2009

Intolerância, ou a tragédia do não-diálogo

por Eugênio Bucci

Resumo

Quando, em 2001, as Torres Gêmeas de Nova York foram alvejadas por aviões de carreira com transmissão ao vivo pela televisão para todos os países, os telespectadores que ligavam a TV naquela hora julgavam estar diante de um filme-catástrofe fora do horário habitual. Também foi assim no dia 17 de outubro de 2007, com as imagens dos tiroteios na favela da Coréia, no Rio de Janeiro. Pendurado num helicóptero, um atirador da Polícia Civil carioca disparou várias vezes até acertar dois homens sem camisa que corriam ladeira abaixo, como numa cena de um longa policial em ritmo de videogame.

Tem sido assim cada vez mais: as cores da violência explodem com seu hiper-realismo absurdo e espantam pela composição plástica. É como se o caos sangrento fosse regido por um encenador total. Como se ele fosse a obra de arte máxima. Os mais brutos instantâneos da realidade mais brutal atingem um nível apavorante de beleza trágica — beleza, ao mesmo tempo, desumana. Isso pode existir?

Entre as Torres Gêmeas — um evento de proporções globais — e a Favela da Coréia — uma notícia local —, há um denominador comum, que vai além do espetáculo aparente. Esse denominador comum é a face da intolerância sem limites, ou melhor, é a apoteose da intolerância entregue ao seu próprio apetite, a despeito dos sujeitos que lhe dão origem. Ela irrompe, feito fratura exposta, onde o tecido do entendimento ou se esgarçou ou resultou num fracasso antes de ser concluído.

Aí, a eliminação do elemento estranho se converte em imperativo, seja o estranho o que for: o modo de vida de um suposto “Ocidente” materialista e “impuro”, o corpo seminu de um homem jovem, pardo, sem rosto, sem nome, supostamente armado. A intolerância pode explodir impulsionada pela nova guerra santa, na qual o fanatismo comparece tanto do lado dos terroristas como do lado dos que tentam dizimá-los. A intolerância também se manifesta para dar curso à vingança tribal, como no caso dos policiais cuja organização espelha o sentimento de corpo das gangues de traficantes.

O terrorista é o gênio sádico da intervenção urbana, um “artista” da morte coletiva. O chefe do tráfico e o delegado rivalizam como carnavalescos do apocalipse. A violência do dito mundo real, nas lentes do jornalismo, parece pautar-se por uma linguagem própria, espetacular por certo, hiper-trágica. O mais espantoso é que ela se articula como se seguisse um roteiro da indústria do entretenimento, enquanto a indústria, ela mesma, vê-se impelida mais e mais a produzir atrações que deem conta de dar sentido ao caos sem sentido, tentando narrar o inenarrável, explicar o inexplicável, dizer o indizível. A plateia, a mesma que pensava ver um filme de efeitos especiais ao ligar a TV no dia 11 da setembro de 2001, sai de uma sessão de Tropa de elite em 2007 alegando que aquilo não é ficção, mas um documentário fidedigno. E terá, a partir de então, o paradigma posto pelo filme como a balança que lhe permitirá julgar emocionalmente os dilemas cotidianos da tal segurança pública. Com sua cabeça de plateia, o cidadão irá formar sua convicção sobre os descaminhos da violência na sua cidade e no seu mundo.

É a partir de um filme de polícia (Tropa de elite, por exemplo) que as notícias em torno da violência urbana encontrarão uma grade comum para que possam ser postas no espaço público e digeridas pelo público. É, de outro lado, a partir das cenas reais do terror que o entretenimento produzirá a mística da nova guerra santa da suposta civilização do império contra a suposta barbárie dos terroristas. No fundo de uma razão da parte que espera vencer.

O que se vai compondo, a cada volta do entrelaçamento entre os fatos e o espetáculo, é uma estética da intolerância, que a legitima como fator propulsor da violência generalizada.

O sujeito vive sob a ilusão de que o ego basta, de que as respostas já estão dentro dele mesmo, de que a solução mora na expulsão do estrangeiro, no sonho de incendiar vivos os patrões, nas técnicas de sufocar a senzala ou as favelas, esses campos de concentração ordenados segundo critérios econômicos e não mais políticos ou étnicos ou religiosos. Alegam que não há o que dialogar com os que não se abrem para dialogar. Só matando. A ninguém está autorizada a sensatez.

Na sociedade que não dialoga, ou que não tem no diálogo um valor ético, o pensamento perde lugar para as celebrações imaginárias, próprias do gozo vendido pelo entretenimento. O diálogo é banido, pois dialogar — e, portanto, pensar — é correr o risco de embarcar na hipótese de que o outro pode ter ao menos parte da razão.

A negação — superação — da intolerância não tem nada a ver com admitir a contragosto a presença incômoda do extraviado, do diferente, mas requer a iniciativa de conviver, trocar, aprender com a diferença essencial que define o que chamamos de semelhante. A ideia do diálogo é necessariamente a única que pode se propor a superar as justificativas ideológicas e míticas da intolerância. O diálogo não apenas como modalidade discursiva, mas como valor ético verdadeiramente cultivado, e como um método para ordenamento dos impasses postos no que está próximo demais para nos ferir e no que está distante demais a ponto de ser quase invisível.

Na Antígona de Sófocles, aprendíamos que a impossibilidade do diálogo conduz à ruína do óikos e à dilaceração da polis. Hoje, a ruína do diálogo indica um presságio de dilacerações ainda mais íntimas e ainda mais totalizantes.

 


No final de 2007, comprei um aparador para a sala do apartamento em que moro, em São Paulo. Aparador me parece um nome esquisito, mas é o que adotam no mercado. Outros dizem buffet, o que também me soa torto. O nome, enfim, é o de menos. Todo mundo já viu um aparador. Quase todo leitor deste texto há de ter um. E, mesmo assim, é preciso que eu descreva esse meu. Um pouco mais alto que a mesa, ele serve como suporte, um apoio para as refeições: os comensais se levantam da mesa e fazem seus pratos em pé, servindo-se das travessas dispostas ali (função, para mim, dispensável, uma vez que almoço e janto sozinho ou na companhia do meu filho, e dispomos as travessas sobre a mesa mesmo, é mais fácil e mais rápido). Por baixo do tampo, o buffet ainda traz pequenos compartimentos, onde a gente guarda copos, bebidas, pratos, talheres, toalhas, guardanapos, essas coisas.

A peça que comprei tem uns setenta anos, mais ou menos. Acho que data dos anos 1940. Estava bonita, em sua madeira clara e pés de ferro bem escuro, mas precisava de uma leve mão de verniz. As dobradiças das suas quatro portinhas já não suportavam mais a carga. Tinham de ser trocadas. Para dar conta dos reparos, a loja mandou ao meu apartamento um lustrador, poucos dias depois da entrega. Ao retirar uma das gavetas, ele encontrou, embaixo dela, uma página de jornal antigo. Era uma folha dupla do Diário Popular, de São Paulo, com a data do dia 2 de julho de 1947. Achei aquilo curioso, inesperado, meio premonitório. Abri o velho pedaço de papel sobre a mesa. Ele estava amarelado, ressecado e quebradiço. Tive cuidado ao manuseá-lo, cerimônia mesmo, como se aquilo fosse uma relíquia arqueológica. Era uma página de classificados, e um anúncio em particular me chamou a atenção. É por ele que começo o que tenho a dizer sobre intolerância:

EMPREGADA: [o título vinha todo em caixa alta].

Branca, precisa-se p/ cozinhar e lavar, não arruma, durma no emprego. Exigem-se referências e documentos. Paga-se bom ordenado. Rua Conselheiro Crispiniano, n 29, 99-, apt. 92. Falar com Dona Helena.

A experiência marcante de ler um anúncio tão explícito em seu racismo aconteceu dias antes de eu receber o convite de Adauto Novaes para falar exatamente sobre o tema da intolerância. Fiquei magnetizado por aquela estranha coincidência, refletindo, ruminando. Ia e voltava para toda parte com minha nova velha página do Diário Popular. Depois de embrulhá-la numa dessas folhas plásticas de fichário, fiquei um bom tempo andando com ela para cima e para baixo na minha pasta de trabalho. Ela não tinha lugar na minha rotina, não havia uma gaveta em que pudesse arquivá-la. Eu desconfiava de propósitos secretos naquele jornal que chegou ao meu endereço com 60 anos e alguns meses de atraso. Cheguei a escrever um artigo sobre isso, para uma coluna que mantenho no Observatório da Imprensa, a que dei o nome de A empregada branca e a intolerância tolerada.[1] Talvez fosse esse o seu propósito: começar a me intrigar com esse assunto. No artigo, registrei apenas que naquele anúncio havia intolerância racial e, ao mesmo tempo, uma tolerância, um consentimento avalizado por um jornal com relação à intolerância. É interessante voltar a isso. Para não ter de ficar escrevendo outra vez o que escrevi no Observatório da Imprensa, reproduzo, a seguir, alguns trechos desse artigo.

“A Dona Helena, a que devia ser procurada pelas candidatas ao emprego, não queria saber de domésticas que não tivessem a pele branca. Intolerância. Ao mesmo tempo, não hesitou em mandar pôr isso no jornal. Tinha segurança de que sua intolerância contaria com a tolerância dos contemporâneos. Nos anos quarenta, aquele jornal a autorizava a publicar seu veto às candidatas negras. O Brasil já não era um país escravagista, mas ainda admitia, no jornal, critérios explicitamente discriminatórios para a contratação de empregados. […]

“Nada contra ninguém”, a Dona Helena diria de si, com sobrancelhas arqueadas, “mas os negros lá e eu aqui: O que ela não queria era “se misturar”. A intolerância pode bem ser assim mesmo: uma resignação distanciada, um eles-lá-e-eu-aqui disfarçado de tolerância de cara fechada. […]

Claro que esse anúncio classificado […] é um retrato de seu tempo. […] Aquele era um país, ou, melhor, aquela era uma São Paulo de Donas Helenas intolerantes em matéria da cor da pele de suas empregadas. Ao mesmo tempo, era uma cidade tolerante com a sua intolerância racial. […] Em contrapartida, admito a possibilidade de que, ao fazer uma leitura tão categórica, eu posso incorrer, inadvertidamente, numa generalização temerária. Sim, pode ser que a minha leitura traga distorções de que não me dou conta. Claro que outros poderão olhar para o mesmo anúncio e decretar: não, isto não é racismo, mas um resquício de racismo já em extinção, isto aqui é um estágio na evolução da cultura brasileira para o não-racismo. Questão de perspectiva? Talvez, mas não apenas isso.[…]

Explico-me. Naquele tempo, desconvidar por antecipação uma pretendente negra talvez fosse mais respeitoso do que rejeitá-la pelo mesmo motivo no instante em que ela se apresentasse. Enfim, será que o que vejo hoje como signo do racismo não poderia ter sido visto, há sessenta anos, como tentativa de superação do racismo? […]
Levando adiante essa perspectiva de leitura, eu diria que o salto de sessenta anos traz até o meu olhar aquilo que hoje nos vexa — e que há sessenta anos era normal e, por ser normal, talvez fosse invisível. Penso que os leitores de 1947, incluídas aí as candidatas negras à vaga na cozinha da Dona Helena, poderiam dizer algo como “que mal há em uma patroa ter preferência quanto à cor da pele de sua cozinheira?” O raciocínio não é tão descabido. Hoje, em 2008, nós ainda achamos natural que se recrutem recepcionistas de “boa aparência”, não achamos? A cor da pele, há sessenta anos, na cabeça dos editores da sessão de classificados do Diário Popular, poderia ser algo como um atributo da “boa aparência”. Ou não?

Aliás, que história é essa de “boa aparência”? Será que dentro de trinta ou sessenta anos, caso alguns dos nossos jornais fiquem dormindo num móvel que será lustrado no futuro, essa expressão, “de boa aparência”, não poderá chocar alguns dos nossos descendentes? “[…] Isso significa dizer que o racismo acabou nas páginas dos jornais? Não exatamente. Mas significa, sim, que as manifestações explícitas de racismo recuaram. Significa que somos uma sociedade menos intolerante […]”

A nossa intolerância já não se manifesta contra a cor da pele. Não como antes. Não tão abertamente, no plano da letra posta, escancarada, na página de um diário de boa circulação. Mas, estranhamente, a intolerância anda por aí. Ela agora não se volta contra as “raças”, mas dá sinais de que se levanta contra as opiniões acerca do tema das raças. Hoje, a intolerância é mais um obstáculo para o diálogo do que uma barreira racial no mercado de trabalho — ainda que essa, lamentavelmente, ainda ocorra. Talvez não seja mais tão difícil lidar com o nosso racismo — por mais que ainda sejam tortuosos os caminhos para localizá-lo e superá-lo — como ainda é difícil lidar com a nossa intolerância no plano das opiniões sobre os pontos em que a civilização brasileira ainda guarda, ou já não, traços do racismo. A nossa intolerância é da ordem do diálogo, da obstrução ao diálogo. Como aquela outra, mais antiga, é uma intolerância tolerada, e às vezes aplaudida, como se fosse prova de valentia cívica. Não impede o acesso das moças pobres a um emprego na casa da Dona Helena de 1947, mas talvez impeça o acesso de alguns ao suporte material onde se trabalha a letra — que depois nos servirá de instância.

Não há como questionar, ou, devo dizer, não há como negar que a recusa a sequer considerar a contratação de uma empregada “não-branca” — que, na verdade, significa “negra” — constitui uma expressão clara (e escura) de intolerância. Pelo menos a meu ver, temos aí uma obviedade que chega a ser enfadonha de tão óbvia, e não é desse tipo de questão que pretendo me ocupar. Também me parece fora de dúvida que a tolerância para com a intolerância serve para que a primeira legitime a segunda, dando a esta uma roupagem menos brutal, menos prepotente, menos intolerante, digamos. A intolerância, de um lado, e a tolerância da intolerância, de outro, trançam-se as pernas e se acomodam no curso do tempo, num processo de autorizações morais recípro­cas. Dessa interpenetração e dos limites éticos que ela requer em sua evolução, disso, sim, devo tratar de modo um pouco mais detido ao longo deste texto. O racismo entrou aqui apenas como um pretexto, um ponto acidental de início, nada mais. No mais, a persistência do racismo no Brasil, uma força opressiva real e truculenta em todas as suas dissimulações e seus amaciamentos, essa, digamos, “persistência evolutiva”, também ela uma obviedade, não constitui propriamente um desafio novo à interpretação, ainda que seja um embaraço e tanto ao que se tem chamado de marco civilizatório brasileiro.

O problema central deste texto é o que, apenas esboçado, aparece no parágrafo final do meu artigo para o Observatório da Imprensa, qual seja, a hipótese de que as barreiras ao diálogo constituem a mais nova e mais ameaçadora face da intolerância. Aqui, a palavra diálogo é a palavra central. A intolerância talvez deva ser pensada hoje muito mais no plano da linguagem, da comunicação, do acesso dos diferentes não ao reconhecimento e atendimento de seus direitos — o que também é vital, não se discute —, mas à sua própria forma de representação de si. A intolerância é hoje menos aquela que impede a abertura de espaços para, dentro deles, acomodar os segmentos de excluídos, de banidos ou de proscritos e, desse modo, reservar a eles uma inscrição no discurso do­minante, sob as regras do discurso dominante, fazendo do diferente um semelhante, e é muito mais aquela que obstrui a formação do discurso próprio do diferente, recusando-se a aceitar no diferente uma expressão autônoma com a qual é preciso dialogar horizontalmente.

Aí, a qualidade do diálogo tem a ver com abrir compatibilidades onde antes só poderiam existir rechaços. Trata-se de abrir pontes linguísticas que atravessem as muralhas que segregam. Por isso, este texto vai propor um estatuto ético para que se possa requalificar a modalidade discursiva do diálogo. Só ele, na perspectiva aqui adotada, pode conter a via de superação da intolerância.
Quando esquecidos os efeitos da intolerância, a palavra tolerância pode soar um tanto quanto tola. Perde-se a paciência com ela.[2] Às vezes, admitamos, com razão. Essa palavra, tolerância, pode ser um ônibus onde cabem todos os humanos e mais alguns e, quando nos acontece de tomá-lo, ele pode nos deixar em estações que não passam de caricaturas, como aquelas sanhas reivindicatórias hoje catalogadas no folclore do politicamente correto. Não obstante, não há como passar sem ela. O seu valor é imenso, não pelo que ela representa como virtude — que, aliás, é considerada menor, como logo veremos —, mas pelo que ela contém de negação do vício da intolerância, cujas consequências têm sido arrasadoras.

A ideia de tolerar impõe bem mais do que simplesmente uma aceitação passiva, resignada, à qual nos rendemos pela falta de alternativas, uma espécie de são-eles-lá-e-eu-aqui-já-que-posso-eliminá-los-todos-logo-de-uma-vez. Em um artigo chamado “O Eros das diferenças”, Sérgio Paulo Rouanet alertava: “as diferenças não devem ser apenas toleradas, porque do contrário elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se comunicariam no espaço público; deve ser uma virtude que cause interpenetração dos diferentes”.[3]

A tolerância supõe muito mais que uma coexistência a contragosto, uma coexistência que nega a convivência, embora em sua origem significasse mais ou menos isso mesmo. Do latim tolerantia, o termo designa a capacidade de suportar — mais no sentido moral do que físico —, com indulgência, um peso, um desconforto, uma adversidade.[4] Em comparação com as grandes virtudes, como a coragem, a temperança, a justiça ou a própria sabedoria, a tolerância é sempre apontada como menor. Mesmo assim, mesmo menor, é indispensável: ela surge como transição para valores mais altos, existe como entremeio, ou, ainda, como a mediação de um estado a outro.[5] Para Rouanet, ela deve ser vista “como passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das diferenças”. Transição, mediação, passagem. Se estivéssemos falando de gramática, a tolerância não seria nem sujeito nem objeto, nem complemento nem predicativo, mas um verbo de ligação. Ela tem um peso bem inferior ao dos elementos que a rodeiam, o sentido a atravessa sem ter que parar ali dentro, sem prestar atenção às suas escassas instalações de signo-ponte, e, não obstante, sem ela o sentido não poderia transitar.

A tolerância é um elo, só isso. Diferentemente de outras virtudes, que se expressam no caráter e no temperamento de alguém, tem esse atributo de manifestar-se na relação entre as pessoas. Enquanto as virtudes cardeais se realizam na conduta dos homens virtuosos, a tolerância apenas pode existir no encontro entre os homens. Enquanto as outras são virtudes do ser, a tolerância é uma clara virtude do entendimento, ainda que se alicerce, como é óbvio, na disposição do ser à descoberta respeitosa do outro. Apenas a disposição, contudo, não basta. É preciso que haja encontro para que a tolerância se manifeste. Ela é, necessariamente e sempre, uma virtude compartilhada — uma virtude que só existe quando se faz a ligação entre sujeito e predicado. Assim, conforme proponho aqui, a tolerância só ganha sentido quando compreendida na instância da comunicação.

É aí que entra a ideia do diálogo — não apenas como modalidade discursiva, mas como virtude social, ou, em outras palavras, como a própria materialização, no campo da linguagem, da virtude da tolerância. E o que pesa sobre os ombros do exercício do diálogo não é pouco: cabe a ele vencer nada menos que a intolerância, esta que tem sido apontada como um dos vícios mais nefastos, se não o mais nefasto, na sociedade contemporânea. Deixemos de lado, portanto, as considerações sobre a modesta virtude da tolerância e voltemos ao gigantesco vício da intolerância.

Logo na introdução da Declaração de princípios sobre a tolerância, aprovada pela XXVIII Conferência Geral da Unesco, em Paris, em 16 de novembro de 1995, os Estados-membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura chamam a atenção para a tragédia generalizada em que se converteu a intolerância. Eles se declaram:

alarmados com a intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade e também pelo aumento dos atos de violência e intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento.

Se a luz da tolerância não se acende no caráter de um, mas no encontro entre dois ou mais que buscam o entendimento, a tragédia da intolerância deita sua sombra na impossibilidade da convivência, quando não da mera coexistência, entre os diferentes. Quanto mais complexa a sociedade global, mais esse vício se faz ameaçador e destrutivo. Num tempo em que as fronteiras nacionais se liquefazem — processo que pode ter sinais positivos ou negativos, conforme o ponto de vista —, a intolerância impõe cercas elétricas, terrenos minados, guetos, privações, assassinatos, genocídios, censuras.

A intolerância germina no solo das convicções que não admitem divergências. Uma recapitulação rápida dessa chaga, que se avolumou com a complexificação das relações sociais em escala global, vai mostrar que ela remonta à história das brutalidades cometidas em nome da fé. Evidentemente há mil maneiras de contar essa história. Aqui, vamos tomar como ponto de partida a Roma dos Césares. Ali, o cristianismo era uma seita perseguida, vítima da Intolerância. Depois, tornado religião oficial de Roma, cruzará a Idade Média como uma igreja que empreendeu as mais violentas perseguições religiosas de que se tem notícia. Nesse percurso, constrói-se o significado que a palavra carrega até nossos dias.

Iniciemos a nossa breve recapitulação com Júlio César, proclamado “ditador perpétuo” de Roma e depois assassinado no Senado com 23 punhaladas por um grupo de conspiradores, entre os quais seu filho adotivo Brutus (“Até tu, Brutus?” — “Tu quo que, Brute, fili mi?”—, teria perguntado o ditador, segundo a história um tanto folclorizada, antes de cerrar os olhos, aos 55 anos de idade, no ano 44 a.C.). A Júlio César nunca foi dado o título de imperador, mas o seu nome se converteu no título honorífico que distinguiria os imperadores que o sucederam. Os césares de Roma, divindades terrenas acima do bem e do mal, eram os portadores de todo o poder. A coroa de louros emoldurando-lhes a fronte era a insígnia que os marcava como vencedores. Vários deles mandaram cunhar moedas tendo seu próprio perfil em relevo, com louros sobre os cabelos.

Contra a palavra final de um césar, uma vez proclamada, não era admitida contestação. Nem política nem militar nem religiosa. Tanto que Roma se dedicou, às vezes mais, às vezes menos, a maltratar e mesmo exterminar os cristãos.

Com o passar dos séculos, porém, a perseguição se abrandou. É interessante notar que a palavra tolerância vem à tona justamente nas fases de relaxamento do combate aos seguidores de Jesus Cristo. No ano 261, o imperador Galieno, sob ataques sucessivos dos persas, lança o primeiro Edito de Tolerância. Por meio desse ato, reconheceu o cristianismo como religião legal — não ainda como a religião oficial do império — e mandou restituir aos cristãos as propriedades que a eles haviam sido confiscadas.

Depois, a liberdade religiosa para os cristãos sofreu refluxos, até que, no ano 313, o imperador Constantino promulgou o seu Edito da Tolerância. Conta-se que Constantino, em guerra contra o seu rival Maxêncio, teve uma visão mística e, orientado por ela, mandou retirar a imagem da águia que ornamen­tava os escudos de seus soldados para substituí-la pelas iniciais em grego de Jesus Cristo, encimadas por uma coroa, não de louros, mas de espinhos. No dia seguinte, na ponte Milvio, sobre o Tibre, enfrentou Maxêncio, que morreu na batalha. Constantino se converteu ao cristianismo. Roma, porém, manteve-se pagã. Foi só com Teodósio, o Grande, que governou de 379 a 395, que o culto pagão foi suprimido e o cristianismo foi alçado ao posto de religião oficial.

Começaria, então, uma nova doutrina, que passou a “ditar comportamentos” a partir do “poder central”, nos termos da conferência memorável que o professor Dalmo de Abreu Dallari proferiu em São Paulo, no Seminário Cultura e Intolerância.[6] O professor lembrou que, “com o fim da Idade Média, a Igreja, além da liderança espiritual, quer a liderança política, temporal, e se torna extremamente intolerante. Basta lembrarmos o que foi a Inquisição, que ela chamava de ‘santa’ Inquisição. Essa intolerância será uma das causas ou, talvez, até a causa do cisma religioso, do nascimento dos protestantes, de Lutero, de Calvino”.

Um dos capítulos mais clamorosos dessa longa história de crimes aconteceu na França, em 24 de agosto de 1572: a noite de São Bartolomeu. Somente em Paris, nessa única noite, 3 mil protestantes foram exterminados. Dezenas de milhares perderam a vida em toda a França.

Naqueles anos, prevalecia o entendimento de que a religião era assunto da órbita do monarca, que tinha o direito de interpretar as escrituras e de impor aos súditos a sua própria fé — uma tese que teve no inglês Thomas Hobbes (1588-1679) um dos seus mais destacados defensores. Contra essa mentalidade, levantou-se a pena de outro inglês, John Locke (1632-1704), com a Carta sobre a tolerância, obra escrita em latim, no exílio, em 1685, e publicada anonimamente em 1689.[7] Nesse livro, Locke afirma que os assuntos que unificam os homens no pacto em sociedade se referem à proteção de seus direitos, de seus bens e de suas liberdades. A religião, segundo Locke, fica fora disso — pertence à órbita das escolhas individuais, não cabendo ao Estado interferir nessa órbita. Diz Locke: “A comunidade me parece ser uma sociedade de homens constituída somente para que esses obtenham, preservem e aumentem seus próprios interesses civis. Por interesse civil, entendo a vida, a liberdade e a salvaguarda do corpo e a posse de bens externos, como dinheiro, terras, casas, móveis e assim por diante”.[8]

Segundo o filósofo, cabia aos fiéis, não ao soberano, avaliar se era adequada ou não a religião tal como professada pelo cidadão livre: “Admito ser uma igreja uma sociedade voluntária de homens que se juntam por acordo próprio, de modo a adorar Deus publicamente de uma maneira que eles julguem aceitável por Ele e efetiva em relação à salvação de suas almas”.[9]

A Carta sobre a tolerância estabelece um divisor de águas na história das liberdades. A partir de Locke, ensina o jurista Fábio Konder Comparato, a tolerância deixa de ser vista apenas como virtude moral e passa, também, a ser considerada um dever jurídico do Estado e dos particulares entre si: o dever de garantir a todos o direito de professar livremente suas convicções religiosas.[10] A liberdade de culto não mais depende da benevolência do monarca ou do imperador — como no tempo dos césares. Agora, ela se inscreve na ordem dos direitos naturais do cidadão. Trata-se, efetivamente, de uma passagem — para, usar outra vez essa palavra-chave — nada banal, que desloca o pensamento político, no que diz respeito à religião, de um estado de tirania (que era admitido por Hobbes) a um estado de livre escolha individual (que será proposto por Locke).

O valor da tolerância na modernidade[11] ganhou novo impulso com uma obra do pensador francês François-Marie Arouet (1694-1778), que se tornou célebre com seu pseudônimo de Voltaire, Tratado sobre a intolerância, publicada em 1763.[12] Nela, Voltaire tratou de um julgamento inteiramente forjado, uma farsa, que terminou na condenação de um inocente, Jean Calas, um cidadão que, em um país de maioria católica, violentamente intolerante, convertera-se ao calvinismo. No ano de 1761, mais exatamente no dia 13 de outubro de 1761, um dos seus seis filhos (quatro homens e duas moças), Marc-Antoine Calas, de 29 anos, aparece morto, estrangulado, com marcas de cordas no pes­coço. Jean Calas foi acusado de matar o próprio filho, que, como alegado, iria se converter ao catolicismo. Segundo Voltaire apurou, o que se montou foi uma falsificação grotesca. Sob provas inventadas, em 9 de março de 1762, Calas acabou condenado. No dia seguinte, diante de uma multidão, foi executado na roda da tortura — o que revestiu a execução de um caráter religioso, pois a roda da tortura era um instrumento adotado pela Igreja Católica exatamente para extrair confissões. Como Calas não confessou o crime, seu cadáver foi queimado logo em seguida, numa afronta ostensiva ao calvinismo, contrário à cremação.

Voltaire denunciou a farsa com decisão e clareza. Mostrou como a intolerância era uma agressão aos direitos naturais da pessoa humana. O seu livro, que saiu das impressoras em abril de 1763, foi proibido na França, mas, mesmo assim, teve enorme repercussão. Em 9 de março de 1765, a Justiça reconheceu o erro e inocentou a família. Jean Calas foi reabilitado.

Em grande medida, essa histórica revisão judicial se deve a Voltaire. O seu livro, contudo, e não apenas pelos seus méritos, deixa elementos para a reflexão. Embora não possa haver dúvidas sobre a contribuição do Tratado para a causa da liberdade, algumas de suas passagens permanecem controversas. No capítulo “Se os judeus foram tolerantes”, por exemplo, Voltaire afirma em diversos trechos que os cristãos não tinham problemas com os romanos, mas com os judeus. Para argumentar que foram os judeus que acusaram Paulo de querer profanar a lei de Moisés, cita os Atos dos Apóstolos.[13] No capítulo “Acerca do perigo das falsas lendas e acerca das perseguições”, conta que os judeus insultaram Jesus Cristo no instante em que São Romano é lançado à fogueira, da qual sairá com vida, “triunfante”. Em virtude de trechos como esses, ainda que afirme que os judeus vêm de uma cultura tolerante — inclusive com as idolatrias — e que Cristo ensinou a tolerância, o texto de Voltaire foi acusado de antissemitista.

Em palestra durante o Seminário Cultura e Intolerância, Mauro Maldonato observou:

“O Tratado de Voltaire, tão enérgico e afiado na crítica da intolerância tradicional, tende a manifestar alguns elementos antissemitas e a esquecer a relação entre a condição judaica na Europa e o princípio de tolerância, como lhe será vigorosamente repreendido em 1769 por alguns representantes das comunidades judaicas em Lettres de quelques juifs portugais et allemands à M. de Voltaire. Os redatores afirmam abertamente: “O senhor só vê neles (os judeus) um Povo ignorante e bárbaro, que une a mais sórdida avareza à mais detestável superstição e ao mais horrível ódio para com todos os Povos que os toleram e os enriquecem”. A Voltaire, o tolerante, que afirma: “não se pode queimá-los”, os autores das Lettres respondem: “não basta não queimar os homens: é possível queimá-los com a caneta e esse fogo é ainda mais cruel na medida em que seu efeito permanece até as gerações futuras”.

Independentemente de saber qual dos lados tinha mais razão, resta evidente que, já na época de Voltaire, é na instância da comunicação que se tecem as redes de combate à intolerância e que, simultaneamente, é também nela que se podem perpetrar novas formas, talvez, mais duradouras de intolerância. Entre uma possibilidade e outra, há que se indagar sobre limites do que são a tolerância e a intolerância nos planos do simbólico e do imaginário. O que explica que, uma peça literária de denúncia da perseguição religiosa, perseguição que culmina com a execução de um inocente, e que consegue mudar a mentalidade de seu tempo, também abrigue formulações passíveis de ser interpretadas como campanha de maledicência contra um povo?

Podem arriscar-se hipóteses. De um lado, existiria, inerente ao discurso que condena o mal, como o de Voltaire, a necessidade de se deslocar o papel do estranho, do estrangeiro, do potencial inimigo, expelindo-o para fora de um círculo maior, concêntrico em relação ao primeiro, mas um pouco mais ampliado. Desse modo, o estatuto do que é aceitável, a credencial do pertencimento, é estendido a um grupo também ampliado em número e em diversidade, mas a necessidade discursiva de identificar aquilo em relação a que nos diferenciamos — de apontar o elemento externo em relação ao qual se estrutura um “nós” — permanece. Teríamos, a levar em consideração essa hipótese, um movimento de expansão das liberdades e dos direitos daqueles que se incluem no círculo, e que conformam o “nós”, que não elimina, mas substituti formas de intolerância mais primárias (físicas) por outras que poderíamos chamar de mais sutis (simbólicas). A tendência predominante desse círculo, que dá o perímetro do conjunto amparado pelos direitos universais, é de ampliação. Ele se expande, como se fosse essa a sua inclinação inercial. Excepcionalmente, em períodos marcados por xenofobia, de fascismo, nazismo ou neonazismo, ele sofre retrações, contrai-se para dentro de si mesmo, deforma-se, deixando no espaço público a impressão de uma cicatriz simbólica agressiva e rancorosa. Por excelência, é no plano da comunicação que se podem visualizar esses mo­vimentos — aqui expostos de modo rudimentar, apenas como hipótese.

De outro lado — o que pode ser visto apenas como reação reflexa ao que foi exposto no parágrafo anterior —, é possível que as antenas sensíveis para a questão dos direitos também se complexifiquem e especializem-se, de sorte que elas passam a captar focos de intolerância discursivos que antes teriam passado sem ser notados. De um modo ou de outro — por um lado ou por outro —, a partir daí, a intolerância se revela um tema próprio do discurso, da linguagem, da comunicação. Ela deixa de ser vista como aquilo que restringe ou cerceia o exercício da liberdade religiosa, ou que agride, sevicia e mata as pessoas em função de suas escolhas religiosas, às vezes meramente presumidas, e passa a ser estendida, também, como a prática da detração moral, que indiretamente incita a perseguições.

Isso nos leva a indagar sobre os alcances da intolerância — de modo especial, no campo da comunicação — e sobre os limites da virtude da tolerância. São limites vitais, pois não se pode ser tolerante com tudo. Há mentalidades e práticas que, efetivamente, não podem ser toleradas de modo algum, ou a tolerância se tornaria apenas um sinônimo palatável para pusilanimidade e frouxidão moral. Se um documento de combate à intolerância pode conter o germe de outra modalidade de intolerância, como definir os limites daquilo que pode (deve) e do que não pode (não deve) ser tolerado? A virtude da to­lerância não pode ser “tolerante” com relação a quê? Que tipo de conduta ela não pode aceitar? Há um ponto a partir do qual a tolerância deve mostrar-se intransigente? Qual é esse ponto?

O estabelecimento desses limites não é tão simples. Com a palavra, Voltaire:

Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é ne­cessário que esses erros não sejam crimes; eles só são crimes quando perturbam a sociedade; perturbam a sociedade a partir do momento em que inspiram o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens comecem por não ser fanáticos para merecer a tolerância.[14]

O princípio da legalidade é justo e necessário. Demarca uma fronteira bastante clara. Para os que pregam e praticam a intolerância contra os demais, só deve restar a punição: sua conduta deve ser tipificada como crime, para que a pena seja estritamente legal. Ao mesmo tempo, Voltaire estabelece que, para ser merecedores da tolerância, os homens não podem pecar pelo fanatismo. Aí temos um limite mais problemático — e é ele que nos interessa. Como ele é traçado? Em Voltaire, conforme já vimos, os contornos desses limites dão margem a permanências de sementes para uma nova modalidade de intolerância religiosa. O que é fanatismo? Quem define o que é ser fanático? A resposta dependerá daquele que tem a iniciativa discursiva, aquele que detém, de algum modo, a titularidade de separar o certo do errado. Há, portanto, aí, uma fala de autoridade, o que tende a qualificar o outro sem ouvi-lo, de forma que, se não resultar de um diálogo horizontal, a separação entre o fanatismo e o não-fanatismo será posta como ato discricionário, dando lugar, ao menos em tese, ao que chamei de novas modalidades de intolerância.

Mesmo em Locke, que se levanta contra os intolerantes e também modifica a mentalidade de seu tempo em favor da liberdade, havia um indício de nova intolerância: ele acreditava que havia um tipo de homem, além dos intolerantes, a quem não deveria ser concedida a tolerância, e esse tipo de homem era o ateu. “Não podem ser tolerados aqueles que negam a existência de Deus. As promessas, os pactos e os juramentos que formam as ligaduras da sociedade humana não podem ter valor para um ateísta.”[15]

Locke não via possibilidade lógica de um ateu se deixar guiar pelos mesmos parâmetros éticos observados por um temente a Deus e, coerentemente, discriminava-o. Sabemos hoje que a conduta ética independe do tipo de fé que cada um abrace, assim como independe de que se abrace, ou não, qualquer tipo de fé considerada lícita. Ocorre que, mesmo no tempo de Locke, isso já deveria ser sabido — e respeitado. Por isso, vale perguntar: não seria essa sua postura, também, uma semente de novas formas de intolerância, um estímulo para perseguições que se seguiriam?

O mais interessante, aqui, é que, fora da constante negociação de sentido entre os interlocutores, não há caminho para a superação dessas novas indefinições. Não há saída, enfim, que não seja o diálogo. A expansão da diversidade é que regula esses limites e esses contrapesos. Outra vez, só o exercício da tolerância, não como direito positivado, apenas, mas como diálogo incessante, pode promover o gradual esclarecimento acerca desses limites, que não são nem serão fixos.

Depois de Locke e Voltaire, o debate não cessa. Ao contrário, ele praticamente se generaliza e, mais ainda, por vezes até se banaliza, passando a operar por lugares comuns e por slogans estéreis — histéricos também, como os do politicamente correto. Para além desse patamar da banalização, ainda há em aberto, em torno dos limites da tolerância, encruzilhadas graves, sobre as quais é útil que se façam breves considerações.

Por exemplo: é fácil dizer que não se devem tolerar crimes de sangue praticados contra qualquer pessoa — contra as autoridades, inclusive. Mas, em certas circunstâncias, a violência que se volta contra o tirano pode ter justificativas, não legais, em termos estritos, mas justificativas postas pelos princípios dos direitos humanos, que admitem a reação contra ditaduras e regimes que rompem com a ordem legítima, usurpam o poder, violam direitos fundamentais e transformam a máquina estatal em máquina de opressão. Assim, é praticamente unânime, atualmente, o entendimento de que deve se dar tratamento diferenciado àqueles que se insubordinam e, em armas, enfrentam os tiranos.

A questão é que, no calor da hora, não é simples discernir a fronteira que separa o crime comum da luta justa. O assassinato de Júlio César, por exemplo: foi um crime ou uma ação legítima? Para muitos, seria justificado o uso da violência contra um ditador como Pinochet. O fato de que, para muitos desses, não ser admissível a simples insinuação do uso da força contra Fidel Castro, que, quando no poder, também esteve à frente de um regime que suprimiu direitos politicos dos cidadãos, indica o nível de mal-estar a que esse tema pode conduzir. A discussão, se eu a abrisse aqui, seria interminável — simplesmente porque não está resolvida.

Agora, façamos indagações análogas sobre uma forma ainda mais embaraçosa de crime: a corrupção. Quanto a isso, parece persistir entre nós uma forma singular de resiliência moral, de tal sorte que aquele que se rende a ser tolerante com a corrupção — não qualquer corrupção, mas uma certa corrupção, aquela que apoiaria um objetivo político julgado mais justo e mais elevado — supõe poder conservar o seu estado original de sujeito ético. Como regra, a corrupção é crime — e, nessa condição, dentro do regime democrático, não pode ser tolerada. Para alguns, contudo, alguns que falam em nome da ética pública, a corrupção pode ser excepcionalmente admissível, desde que se destine a abastecer as finanças partidárias, que representariam a causa dos oprimidos, que se materializaria no partido, portador que é do, digamos, “interesse universal”. Segundo esses, um pequeno desvio, localizado e circunstancial, pode beneficiar, no futuro imediato, a todos, e não àquele que o praticou. Isso vai a um ponto tal que, em certas ocasiões, não apenas se toleram os operadores da corrupção como é comum incensá-los como heróis. Corruptos presos que não “entregam” seus cúmplices são vistos como “mártires” morais da “causa”.

Pois bem: pode-se tolerar a corrupção? Os seus agentes devem desfrutar dessa “licenciosidade ideológica”, que vê neles “criminosos sociais de colarinho branco” ou “transgressores do bem”? Se não, podem-se acobertar os que são tolerantes com a corrupção? Qual a medida?

A ética política, ou a ética na política ou da política, não constitui tema deste texto e, portanto, as perguntas acima não serão aqui enfrentadas. Elas só são mencionadas para reforçar a evidência de que a tolerância pode facilmente se converter no seu oposto ao não serem rigorosamente observados seus limites éticos. A clareza sobre os limites, aí, faz toda a diferença. Caso contrário, passaremos a chamar de tolerância ao cinismo das “vistas grossas” e abriremos toda espécie de permissão para o emprego das “tolerâncias táticas”. Cairíamos, então, no próprio oposto da virtude da tolerância. Ao consagrar aquilo que requer o atropelo da ética, ao admitir em silêncio condutas ilegais como se fossem práticas legítimas, ao aceitar como normais, na democracia, condutas que talvez fossem justificáveis se praticadas sob regimes de exceção, não estaríamos, assim, construindo um ambiente, ainda que incipiente, de cumplicidades que, ao acobertar o intolerável, tendem a não dificultar a expectativa social de transparência nos negócios públicos e a vigência plena do Estado de Direito? Isso não seria a negação da democracia, o único regime que torna possível a virtude da tolerância?
Outro exemplo: pode-se tolerar a mentira sobre um fato de interesse público em nome da preservação de um governo que, à luz do entendimento particular de quem pactua com tal mentira, traz benefícios maiores para o povo? Será que um governo vale mais que o segredo sob o qual ele se protege? Se respondermos afirmativamente, devemos também admitir que isso afronta claramente o que se deveria ter como postulado elementar: um governo que se sustenta sobre uma mentira deve cair. É mesmo o caso de perguntar: será que os eleitores, em seu conjunto, tolerariam o acobertamento de tal mentira?

Se nos afastarmos agora de perguntas que se referem a objetos mais domésticos e tomarmos por base acontecimentos de grande vulto no século XX, veremos que o mesmo tema, o dos limites da tolerância, diz respeito diretamente às barbáries mais indizíveis, mais impensáveis: de algum modo, elas foram urdidas em nome da civilização. Do Holocausto — que se assenta sobre a intolerância aos judeus — à guerra da Bósnia, de Auschwitz à Kolyma, do 11 de setembro à guerra do Iraque e a Guantánamo, do racismo na Europa às guerras tribais na África. Que parte disso tudo não foi cometida sob a alegação de proteção dos fracos e de construção do “futuro melhor” — e que parte disso não contém os germes, ou mesmo o corpo inteiro, da intolerância?
Se há um plano em que os extremos sempre se igualam, este plano é justamente o da intolerância. Aqui, a prudência recomenda uma dose de ceticismo diante do brilho do olhar dos que afirmam ser portadores do futuro luminoso. Não serão eles, de algum modo, fanáticos? Do ceticismo relativo podem resultar indicações para os limites necessários. Como eu já disse, eles não são fixos, mas isso não significa que sejam inexistentes.

Guardo em meu notebook a imagem de uma moeda com a efígie de Júlio César. Ali enxergo a face do césar, por definição. Nos anos 1920, Antonio Gramsci apontou em Mussolini “o césar moderno”. A partir de então, também no Brasil o termo cesarismo ganha as páginas do pensamento de esquerda. Em 1943, Paulo Emílio Salles Gomes escreve, na revista Clima, que editou com Antonio Candido e outros, num artigo chamado “Comentário”:

Num plano, o mais geral possível, acreditamos em dois princípios teóricos fundamentais que são defendidos pelo conjunto das Nações Unidas. Primeiro, a igualdade não só política mas econômica de todos os homens. Segundo, o respeito devido à personalidade humana, o direito da pessoa humana à liberdade […] No fascismo, que se opõe a esses dois princípios, na teoria e na prática, pelas suas castas de super-homens e pelo esmagamento da personalidade humana, no fascismo denunciamos o perigo de ruptura histórica da civilização ocidental. Denunciamos o perigo e a possibilidade da morte dessa civilização ocidental. Denunciamos o cesarismo.[16]

Sobre isso, em entrevista para a revista Teoria & Debate, Antonio Candido declarou:

Este documento [o “Comentário” de Paulo Emílio] ainda tem interesse, e para mim foi o fixador de ideias, o definidor da posição política. Foi certamente ele que me levou a não ficar nem stalinista nem trotskista, mas a aceitar a posição preconizada por Paulo, de um socialismo democrático desinteressado das Internacionais, procurando soluções adequadas ao país, empenhado na luta contra o fascismo, porque esta era a manifestação contemporânea do cesarismo oposto à tradição humanista, que provinha do cristianismo por meio das revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX. A hipótese otimista do “Comentário” era que depois da guerra haveria uma síntese da igualdade (representada sobretudo pela União Soviética) e da liberdade (representada sobretudo pela Inglaterra e pelos Estados Unidos). Este documento foi decisivo para mim e outros. A partir dele entrei para valer na militância.[17]

Em face dos extremos — que se igualam na intolerância Antonio Candido sugere o caminho do meio. Entre o trotskismo e o stalinismo, ele esboça a tese do “socialismo democrático”, embora o trotskismo, como corrente de militância crítica à burocracia soviética, não possa ser equiparado, em nenhum nível, à máquina totalitária do stalinismo. Em seguida, o professor fala de uma síntese que poderia ser produzida pelo encontro do eixo da igualdade (União Soviética) com o eixo da liberdade (Estados Unidos). Ainda que não houvesse um único traço de promoção da igualdade na tirania stalinista, ela representou, para várias gerações, a bandeira da igualdade — ela logrou usurpar a bandeira da liberdade —, assim como os Estados Unidos representaram a bandeira da liberdade. O que interessa a Antonio Candido e Paulo Emílio são os valores e os princípios em causa, não a materialidade das conjunções políticas e suas circunstâncias. Distanciados dos cálculos estratégicos (as Internacionais) e dos extremos, ambos enunciam um discurso que se inscreve no plano da ética.

Sem o dizer, repudiam toda forma de intolerância. É mesmo possível supor que uma concepção igualitária e libertária de tolerância, a tolerância como valor, no seu sentido mais elevado, anime o pensamento dos dois militantes brasileiros.

A noção de que a virtude está no meio, que deve ser creditada a Aristóteles, não se aplica, bem o sabemos, a escolhas partidárias. Definitivamente não é verdade que, extraindo-se a média aritmética entre “trotskismo” e “stalinismo” se chegasse a uma solução histórica para a esquerda daqueles tempos. Quanto a isso, não há nada, rigorosamente nada, que possa ser aproveitado do legado de Stalin e do monstruoso Estado de que fez sua morada. Do mesmo modo, não há um ponto equidistante entre os Estados Unidos e a União Soviética, nem mesmo a social-democracia europeia. Não obstante, há a virtude da prudência no modo como Antonio Candido e Paulo Emílio rechaçam os extremos nos quais identificam o que poderíamos chamar de fanatismo. Em Aristóteles, a ideia de buscar o caminho do meio se refere muito mais a uma espécie de administração que nos cabe em relação às nossas próprias inclinações morais. Melhor explicando, trata-se de uma questão de dose. Aristóteles nos dá o exemplo da coragem que, em excesso, é temeridade — que é vício, não virtude — e, em escassez, é covardia. Quer dizer: a coragem só é uma virtude quando posta na sua justa medida, e a justa medida fica no meio. A temperança e a justiça também tendem ao caminho do meio. Que relação há entre isso e as ideias dos dois socialistas brasileiros? Penso que a relação que existe é a busca da justa medida das coisas, a ideia de que a igualdade não pode sufocar a liberdade, nem vice-versa, e, no limite, repousa aí também a ideia de que não se deve pactuar com as doutrinas que, para validar-se, requerem a extinção de seus contrários. É por isso que vejo nesse pensamento um voto de confiança na tolerância e, mais que isso, um rascunho de limites para a própria tolerância, quero dizer, esse pensamento se assenta sobre pontos a partir dos quais a tolerância, para se resguardar em sua integridade e para resguardar a integridade daquilo que lhe cabe tolerar, deve converter-se em recusa.

O cesarismo, portanto, não esteve aí para ser tolerado, e sim para ser combatido — e esse combate é uma forma de se proteger a tolerância. O que faltou, e ainda falta entre nós, é dizer com todas as letras que o stalinismo foi a expressão mais torpe que se pode conceber de cesarismo no século XX. Mais, bem mais ainda que o nazismo, pois na União Soviética se ergueu o cesarismo sobre o túmulo dos que empunharam a bandeira da igualdade.

Em 1983, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, participei de um movimento político que apontava, nos polos do que restara de Guerra Fria, o fator da barbárie global. Os estudantes juntaram o “The” do “The New York Times” ao “Pravda” soviético, com os tipos em cirílico, para formar o vocábulo ThePravda, ou Thellpawka, que sintetizava a tendência destrutiva do mundo polarizado. Por meio de um artificio gráfico e linguístico, os dois sistemas incompatíveis não só se aproximavam, mas eram forçados a, mais que um diálogo, um acasalamento, do qual brotava o termo híbrido e tão pleno de sentido em português: depravar, deteriorar, degenerar.[18] Aquele grupo de jovens denunciava tanto no “imperialismo ianque” como na “burocracia soviética” formas espelhadas de opressão. Alguns ali tinham no currículo passagens ativas em correntes trotskistas, das quais jamais se curariam, mas talvez fôssemos, todos, herdeiros, sem o saber, de Antonio Candido e Paulo Emílio.

Em 1990, fui ver de perto o que chamavam de socialismo real. Soará de­masiadamente pretensioso o que direi sobre o motivo da minha viagem, mas é esse o motivo e o que direi é verdadeiro: fui lá para ver onde é que aqueles caras tinham me traído. Andei, com esse olhar, por Moscou, Leningrado, Ber­lim oriental, Praga e Budapeste. Da impressão superficial, apenas superficial, destacou-se a constatação de que quase não havia espaços públicos nas cida­des socialistas. Não havia gente reunida. Nas padarias de Moscou, vi pequenas aglomerações, que duravam até a fila se dispersar. No balcão, havia uma colher amarrada a um barbante para os compradores “apalparem” os pães sem ter que pôr a mão neles — medida de higiene pública. Jamais pretendi que meu passeio por ali tivesse qualquer validade de verificação empírica, mas ficou para mim a lembrança vívida de que Moscou, pelo menos aos meus olhos, não tinha pontos de encontro fora do Estado ou fora de casa (locais de trabalho e escolas eram Estado).

Fui compreender melhor a sensação que me ficou de Moscou só bem mais recentemente, em 2008, quando ganhei de presente o livro Minhas viagens com Heródoto, do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski.[19] São relatos de viagens do autor, tanto na Polônia como no exterior. Em 1956, ele sai pela primeira vez de seu país, com destino à India. Faz uma escala em Roma, onde passa um ou dois dias. Num fim de tarde, ele decide passear sozinho pela cidade: “Não via arquitetura, estátuas e monumentos; estava fascinado exclusivamente pelos bares e cafés. As calçadas estavam cobertas de mesinhas, junto às quais havia pessoas sentadas, bebericando, conversando ou simplesmente olhando os transeuntes”.[20]

Os encontros onde podiam acontecer conversas livres, gratuitas, sem con­trole, deslumbravam seu olhar de jovem repórter. Ele vinha de um mundo onde essa possibilidade estava proscrita. Até poucos anos antes, ele conta, tudo nos jornais era censurado. Quando começou na profissão, em 1955, a situação já não era tão deprimente: “A censura havia amainado e já se podia escrever, por exemplo, que no vilarejo de Chodow havia uma loja, mas que suas prateleiras estavam vazias e não havia o que comprar. O avanço consistia em que, enquanto Stalin era vivo, não era permitido escrever que uma loja estava vazia”.[21]

A descrição que ele faz de sua descoberta em Roma é a própria descoberta do espaço público, que ele descreve em tom de encantamento:

Num daqueles cafés, encontrei uma mesinha livre. Sentei-me e pedi um café. Em pouco tempo, notei que olhavam para mim, muito embora eu já estivesse de terno novo, uma camisa italiana branca como a neve e uma gravata moderna, com bolinhas. Devia haver alguma coisa na minha aparência e nos meus gestos, no meu jeito de sentar e me mover que traía a minha origem e indicava que eu provinha de um mundo totalmente diferente. Senti que me consideravam um estranho e, a despeito de toda a minha alegria por estar sentado ali, debaixo do maravilhoso céu de Roma, tive uma sensação desagradável de não pertencer àquele meio. Embora tivesse trocado de terno, não consegui esconder por baixo dele aquilo que me formara e me marcara.[22]

A leitura das descrições de Kapuscinski me trouxe de volta lembranças de Moscou. Posso dizer que, em 1990, na capital do império soviético, já em via de estilhaçar-se, o que eu senti foi o que ele sentiu em Roma, mas de ponta cabeça. Enquanto ele se deslumbrava com os cafés, eu me deprimi com a ine­xistência da possibilidade de encontros fortuitos, extraoficiais, desgarrados do controle estatal. Como ele, eu era um estranho, um viajante. Ele, feliz por ter testemunhado a prática do diálogo descontraído; eu, acabrunhado por ter encontrado paredes no lugar do pensamento e da liberdade. Não que tenha sido uma surpresa. Era o que eu achava que veria por ali, a terra em que a bandeira da igualdade fora traída, e a bandeira da liberdade, incinerada. Ainda assim, aquilo foi um tapa na minha cara.

Um dia, peguei uma nota de cem rublos e olhei bem para a efígie de Lenin, desenhada como se fosse a cópia de um busto em mármore, visto de perfil. As características físicas realçadas no líder russo ganham o estatuto de significantes politicos e morais. O queixo, projetado para a frente, a partir dos maxilares resolutos, indica decisão e agressividade. O nariz é uma seta: clareza de visão. Incrível como até mesmo um nariz pode representar inteligência. O olhar posto no horizonte é certeiro, feito mira telescópica. O cocoruto bolchevique do marxista careca se converte em modelo de beleza polida e lustrosa,como um capacete de aço, ou melhor, de mármore, ou, melhor ainda, como uma lâmpada. A careca de Lênin indica limpidez, pureza, despojamento e luz. Restam-lhe uns poucos fios de cabelo, conformando uma faixa contínua que partia de cima das orelhas na direção da nuca. Para que não denunciem o defeito físico, a calva bojuda, o ilustrador encontrou para eles um emprego sígnico magnífico: em suas poucas ondulações, os cabelos se dispõem sobre o crânio iluminado como… como uma coroa! Eles insinuam, ou, mais que insinuam, eles demarcam despudoradamente o contorno de folhas alinhadas. Sim, folhas. Na nota de rublos, o que Lênin traz na cabeça não são restos exíguos de uma cabeleira extinta, mas uma naturalíssima coroa de louros, que dá o arremate à sua imagem imperial.

À medida que contemplava aquela nota de rublos, outra vez o cesarismo apareceu para mim como a edificação da intolerância estatal. Salve, Salazar! Heil, Hitler! Ave, César! Glória a Lênin, o vencedor sobre a História! Todos imperadores da intolerância, imperadores do não-diálogo.
Assim como recuamos até a figura de Júlio César para localizar uma das matrizes da intolerância, podemos recuar ainda mais para encontrar aquela que, ao meu modo de ver, persiste como a mais sintética expressão da tra­gédia do não-diálogo, ou da tragédia como o não-diálogo. Refiro-me à peça Antígona, do grego Sófocles (496 a.C.-406 a.C.).[23] Entre tantas e tão brilhantes interpretações que esse clássico admitiu, a perspectiva aqui proposta, a do não-diálogo, talvez seja, para o nosso tempo, especialmente válida.[24] Posso tomar a obra-prima de Sófocles como um tratado sobre o diálogo que fracassa.

De início, pode-se dizer que, em toda tragédia, o destino fatal dos persona­gens, sua vocação trágica, resulta da impossibilidade do diálogo. Ou, posto de outra forma, diante da vocação trágica, o diálogo não passa de uma possibilidade desprezível, tola, insípida. Em Antígona, no entanto, a ideia do diálogo e de seu fracasso ocupa lugar central. É uma questão subjacente, uma preocupação de fundo, constante, que, às vezes, aflora nas falas. É por isso que afirmo que, ao retratar a tragédia do diálogo impossível, do não-diálogo, Antígona pode ser vista e lida como um tratado sobre a tragédia da interlocução que fracassa. Seus personagens só se tocam pelo estranhamento e pela rejeição. Eles praticamente monologam em cena e, ainda que troquem argumentos entre si, não assimilam a razão um do outro. Ninguém conversa com ninguém.

Para começar, o que poderíamos aqui chamar de “sistema” familiar, o oikos, não conversa com o “sistema” da polis, o Estado. As razões da esfera íntima e seus deuses não encontram termos de entendimento com as razões próprias da esfera política, que também tinha seu modo próprio de invocar as divindades. Mais do que não encontrar termos de entendimento, elas não se toleram reciprocamente.

O ato imediatamente prévio à primeira cena, acontecimento ao qual a peça vai se referir o tempo todo, já é, em si, um triunfo da violência sobre o diálogo fracassado: os irmãos Etéocles e Polinices, filhos de Édipo, morreram há pouco, em combate, às portas de Tebas, governada por Creonte, tio deles. Guerreiros em exércitos inimigos, os dois irmãos lutaram entre si até a morte. Como forma de aplacar o pesar gerado por essa tragédia prévia, Creonte, o rei de Tebas, decreta o que será feito dos dois cadáveres. A Etéocles, que tombou na defesa da cidade, caberá um funeral próprio de herói. Quanto ao corpo de Polinices, permanecerá insepulto, largado aos abutres. Acima da dor pessoal pelo sobrinho morto, ele alega razões de Estado para a sua decisão: um agressor inimigo não há de ter o mesmo tratamento que um soldado que empenhou a própria vida na defesa de sua cidade.

Creonte encarna a razão da polis. Cumpre reconhecer que o seu compromisso de governante é exposto por ele mesmo de forma irretocável. Em nossos dias, faria bem a autoridade que o assumisse como regra de conduta. Eis o que diz Creonte sobre a impessoalidade de seus atos: “Quero vos prometer ouvir sempre os mais sábios, calar quando preciso, falar se necessário e jamais colocar o maior interesse do melhor amigo e do mais íntimo parente acima da mais mesquinha necessidade do povo e da pátria”.[25]

Contra o rei que pretende pôr o interesse público acima do interesse familiar vai se insurgir Antígona, irmã de Etéocles e Polinices. Ela, que vive na Tebas de Creonte, protegida por ele, declara que não lhe obedecerá — e também ela tem sua razão: não havia, na tradição grega, rituais tão sagrados quanto aqueles dedicados aos mortos. Ao se recusar a deixar que o corpo de Polinices apodreça no campo de batalha, Antígona invoca as razões dos deuses. Ao se dirigir a Creonte, ela chama a atenção para o soberano que não é capaz de compreender outras razões que não as suas próprias. “Tu não compreendes!”, ela diz. E continua: “A tua lei não é a lei dos deuses: apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses”.[26]

Além de Antígona e Creonte, Sófocles retrata várias impossibilidades de diálogo. O desencontro das falas entre pai e filho, aí, é estrutural. Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, tenta demover o rei de sua intransigência diante do justo direito de alguém que quer velar o próprio irmão. O povo, diz Hêmon, é solidário à jovem, e o rei, para o seu próprio bem, deveria ser flexível, deveria, em lugar de infundir o terror, levar em conta os sentimentos dos súditos.

Pai, a maior virtude do homem é o raciocínio. Não tenho a capacidade — e muito menos a audácia — para duvidar da sensatez do que disseste. Contudo, posso admitir que haja outra opinião igualmente sensata. Espero que não te ofendas se te contar que procuro, para minha própria informação, e para a tua, ouvir o que se fala contra o trono. […] A ti, nenhum cidadão viria dizer o que se murmura na sombra e nas esquinas.[27]

Como diz Antígona, “por mais que os tiranos apreciem um povo mudo, o povo fala. Aos sussurros, a medo, na semiescuridão, mas fala”. Antígona é peremptória em seu discurso. Na fala de Hêmon, porém, é impressionante o apelo ao diálogo e à razoabilidade. Ele tem a sabedoria de buscar reconhecer sensatez em outra opinião, enaltece a diversidade de opiniões e insiste no fato de que “o que se fala” contra o trono. Numa das advertências que faz ao pai, ele pergunta: “0 que queres? Falar sozinho e não ouvir respostas?”. Creonte, porém, não dá ouvidos. Ele não é um governante talentoso. Não dispõe das habilidades para ouvir e absorver demandas. É assim que Tebas, logo após comemorar sua vitória militar contra os invasores, vai-se ver desunida por um governante que não sabe conversar com os governados.

Num mundo em que homem e mulher conversam mal, também a esposa de Creonte fracassa em obter do marido uma conduta mais magnânima. O rei teme que um gesto de generosidade seja entendido como fraqueza, e leva sua determinação às últimas consequências. Outra vez, é a voz de Antígona que traz ensinamentos: “A eterna ameaça: a desunião enfraquecerá a pátria e ela cairá nas mãos de forças estrangeiras. Assim o governante obriga o cidadão a curvar a cabeça a qualquer prepotência”.[28]

Ainda no século XX e no século XXI, quantas não foram — e não são — as prepotências erguidas em nome da “eterna ameaça” apontada por Antígona? A ideia de que a desunião, ou seja, o dissenso é um fator de enfraquecimento persiste nas mentalidades autoritárias que ainda hoje estão por aí. Com efeito, nos regimes autoritários, cuja lógica interna não tem como reconhecer a validade das opiniões destoantes, a dissidência abre vulnerabilidades. Mas, na democracia, a diversidade é a força motriz. É do dissenso que a sociedade tira seu vigor, não o contrário. Por isso mesmo, a tolerância como virtude compartilhada só pode vicejar nos regimes democráticos ou nas sociedades que aspiram à democracia.

Também por isso, as falas proféticas da personagem de Antígona, além de sua conduta de não se dobrar jamais ao que não julga certo, têm sido cultuadas como falas de uma heroína. Esse culto pode, às vezes, fazer supor que existe, na peça, um lado inteiramente certo e um lado inteiramente errado. E não existe. O que fracassa, em Antígona, não é o lado “A”, o lado “B”, ou o lado “C”, mas justamente o entendimento. Nesse sentido, idolatrar um dos poios corresponde a empalidecer a leitura centrada na questão do diálogo, que, como já foi dito aqui, é uma leitura que não se pretende única, mas que talvez ilumine o núcleo de nossas tragédias contemporâneas.

Para absorver a riqueza dessa proposta de leitura, é fundamental que nos afastemos da glorificação de Antígona e da satanização de Creonte. Só assim vamos perceber que, às vezes, o próprio tirano parece ter parte com a razão. Num tempo em que os governantes, os políticos e os responsáveis pela comunicação social devem se esmerar na busca de pontes de entendimento, há uma valiosa lição política numa das falas do tirano Creonte, que tem também uma face de estadista: “Só o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém sua força porque mantém sua medida humana. Em mim só manda um rei: o que constrói pontes e destrói muralhas.”[29]

Embora, tal como enunciada por Creonte, a imagem das pontes e muralhas seja um tanto militar, a missão de construir pontes e destruir muralhas pode ser uma boa maneira de descrever a ação dos que se opõem à intolerância.

Façamos, agora, uma breve retomada de noções trabalhadas ao longo desse texto. Se, nas tiranias, o dissenso desestabiliza tanto o equilíbrio como aquele senso de ordem que tenta fazer as vezes de normalidade — uma vez que a tira­nia é a própria anormalidade transformada em baliza da norma e do normal —, na democracia ele é o oxigênio, é a luz solar, é a fonte das ideias, da inovação e da paz. Por isso, hoje, a democracia pede tolerância e a tolerância converge para a paz. A forma discursiva pela qual se cultiva e exerce a tolerância é o diálogo, e por isso o diálogo deve ser visto não apenas como modalidade discursiva, mas como virtude.

A comunicação dos regimes autoritários visa angariar concordância e obediência. Sua forma preferencial é a propaganda, que pretende dirigir os hábitos e as opiniões do público. Na democracia, a comunicação social compreende um sistema autônomo em relação ao Estado, e sua forma essencial é o jornalismo, a imprensa crítica, livre e de inspiração apartidária; e, sobretudo, livre do governismo. Seu objetivo é fomentar não a concordância, mas a divergência que, em termos que lembrariam o ideal de Locke, comunga da confiança na sustentação de um regime que protege todas as opiniões de modo igual. Por isso, quando a imprensa declina de seu compromisso com a informação independente e deixa conduzir-se pelas ferramentas da linguagem publicitária, ou pelos expedientes da propaganda, algo de nuclear na democracia começa a desandar. Enquanto a propaganda atinge seu ponto ótimo quando conduz aquele a quem se destina, a imprensa se realiza quando é conduzida por seu público. Não é bom que ela se distancie disso.

A comunicação que privilegia o diálogo não se reduz, por certo, à comunicação jornalística — mas está muito mais para o jornalismo do que para a propaganda. Disso é que temos de nos dar conta quando pensamos em diálogo como realização da tolerância, do diálogo como virtude que conflui para a paz. Foi-se o tempo em que comunicação era um alto-falante na pracinha da província. Foi-se o tempo em que o objetivo era adestrar as massas.[30] As técnicas de massificação não promovem o encontro de opiniões complementares, não respeitam nem assimilam os pontos de vista alternativos, apenas militam para fazer prevalecer o interesse de quem exerce poder econômico ou político sobre a mediação do debate. Não raro, poder abusivo. Não que as técnicas da massificação sejam de todo ineficazes. Elas conseguem potencializar fanatismos de diversas naturezas, mas não geram sabedoria compartilhada; compactam as maiorias em momentos específicos, sobretudo quando constroem com eficiência a figura do inimigo externo — por vezes “infiltrado em nosso meio” — e quando, no plano do espetáculo, exploram a execração catártica desse inimigo, mas, no longo prazo, conduzem à destruição. O século XX foi pródigo ern exemplos trágicos da compactação das maiorias em torno de utopias autoritárias ou totalitárias — e, no século XXI, ainda há quem insista em retomar e reeditar as mesmas fórmulas. A pretensão de comandar a comunicação de massa é a pretensão da própria intolerância, uma vez que a eficácia da ferramenta depende de que se forjem inimigos para sua imediata crucificação. Como diz Maria Rita Kehl em Sobre ética e psicanálise, “Todas as formas de racismo, in­tolerância étnica, religiosa ou racial fundam-se na tentativa de fazer do semelhante um igual, ao preço de fazer do diferente um absoluto estranho”.[31]

Temos vivido recentemente, também no Brasil, sob o risco crescente da polarização extremada, que inevitavelmente produz deturpações: a desqualificação de quem diverge, as tentativas de dizimar a reputação alheia, a agressão movida contra a pessoa sem se ocupar dos argumentos, as manipulações deliberadas. Por vezes, noticias e manchetes são moldadas, voluntária ou involuntariamente, segundo uma lógica que tende a submeter o significado dos fatos a uma disputa meramente partidária, ocasional e apaixonada, o que rebaixa o relato dos acontecimentos a um aspecto acessório no embate oposição versus situação. Nessa perspectiva, o noticiário se reduz a um ringue em que se enfrentam as vaidades da esquerda, ou do que se diz esquerda, e da direita, ou daquilo que se supõe ser a direita. Onde isso acontece, as mistificações se tornam regra.

São essas algumas das razões pelas quais o compromisso com o diálogo mora no oração da ética da comunicação contemporânea. Tais razões conduzem à ideia de diálogo como valor ético, materialização da tolerância que conflui para a paz. É interessante observar que a própria Declaração de princípios sobre a tolerância, da Unesco, de 1995, em seu artigo primeiro, que tratado “significado da tolerância”, estabelece o campo da comunicação como locus do exercício da tolerância. Vejamos:

A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas do nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciên­cia e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença.[32]

Grifei, no trecho acima, as palavras “conhecimento”, “abertura de espírito”, “comunicação” e “liberdade”, pois elas denotam o vínculo sobre o qual procuro refletir. A quem, se não aos comunicadores, cabe zelar pelo princípio da tolerância? Na mesma Declaração da Unesco podemos ler: “A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive do pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito”.

Outra vez, ganha centralidade a ideia de passagem, de mediação, de entremeio, tão associada à tolerância como virtude — virtude que, segundo sustento, se realiza não no indivíduo, mas no encontro entre sujeitos, sendo, pois, uma virtude compartilhada e, portanto, coletiva. A excelência dessa virtude reside na qualidade do diálogo pelo qual ela se realiza. Para o comunicador, portanto, abraçar a causa da tolerância não significa abraçar a causa de uma ou outra minoria política que reclama um lugar ao sol — ou aos holofotes movimentos legítimos, sem dúvida, mas circunscritos a uma corrente de interesses; para ele, abraçar a causa da tolerância é, antes, abraçar um método de conduzir a comunicação de modo que assegure, na mediação, mais e melhores espaços para a diversidade de vozes e de pontos de vista. A virtude da tolerância, enfim, reside no método. Nesse sentido, o bem (em termos aristotélicos) da tolerância é o diálogo como caminho para as demais virtudes.

Os totalitarismos legaram a nós algumas formas peculiares de discurso que são verdadeiras usinas da intolerância. Podemos localizá-las em vários feudos ideológicos, mas, ao menos no caso sul-americano, elas hoje ocorrem mais em ambientes que se reivindicam da tradição da esquerda. São mais visíveis nos debates sobre o engajamento da máquina de governo na comunicação social — um engajamento que tem por objetivo neutralizar, ou mesmo eliminar, a presença de correntes de oposição da agenda pública, tendendo a estigmatizá-las por meio de uma retórica marcadamente intolerante.

Essas visões trazem a pretensão de que caberia ao governo, por meio do controle que exerce sobre o Estado, pôr o próprio Estado em ação para dirigir deliberadamente a formação da opinião pública e da vontade dos cidadãos, mais ou menos como se deu, aqui e em países vizinhos, nos tempos das ditaduras militares — que eram de direita. Nos tempos dessas ditaduras, a marcha da intolerância na comunicação social se expressava em slogans como, para citarmos um exemplo nacional, “Brasil, ame-o ou deixe-o”;[33] agora, mais em países vizinhos do que no Brasil, ela funcionaria como patrulha do simbólico, sempre vigilante, mas com um sentido análogo de “deixe o governo trabalhar e não aborreça”, admoestando de dedo em riste os agentes da discordância.

Trata-se de uma pretensão que leva à usurpação. Sabe-se bem que governos e qualquer setor do Poder Executivo, assim como os outros poderes da República, não dispõem de mandato para mediar o debate público e, quando ingressam nisso, concorrem para estatizar uma posição política, ainda que mitigada, ainda que disfarçada de não-política, em detrimento de outras ou de uma em particular, que é convidada a banir-se, como se fosse menos nacional, ou menos solidária, ou menos patriótica. Tem-se aí, claramente, uma semente de intolerância.

A democracia, como aprendizado histórico que é, indica que, por mais votos que um governante tenha amealhado, não lhe é atribuído mandato para comandar a imprensa ou os meios de comunicação, no todo ou em parte. Dentro da tradição democrática, esse papel só pode ser exercido por instâncias que guardem independência — editorial, administrativa e financeira — em relação ao governo e ao Estado. Mesmo os chamados meios públicos só são verdadei­ramente públicos na medida em que não se subordinam à autoridade governamental ou estatal: e só interessam ao público porque forçam a transparência, aprofundam a fiscalização sobre a gestão da coisa pública e ampliam espaços às correntes divergentes. Meios que enalteçam uma doutrina, a governamental, e desprestigiem as demais são o oposto do ideal da comunicação pública.

De sua parte, o governo, dentro de uma ética do diálogo e do respeito ao direito à informação do cidadão, tem o dever da transparência na administração pública, assim como tem o dever de evitar a tentação de se valer de recursos públicos para difundir mensagens de proselitismo e de propaganda doutrinária. Máquinas governamentais de propaganda são, por definição, órgãos de difusão de alguma forma de intolerância política. Não raro, sintomaticamente, as utopias comunicacionais de matriz autoritária fincam alicerces em tecnologias anacrônicas, próprias aos monólogos que o líder remete à população obediente. Por isso, essas utopias autoritárias veem com desconfiança as tecnologias digitais, que abrem possibilidades de os cidadãos se manifestarem e controlarem etapas do processo de comunicação,[34] minando as pretensões do monolitismo ideológico.

Além do tipo que acabo de descrever em linhas sumárias, merece registro outro tipo de intolerância, essa de caráter geral, a que passo a chamar de intolerância automática da indústria do entretenimento. Se o primeiro tipo ainda viceja em repertórios mais ou menos populistas, que exploram uma retórica de matriz convenientemente esquerdista, o segundo faz parte da lógica da comunicação estruturada como capital: não resulta de uma prática voluntária, apenas, mas de um modo específico de representação da realidade. Se o pri­meiro faz rir pela primariedade, o segundo se apresenta como um enigma da esfinge, uma charada mortal. Se o primeiro recomenda a intervenção delibera­da dos agentes políticos a serviço do poder, o outro opera pelos procedimentos de sua natureza industrial e inconsciente.

A crítica da indústria do entretenimento e de seus mecanismos ainda não foi bem compreendida entre nós. Se os complexos informativos estruturados pelos conglomerados de mídia interconectados não forem compreendidos como atividade superindustrial — em que a mercadoria, e não a intenção do agente, exerce o poder —, a mistificação de que ela é governada por “homens vis” assume o lugar da análise crítica. Aí a culpabilização moralista se insurge como atalho para soluções demagógicas, ou seja, para as não-soluções. A intolerância da indústria do entretenimento tem sua lógica plantada no capital e no inconsciente — e, por isso, representa para o esforço da civilização dos direitos humanos um desafio maior do que o aparente.

Do mesmo modo que o circuito lógico do discurso de Locke não se fecharia se ele concedesse o benefício da tolerância aos intolerantes e aos ateus — uma vez que, em sua perspectiva, os ateus seriam naturalmente intolerantes —, os circuitos lógicos dos meios de comunicação atuais requerem, estruturalmente, definições de polos “do bem” contra polos “do mal”. Com efeito, a estrutura narrativa da ficção e dos noticiários dos chamados meios de massa (predominantes na segunda metade do século XX), que sobrevive, pujante, na atual indústria do entretenimento, depende de formatos que remontam ao melodrama, com elementos de tragédia e de thriller, para ter poder de atração e para produzir sentido na plateia, com a qual trava vínculos mais emocionais que racionais, mais estéticos do que éticos, mais sensuais do que críticos. Essa estrutura narrativa opera a partir da confecção de polos que se opõem em embates em que cada lance, cada minuto, põe em jogo tensões com pretensões hiperbólicas, como o futuro da humanidade ou a salvação do planeta, isso em assuntos tão diversos quanto o aquecimento global, a semifinal do campeonato de futebol, o mercado financeiro internacional, o efeito das vitaminas sobre o metabolismo das mulheres de 40 anos ou as sucessivas crises no Oriente Médio. Por absurdo que pareça, aí reside, também, o caldo de cultura para se­mentes de intolerância — e isso não depende da ação deliberada de um agente, mas decorre de procedimentos automáticos.

Com o objetivo de simplificar a abordagem da questão, penso que, em lugar de discorrer sobre a natureza de um mecanismo arquitetado a partir de abstrações, levando a um aprofundamento que escaparia demasiadamente ao objeto deste artigo, devo recorrer ao truque de apontar aspectos exteriores no funcionamento da indústria do entretenimento. Faço-o com vistas a elucidar as linguagens e as técnicas que se prestam à representação daquilo a que convencionamos chamar de realidade — do jornalismo à ficção, que também dá conta de hábitos, costumes, códigos de conduta e que, não raro, se debruça sobre temas estritamente “reais”, fazendo as vezes de reportagem. Os aspectos listados a seguir foram por mim sintetizados com o propósito de explicitar de que modo essa indústria pode enunciar ou sistematizar discursos que conte­nham suportes para formas de intolerância, velhas ou novas.

Os aspectos são quatro.

O primeiro deles é o que chamo de Plano de Chumbo — em lugar de pano de fundo. O Plano de Chumbo refere-se à imagem bidimensional que, incorporada à imprensa pelas ilustrações, depois pelas fotografias (por meio da placa metálica designada clichê), transferiu-se para a tevê e agora pulsa na internet, conservando suas regras próprias de representação. A imagem plana se impõe e, em muitos níveis, preside a comunicação. Esse aspecto não é “bom” ou “ruim”, não é “positivo” ou “negativo”, “melhor” ou “pior”. Não se trata disso. Ele apenas indica e define um registro possível para a confecção do sentido, baseado no suporte da imagem fixa. Esse registro restringe o nível de sutilezas e nuances que a comunicação no entretenimento pode assimilar. Embora não sejam sinônimo de imaginário — uma vez que o imaginário se compõe de signos e não simplesmente de figuras —, as imagens planas assim industrializadas tendem mais a fixar sentidos imaginários do que a problematizar a confecção dos sentidos. Elas podem, sem dúvida, ter parte nessas problematizações — que se dão por meio do pensamento e que fazem o significante deslizar —, mas elas, as imagens, atuam, predominantemente, como ícones do imaginário, e concorrem para dar o tom, quase que a dar a sintaxe da comunicação no entretenimento. Trata-se de um efeito, entre vários outros que não serão listados aqui, pelo qual se pode entrever a crescente prevalência do imaginário sobre o simbólico: as funções que antes cabiam ao simbólico passam a ser preenchidas por mecanismos do imaginário.

O Plano de Chumbo é, por excelência, o clichê — e a palavra clichê, bem o sabemos, tem também o sentido, não casual, de lugar-comum. É definiti­vamente esse o caso. Sentido pronto. Fixo. Chapado. Vem daí o grande peso (de chumbo) dos rótulos com que são definidos os personagens, as áreas de interesse na imprensa, os diversos campos do conhecimento e, mais ainda, as infinitas possibilidades de leitura do que quer que se convencione nomear de realidade. “Rotular” alguma coisa é reduzi-la ao plano de chumbo. Reduzi-la a um carimbo. Não obstante, não há como processar a comunicação na era da indústria do entretenimento sem que se recorra a esse expediente. Por isso ele é estrutural, autoimposto, não depende da escolha do agente.
Não se trata de um problema novo na imprensa. Já nos anos 1920, o jornalista americano Walter Lippmann tratou disso em seu livro Public Opinion, ao tratar do conceito de “estereótipos”.[35] Nós não dispomos de recursos para processar a comunicação sem que recorramos ao expediente do Plano de Chumbo. Isso significa dizer: não há como pensar socialmente sem isso, ainda que possamos pensar também sobre isso.

Ocorre que, ao rotular, o discurso designa o personagem eleito como seu objeto com um qualificativo de inevitável conteúdo moral — e moralizante. É mais isso, e menos a vontade dos operadores do sistema, que define que certos movimentos sociais, ao ingressarem em certos modos de agir, agreguem em torno de si, no Plano de Chumbo, os qualificativos que o vilanizam ou o santificam. Esse efeito de “positivo” ou de “negativo”, embora se beneficie também de ações deliberadas, situa-se, estruturalmente, nas regras de funcionamento da comunicação na indústria do entretenimento. É só por isso que ela expressa e materializa uma ideologia, quer dizer, é só porque o seu sentido se enuncia para além da intenção dos agentes que o que aí se passa é ideológico no melhor sentido da palavra. Assim, na lógica automática da comunicação hoje predominante, veiculam-se vetores de intolerância ideológica que, ainda que ajustáveis aqui e ali, ainda que adaptáveis — o que permite que um rótulo de diabo possa eventualmente ser ressignificado como um rótulo angelical, como se passou, em certos períodos, com Yasser Arafat, por exemplo —, tendem a manter-se como determinantes do sistema de significação. Isso em função dos limites do suporte, qual seja, o Plano de Chumbo.

Em resumo, a comunicação da indústria do entretenimento tende a organizar todos os relatos segundo certas leis, cujas raízes buscam se abastecer do melodrama, retirando sua energia da oposição entre bons e maus. A existência dos maus é, pois, uma necessidade da estrutura — e, enquanto prevalecer essa natureza de comunicação, ela estará aí. Os maus, enfim, não se podem tolerar. Contra isso se insurgem os “maus” que não aceitam ser vistos como “maus” e querem figurar no elenco dos “bons”. Não há muito o que fazer.

Isso nos leva ao segundo aspecto que eu gostaria de destacar: o Imperativo da Simplificação, que reforça a intolerância manifesta no discurso. Por meio dele, a virtude estilística da simplicidade, desejável para a clareza do pensa­mento, converte-se em atributo forçado dos conteúdos que circulam como mercadoria. Esse deslocamento se deve às regras próprias da indústria do entretenimento, descendente direta da indústria que, no século XIX, põe em circulação os jornais diários de grande tiragem e que, em seguida, passa pelo estágio dos meios de massa. É o Imperativo da Simplificação que determina que a clareza seja fabricada industrialmente — a iluminação artificial na fotografia é o símbolo maior dos modos pelos quais se fabrica a clareza. Do mesmo modo, força-se a simplicidade com o uso dos rótulos e dos carimbos dos quais, afinal de contas, não há como escapar. A indústria do entretenimento não vende outra coisa que não facilitações, clarificações e simplificações — uma de suas definições seria justamente esta: ela é a indústria da simplificação.

Assim como o Plano de Chumbo, o Imperativo da Simplificação não pode ser tratado como algo “bom” ou “mau”, “saudável” ou “doentio”. É da natureza do sistema de que aflora. As coisas precisam caber numa manchete. A campanha política deve caber num slogan de três vocábulos ou num anúncio de 30 segundos. Mesmo o que faço agora, por exemplo, neste texto, ao designar com nomes relativamente chamativos — como Plano de Chumbo ou Imperativo da Simplificação — aspectos de um fenômeno que me interessa descrever dentro da perspectiva por mim orientada, não deixa de ter parte com o modus operandi do Imperativo da Simplificação.

Não resta dúvida de que muitos sentidos se beneficiam da “síntese forçada”, mas há outros que aí não cabem e, ao não caber, ficam de fora. No jornalismo, é o Imperativo da Simplificação que, muitas vezes, ainda que não sempre, clama pela exacerbação de uma face dos acontecimentos em detrimento de outras possíveis e igualmente legítimas, que serão relegadas à desimportância. Diz-se, com acerto, que editar é escolher. Do mesmo modo, podemos dizer que editar é excluir. O próprio senso de notícia tem a ver com isso, com um critério de simplificação: destacar, do vasto espectro dos acontecimentos, aquele que concentra a principal novidade e, de novo, concentrar a novidade numa chamada de capa de revista é requisito do Imperativo da Simplificação. A simplificação sobre a simplificação confina as margens do sentido e, não raro, aliada à ace­leração da velocidade do mundo contemporâneo, produz, se não intolerância, impaciência — com digressões, divagações, lucubrações e contemplações.

Há outros efeitos desse segundo aspecto. Um deles é a desqualificação de certos personagens do debate público. Desqualificar a pessoa, como recurso para neutralizar-lhe os argumentos, é uma operação simplificadora da qual não pode escapar aquele que depende de “separar o joio do trigo” em regime de urgência. O que, por sua vez, gera efeitos colaterais já exaustivamente diagnosticados e debatidos, como o “assassinato de reputações”. Com frequência, temos assistido a, mais que assassinatos de reputação, matanças coletivas, chacinas de reputações de movimentos sociais ou de grupos, num abuso de expedientes próprios dessa indústria, para finalidades pessoais, partidárias ou conjunturais, que terminam por vitimar, também, a qualidade da comunicação na democracia. Simplificar, dentro de tal indústria, corresponde a necessi­dades estruturais do jornalismo e, de modo ampliado, do entretenimento, mas pode resultar de abusos deliberados. Como traço automático, já é preocupan-te; como produto do abuso e da má-fé, é inaceitável.

E quanto ao que não pode ser simplificado? E quanto àquilo que não cabe nos formatos preestabelecidos ditados pelo Imperativo da Simplificação? Aí o que temos é o terceiro aspecto exterior do procedimento automático de representação da realidade na indústria do entretenimento: a Condenação à Invisibilidade. Uma das possibilidades da intolerância está exatamente no bloqueio que se ergue para alguns, cerceando-lhes o caminho à visibilidade. A exclusão social passa também por aí, por manter o excluído na invisibilidade. Não por acaso, há quem afirme que o sujeito que pega uma arma para “interpelar” o outro, assaltando-o no sinal de trânsito, age assim para provocar no outro a única reação que lhe resta almejar dele: o medo. Assim, amedrontando o outro, o agressor desejaria apenas sair da invisibilidade.
No plano mais amplo, o dos movimentos sociais e das ONGs em geral, ou os agentes sabem falar a língua do espetáculo ou estarão condenados, eles também, à invisibilidade. Um dos casos mais expressivos é o do Greenpeace, que aprendeu a “gerar fatos” pelo recurso de “gerar espetáculos” no meio da rua, “intervenções” que imediatamente se convertem em notícias, menos pelo seu conteúdo, propriamente, e muito mais por sua forma de se apropriar da linguagem própria do entretenimento para “representar” a cena cotidiana. No Brasil, o MST (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra) e outras entidades que se organizam em prol da reforma agrária adotam a técnica da in­tervenção na cena pública para gerar notícias sobre si mesmos e, assim, fugir à invisibilidade. O problema de vários deles é que suas intervenções costumam capturar os signos invertidos, que mais os satanizam do que os santificam. Com isso, em vez de figurarem como poios de simpatia nos noticiários, prestam-se a papéis negativos. Em vez de um coletivo de vítimas do regime agrário, vão aparecendo como bandoleiros e salteadores, o que se deve menos à “má vontade dos meios de comunicação” em relação a eles — o que também existe — e mais à inabilidade com que lidam com os rótulos de que tentam se valer. Sua técnica para atrair visibilidade os isola ainda mais.

Por fim, o quarto aspecto: o Acirramento das Polarizações. Uma analogia com noções mínimas de eletricidade talvez ajude na compreensão dessa vocação natural do entretenimento, que, para efetivamente entreter, depende da energia que retira da tensão e esta, por sua vez, decorre da diferença de carga entre os dois polos em cena. Nesse sentido, o paradigma da guerra — a iminência da guerra, a fome de guerra, o desejo de guerra, o gozo da guerra — concentra a emoção mais forte. O entretenimento precisa disso como, ao longo do século XX, o capitalismo precisou de combustível fóssil. É por isso que, se não há inimigos à vista, ele cuidará de fabricar alguns, pondo em cena elementos para mais intolerância.

De outro lado, a paz não emociona. Como não emociona, descarrega o potencial do entretenimento. A paz não tem graça. A paz acontece e o filme de ação acaba. A paz, laconicamente, corresponde a um estado de morte. É desse modo que o Plano de Chumbo, o Imperativo da Simplificação e a Condenação à Invisibilidade concorrem para acirrar polarizações ocasionais ou estruturais, o que agrega poder de atração ao entretenimento e, consequentemente, contri­bui para elevar-lhe o valor de mercado. Também por isso a intolerância ganha corpo no repertório da indústria do entretenimento.

Nos termos em que o tema foi aqui abordado, a consciência das dimensões da intolerância só pode ser tratada no âmbito de uma ética da comunicação. Nessa ética, o compromisso com o diálogo — visto aqui como virtude, não ape­nas como modalidade discursiva — parece ser central. Uma vez mais, a questão ética se apresenta com um sentido de preservar o que há de melhor na ideia de civilização contra o que há de mais nefasto na ideia — ou não ideia — de barbárie. A perspectiva da tolerância — uma passagem, sempre uma passagem — é particularmente fértil para ordenar uma ética da comunicação, na medida em que ela não lida com bandeiras absolutas, totalizantes, mas com a qualidade dos processos pelos quais as diferenças podem se tocar a fim de enriquecer-se, sem ter de se consumir ou de sobrepor-se umas às outras. A tolerância, essa abertura de espírito, essa virtude menor, só existirá entre nós se traduzida em diálogos de qualidade.

Dialogar significa superar as tentações das utopias autoritárias e as formas dissimuladas de aparelhamento do Estado para fins de doutrinação. Significa ultrapassar a resiliência moral diante das variadas formas de corrupção “a serviço” de uma causa. Da mesma forma, a busca do diálogo tende a desmontar as posturas de servidão acrítica diante da indústria do entretenimento, que se pretende, com seus filtros do olhar, instaurar-se como instrumental da verdade. Se a ética tende a distanciar o humano da selva, aqui ela se volta para o que há de selva no logos da técnica que, autonomizando-se, trabalha como capital desgovernado. Se puder, isso mata o hospedeiro — e o hospedeiro somos nós.

Releio a frase acima, que deveria servir de fecho para o que eu tinha a di­zer aqui, e noto que ela caberia perfeitamente num discurso intolerante sobre supostos ateus no seio de uma comunidade temente a Deus, ou sobre judeus na Alemanha nazista dos anos 1930, ou, ainda, sobre imigrantes africanos no subúrbio de Paris no limiar do século XXI. O que escrevi acima pode ser lido como uma sentença catastrofista e chantagista: se abandonados às suas próprias leis, eles, que estão entre nós, não hesitarão em nos matar! Essa possível leitura me incomoda: a mesma retórica, um tanto catastrofista, que serviria para atacar uma “raça” (como a empregada negra) ou uma religião, pode atacar também a técnica e, por decorrência, seus agentes — que somos nós. Mesmo assim, opto por mantê-la. Ela reflete com fidelidade uma intuição que trago comigo e, por ela, penso valer a pena correr o risco da incompreensão. Não se trata, como resta óbvio, de condenar ninguém à fogueira. Nós já estamos na fogueira. O que me traz esperança é o fato de que ainda não desistimos.

Notas

[1] Cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.bdartigos.asp?cod=485IMQ006.

[2] Lembremos a tirada de Paul Claudel, em conversa com Jules Renard: “Tolerância? Há casas para isso”. (A frase é atribuída também a Georges Clemenceau.)

[3] Folha de S.Paulo, Caderno Mais!, São Paulo, 9-2-2003.

[4] O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa identifica a origem latina: tolero, as, avi, atum, are, com o sentido de “suportar (raro no sentido físico de suportar um peso, um fardo), sofrer, aturar; sustentar, manter, alimentar, nutrir”. Tolerar também pode ter o sentido de transigir. Ver, a respeito, a tese de doutorado em filosofia de Marcelo Neves, O. P., A tolerância nos limites do cristianismo católico do frei Bartolomé de las Casas (Campinas: Unicamp, 2006): “A raiz de tolerância é o verbo tollo, com ampla gama de significados: levantar, erguer, transportar, embarcar, tirar, destruir, suprimir, suportar, sofrer, criar, ter filhos, divulgar, espalhar. Da raiz to/- formou-se o verbo, chamado frequentativo pelos gramáticos latinos, tolerare com significados de suportar, sofrer, sustentar, aguentar, alimentar, manter, persistir, resistir, aliviar. Do radical toler-, com sufixo -antia, formador de substantivos abstratos, o latim formou tolerantia, significando ‘constância em suportar’ (Cícero) e ‘paciência’ (Sêneca). Portanto, em português ‘tolerância’ é termo erudito, introduzido na língua com o Renascimento, com significados semelhantes ao do latim, mas com aplicações em conteúdos semânticos afins; conforme o étimo significa ‘ato de aguentar, de suportar’; daí, indulgência, condescendência, licença, isenção, dispensa, diferença ou margem de erro em relação a um padrão, além de vários outros. No campo sociológico, tem o sentido de ‘admissão e convivência com ideologias, religião, atitudes etc. diferentes das que adotamos’”

[5] Uma boa síntese da ideia de tolerância como virtude intermediária pode ser lida no artigo “O conceito e a prática da tolerância”, de Raymundo de Lima, na revista eletrônica Espaço Acadêmico, ano III, II 26, de julho de 2003 (ISSN 1519.6186): “Na tradição da filosofia moral, a tolerância não é exatamente conside­rada uma ‘grande virtude’ ou ‘virtude cardinal’, tal como é a justiça, a coragem, a pruciência e a temperança ou moderação. Contudo, ela não deve ser posta do lado das chamadas ‘pequenas virtudes’, como é o caso da polidez. A tolerância deve ser vista numa posição especial, de entremeio das virtudes, sendo mais que respeito, polidez ou piedade”. Cf. http://www.espacoacademico.com.br/026/26ray.htm#_ftn3. Grifado no original

[6] Dalmo de Abreu Dallari, em palestra no painel “Cotidiano e Tolerância”, no Seminário Cultura e Intolerância (São Paulo, Sesc Vila Mariana, novembro de 2003).

[7] John Locke, Carta sobre a tolerância (São Paulo: Hedra, 2007).

[8] Ibid., p. 38. Conforme aponta Mauro Maldonato, na palestra “As origens e a evolução do conceito de tolerância”, no Seminário Cultura e Intolerância (São Paulo, Sesc Vila Mariana, novembro de 2003), “para Locke, uma instituição política é ‘uma sociedade de homens constituída para conservar e pro­mover somente os bens civis’, ou seja, a vida, a liberdade individual, a integridade do corpo, a posse das coisas exteriores. A soberania política deve ser limitada e a salvação da alma é totalmente estranha a suas esferas”.

[9] John Locke, Carta sobre a tolerância, cit., p. 42. Segundo Mauro Maldonato, na palestra “As origens e a evolução do conceito de tolerância”, no Seminário Cultura e Intolerância (São Paulo, Sesc Vila Mariana, novembro de 2003): “A salvação, com efeito, depende da fé, e esta não pode ser induzida nos espíritos mediante a força. Escreve Locke: ‘se alguém quiser acolher algum dogma, ou praticar algum culto para a salvação da própria alma, tem de acreditar com todo o seu espírito que aquele dogma é verdadeiro e que aquele culto será apreciado e aceito por Deus; mas nenhuma penalidade, em nenhum modo, é capaz de instilar na alma uma convicção dessa espécie”‘

[10] Fábio Konder Comparato, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno (São Paulo: Companhia das

Letras, 2006).

[11] Aqui me baseio na indicação contida na conferência de Dalmo Dallari, já citada.

[12] Publicado no Brasil pela Martins Fontes, com tradução de Paulo Neves. A primeira edição é de 1993 e a

segunda, de 2000.

[13] Voltaire, Tratado sobre a intolerância (São Paulo: Martins Fontes, 2000), pp. 41 e 42.

[14] Ibid., p. 105.

[15] John Locke, Carta sobre a tolerância, cit.

[16] Cf. revista Clima, 116 12, 1943, pp. 90 e ss.

[17] Cf. revista Teoria & Debate, n° 2, março de 1988, entrevista para Éder Sader e Eugênio Bucci.

[18] Há controvérsias sobre a autoria do termo. Pela minha memória, seu inventor é o advogado Paulo Erix, então estudante de direito.

[19] Ryszard Kapuscinski, Minhas viagens com Heródoto (São Paulo: Companhia das Letras, 2006).

[20] Ibid., p. 23

[21] Ibid., p. 18.

[22] Ibid., p.22

[23] Adoto aqui a tradução de Millor Fernandes (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996).

[24] No curso de Ética Jornalística, na Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo, nos anos de 2001 e 2002, a peça Antígona era adotada e debatida em classe, conforme o programa do curso, em torno da análise do não-diálogo.

[25] Sófocles, Antígona, trad. Mil’or Fernandes (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996), p. 13.

[26] Ibid., p. 25..

[27] Ibid., p. 37.

[28] Ibid., p. 30.

[29] Ibid., pp. 21-22.

[30] Neste parágrafo e no seguinte, aproveito trechos de um artigo meu, “Comunicação e diálogo”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 de abril de 2008, página A2.

[31] Maria Rita Kehl, Sobre ética e psicanálise (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), p. 25.

[32] Unesco, Declaração de princípios sobre a tolerância (Nova York: ONU, 1995).

[33] Numa tradução canhestra do slogan americano “love it or leave it”, que era igualmente autoritário, mas, pelo menos, tinha resquícios de musicalidade.

[34] Os obstáculos impostos por alguns regimes, como o chinês, ao desenvolvimento da internet talvez ilustrem esse fenômeno. É possível que essas resistências arrefeçam, mas o fato incontestável de terem ocorrido reforça o que quero destacar aqui. Por certo, as novas tecnologias não podem, nem de longe, ser abraçadas como uma “revolução libertária”, como alguns pretendem. Há, nelas, sementes autoritárias de novo tipo, igualmente preocupantes. Mas, para efeitos de tornar claros os anacronismos inerentes a uma corrente de autoritarismo ainda em yoga na América do Sul, a dificuldade que essa corrente apresenta — com o advento de novidades simples, como a interatividade — ainda persiste como um sintoma interessante.

[35] Walter Lippmann, Public Opinion (1922) (Nova York: Free Press, 1997). A edição de 1922 é de Simon & Schuster. Lippmann comparava os “estereótipos”, categorias mentais que comportavam a significação de cada coisa, a retratos, a imagens.

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