

Uma variante desse segundo conceito é o terceiro: “a cada um segundo sua contribuição à obra coletiva”. É o princípio que se considera como justo, no mais das vezes, quando se trata de remunerar com salário um trabalho. Como observa Aristóteles, a vida social inventou um instrumento universal de troca e de convertibilidade dos bens, ou seja, de mercadorias, de trabalhos e de serviços: a moeda.[21] É assim que se considera justo, em geral, não que todo mundo receba o mesmo salário (“a cada um a mesma coisa”), mas a aplicação da fórmula “a trabalho igual, salário igual”, contra toda forma de discriminação no emprego (racial ou, ainda mais comum, sexual). Aqui, o conceito de justiça parece fácil de aplicar, mas somente quando o trabalho é o mesmo; o problema começa quando se quer determinar o valor de um trabalho em relação a outro e, assim, comparar diferentes participações na obra coletiva: que critério adotar? O tempo do trabalho, seu rendimento, sua qualidade? Sua tecnicidade (o tempo de formação prévia necessário para poder realizá-lo? o dom pessoal?), sua dificuldade, sua parte na mercadoria final (mas como avaliá-la?), ou simplesmente sua raridade no mercado de trabalho?

O quarto conceito, “a cada um segundo seus méritos”, é totalmente diferente. O critério deixa de ser, ou de poder ser, socialmente mensurável; é um conceito puramente moral. Assim, o mesmo professor que achará justo dar nota a todos os candidatos a um exame segundo o princípio “a cada um segundo suas obras”, achará justo, ao longo do ano, diante dos estudantes que ele conhece, não levar em conta, em sua avaliação, somente o que eles fizeram neste ou naquele momento, mas também seus esforços pessoais, seus progressos, em suma, o valor de cada pessoa, de suas virtudes, ou talvez somente das que dependem das pessoas — eis um problema. Esse critério de justiça exige que se avaliem as qualidades essenciais da própria pessoa ou seja, justamente, seus vícios e virtudes — e que a ela se atribua os bens na proporção do que ela tem, em si mesma, de bom. Eis o que pareceria moralmente justo. E eis por que se diz frequentemente, e legitimamente, que “não há justiça na terra”, já que os bens de que gozam uns e outros, seja por dom de natureza ou por funcionamento da sociedade, não são de modo algum proporcionais a seu mérito mas são devidos à sorte ou ao funcionamento do sistema econômico e social. Eis por que é frequente que se represente a única justiça verdadeira, moralmente perfeita, como sendo a “justiça transcendente”, a do juízo Final.

O quinto conceito, “a cada um segundo suas necessidades”, é, mais uma vez, totalmente diferente. A qualidade comum considerada essencial é a necessidade. E, de fato, é preciso sublinhar que só existe problema de justiça distributiva quando existe aquilo que os economistas chamam de uma situação de escassez: alguns recursos são escassos, não estamos em situação de abundância, senão não haveria problema de justiça distributiva, cada um poderia ter tudo à saciedade, não haveria reivindicações recorrentes.[22] “Existe abundância quando o nível dos recursos da sociedade e a estrutura das preferências de seus membros são tais, que é possível a cada um deles ter acesso a tudo o que deseja.”[23] Entretanto, como o mesmo autor observa, mesmo supondo que, numa dada sociedade, todos os bens materiais se encontram em abundância, isso não resolveria todos os problemas da justiça distributiva, pois poderia ser que os membros dessa comunidade não aspirassem somente a consumir, mas, por exemplo, a comandar. “A escassez continuaria a reinar na ordem do poder e a questão da justiça novamente se colocaria”.  No entanto, ninguém imagi­naria que é preciso, para distribuir justamente o poder, atribuí-lo em função das necessidades de cada um. Aliás, é por isso que esse princípio só é proposto na ordem das necessidades de bens de consumo. Este princípio que, segundo Marx, deve constituir o horizonte da sociedade comunista que atingiu seu estágio superior e definitivo, não é, portanto, estritamente igualitarista, como às vezes se crê: único princípio de justiça social absoluto compatível com a escassez, ainda segundo Marx, ele viria substituir o princípio de justiça do primeiro estágio, o da sociedade dita socialista onde ainda reina o princípio precedente, a cada um segundo seu trabalho” — mas onde o trabalho (e suas rendas) é ele mesmo distribuído segundo as capacidades de cada um.[24] De maneira mais realista, nos países que seguiram uma via social-democrata, e em todos aqueles onde o Estado tem um papel distributivo, por intermédio de programas sociais e notadamente de alocações diversas (salário mínimo, salário-família, seguro-desemprego, aposentadoria, etc.), recorre-se justamente, ao menos implicitamente, ao princípio “a cada um segundo suas necessidades” para compensar as consequências julgadas socialmente funestas do princípio “a cada um segundo seu trabalho”. Esses dois princípios estão, portanto, em conflito: se cada um só recebesse na proporção de seu trabalho, o que seria daqueles que não podem trabalhar (crianças, desempregados, aposentados, doentes, etc.)? Mas o princípio social “a cada um segundo suas necessidades” está por vezes em conflito com o princípio econômico “a cada um segundo seu trabalho” e com o princípio moral “a cada um segundo seus méritos”. Por exemplo: é justo atribuir as bolsas de estudo aos estudantes em função de suas necessidades (isto é, segundo critérios sociais) ou de seu trabalho (isto é, segundo seus resultados escolares), ou de seu mérito (e então, segundo seus esforços ou, ainda, segundo suas capacidades intelectuais)? Não basta dizer que, em matéria de educação, é preciso garantir a igualdade de direitos de todos, em todos os empregos e funções. Essa igualdade seria injusta, pois não nos deveríamos contentar com garantir a igualdade formal dos direitos, mas a igualdade real das possibilidades de acesso a todos — em outras palavras, a igualdade das oportunidades. E essa igualdade é todo o contrário da igualdade, já que ela consiste em compensar as desigualdades iniciais de condição social oferecendo mais meios àqueles que têm menos oportunidades; em outras palavras, aplica-se (implicitamente) o princípio “a cada um segundo suas necessidades”. Sim, mas, novamente, levanta-se a questão: a quem se deve dar oportunidades iguais? A todos os que têm necessidade delas, somente àqueles que são merecedores, ou, ainda, àqueles que têm os melhores resultados?

Vê-se que os conflitos entre essas cinco aplicações concretas do princípio geral de justiça distributiva são inevitáveis — e que um homem justo, por mais justo que seja, não saberia o que fazer, ainda que dispusesse de todos os meios para distribuir livremente todos os bens sociais entre todos os membros da comunidade.

A impossibilidade da justiça

Com isso não queremos dizer que “a justiça não é deste mundo”, porém, mais gravemente, que o conceito mesmo de justiça não é determinável. Não queremos dizer somente que o mundo é injusto, mas que não podemos sequer determinar o que seria um mundo justo. Com efeito, é como se detivéssemos a fórmula correta da justiça, a proporcionalidade, expressa na fórmula “a cada um segundo seu X” (ou cuique suum tribuere), mas não soubéssemos como determinar esse X; em outras palavras, teríamos a fórmula geral e abstrata da justiça, mas não a maneira concreta de aplicá-la às circunstâncias, exceto imaginando a posição hipotética de um juiz supremo, capaz de realmente julgar cada pessoa “por seu justo valor”. Mas o mal talvez seja ainda mais grave. Talvez seja a fórmula da proporcionalidade mesma, tomada em sua abstração, que sofra de um vício fundamental. Ou melhor, talvez a fórmula da proporcionalidade é que seria defeituosa, mesmo aplicada concretamente, ou seja, mesmo que soubéssemos, mesmo que pudéssemos aplicá-la concretamente, isto é, à maneira desse Juiz moral supremo, atribuindo bens, recompensas e gratificações à proporção do valor (do “mérito”, caso se queira) de cada pessoa. Isso constituiria não somente uma dificuldade em se ser verdadeiramente justo, mas uma impossibilidade fundamental da justiça: talvez o conceito mesmo não exista, talvez a ideia mesmo de justiça não tenha nenhum sentido.

Essa é a crítica que encontramos, por exemplo, em Pascal. Vamos esboçá-la.[25] É preciso tratar cada um como ele “merece”, diz a justiça. Muito bem. É preciso, portanto, dar mais (bens, quaisquer que sejam, terrestres ou celestiais) àqueles que são os mais merecedores. Certo. Então é justo que os nobres de nascimento tenham mais direitos e bens do que os plebeus de nascimento? É claro que não: eles não fizeram nada para ser nobres, contentaram-se em nascer. De igual modo, é absurdo dar mais àqueles que nasceram brancos do que aos que nasceram negros. É a própria definição de injustiça: o arbitrário. Mas então é justo que os mais dotados (os mais inteligentes, os mais capazes) tenham mais acesso aos empregos mais bem pagos, mais considerados, menos fatigantes? Aí é que é preciso distinguir: decerto, do ponto de vista social, é extremamente útil, pois uma sociedade será mais bem organizada se os empregos forem ocupados pelos mais capazes do que pelos mais incapazes, mas por essa razão isso é justo? É justo, do ponto de vista dos indivíduos, que cada um receba vantagens sociais (remuneração, consideração, qualidade de vida) na proporção de sua inteligência? Mas, por definição, os dons e os talentos são inatos e naturais, e o fato de fulano ser, coitado, um pouco estúpido não dependeu dele. Ele não tem nada a ver com isso. É o mesmo com a beleza. Como diz Pascal, se amamos uma pessoa por sua beleza, ou por sua memória ou por seu tirocínio, nós não a amamos. Não é ela, são acidentes de sua natureza, propriedades que certamente lhe pertencem, mas que não são o que ela é, ela mesma, e não uma outra. Alguém dirá que é preciso, então, que as vantagens sejam distribuídas somente em função do que cada um verdadeiramente é, em si mesmo, substancialmente, e não das qualidades que recebeu, do exterior, da natureza, da família ou da sociedade. Então é justo atribuir vantagens, de qualquer natureza que sejam (sociais, materiais, morais) em função dos méritos, isto é, dos esforços, do trabalho de cada um? Com efeito, é o que parece moral—já dissemos. Mas não podemos dizer, também, que há caracteres naturalmente bem dispostos e outros mais difíceis, preguiçosos, indolentes, ou ainda que há condições familiares, educacionais, sociais que favorecem o gosto pelo esforço e forjam o bom caráter — ou o mau. Decerto, o mérito pessoal depende do caráter próprio da pessoa; mas esse caráter próprio, por seu turno, depende da pessoa ou depende de outra coisa, natureza, família, sociedade, tudo o que se quiser? Cá estamos, portanto, diante de um dilema. Pois, se respondemos que é preciso, para tratar alguém justamente, tratá-lo somente em função do que ele é, fazendo abstração de tudo o que não depende dele, o que resta? O que resta de uma pessoa quando dela retiramos suas características físicas (altura, beleza, feiura — que são inatas), seus dons intelectuais (naturais), suas diferentes qualidades e defeitos morais, que certamente estão nela e constituem seu caráter próprio, que são a própria pessoa, se se quiser, mas não dependeram dela? Não sobra nada de nada. Ou melhor, sobra uma espécie de substância anônima, suporte de todas essas qualidades, mas absolutamente neutra e indiferenciada. Com efeito, das duas, uma: ou o homem justo trata as pessoas em função de suas qualidades, boas ou ruins. Mas como todas as qualidades são “emprestadas” num grau ou no outro, como diz Pascal, ou seja, são inatas ou são adquiridas (essas duas fontes parecem se opor, mas ao fim e a cabo, do ponto de vista da justiça, elas valem o mesmo),[26] elas não dependem da própria pessoa — e, portanto, isso não é justo… Ou é preciso, portanto, tratar as pessoas, abstração feita de suas qualidades e defeitos próprios. Mas, então, se não resta nada de suas qualidades e de seus defeitos, não resta absolutamente nada de suas diferenças, e é preciso tratar todo mundo igualmente, os inteligentes e os idiotas, os simpáticos e os antipáticos, os bons e os maus, etc. Mas isso é ainda mais injusto, já que a fórmula geral da justiça exige que se trate cada um em função do que ele é e que se atribua a cada um o que lhe cabe. Certo: ser justo é atribuir a cada um o que é “seu”. Mas o que é que é seu? Não é nem o que cada um tem de idêntico aos outros, porque não é o que lhe é próprio, e tampouco é aquilo que ele tem de diferente dos outros, porque é aquilo que é dele (suas qualidades), não o que é ele. Não existe, pois, justiça. Digamos, antes, com Pascal: “nada segundo só a razão é justo em si…”.[27]

É o caso de desencorajar-se? De abandonar? É o caso de concluir que a virtude de justiça é ilusória, incoerente? Que é preciso se contentar com virtudes individuais, e não sociais; ou, ainda, com virtudes “alocentradas”, quentes, como a generosidade ou a caridade, e perder a esperança de encontrar uma virtude que, na falta de ser propriamente “alocentrada”, pelo menos não seja “egocentrada”, mas que permaneça fria, racional, imparcial como a justiça? Talvez. Mas talvez não. Porque talvez ainda exista uma saída, uma última saída.

O “véu de ignorância”

Quais são os vícios profundos da concepção “a cada um segundo seu X” e, em particular, ‘a cada um segundo seu valor moral” ou “segundo seu mérito”?[28] Seu primeiro vício é que ela necessita, para ter sentido, que se seja capaz de determinar a priori o que, numa pessoa, depende dela mesma, em outras palavras, a parte dela mesma da qual ela é responsável — e isso permanece problemático, para não dizer insensato. O mesmo não ocorre na justiça corretiva? Pareceria, no entanto, que, à sua maneira, a justiça corretiva (difícil de aplicar, decerto, mas cujo conceito geral não parece causar dificuldade) resolve este problema da responsabilidade. Esclareçamos, portanto, o que os conceitos de justiça distributiva e de justiça corretiva têm em comum. O núcleo racional comum que elas compartilham é o seguinte: o que é justo, nos dois casos, é que cada pessoa seja tratada como merece, mais precisamente, ela deve receber (da comunidade, da autoridade externa, do pai, do juiz, de Deus, etc.) um quantum de bem ou de mal proporcional ao quantum de bem ou de mal de que ela é responsável. O tanto de bem ou de mal de que ela é a “causa”, o tanto de bem ou de mal lhe deve ser “causado”, a fim de estabelecer-se (distribuição) ou restabelecer (correção) a justiça. Em ambos os casos, é mesmo a pessoa moral, isto é, o pensamento ou a intencionalidade, que é “causa” do bem e do mal, não o corpo, o gesto. Com efeito, vimos que, no que diz respeito à justiça corretiva, das duas escalas pelas quais deve ser avaliado o mal feito (do ponto de vista do mal sofrido ou do mal cometido), a segunda concerne à pessoa moral: é ela que deve ser tratada como merece, exatamente como na justiça distributiva, no sentido moral (“a cada um segundo seu valor” — ou seja, segundo seu mérito). Os dois conceitos de justiça parecem, então, aplicar-se, um e outro, à pessoa e àquilo pelo qual ela pode ser considerada responsável.

Se tal é o caso, a única diferença entre os dois conceitos é o sentido com que é tomada a ideia de que “a pessoa é responsável por Y”. Na justiça corretiva, como dissemos, o mal (mas o mesmo vale para o bem) é avaliado, por um lado, segundo a escala da gravidade das consequências ruins do ato (o quantum de mal feito aos outros), por outro lado, segundo a escala da gravidade do princípio do ato (o grau de responsabilidade do próprio agente). Ora, parece que sempre se pode concordar sobre o grau (ou ao menos sobre os critérios de avaliação) de responsabilidade de um ato — distinguir entre os intencionais e os não intencionais, os premeditados e os impulsivos, etc. A dificuldade parece surgir, na justiça distributiva, porque não seria o caso de se contentar com determinar a responsabilidade dos atos (a implicação do eu em seus atos), mas o valor mesmo da pessoa, como se se pudesse atribuir ao eu mesmo a responsabilidade por ele mesmo. O que em mim depende de mim? Que parte? Tudo, talvez. Ou nada, talvez. Como avaliar isso, como distinguir a parte do eu da qual o próprio eu seria responsável?

Mas a dificuldade não é somente prática (como avaliar o mérito real das pessoas?); talvez ela seja mais profunda: talvez não haja sentido algum em considerar as pessoas responsáveis pelo que elas são. A ideia de responsabilidade por si mesmo não tem mais sentido do que a de “causa de si”, e ambas são contradições em termos: procurar uma causa é procurar uma causa externa àquilo de que ela é o efeito, uma causa sem a qual o efeito não se teria produzido. Buscar uma responsabilidade é buscar quem fez algo, é buscar a pessoa (com todas as suas “qualidades”, qualquer que seja sua natureza) sem a qual tal evento não se teria produzido — e esse evento é um ato, o Ma, se ela é responsável por ele. Não tem sentido, portanto, falar de responsabilidade a não ser pelos atos, atos causados por uma pessoa, não pelo que a pessoa é em si mesma. A prova disso é que só consideramos responsável por um ato (no sentido da justiça corretiva) aquele que quis o que fez (tal é o fundamento da escala de gravidade do ato): pressupomos, portanto, que ele poderia não ter querido, ou seja, que essa mesma pessoa, tal como era (com todas as suas qualidades), poderia não ter feito o que fez: não a consideramos responsável, portanto, pelo que ela é — ou era —, já que só a consideramos responsável pelo que ela poderia não ter feito, mesmo ela sendo o que era (com sua natureza, seu caráter, sua educação, sua inteligência, sua memória, sua beleza, etc.). Considerar alguém responsável pelo que é, portanto, não faz sentido, a não ser que se leve em conta, das duas escalas de avaliação da justiça corretiva, somente a escala mecânica das consequências: consideraríamos então os seres responsáveis por tudo o que “fazem”, mesmo quando, dado o que são, eles não poderiam não ter feito o que fizeram (seria como processar os animais e as coisas). Seja como for, o que depende de mim é o que eu faço (voluntariamente), não o que eu sou. E não faz sentido dizer que eu mesmo faço o que eu sou, pois quem seria eu para poder fazê-lo? Quando muito, uma substância sem qualidade, diria Pascal. E esse “nada” não poderia agir.

Esse é o vício fundamental da fórmula da justiça distributiva na qual se quer atribuir a cada um a parte de bens que ele merece. Esse conceito parece feito sob medida para a justiça corretiva, ou melhor, para uma instituição penal encarregada de punir atos e de restabelecer uma ordem social, não para uma justiça distributiva encarregada de repartir bens sociais em função da suposta qualidade das pessoas.

Digamos isso com outras palavras. Retomemos a objeção “pascaliana”: a justiça não faz sentido, já que não se pode tratar as pessoas conforme suas “qualidades” — todas as qualidades do eu são “emprestadas” e ninguém pode ser tido como responsável por elas, seria injusto nem tratá-las fazendo abstração de suas qualidades seria tratá-las todas igualmente, quaisquer que fossem, e isso também seria injusto. Vemos por que essa crítica da ideia de justiça vale contra a justiça distributiva, mas não contra a ideia de justiça corretiva. Esta resiste a essa destruição por duas razões. A primeira não é moral, é de tipo utilitarista: a necessidade da ordem social implica que todas as infrações à lei comum sejam punidas na proporção da gravidade dos danos cometidos ou dos prejuízos sofridos pelas vítimas. Essa razão não é moral, propriamente falando, contudo a proporcionalidade da pena ao dano garante a racionalidade do quantum de pena e, portanto, sua justiça. Ora, esse é o fundamento da primeira escala do julgamento da justiça corretiva. A segunda razão é moral: considera-se justo um castigo proporcional à falta do agente, na medida da implicação do agente no ato. Mede-se a gravidade do mal pelo “grau de ação”, se podemos dizer assim. Em outras palavras: quanto mais o mal foi feito (não somente consciente, mais aceito, mais querido, mais calculado, mais premeditado, etc.), mais mal há. As pessoas não são julgadas pelo que são, mas pelo que elas fazem, supondo-se que elas sempre poderiam não ter feito o que fizeram — e tanto mais porque elas “fizeram mais”, seu “eu” agiu mais. Ora, esse é o fundamento da segunda escala da justiça corretiva. A justiça corretiva não cai sob os golpes da crítica pascaliana porque ela nunca se aplica ao que as pessoas são, isto é, ao que as diferencia umas das outras (suas qualidades): pode-se dizer, ao contrário, que, de certa maneira, ela trata todas igualmente, já que as trata como pessoas que, na medida em que agem, agem todas livremente e poderiam sempre não fazer o que fazem. O mesmo não se dá com a justiça distributiva (“a cada um segundo seus méritos”), que repousa no pressuposto de que as qualidades das pessoas dependem delas mesmas.

A isso se acrescenta que não faz sentido considerar a justiça distributiva como uma virtude, uma simples virtude, isto é, a virtude de um indivíduo isolado. Não é somente a virtude que um indivíduo pode ter numa comunidade ou para com uma comunidade ou, ainda, para com um indivíduo que ele trata como parte integrante de uma comunidade, é, como sugerimos acima, a virtude da comunidade mesma e é totalmente independente da virtude individual de seus membros. Por isso é que a situação fictícia de uma professora encarregada de dividir uma torta, isto é, de instaurar por si só, individualmente, a partilha justa de um bem comum, é artificial. Sem dúvida, um homem pode ser justo numa sociedade injusta, mas, reciprocamente, uma sociedade deve poder ser justa sem que nenhum de seus membros o seja. Felizmente! Pois, se fosse preciso supor justos todos os homens para tentar pensar o que é uma sociedade justa, não somente essa comunidade seria inimaginável, ela decerto seria inútil. A sociedade tem isto de particular: ela deve poder reunir indivíduos que têm, todos, seus interesses particulares — portanto contraditórios. Ela deve poder harmonizar egoísmos, por assim dizer. É preciso, portanto, poder definir o que seria uma sociedade justa em que, contudo, nenhum dos membros seria justo, isto é, em que nenhum teria necessidade de fazer abstração de seus próprios interesses.

Ora, essa terceira dificuldade (como conceber uma sociedade justa sem que nenhum de seus membros o seja) vai nos permitir resolver os dois precedentes (impossibilidade prática de avaliar o mérito real das pessoas, incoerência conceitual do conceito de responsabilidade de si).

Uma sociedade justa seria uma sociedade em que nenhum indivíduo teria necessidade de ser justo, onde todos os indivíduos poderiam, no limite, pensar apenas em si mesmos, mas onde, contudo, nenhum deveria poder considerar-se lesado, nem pelos outros nem pela sociedade. Suponhamos, portanto, como todas as teorias clássicas do contrato social, uma situação em que indivíduos egoístas se associam para viver numa sociedade, por exemplo, porque não podem fazer de outro modo, ou porque consideram que seria de seu interesse, evidentemente, mesmo dos “mais fortes”, viver em comunidade. Imaginemos que eles discutam e negociem entre si os princípios sobre os quais será erguida a sociedade na qual vão ter de viver.

Podemos imaginar que, nessa situação, aquele que se considera o mais forte desejaria, antes de tudo, fazer adotar o princípio de que tal sociedade, para ser justa, deveria favorecer os mais fortes porque são mais fortes; assim como aquele que se considera mais inteligente gostaria de favorecer os mais inteligentes porque são mais inteligentes; e, por que não?, os brancos achariam que devem dominar porque são brancos, os negros porque são negros, etc. Todos esses princípios são evidentemente incompatíveis e, de todas as maneiras, injustos, já que, como vimos com Pascal, ninguém pode ser considerado responsável por suas próprias “qualidades” (que são todas “emprestadas”) nem por nada do que o define: nem por suas qualidades físicas nem por suas virtudes intelectuais nem sequer por suas qualidades morais; por conseguinte, não se pode exigir uma parte de um bem social qualquer (bens de consumo, prerrogativas, parte de poder…) em nome das ditas “qualidades” que identificam e distinguem todos os membros de uma comunidade.

Então, precisamos nos colocar na célebre situação imaginada pelo filósofo contemporâneo que mais tem contribuído para renovar as teorias clássicas do contrato social, John Rawls: a posição que ele chamou de “véu de ignorância” e que ele situa na esteira da tradição kantiana.[29] É preciso supor que ninguém possa saber nada de si mesmo, isto é, sobre o que o definirá nesta sociedade, nem «sua posição de classe ou seu status social”, nem “o que lhe cabe na repartição dos trunfos naturais e das capacidades, isto é, sua inteligência e sua força, etc.”, nem “sua própria concepção do bem, as particularidades de seu projeto racional de vida, ou mesmo os traços particulares de sua psicologia”.[30] A única coisa que define cada contraente é que ele será membro dessa sociedade.[31] Portanto, dessse ponto de vista, ele é perfeitamente idêntico aos outros, e todos são iguais. Ele é um puro espírito raciocinador e negociador. Tem-se certeza então, em tal situação, de que cada um buscará sua própria vantagem, mas sem saber o que significa “sua”, já que cada um ignora, nessa situação, o que o definirá. Ele quer viver em sociedade, não por amor aos outros, mas por interesse, bem entendido, ele é, portanto, fundamentalmente egoísta,[32] mas sem saber quem é ego.

Observemos que essa posição imaginária na qual se encontra tal indivíduo egoísta sem ego particular, essa “substância sem qualidades” (já que todas são «emprestadas”, como diz Pascal), é estritamente equivalente à posição real na qual se encontra o indivíduo justo, aquele que, ao contrário, possui a virtude de justiça. O justo, como dissemos, não busca nem seu próprio bem nem o de um outro. É o que são obrigados a fazer aqueles indivíduos que não são justos, mas que estão sob o véu de ignorância. A justiça não é nem “alocentrada” como a caridade, que considera o outro com todas as suas particularidades, nem “egocentrada”, como a moderação. O homem justo, como notamos, não visa nem a seu próprio bem nem ao dos outros, já que ele se considera a si mesmo um outro, e trata cada outro como trata a si mesmo. Ora, é exatamente o que ocorre com nossos indivíduos negociando entre si sob o véu de ignorância. O justo, já dissemos, faz abstração do que os outros, pessoalmente, são, mas, reciprocamente, ele não faz entrar em seus julgamentos seus próprios sentimentos pessoais, ele faz abstração do que é ele mesmo (ele mesmo não é ninguém). Bem entendido, é extremamente difícil ser justo assim, porque justamente é disso que é difícil fazer abstração, o que nós somos, o que os outros são, o que nós somos para eles, o que eles são para nós. Mas é exatamente o que fazem, em defesa própria, esses homens sob o véu de ignorância. Enfim, vimos que a justiça é essa estranha virtude moral que, por ser social, é puramente intelectual. Virtude fria, por excelência, dissemos. O que é mais frio do que a situação desses negociadores sob o véu de ignorância? Em todo caso, temos, a partir de agora, senão uma definição, ao menos uma imagem do homem justo: é o membro qualquer de uma comunidade, inteiramente racional e mesmo racionalmente egoísta, que ignora tudo de si mesmo e de seu lugar na dita comunidade e que decide a sorte de todos e de cada um na comunidade. Grande e nobre virtude da justiça, não seria mais do que isso, portanto!

Vemos bem que, em tal situação, os negociadores cegos não adotarão um princípio como “a cada um segundo seu X”. Seria arriscado demais, já que não sabem qual será seu próprio X (nascimento, inteligência, virtude) na sociedade. Vemos também que, em tal situação, nossos negociadores, justos contra a vontade, adotarão, todavia, princípios que serão justos, socialmente justos, necessariamente justos, já que o procedimento pelo qual eles os adotaram reproduzirá artificialmente as condições reais nas quais se acha o homem idealmente justo por virtude. Mas, então, que princípios eles adotarão? Provavelmente princípios de igualdade, ou melhor, de máxima igualdade possível. A nosso ver, haveria quatro deles.[33]

O primeiro princípio se deduz da posição original e deriva de toda a tradição contratualista, sobretudo kantiana: a comunidade política é, como diz Kant, uma sociedade “onde se encontra o máximo de liberdade, por isso mesmo um antagonismo geral entre os membros que a compõem, e onde no entanto se encontra também o máximo de determinação e de garantias para os limites dessa liberdade, a fim de que ela seja compatível com a de outrem”,[34] o que J. Rawls retoma, à sua maneira, em seu primeiro princípio: “Toda pessoa tem um direito igual ao conjunto mais extenso de liberdades fundamentais iguais que seja compatível com um conjunto de liberdades para todos”.[35] Efetivamente, na situação original, cada um deseja igualmente a sociedade para si mesmo e todos a desejam igualmente. O primeiro princípio é calcado na posição original de igualdade de todos os contraentes, puras racionalidades em ato, ou puras “substâncias sem qualidades”. A igualdade de direitos na sociedade é a imagem da posição original (a menos que se prefira dizer que o mito da posição original é, ele mesmo, a imagem de uma sociedade liberal fundada na igualidade formal de todos os indivíduos que a compõem).

O segundo princípio é um corolário do primeiro e, ao mesmo tempo, um meio de confirmá-lo. A fim de garantir essa liberdade igual para todos, todos os contraentes concordam com o fato de que é justo que seja punido qualquer um que usar de sua liberdade para causar dano à de um outro. E todos concordam a priori com as três condições seguintes da justiça corretiva:[36]

  • a punição deve ser cega às condições das pessoas (todas devem ser tratadas igualmente). Essa primeira condição denota o primeiro componente essencial da noção de justiça, a igualdade de todos os membros da comunidade. Ela é, como o primeiro princípio, um reflexo da posição original dos contraentes (o véu de ignorância),
  • a punição deve ser proporcional à gravidade dos danos cometidos — o que faz jus ao ponto de vista das vítimas e corresponde à primeira escala de avaliação dos atos. Essa segunda condição é estabelecida com vistas ao interesse geral, evidentemente (restabelecimento da ordem social), mas denota o segundo componente essencial da noção de justiça, a proporcionalidade;
  • ela deve também ser proporcional à gravidade da falta, ou seja, ao grau de responsabilidade do agente — o que faz jus ao ponto de vista da justiça moral e corresponde à segunda escala de avaliação dos atos. Essa terceira condição supõe que todos os contraentes se reconheçam como agentes suscetíveis de agir livremente (e, portanto, de se abster de agir) e funda-se, ela também, na proporcionalidade, não ao valor das pessoas mas ao grau de implicação do agente em seu ato.

O terceiro e o quarto princípios dizem respeito à justiça distributiva: como distribuir as vantagens socioeconômicas?[37]

Podemos supor que, num primeiro momento, os negociadores, todos eles receando sofrer desvantagens na futura sociedade e não receber senão na proporção de seus talentos, que seriam talvez escassos ou inexistentes, acham muito menos arriscado para eles mesmos, e vantajoso para todos, defender o princípio “a cada um segundo suas necessidades”. Podemos imaginar que a isso se segue uma longa discussão, para saber como medir as necessidades (essenciais? para quem? em que tipo de sociedade? as necessidades não são as mesmas segundo os diferentes níveis de desenvolvimento — que eles ignoram), e sobretudo como comparar as necessidades (já que os sistemas de preferência decerto não seriam os mesmos segundo os caracteres dos indivíduos — que eles ignoram —, alguns preferindo comer menos, ou menos bem, para ter mais distração; outros, trabalhar mais, desde que ganhem mais, etc.), como hierarquizá-las e distingui-las das demandas, dos desejos ou das preferências individuais. Observou-se que, para poder resolver todas essas dificuldades do princípio “a cada um segundo suas necessidades” e satisfazer as reivindicações individuais concorrentes, era preciso supor que os bens sociais se encontrariam todos em abundância, que não haveria, portanto, nenhum bem escasso — o que não só estava longe de ser certo, mas, além disso, era francamente contraditório, já que a ausência de escassez implicava que não haveria mais problema de justiça distributiva a resolver.[38] O problema se recoloca, portanto: como dividir bens escassos?

Podemos imaginar que, num segundo momento, os negociadores, sempre receando se encontrar em desvantagem numa sociedade onde se distribuiria em função de qualidades ou de talentos que eles não teriam certeza de possuir, escolheram, pois, em comum acordo, o princípio de igualdade pura e simples: ‘`para todo mundo, a mesma coisa”. É então que alguém observaria que, caso se concedesse um pouco mais àqueles que trabalhassem mais para a sociedade ou àqueles que fizessem um trabalho mais difícil ou àqueles que possuíssem um talento mais raro,[39] a sociedade funcionaria melhor, produziria mais bens, dos quais todos poderiam se aproveitar, inclusive os que tivessem menos talentos ou os que trabalhassem menos; em outras palavras, os menos favorecidos teriam, talvez, mais vantagens do que teriam numa sociedade em que todo mundo tivesse exatamente as mesmas vantagens. Eles adotam então os dois princípios seguintes, que podemos retomar de J. Rawls:

As desigualdades de vantagens socioeconômicas só se justificam

  • se elas contribuírem para melhorar a sorte dos membros menos favorecidos da
  • se elas estiverem vinculadas a posições que todos têm oportunidades iguais de ocupar (princípio de igualdade das oportunidades).[40]

Esses dois princípios (que para Rawls são um só) justificam expressamente certas desigualdades. Mas, como já se pôde observar, o princípio de diferença “constitui um compromisso elegante e atraente entre um igualitarismo absurdo e um utilitarismo iníquo. Em suas versões mais grosseiras, o igualitarismo exige que se distribua tudo igualmente, ainda que isso tenha como consequência não haver mais nada a distribuir, ainda que isso deva implicar que alguns não teriam nada”.[41] Em outras palavras, “o princípio de diferença afirma notadamente que a igualdade das receitas e do poder deve sempre ser preferido, salvo se desigualdades permitirem, por exemplo, ao estimular a produtividade, dar a todos (inclusive aos que têm menos) mais receita ou poder do que teriam na situação igualitária”.[42] O procedimento de estabelecimento dos princípios não culmina, portanto, num “a cada um segundo seu X”, e sim, bem mais, num “a cada um a mesma coisa” (que reflete a igualdade da posição original), salvo nos casos em que a desigualdade traz proveito aos menos favorecidos. A desigualdade dos bens não é determinada a priori, em proporção das qualidades supostas das pessoas, mas é determinada a posteriori, em função da vantagem dos menos favorecidos e ao término de um procedimento, ele mesmo, perfeitamente igualitário, que reproduz as condições da virtude individual de justiça: imparcialidade e racionalidade.

Suponhamos, portanto, resolvidos os numerosíssimos problemas levantados por esses princípios de justiça distributiva. Está claro, em todo caso, que eles resolvem a grave dificuldade colocada pela crítica pascaliana contra todo conceito racional de justiça e sobretudo contra a fórmula “a cada um segundo seu X”. Ao contrário do que se passa na justiça corretiva, na justiça distributiva não se determina o que cabe a cada um em função do que ele merece. Na justiça corretiva, é justo punir, e punir somente os que merecem: mas com a condição de que se faça isso sempre em função do que eles fazem (ou melhor, dos delitos e dos crimes que cometeram), e jamais em função do que eles são — o que permite denunciar como injustos esses sistemas penais que castigam os indivíduos pelo que eles são, homossexuais, perversos, quando não negros, judeus ou imigrantes. Merecemos ser punidos pelo que fizemos de socialmente nocivo, se e somente se (e porque) poderíamos não tê-lo feito: a lei precede — e se possível impede — o ato, e a punição é sempre a posteriori; pois, qualquer que seja a pessoa, qualquer que seja seu caráter, ela deveria sempre poder se abster de atentar contra a liberdade dos outros.

Mas na justiça distributiva, não cabe tratar cada um em função do que ele merece, a não ser, aqui de novo, por seus atos, desde que, aqui de novo, eles sejam medidos por sua utilidade social (isto é, pela contribuição ao bem de todos), não pelo valor do que cada um é, cuja determinação permanece sempre arbitrária, mas, como na justiça corretiva, pelo que cada um faz a favor (ou contra) dos outros ou na comunidade. É o que permite justificar o princípio da igualdade de oportunidades. De fato, foi possível notar, e J. Rawls em primeiro lugar,[43] que essa igualdade das oportunidades, que permite uma possibilidade real e não somente jurídica de igualdade de acesso a todos aos empregos e às posições públicas, não poderia ser completamente realizada exceto abolindo a família, por exemplo; sobretudo tem-se objetado que se trata somente de uma igualdade a capacidades e talentos dados[44] e, portanto, de uma igualdade que deixa subsistir desigualdades consideráveis associadas a diferenças inatas.[45] Ora, é aí que a objeção pascaliana retornaria: não é injusto, se tais capacidades e talentos são, como todo o resto, qualidades “emprestadas”?

A isso podemos justamente responder com as duas justificativas, que avançamos mais acima, dos princípios da justiça corretiva: assim como a “pena justa” é uma composição de duas exigências, de um lado a do interesse geral bem compreendido, que justifica a primeira escala de justiça, do outro lado a da justiça moral, que, conforme a segunda escala, exige que cada um seja julgado em função do que ele realmente fez (e que poderia não ter feito) e não do que ele é e, portanto, do que poderia fazer, assim também o justo acesso às posições públicas é, na igualdade de oportunidades, uma composição entre essas duas mesmas exigências: a do interesse geral, que justifica que os melhores talentos beneficiem a todos e que os empregos sejam ocupados pelos mais qualificados, e a da justiça moral, segundo a qual não merecemos ser o que somos, mas merecemos ser tratados em função do que fazemos (e que poderíamos igualmente não fazer), e, mais geralmente, daquilo que cada um faz do que é. O que é “recompensado” não é a “capacidade” enquanto tal (que, se isso tem algum sentido, não é uma “qualidade”, mas quando muito uma disposição), mas a ação feita em proveito de todos e que mesmo os mais talentosos podem não querer cumprir.

Os limites da justiça

Podemos agora retornar a esta virtude de justiça. Grande virtude, sem dúvida alguma, virtude exemplar, talvez virtude total em certo sentido, sim, no sentido de que é a virtude do homem em comunidade, ou melhor, da própria comunidade humana, mas virtude perfeita, não, e pelas mesmas razões. Pois a sociedade justa, ela mesma, estará longe de ser perfeita — não mais perfeita do que o homem justo.

Imaginemos essa sociedade justa, perfeitamente justa, mas que seria somente justa. Seria uma sociedade sem grande miséria (é o essencial), seria decerto uma sociedade pacificada (é determinante), seria também provavelmente sem grande ressentimento social, nem vergonha social (é importante), mas seria ela uma sociedade amical? Não é certo. Provavelmente, com a justiça, a causa essencial das tensões sociais e das inimizades seria definitivamente afastada. Mas não é por isso que na sociedade reinaria a amizade, que supõe valores comuns, um reconhecimento mútuo e, no fundo, um tratamento do outro totalmente oposto ao que é requerido pela justiça. Ao amigo devemos um tratamento particular, porque ele é amigo (e é exatamente nisso que consiste a amizade), ao passo que devemos, na qualidade de justo, um tratamento igual para todos, quem quer que seja. Decerto, um sentimento de amizade ligaria todos os membros da sociedade, mas não na medida em que ela seria justa, e sim na medida em que seria a comunidade da qual cada um faz parte: sentimento de pertença nacional, por exemplo, sentimento comunitário. Mas talvez seja também com a condição de que a comunidade não seja a única, que ela tenha um interior (que definisse o “nós”) e um exterior (um “eles”), que não é necessariamente inimigo, mas que permita ao menos definir os limites da comunidade. Chamemos “amizade”, em sentido amplo, conforme o uso antigo do termo philia, todo sentimento que ligue uns aos outros os seres humanos pertencentes a uma mesma comunidade, seja ela acidental ou essencial, seja ela natural ou convencional, do sentimento nacional à afeição entre irmãos; a condição da amizade, tomada neste sentido, é a relação privilegiada e, portanto, diferenciada, por diferença a tudo o que lhe é exterior e indiferenciado: o que condiciona o sentimento de pertencer a uma cidade é que há outras cidades além daquela à qual se pertence; o que condiciona o sentimento entre irmãos e irmãs é que existem outros seres que não são consanguíneos, etc. Vemos, pois, os limites imediatos da justiça social — e ela se deduz do que precede. Não é tanto que ela não traga a amizade por si mesma, é que ela não tem sentido, como a própria amizade, a não ser no interior de uma comunidade. A justiça não basta para criar a amizade comunitária e já supõe uma comunidade. Esta sociedade justa, na qual os homens decidem viver e negociam seus princípios, evidentemente não é a humanidade. Nada impede que os bens sejam muito desigualmente e muito injustamente repartidos entre duas sociedades vizinhas — e nada, nas regras de justiça que presidem a sociedade, obrigaria os homens a conduzir-se de uma maneira justa para com membros das sociedades vizinhas, tanto quanto não seriam obrigados a ser generosos ou caridosos para com membros de sua própria comunidade. No fundo, como a justiça só tem sentido para a comunidade e dentro da comunidade (qualquer que seja), ela enfrenta os dois tipos de limite de toda comunidade: ela não se estende, para além da comunidade, até as outras comunidades mais englobantes ou até a humanidade por inteiro; ela não desce, para aquém da comunidade, até as comunidades mais reduzidas (a tribo ou a família, por exemplo) ou até cada homem em particular.

Porque o mesmo vale para o indivíduo justo, este homem íntegro, imparcial e, em muitos aspectos, sobre-humano que é o Justo. Admiramos sua sobre-humanidade, mas talvez justamente ele peque por falta de humanidade, se for inteira e perfeitamente justo, mas se for apenas justo. Nada nele de generoso ou de caridoso, nenhum gesto gratuito, nenhum sacrifício altruísta. E, se ele não for de mármore, cedo ou tarde haveria conflito, dentro dele, entre a frieza da justiça e o calor da amizade. Entre seus dois filhos, ele é justo, imparcial, trata cada um como merece e a ambos trata igualmente, sem favoritismo. Mas será justo que ele os trate como trata todos os filhos, os do vizinho, os da terra inteira? Não seria injusto propriamente falando, mas seria imoral, porque seria contrário ao afeto e ao tratamento privilegiado que um pai deve ter com seus filhos; ou um esposo com a esposa, ou um amigo com os amigos. Quando é necessário tratar de maneira privilegiada, diferenciada, parcial, e quando é preciso tratar de modo anônimo, indistinto, imparcial? Quando é preciso ser amigo e quando é preciso ser justo? Nem a amizade nem a justiça dão respostas a essa pergunta. Quando é preciso ser generoso com os outros, generoso sem medir, generoso com este ou aquele porque é ele, porque sou eu, quando é preciso ser somente justo, contando, medindo e permanecendo cego ao que os outros são para mim? A justiça pode pesar tudo, medir tudo, mas ela não pode pesar entre ela e sua rival, a amizade, e todas as formas de devotamento gratuito que dela derivam. É decerto a maior e mais bela das virtudes, mas sua grandeza é majestosa, e sua beleza permanece sempre fria. Por isso, talvez ache­mos a bela Afrodite mais desejável do que a sublime Têmis. Entretanto, antes de preferir os encantos da deusa do amor e da amizade ao rigor da deusa da Justiça, é preciso lembrar-se de uma coisa. Que a Justiça não é toda a virtude, ou a virtude perfeita — isso reconheceremos de bom grado. Mas é tão evidente que a injustiça, sob todas as suas formas, é o pior dos males, que bastará isso para fazer da justiça a mais desejável das virtudes.

Notas

[1] Platão, República, I, 353a e s.

[2] Ver Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1,6, 1098 a 8 e s.

[3] Platão, República, I, 343c; III, 392b; e Aristóteles, Ética a Nicômano, V, 3, 11304.

[4] Ver República, IV, 442e-443a.

[5] Ibid., 436a-441d.

[6] Ibid., 441d e s.

[7] Ibid., 444b-445b.

[8] Como diz Aristóteles (Ética a Nicômaco, V, 1129a 32-35; e V, 6), ele visa à igualdade (entre todos, incluindo ele mesmo).

[9] Ou às vezes de uma comunidade à qual ele permanece exterior, quando está, por exemplo, em posição de juiz.

[10] Ver Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 7, 1132a 2-10.

[11] Ver Ética a Nicômaco, I, 13. As virtudes morais são estudadas de III, 9 ao livro V; e as virtudes intelectuais no livro VI.

[12] Ver em particular Ética a Nicômaco, II, 5.

[13] A justiça é incontestavelmente uma virtude moral, mas Aristóteles lhe consagra um livro separado (é o livro V da Ética a Nicômaco) e constata que a teoria da mediedade (ou da justa medida) só se aplica num sentido muito particular à justiça (ver Ética a Nicômaco, V, 9, 1133b 32-33). Não é o justo meio entre um excesso e uma falta desta ou daquela emoção, mas um justo meio entre duas injustiças.

[14] Sugeriu-se acima que não era o caso: pode-se ser prudente, corajoso, temperante, e pôr essas virtudes a serviço de uma vontade de causar dano.

[15] Dizemos exatamente seu “bom funcionamento”, nada mais, pois, como veremos, isso não faz da justiça uma virtude perfeita, nem sequer uma virtude social perfeita.

[16] John Rawls, Théorie de la justice, trad. Catherine Audard (Paris: Éditions du Seuil, 1987), p. 29.

[17] Ocorre com bastante frequência, em moral ou em todo outro domínio onde se trate de julgar o valor “real” dos homens, que se renuncie a avaliá-lo porque se sabe que este valor é impossível de medir, e que se ponha no lugar dele um outro valor que se sabe poder medir — em conformidade com a piada bem conhecida do homem que busca sua carteira, de noite, sob um poste de luz, não porque seja lá que a perdeu, mas porque, confessa ele, é o único lugar iluminado.

[18] Foi assim que o analisou pela primeira vez Aristóteles, que analisa essa proporcionalidade em termos de “igualdade geométrica” (Ética a Nicômaco, V, 6-7).

[19] Como observa Chaim Perelman, para que a fórmula “a cada um a mesma coisa” coincida com um “humanismo igualitário”, “seria preciso que a classe dos seres aos quais se desejasse aplicá-la fosse constituída por todos os homens. Mas é possível restringir essa aplicação a uma categoria bem mais limitada”; e o autor toma o exemplo dos aristocratas espartanos que se qualificavam entre si de homoioi (“semelhantes”), ou dos pares de França ou da Inglaterra, que aplicavam todos, mas somente entre si, essa fórmula igualitária de justiça. Cf. Chaim Perelman, Justice et raison (2 ed. Bruxelas: l’Université Libre de Bruxelles, 1972), p. 28.

[20] Ibid., p. 31.

[21] Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 8, 1133 a 26 e S.

[22] Um dos primeiros a ter generalizado essa ideia foi D. Hume, em seu Enquiry Concerning the Principles of Morals. Se, explica ele, supuséssemos uma sociedade de abundância, onde todas as necessidades e os desejos de todos os homens fossem imediatamente e naturalmente satisfeitos, não haveria nenhuma cir­cunstância em que eles poderiam ter a ideia de justiça. “Justice, in that case, being totally useless, would be an idle ceremonial and could never possibly have place among the catalogue of virtues”. Cf. sec. III, “Of Justice”, Part I, em D. Hume, Enquiry Concerning the Principles of Morals (Londres: A. Millar, 1751), p. 34. Disponível em http://books.google.com.br.

[23] Ph. van Parjis, Qu’est-ce qu’une société juste? Introduction à la pratique de la philosophie politique(Paris:Seuil, 1991), pp. 241-242.

[24] “Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiverem desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas se tornar ele mesmo a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças produtivas tiverem aumentado também e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem com abundância, somente então o horizonte limitado do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá escrever em suas bandeiras: ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!’?’ K. Marx, Crítica do programa de Gotha, I.

[25] Não pretendemos aqui resumir a posição “relativista” de Pascal sobre a justiça, a que encontramos em alguns célebres fragmentos, por exemplo nos Pensamentos 60  ou 103. Um fragmento menos frequentemente citado a propósito da justiça nos parece muito mais corrosivo e radical e é o que glosamos a seguir e cujas lições nos parecem inesgotáveis: “Que é o eu? Um homem que se põe à janela para ver os passantes; se passo por lá, posso dizer que ele se pôs lá para me ver? Não pois ele não pensa em mim particularmente; mas aquele que ama alguém por causa de sua beleza, ama-o? Não, pois a doença, que matará a beleza sem matar a pessoa, fará que ele não a ame mais. E, se me amam pelo meu juízo, pela minha memória, amam-me? A mim? Não, pois eu posso perder essas qualidades sem me perder eu mesmo. Onde está, pois, esse eu, se não está nem no corpo nem na alma? E como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades, que em nada são o que faz o eu, já que elas são perecíveis? Pois alguém amaria a substância da alma de uma pessoa, abstratamente, e algumas qualidades que ali houvessem? Não é possível, e seria injusto. Portanto, nunca se ama uma pessoa, mas somente qualidades. Que ninguém zombe mais, portanto, daqueles que se fazem honrar por cargos e ofícios, pois não amamos ninguém senão por qualidades emprestadas”(Pensées, 68). Toda a aporia da justiça se acha decerto concentrada aí, melhor do que em mil raciocínios céticos. Cf. Blaise Pascal, Pensées, Oeuvres complàtes, apres. E notas Louis Lafuma (Paris: Seuil, 1963)

[26] Ao contrário de um preconceito (mais europeu que norte-americano, aliás), segundo o qual as capacidades e os talentos são adquiridos, mais do que inatos — o que os tornaria diretamente dependentes de um tratamento pela justiça social. Também se poderia alegar que, se eles são inatos, o papel da justiça social consiste em não melhor “reparti-los”, mas em compensar os efeitos de sua desigual repartição.

[27] Pensées 60; cf. Blaise Pascal, Pensées, cit.

[28] Quando o X é a “necessidade” ou “as obras”, isso não representa grande problema conceitual, mas so­mente problemas práticos de medida (de avaliação, de comparação), porque não se trata de julgar o valor das pessoas. O problema conceitual só diz respeito à justiça, no sentido moral do termo: é possível tratar justamente os homens, isto é, como eles merecem?

[29] “Quando Kant nos manda pôr à prova nossa máxima perguntando-lhe o que se produziria se ela fosse uma lei universal da natureza, ele deve supor que não conhecemos nosso lugar no interior desse sistema imaginário da natureza.” Cf. §24, cap. 3, n9 11 em John Rawls, Théorie de la justice, cit., p. 224.

[30] Rawls acrescenta que eles tampouco conhecem o contexto particular da sociedade: “sua situação econômica ou política, assim como o nível de civilização e de cultura que ela pôde atingir” (ibid., §24, p. 169).

[31] Mais precisamente, “os parceiros somente conhecem, como fato particular, a submissão de sua sociedade às circunstâncias da justiça com tudo o que isso implica” (ibidem).

[32] Rawl observa que “elas preferem normalmente ter mais bens sociais primeiros do que menos” (ibid., §25, p. 174); sobre o fato de saber se podem ou não ser chamados de egoístas, ver p. 179; de fato, Rawls concede que elas são “mutuamente desinteressadas”; em contrapartida, não há razão para considerar que elas sejam invejosas (por exemplo, que só aceitem perder se os demais perderem o mesmo tanto) — o que faria delas pessoas irracionais (ibid., p. 175): ora, todo o procedimento consiste, ao contrário, em fazer, dos contraentes, puros indivíduos racionais.

[33] Neste ponto não me regulo pela solução rawlsiana.

[34] Kant, Ideia de uma história universal, 5a proposição.

[35] Ver §11 em John Rawls, Théorie de la justice, cit., p. 91.

[36] J. Rawls quase não fala da justiça corretiva (ver, porém, uma curta alusão, §48, P. 352). Queremos mos­trar, ao contrário, que ela é mais bem fundada do que a justiça distributiva, ou, pelo menos, que são os fundamentos da justiça corretiva que justificam a ideia de justiça distributiva.

[37] É impossível resumir, no quadro desse breve estudo, todos os estudos econômicos ou políticos e todos os debates filosóficos que esta questão pôde suscitar desde a publicação do livro de J. Rawls, Theory of Justice, em 1971: antes de tudo, as contribuições decisivas de R. Nozick, Anarchy, State and Utopia (Nova York: Basic Books, 1974); e R. Walzer, Spheres of Justice (Nova York: Basic Books, 1983); e depois, evidentemente, muitos outros trabalhos. Tem-se uma primeira ideia disso tudo no excelente livro de Ph. van Parjis, Qu’est-ce qu’une société juste? Introduction à la pratique de la philosophie politique (Paris, Seuil, 1991).

[38] Ver nota 22.

[39] Ver toda a discussãoo de J. Rawls a propósito da escolha inicial deste princípio, no § 26, em J. Rawls, Théorie de la justice, cit., p. 182.

[40] O objeto essencial do livro de J. Rawls consiste em explicar e justificar esses dois princípios, enunciados no §11 (ibid., p. 91). Evidentemente, é impossível discuti-los no quadro deste estudo.

[41] Ph. van Parjis, Qu’est-ce qu’une société juste?, cit., p. 190.

[42] Ibidem.

[43] Ver J. Rawls, Théoríe de la justice, cit., §14.

[44] Seria preciso analisar aqui o lugar que a antiga democracia dava ao princípio do sorteio de algumas funções públicas, entre outras coisas, para remediar tal inconveniente.

[45] Ver, por exemplo, Ph. van Parjis, Qu’est-ce qu’une société juste?, cit., p. 90.

    Tags

  • a cada qual o seu
  • ação
  • afetividade
  • afetivo
  • afetuoso
  • afetuosos
  • agem
  • agir
  • altruísmo
  • aplicação
  • Aristóteles
  • balança
  • bem do outro
  • bem-intencionado boa intenção
  • benévola
  • benévolas
  • bens
  • caridade
  • caridoso
  • casos particulares
  • categoria
  • categorias
  • cegueira
  • classificação
  • classificar
  • cobiça
  • cobiçada
  • cobiçado
  • coletividade
  • dar
  • definição
  • deinteresse
  • desejar
  • desejo
  • desinteressado
  • desinteressados
  • determinação
  • determinada
  • determinado
  • devoção
  • diferença
  • diferente
  • doação
  • domínio
  • dupla razão
  • egoísmo
  • emoção
  • emoções
  • esforço
  • esperança
  • estranha
  • estranho
  • exatidão
  • exato
  • favorecer
  • favorecimento
  • finalidades
  • fins
  • força
  • fórmula
  • fórmulas
  • fria
  • frieza
  • frio
  • generosidade
  • generoso
  • grupo
  • harmonia
  • homem
  • honra
  • humana
  • humano
  • igual
  • igualdade
  • imparcial
  • imparcialidade
  • inclassificável
  • indivíduo
  • índole
  • índoles
  • injustiça
  • injusto
  • inteligência
  • John Rawls
  • julgamento
  • julgamentos
  • julgar
  • justiça
  • justo
  • Liberalidade
  • lucidez
  • magnânimo
  • matemática
  • matemático
  • mérito
  • méritos
  • modelo
  • modelo aristotélico
  • modelo matemático
  • modelo platônico
  • modelo rawlsiano
  • moral
  • muda
  • mudo
  • não-intelectual
  • necessidade
  • necessidades
  • nem mais
  • nem menos
  • obra
  • obras
  • outro
  • outros
  • paradoxo
  • parte
  • partes
  • particularidade
  • particularidades
  • partilha
  • personificação
  • Platão
  • prejudicar
  • princípio
  • problema
  • pródigo
  • próprio bem
  • prudência
  • quinhão
  • razão
  • rigor
  • rigorosa
  • rigoroso
  • sabedoria
  • saber
  • Salomão
  • sentimento
  • sentimentos
  • ser
  • ser humano
  • si mesmo
  • si próprio
  • símbolos
  • singularidade
  • sociabilidade
  • social
  • sociedade justa
  • surda
  • surdo
  • temperamento
  • temperança
  • termos gerais
  • trabalho
  • tribunal
  • única
  • único
  • virtude
  • virtude cega
  • virtude fria
  • virtude moral
  • virtudes