1991

Imagens sem objeto

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Objetos sem imagem ou imagens sem objeto procuram tornar manifestas as relações entre a noção de imagem e objeto no interior da história da filosofia.

Por se tratar de objetos sem imagem, é preciso mostrar o modo de dissolução da força cognoscente da imagem e a permanência de objetos na forma de fantasmagorias, objetos sem sujeito, objetos de si mesmos, não referidos a nenhuma consciência de si. Na tradição racionalista é Descartes quem mais se destaca no desmerecimento filosófico da imagem, concebida como fonte de ilusão e engano, mas também é ele quem trava o grande duelo contra a tradição da magia natural da Renascença, que se mantém presente até meados do século XVII. Se Descartes trata a Razão nomeando-a “luz natural” – cuja amplitude viria a ser mais bem reconhecida no Iluminismo (do século XVIII), Walter Benjamin, em a “Premissa gnoseológica” de “Origem do drama barroco alemão”, observa que é no centro da Luz que se dá a cegueira das Luzes, a finitude da experiência do Iluminismo cientificista. É possível então compreender de que maneira Benjamin constrói o conceito de “imagens dialéticas”, na tentativa de reconciliar o homem e a natureza, sem recair no animismo mágico.

De ressonâncias mágicas, o conceito de imagem ocupa no mundo contemporâneo lugar central. “Central” entre aspas, porque se trata de um mundo de imagens, isto é, contrariamente à luz da construção platônica e cartesiana do conhecimento, sem centro, sem ponto fixo, inconstante, impermanente. Ela exigiu o desencantamento do mundo, isento tanto de formas, essências luminosas, eternas e verdadeiras, quanto do sujeito abstrato do puro pensamento de si. Ele para quem não há dor a mitigar nem esperanças a realizar. Ambos implicaram um universo desenfeitiçado, demitizado, “sem qualidades”, racional.

Ao mesmo tempo, a “caducidade do moderno” e a “perda da aura” encontram sua redenção ao constranger objetos sem olhar (ou sem o sujeito que vê). A aura hoje – a dimensão do culto dos objetos – aloja-se onde menos se espera, como na fotografia. Ela que, se bem observada, revela “a fortuna e o destino da vida daquele que está lá”. A perda da aura, afirma Benjamin, tendo as obras de arte perdido seu caráter cultual ou religioso, remete ao mundo das mercadorias, da reprodução em série, das fantasmagorias. Mas a aura é também a inevitável e salutar ilusão criada por uma modernidade insatisfeita com um real empobrecido. A perda da aura é a “caducidade do moderno” e torna contemporâneo o barroco do século XVII, através do sentimento da transitoriedade. O que Benjamin trata como “caducidade do moderno” é a perda, a transitoriedade da natureza. O tratamento da história como “alegoria” ou “segunda natureza” reconduz à existência da transitoriedade da realidade material. Tal momento é “o ponto mais profundo para o qual história e natureza convergem”.


Objetos sem imagem ou imagens sem objeto procuram tornar manifestas as relações entre a noção de imagem e objeto no interior da história da filosofia.

Por se tratar de objetos sem imagem, o percurso deste ensaio precisou mostrar o modo de dissolução da força cognoscente da imagem e a permanência de objetos na forma de fantasmagorias, objetos sem sujeito, objetos de si mesmos, não referidos a nenhuma consciência de si. Na tradição racionalista é Descartes quem mais se destaca no desmerecimento filosófico da imagem, concebida como fonte de ilusão e engano, mas também é ele quem trava o grande duelo contra a tradição da magia natural da Renascença que se mantém presente até meados do século XVII. Se Descartes trata a Razão nomeando-a “luz natural” — cuja amplitude viria a ser melhor reconhecida no Iluminismo ulterior, Walter Benjamin, em particular na “Premissa gnoseológica” de Origem do drama barroco alemão, observa que é no centro da Luz que se dá a cegueira das Luzes, a finitude da experiência do Iluminismo cientificista. Poderemos então compreender de que maneira Benjamin constrói o conceito de “imagens dialéticas”, na tentativa de reconciliar o homem e a natureza, sem recair no animismo mágico.

De ressonâncias mágicas, o conceito de imagem ocupa no mundo contemporâneo lugar central. “Central” entre aspas, porque se trata de um mundo de imagens, quer dizer, contrariamente à luz da construção platônica e cartesiana do conhecimento, sem centro, sem ponto fixo, inconstante, impermanente. Ela exigiu o desencantamento do mundo: por um lado, as Formas, essências luminosas, eternas e verdadeiras; por outro, o sujeito abstrato do puro pensamento de si — aquele que não tem dor a mitigar, nem esperanças a realizar. Ambos implicaram um universo desenfeitiçado, demitizado, “sem qualidades”, racional.

No universo místico e mágico, ao contrário, “nada é natural na natureza”, tudo é sagrado. O sagrado, o mágico será o verdadeiro antagonista que a ratio procura eliminar. O conflito entre a natureza (magia) e a cultura (ratio), ou entre mito e racionalidade, pode ser encontrado, entre outras, na personagem de Medeia em seu contraponto Jasão. A magia apaixonada de Medeia, sua “força de natureza”, fundada em um amor absoluto, destrói a lógica cínica e eficiente de Jasão, vencedor do reino da cultura e da utilidade pessoal, o que está ilustrado no episódio do retorno de Jasão, após conseguir trazer consigo o velocino de ouro: “Eis que tudo está pronto para o destino iluminista, laico e mundano de Jasão”, durante a viagem de retorno, trazendo consigo o velocino de ouro (sinal de perenidade do poder e da ordem, garantidor de sorte aos reis cujos reinos, segundo o mito, não terminariam nunca), viagem esta que Jasão só pode realizar graças à magia de Medeia, o navio ancora em uma praia e, enquanto Jasão prepara as tendas para passar a noite, Medeia se perde e grita cheia de angústia: “Esse lugar afundará porque não tem apoio! Vós não procurais o centro, não marcais o centro! Não! Procurai uma árvore, uma estaca, uma pedra”[1]. Sabe-se que, graças a um ato de fundação ritual, uma pedra determinada pode tornar-se a imagem e o símbolo de um Deus, de sua presença. A modernidade iluminista elimina o ponto de referência da “pessoa” mítica, aquela que vive no ciclo natural. Assim, a longínqua viagem à Cólquida é também a viagem ao longo do esclarecimento da razão instrumental. E, justamente por isso, retornando a seu tio Pélias — usurpador do trono do irmão — Jasão lhe diz com desprezo e, ao mesmo tempo, com racionalidade iluminada, atirando-lhe aos pés a couraça do velocino de ouro: “E, depois, se quiserdes que vos diga o que, para mim, é a verdade, essa pele de carneiro, longe de sua terra, não tem mais qualquer significado”.

O que triunfa com Jasão é o logos. O mito que santifica as coisas dissolve-se. A racionalidade constrói um conceito de natureza despojando-a de seus aspectos sagrados e proféticos, desencantando o mundo. Com isto, o real se converte em mecanicidade, em um todo abstrato, apto a ser conhecido e controlado pelo sujeito do conhecimento. Tudo se passa como se, da constituição desta nova “ordem da natureza” a partir da tranquilidade do sujeito absoluto, tivéssemos passado ao seu desordenamento: não é mais do mundo que duvidamos — como na matriz cartesiana — mas do próprio cogito, da própria identidade do Eu. Nem Medeia nem Jasão: mundo sem homens e sem deuses é um mundo onde as imagens se espalham sem a garantia dos princípios lógicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído — que definem um princípio de razão suficiente[2]. É esclarecedora a etimologia da noção de imagem. Instância intermediária entre o sensível e o inteligível, ela é “imaterialidade material”.

No alemão, Bild significa “signo prodigioso” (Wunderzeichen), que em sua raiz germânica bil remete a uma força fora do comum, excedente a si mesma e referida a uma efetualidade mágica (o antigo saxão bilioi significa signo portentoso e só em seguida “imagem” no sentido da reprodução, da representação).[3]

Ora, a consolidação de uma racionalidade — para a qual conhecer é, analogicamente à magia (que pretende dominar o objeto à distância, sem entrar em contato direto com ele, graças ao poder da imagem), se pôr em afinidade com a essência das coisas — passa pelo desprestígio e destituição dos saberes mágicos.

Seria interessante observar aqui toda a relevância do procedimento cartesiano com relação ao destino da imagem no interior de todo racionalismo. O caminho cartesiano é o da “purificação da alma”: dos erros, dos sentidos, das paixões. É elevação ao conhecimento e, finalmente, o encontro do homem com Deus (cf. “Da essência das coisas materiais, e, novamente de Deus, que Ele existe”, 5ª Meditação). Para chegar a Deus parte-se, antes de mais nada, de si mesmo, com o que Descartes reserva às afecções humanas o caráter de fenômenos de perturbação espiritual, tendo a razão por mister vencer as paixões, a visão, a imaginação. Convergem, aqui, a “tranquilidade” por ele almejada no Discurso do método (cf. 2 parte) — em que, sob os auspícios estoicos, não se depara com quaisquer solicitudes ou paixões — e a necessidade de negar o conhecimento proveniente dos olhos e da imaginação. Ora, na concepção medieval, ainda próxima a Descartes, a tranquilitas se opõe à trágica inquietação da criatura humana, vale dizer, à melancolia, “doença do olhar”, cujos males são imaginários. Na sequência da tradição grega clássica e medieval, o século XVII se interroga sobre os estados de desordem interior — os estados melancólicos de tristitia e acedia.

Jean Delumeau, em Histoire du péché au XIVème siècle (“Macabre et pessimisme de la Renaissance”), chama a atenção para o imenso interesse por esta “doença da alma”, durante os anos que correm entre 1480 e 1650, de Marsilio Ficino a Robert Burton. O primeiro, em sua Teologia platônica, segue, e ao mesmo tempo inova, a tradição medieval no que concerne à melancolia. Ela é a paixão que, por excelência, nos lembra os limites do livre-arbítrio — limites impostos, a um só tempo, pelos humores do corpo e pelas influências planetárias. Desde a Antiguidade até o século XVIII, considerou-se que uma tristeza prolongada decorria de um “humor corrompido”, um desequilíbrio na proporção da fleuma, cólera ou bílis amarela e da bílis negra na corrente sanguínea. Nesta perspectiva, há correspondência entre os quatro humores e os quatro elementos da natureza — o ar, a água, o fogo, a terra —, o que determina quatro temperamentos humanos. O sanguíneo, “o mais perfeito”, corresponde ao ar, ao Zéfiro — vento do oeste, doce e tépido —, à primeira juventude, à primavera, afirmando-se entre três e nove horas da manhã; o fleumático correspondendo à água, ao Austro — vento do sul, portador das chuvas —, ao inverno e à velhice: domina entre nove horas da noite e três da madrugada; o temperamento colérico, correspondendo ao fogo, ao Euro — vento quente e seco do leste —, ao verão e à maturidade, muito ativo entre as nove da manhã e as três da tarde; e o temperamento melancólico, correspondendo à terra, ao vento Bóreas — do norte, do outono —, à idade declinante e “à primeira velhice”; domina entre as três da tarde e as nove da noite. A melancolia é essencialmente uma doença da região abdominal, comandada pelo pâncreas onde se acumula a atrabílis e de onde se exalam vapores tóxicos para o cérebro: “Os olhos vêem fantasmas”. Assim como há correspondência entre as quatro direções do vento, as quatro idades da vida, as quatro estações do ano, os quatro momentos do dia (aurora, dia, crepúsculo, noite), os quatro planetas (Júpiter, Marte, Saturno, Lua) e os quatro rios do Hades (Aqueronte, Flegetonte, Stix, Cocito), os quatro elementos estão em analogia e afinidade (em sentido renascentista e alquímico) com as quatro qualidades variavelmente combinadas: quente-úmido, quente-seco, frio-seco, frio-úmido.

A partir do Renascimento, a melancolia torna-se a mais temida de todas as doenças, por uma peculiaridade: é, segundo Ficino, uma doença da imaginação. Os delírios melancólicos são os mais cruéis e ultrapassam em intensidade as dores físicas, porque todo o sofrimento é sentido pela alma, e aumenta quando o agente a toca diretamente, sem a intermediação do corpo. Não constituindo mais uma “blindagem”, a alma fica entregue ao delírio: “Ao indivíduo resta (como opinam os platônicos) o império da fantasia que se esvai ou da fantástica razão no próprio homem […], a qual, abalada pelo ódio ou pelo temor, com ela arrasta, qual longo cortejo, tristes imagens”[4]. Para combatê-la, a magia natural se vale das influências dos astros e dos elementos da natureza (incluindo-se uma dieta adequada — ervas, minerais, bem como a utilização das cores)[5]. Paola Zambelle, em Umanesimo e esoterismo (CEDAM, 1960, p. 43), observa que na astrologia — na qual se viu o único aspecto autenticamente subsistente do “paganismo” do Renascimento — nesta zona-limite da história das ideias, acreditamos que o contínuo entrelaçamento dos dois temas […], matemático e astrológico, é impressionante: não apenas se procura o conhecimento matemático para servi-lo, ou seja, aqui valendo-se das forças celestes ao invés de sofrê-las, mas ao próprio cálculo se entremeiam exigências contínuas e motivo nada matemáticos:

[…] Astrólogos e magos se colocam no plano da arte que modifica e transforma, mas entendem todo agente em analogia como agente humano, todas as forças são vistas como produtoras no exato sentido em que considera a “causalidade astrológica”: e a ciência ativa […] se move sobre o plano mais próximo à retórica, à política, à estratégia e não à lógica das ciências.

Ora, uma fratura irremediável na harmonia do cosmos (em parte herdada do mundo antigo) “passa a ser reelaborada e reinventada na cultura do Renascimento. No início de nossa modernidade se reafirma um divórcio trágico entre o homem e a natureza” (Mario Galzigna, em “L’enigma della malincoria. Materiali per una storia”, in Aut Aut [maio-ago. 1983], p. 195-6). Nota ainda Galzigna que, ao longo do itinerário de uma genealogia do sujeito moderno, se encontra sempre a melancolia: uma constelação que realiza uma surpreendente distância dos mecanismos do poder, que produz um saber transgressivo e enigmático, frequentemente privado de palavra, quase sempre capaz de desorientar os dispositivos destinados a controlá-lo:

[…] melancolia, pois: gostaria de assumi-la como sinal de uma recusa, como emblema de uma proximidade perdida com relação à energia e à força do projetar, à capacidade de programar o tempo com respeito a decisões que se resolvem fora de nós mesmos, no teatro do mundo […]. Melancolia é ainda a distância impreenchível entre o sujeito que deseja e os objetos de seu desejar, nome que condensa, como singular potência agregativa, experiências distintas, mas frequentemente entrelaçadas, de uma privação, de uma laceração (Id., ibid.)[6].

A Ciência Moderna, particularmente na expressão cartesiana, procurará ocultar, e por vezes esquecer, os componentes trágicos desta ruptura entre o homem e a natureza, o eu e o mundo, sob o signo de uma “metafísica da separação” (cf. A. Negri, Descartes político o della ragionevole ideologia [Milão, Feltrinelli, 1970]; como também W. Benjamin, em Origem do drama barroco alemão, p. 246).

Em Descartes, a intervenção divina, resolvida e exposta no ato criador, abrirá o espaço a uma razão mundana, cada vez mais poderosa, sempre mais autônoma, apta a funcionar utilizando a fé como caução, e encontrando, na relação com a transcendência, a premissa indispensável à ciência e ao próprio agir. Mas a melancolia, que trabalha com constância — o mais das vezes clandestinamente — contra a linearidade deste projeto, é um “ao revés” latente, escondido, da razão clássica, um “negativo sem função” que faz obstáculo — por mostrar a sua dimensão efêmera — à ascensão triunfal do novo saber, da técnica. A tragédia da perda da harmonia com o cosmos, a tragédia do afastamento e da distância divina — aprofundada e acentuada pela opacidade da matéria corpórea —, deixa na melancolia uma marca ineludível; encontra na “patologia” atrabiliar um resíduo ameaçador e resistente[7]. Quando Robert Burton fala da destruição da imagem de Deus como fundamento do Estado melancólico, alude à experiência da distância e da ausência de Deus: ela é a doença do Absoluto[8].

Mas já em Robert Burton há o registro e a reprovação dessa doença, sua condenação moral. Também T. Brigert, em Treatise of melancoly, obra de 1586, dedica seus dois últimos capítulos à terapia médica e à farmacologia da melancolia, concebidas como complemento necessário à cura moral, cura destinada “ao consolo da consciência aflita”.

O rompimento da analogia entre microcosmo e macrocosmo assume de fato, na obra de Ficino, De vita, um alcance estratégico: a laceração atravessa a harmonia do cosmos e ao mesmo tempo a impossível unidade do microcosmo humano. Para falar das coisas terrenas, Burton, por sua vez, utiliza a formulação aristotélica do “labirinto sublunar”: nele só há corrupção, quer dizer, ausência de ordem, acentuada pelas opiniões de Copérnico, Digges e Kepler, que consideram a Terra não mais imóvel no centro do universo, mas um planeta em movimento: “The earth is a planet that moves” [A Terra é um planeta que se move] (Anatomy […], p. 78). Se estas opiniões fossem verdadeiras, sugere, confirmariam a precariedade da Terra e do homem que nela habita. É a bílis negra que, em excesso, se corrompe e se mescla irregularmente com outros humores, o que só faz aprofundar a instabilidade do sublunar: a bílis negra desvenda a anomalia dentro da ordem, a desarmonia e o desequilíbrio no interior do jogo das correspondências, a inadequação da matéria corpórea com respeito à missão divina da alma[9].

A angústia melancólica encontra seu fundamento ontológico na desarmonia preestabelecida entre a materialidade dos corpos e a imaterial transcendência da alma. O otimismo da imanência se altera com o pessimismo da transcendência[10].

O que, para Marsilio Ficino, torna possível a comunicação entre o corpo e a alma é a potência da imaginação, à qual se vincula, também, a melancolia. Mas o processo de “medicalização”, nos anos 1600 (com a conversão das feiticeiras e videntes em doentes), faz com que a feitiçaria deixe de assustar porque se perdem os sinais analógicos que ligavam a melancolia com a estrutura do universo. Uma concepção mecanicista da natureza (cf. R. Mandrou, Magistrados e feiticeiras na França dos Seiscentos) mostra a oposição à escolástica e também ao naturalismo da Renascença; os mecanicistas (Descartes, Mersenne, Galileu, Pascal) se apoderam do “mundo inanimado” da matéria, impondo-lhe uma linguagem matemática, à qual é incapaz de responder mas segundo a qual o mundo se ordena. Demonstram a bela mecânica da Natureza que lhes é oferecida para que se tornem “seus mestres e possuidores”. Robert Lenoble, em Esquisse d’une histoire de l’idée de nature (Paris, Albin Michel, 1969), chama a atenção para um episódio aparentemente anódino, mas que é fundamental para a compreensão da mudança de uma concepção “naturalista” da natureza do século XV e XVI para sua transformação em máquina. Em 1632, Galileu publica os Diálogos sobre os dois principais sistemas do mundo e as personagens se encontram em um arsenal de Veneza: “que a verdadeira física possa ter decorrido de uma discussão entre engenheiros, não mais podemos imaginar hoje o que esta situação tinha de revolucionária”. Se o físico da Idade Média alcançava Deus descobrindo suas intenções e as finalidades da Natureza, o físico mecanicista se eleva até Deus, penetrando o próprio segredo do Engenheiro divino, colocando-se em seu lugar para compreender justamente como ele de que modo o mundo foi criado. É este o projeto a que responde a dedução do mundo que se encontra, por exemplo, nos Principia philosophiae, de Descartes — de 1644 —, e que já fora expresso no Discurso do método. Para evitar toda discussão, escreve:

Decidi-me a deixar todo este mundo entregue a suas disputas e de falar somente do que acontecia em um novo, se Deus criava agora em alguma parte, nos espaços imaginários, a quantidade de matéria suficiente para compô-lo e que agitasse diversamente e sem ordem as diversas partes desta matéria, de tal forma que compensasse um caos tão confuso que os poetas pudessem fingir e que, em seguida, não fizesse outra coisa senão emprestar seu concurso ordinário à natureza e deixá-la agir segundo as leis que ele estabeleceu (5ª. parte).

Inútil dizer que é nosso mundo exatamente que Descartes encontraria com esta operação: dito de outra forma, ele se colocou a si mesmo no lugar do Engenheiro divino. Para Descartes, neste mundo cuja essência é mecanismo, extensão, geometria, Deus instalou o homem, feito a sua imagem, como representante de uma outra essência, infinitamente mais digna do que a primeira: o pensamento. Se a natureza de Platão e Aristóteles conduzia o homem a Deus pelo espetáculo de sua finalidade, a natureza mecanista serve à religião. Nas Paixões da alma, Descartes empreende completar nosso domínio sobre o mundo por um igual domínio desta outra mecânica que é em nós a sensibilidade. Às questões ansiosas do moralista inquieto com os riscos do pecado, Descartes substitui a tranquilidade “objetiva” da técnica às voltas com o equilíbrio das forças. A natureza íntima, isto é, tudo o que em nós é padecido e não voluntário, perde, por sua vez, todo o seu mistério: não podemos agora olhar os acontecimentos da Natureza” como fazemos com os das comédias”. Ora, o mundo do final do século XVI e do início do século XVII é um mundo filosoficamente “aberto”: fora aberto pela ruína do naturalismo aristotélico, aquela concepção segundo a qual a natureza é um movimento visualizando um fim (cf. Física, livro II, 8, 192b).

Neste horizonte, a concepção de natureza deixa de ser a analogia, a simetria, as afinidades e passa a ser mecanicidade. O terreno está aberto para a medicalização da melancolia e o desuso da magia. Se, no final dos Meteoros, Descartes diz ter desvendado os mecanismos celestes e que nada mais se encontrará neles como “matéria de admiração”, é porque admirar-se é não conhecer a ordem das razões. O erro é o sensível, as imagens, a desordem no pensamento, o que determina ideias confusas, isto é, indiferenciação entre natureza e artifício.[11]

Esta impossibilidade epistemológica em discernir o natural do artificial, Descartes tratará como confusão no conhecimento, sua aderência à multiplicidade incontrolada do sensível. Na Regra III das Regras para a direção do espírito, define o meio de nos desligarmos dele:

Por intuição entendo não o testemunho instável dos sentidos, ou o caráter enganador dos juízos obtidos pelas construções da imaginação não regrada; entendo de fato, por esta palavra, uma representação obtida graças à inteligência pura e atenta, tão fácil e tão distinta que não permanece nenhuma dúvida relativa ao que compreendemos; ou também, o que é a mesma coisa, uma representação em que a dúvida não pode se infiltrar, obtida pela inteligência atenta e pura, nascida somente da luz da razão (A. T., v. X, p. 368).

A busca da luz-verdade se inscreve em uma luta contra a angústia nascida do sentimento de um perigo cujo contorno ainda não se configurou. Assim, o tema físico da luz se reúne ao tema psicológico da certeza; e a indecisão e os erros se acompanham por um sentimento de noite: a maneira de filosofar dos antigos (Aristóteles e seus continuadores), pensa Descartes, os assemelha “a um cego que, para entrar num combate sem desvantagem contra alguém que vê, tê-lo-ia feito vir ao fundo de algum porão muito escuro” (Discurso do método).

Ora, para emergir à luz da certeza, é preciso ordem. “A ordem da natureza”, diz Descartes nos Meteoros, “é uma tal disposição das coisas que determina mecanicamente certas consequências; a ordem do homem é uma tal disposição dada às coisas que possibilita, de maneira deliberada e voluntária, certos resultados.” A ordem é uma disposição que leva a uma consequência determinada. “Sem ordem” reenvia naturalmente à ideia de confusão, que por sua vez Descartes comenta pela ideia de acaso e de imprevisibilidade. E, na Regra X, escreve sobre os êxitos que obteve graças à aplicação sistemática do método (da ordem): “trouxe-me sucesso com tanta frequência que me apercebi de que não era graças a uma pesquisa vadia e cega, habitual nos outros mais auxiliados pelo acaso que por si mesmos, que chegava à verdade”. E um pouco adiante nota: “é preciso tomar o maior cuidado para não perder tempo adivinhando, ao acaso e sem aplicação deliberada […] casu et sine arte” (nota 105, p. 173): a ciência não é assunto de ocasião ou augúrio, de fortuna.

Na metodologia cartesiana, fortuna se opõe a ars. A necessidade de abolir o acaso é forte. Nele Descartes parece investir tudo o que teme: o acaso representa a ameaça de um futuro não conjurado, a espera inquieta das decisões que escapam à verdade e à razão, o desejo realizado ou decepcionado sem que a atividade pessoal possa vencer as decisões de sorte. A ars, tal como aparece nas máquinas — no relógio, no autômato, nos engenhos —, realiza uma necessidade encadeada de onde toda surpresa, toda espera frustrada, todo temor estão excluídos. Como na 2ª. Meditação de suas Meditações metafísicas:

Tudo o que recebi até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez […]. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro (pp. 93-4, 99).

Ponto fixo é o contrário da inconstância, da mudança, características do sensível, da imaginação. Nos dados dos sentidos e nos sentidos não há estabilidade, permanência, identidade. E mais: como distinguir, no plano da imaginação, sonho e vigília, imaginação vigilante e imaginação sonhadora?

Esta indecibilidade epistemológica em discernir entre sonho e vigília, evidência e profecia, aparece de maneira precoce na obra de Descartes (cf. Baillet, em Vie de monsieur Descartes; cf. ainda Gouhier, Les premières pensées de Descartes [Paris, Vrin, 1955], p. 39 ss.). Na obra Olympica, de Descartes, e nos relatos a Baillet, amigo e biógrafo, aparecem partes sonegadas de sua autobiografia, do Discurso do método e das Meditações. Em Vie de monsieur Descartes, Baillet fala detalhadamente do estado de exaltação psicológica e das visões oníricas que acompanham o filósofo na juventude e que lhe apresentam uma dupla revelação em sonhos: a de sua “vocação” e a “dos fundamentos de uma ‘ciência admirável'”

Na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, Descartes tem três sonhos. Lembre-se que se trata da juventude do filósofo, quando ainda se encontra próximo à concepção do universo neoplatônico e renascentista, do universo rosa-cruz e seu sonho reformador. Tanaka (em “Voyage de Descartes en Alemagne”, in Revue de Métaphysique et Morale [Armand Colin, jan.-mar., 1987]) procura reconstituir o itinerário da viagem do jovem filósofo, no Discurso do método, mostrando como Descartes não segue fielmente o percurso proposto: durante três meses, depois de sua chegada a Amsterdam, não há notícias de seu paradeiro. Segundo Tanaka, Descartes vai a Veneza, após ter abandonado o projeto de visitar a Boêmia. Veneza é um lugar privilegiado porque mantém independência da Inglaterra e da Alemanha, e pretende liberar-se do sistema esclerosado de Viena e Roma, mas, antes de mais nada, de Aristóteles e da escolástica. Este é o ideário da sociedade rosa-cruz — um sonho reformador, que procura construir um “mundo de fraternidade” sobre a base não somente da liberdade política e religiosa mas também das ciências herméticas e cabalistas, na escola de Marsilio Ficino e Pico della Mirandola.

A viagem de Descartes tem uma finalidade precisa: visitar os centros das ciências do Renascimento. Favorável ou não aos rosa-cruz, interessa-se por manter contato com eles. Em seu Studium bonae mentis, Descartes diz ter feito a viagem procurando os rosa-cruz. No compêndio 0lympica, escrito aos 23 anos, sua física-matemática ainda não se baseia em uma metafísica mecanicista. Neste ensaio, Descartes mostra-se ligado à teoria da simpatia e da antipatia. Sua física-matemática ainda se encontra no universo platônico da correspondência e da harmonia, universo agora neoplatônico e cabalista: “Não seria natural que este aprendiz-filósofo, decepcionado com a filosofia ensinada em La Flèche, sinta uma afinidade com a nouvelle vague do Renascimento ou com o cosmos neoplatônico florentino ou pitagórico, no qual o Universo é o princípio do Ser?”.

Com isto demarca-se o fato de que Descartes não é “cartesiano” desde o início de suas obras. Ele viria a sê-lo depois de ter assistido ao desmoronamento do antigo cosmos. Qualquer tentativa de explicar retrospectivamente os primeiros pensamentos de Descartes por sua filosofia da maturidade obliteraria este drama — o do desmoronamento — e consequentemente a verdadeira gênese do cartesianismo, em um período que se liga ao sonho e à imagem como categorias divinatórias[12]. No primeiro dos três sonhos mencionados, o filósofo anda pela rua devastada por um vento impetuoso, caminha penosamente, empurrado pelo vento à esquerda na tentativa de chegar à igreja do Colégio de la Flèche. No momento em que se volta para saudar um viandante, o vento o arremessa de encontro à igreja. No pátio, alguém lhe diz que certa pessoa lhe trouxe um melão de presente.

Descartes desperta por um momento com o lado esquerdo dolorido. Volta-se para o lado direito, faz uma oração pedindo a Deus que o livre dos pesadelos, volta a adormecer e tem um segundo sonho.

É acordado por um aterrorizante estrondo de trovão e, ao mesmo tempo, percebe cintilando no quarto uma chuva de faíscas de fogo. No sonho seguinte vê sobre a mesa dois livros: um Dicionário e um Corpus poetarum no qual lê as palavras de Ausônio: “quod vitae sectabor iter?” [que caminho seguirei na vida?]. Deixando de lado seus diversos aspectos, o que nos interessa é o “vento impetuoso que ameaça carregar o filósofo pelos ares”. Seria o mau espírito “tentando atirá-lo pela força a um lugar para o qual sua intenção era ir Voluntariamente”? Quanto à visão de “centelhas” de luz no quarto, o biógrafo Baillet diz que sem dúvida “esta última imaginação nos levaria a acreditar que o Sr. Descartes teria bebido à noite antes de deitar-se”. Com efeito, na véspera de Saint-Martin, tinha-se o costume de fazer à noite uma festa no lugar em que as pessoas se encontravam, como na França. Mas Descartes assegura que passara a noite e o dia seguinte “em grande sobriedade”; havia três meses que não bebia nada. Acrescenta que um “gênio” excitara nele o entusiasmo que lhe aquecia o cérebro havia alguns dias e lhe predissera estes sonhos antes de deitar-se, e que “o espírito humano não tomara nenhuma parte nisso”.

Jean-Marie Wagner, em “Esquisse du cadre divinatoire des songes de Descartes”, mostra como a expressão “grande sobriedade” pertence a um topos de todo o pensamento do Ocidente. No estado de vigília, a alma está ligada ao corpo, e, em contato com o mundo sensível, não está apta a prever o futuro graças a uma “faculdade natural” (cf. ainda Cícero, De divinatione, 48; Aristóteles; Sexto Empírico; Plutarco, De defectu oraculorum, De Pythiae oraculis)[13].

Ora, o sono desvia precisamente a alma do mundo sensível tornando a oniromancia possível. Segundo esta teoria, a redução “dos sentidos externos” permite à alma reencontrar o contato com o mundo divino ao qual pertence de direito (cf. R. Klein, “L’imagination comme vêtement de l’âme chez Marsile Ficin et Giordano Bruno”). E mais, dormindo, a alma se desembaraça completamente das impressões da véspera, o que seria impossível depois de um jantar copioso, com libações ou banquetes regados a vinho. Daí a referência constante à sobriedade (tanto na Antiguidade, quanto na Idade Média ou Renascença).

A esse respeito, Baillet, interlocutor de Descartes, destaca um aspecto fundamental: “O que há de significativo a assinalar é que, sem saber se o que acabara de ver era sonho ou visão, Descartes não somente decidiu dormindo que era sonho, mas realizou ainda a interpretação antes que o sono o deixasse”. Baillet chama nossa atenção ao nos mostrar Descartes sempre prestes a dormir ou a despertar. Chama a atenção para a dúvida de Descartes quanto a saber se o que vê é sonho ou visão e a dúvida também quanto a saber se sonha ou medita.

Em carta a Elizabeth (de novembro de 1646, IV, 530), Descartes fala do “gênio” que lhe aparece e lhe prediz seus sonhos, diferenciando-o do daimon socrático, e colocando-o, assim, ligado a um “gênio divinatório”. A obra Olympica, de Descartes, se desenvolve em meio a uma dupla tradição: a da adivinhação pagã e a cristã, mas se precavê para não ser associada à superstição. Descartes diz na Olympica: O malus spiritus é um espírito que [Deus] não enviara”. Sua temível vontade é a de seduzir. “Ele sentia”, escreve Baillet, “uma dor efetiva [do lado esquerdo] que o fez temer que fosse a operação de algum gênio mau, que teria desejado seduzi-lo”. Este “espírito” se afirma como mau, primeiramente porque Descartes “sentia uma dor efetiva”, o que só poderia proceder de um gênio mau, enganador porque “empurrara o jovem filósofo para a igreja do colégio”, impedindo-o, assim, de para lá se dirigir “voluntariamente” — imitação ardilosa do espírito divino, que se propunha a guiá-lo, mas, ao mesmo tempo, ato voluntário. Com efeito, o “mau espírito” se afirma no momento em que finge ser um “bom gênio”. Em suma, ao mesmo tempo em que o empurra para a Igreja e para Deus, tentando fazer-se passar por um bom gênio, o gênio mau, aderindo ao flanco direito do filósofo, tenta perturbar o bom funcionamento do fígado e impedir de fato e de direito o diálogo divinatório — Deus-Descartes.

O fígado é, desde Platão (Timeu, col. Belles-Lettres, 1963), o órgão da adivinhação intuitiva. Assim, se o “mau gênio” é um “malus genius”, é também da estirpe do “malignus genius”, o grande enganador, o deceptor das Meditações, cuja finalidade é enganar, e enganar sempre, sendo “a perdição dos homens”. Sua suprema astúcia é quando finge ser Deus, seja empurrando falsamente o homem para os braços do ser divino, seja revelando-lhe os objetivos da Providência a fim de se fazer adorar no lugar de Deus.

Porém, toda esta experiência da juventude, e a consciência aflita na indistinção entre o sono e a vigília, seria vencida pela separação entre corpo e alma e na supremacia da estrutura matemático-algébrica que dissolve tanto o “gênio maligno” quanto o “stupor”. Que se recorde a passagem da 1 Meditação:

[…] mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio delas: por exemplo, que eu esteja aqui sentado junto ao fogo […]. Mas quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu, dentro de meu leito? […] E, detendo-me neste pensamento, vejo manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo (p. 94).

A necessária separação que se seguirá entre o sensível e o racional decorre do fato de os sentidos e a imaginação não possuírem em si e por si mesmos nenhum critério capaz de garantir se efetivamente percebemos as coisas, se estamos dormindo, imaginando ou alucinando: “imaginar”, escreve Descartes, “nada mais é do que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal” (2º Meditação, p. 102), quer dizer, corruptível, destrutível, cambiante, instável, ilusória:

[…] pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se nô-la apresentam (assim que retirada da colmeia, e depois de aquecida e metamorfoseada), e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos e não tão só pela inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que veja a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em seu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos (2ª Meditação, p. 105)[14].

A verdade de um objeto não pode corresponder à desordem ou a acontecimentos e sensações ao acaso. E aqui a atenção, a consciência plenamente desperta, desempenha função primordial: ela não faz suceder fortuitamente um quadro a um outro. A cera é, desde o início, um. fragmento de extensão flexível e mutável; eu o sei clara ou confusamente “segundo minha atenção se dirige mais ou menos às coisas que estão nela e de que ela é composta” (2ª Meditação). Já que experimentamos na atenção um esclarecimento do objeto, é preciso que o objeto percebido possua já a estrutura inteligível que a atenção destaca. Reciprocamente, a percepção desatenta ou delirante é meio-sono — os únicos objetos de que se pode falar são os da consciência desperta.

Porém, temos conosco um princípio constante de distração e de vertigem que é nosso corpo, corpo-fonte das sensações, das imagens e da imaginação. Sujeito racional e realidade material se desunem em Descartes para garantir a separação entre o verdadeiro e o falso.

Porém, mesmo a obra Recherche de la verité, na qual Descartes escreve citando a fase emblemática do teatro barroco de Calderón, La vida es sueño: “Veille-je ou si je dors?”, contém já uma revelação metafísica. Que se recorde a peça: Sigismundo, filho do velho rei da Polônia, é prisioneiro em uma torre, pois seu pai fora advertido pela astrologia de que deveria desconfiar de seu filho, cujo destino era o de tornar-se um temível tirano. Entretanto, para pôr à prova a predição, Sigismundo é narcotizado e transportado ao palácio, onde desperta cercado por músicos, valetes, servidores, cortesãos e toma ciência de ser rei.

Como fora na inconsciência do sono que deixara sua prisão, ele crê, primeiramente, estar sonhando; mas, seduzido pelo luxo que o rodeia, embriagado por seu poder, quer desfrutar da situação que se impõe a ele como real e, sem freio de nenhuma lei, se comporta como um monstro. Fascinado pela visão de uma mulher, ele a persegue freneticamente, agride um serviçal que se interpõe e o faz jogar pela janela; depois, ameaça matar em duelo um fidalgo em quem reconhece um rival. A experiência confirma: os astros tinham razão; o velho rei ordena que seu filho, novamente submetido a um narcótico, seja reconduzido a sua prisão.

Quando desperta, está persuadido de ter sido tudo um sonho; e, recordando-se, estima que aquilo que o deslumbrara em seu breve reinado — o poder, o prazer, a riqueza —, tudo não passa de vaidade, coisas vãs, e não tem realidade senão enquanto sonho. Chega a esta conclusão quando circunstâncias — uma revolta militar que destrona o velho rei — o chamam de fato para reinar. Mas, agora advertido, não se deixará transportar pelos prestígios do mundo; sabe que os bens temporais são só aparência; e, se lhe é necessário governar, gerir os negócios deste mundo, não se submeterá a ele: o bom exercício do governo tem por condição primordial o desprendimento.

Aquele que está convencido de que a vida é um sonho é aquele que fez a experiência da vigília. Sigismundo vivia em um sonho do qual despertou; reconheceu a leviandade das seduções sensíveis e descobriu outros valores. Dizer “a vida é um sonho”, é dizer que a vida empírica, aquela que transcorre no tempo, é um fenômeno, uma sequência de metamorfoses por meio das aparências; mas não há fenômeno ou aparência sem um sujeito ao qual apareçam como tal; e este sujeito não poderia estar inteiramente no mundo dos fenômenos, das aparências que se sucedem no tempo.

A vertigem do despertar, tema do Drama barroco, Benjamin vai concentrá-la na noção de “imagens dialéticas”. Reunindo metacartesianamente sonho e vigília, ilusão e verdade, certeza moral e dúvidas sensoriais, recoloca a questão obliterada pelo racionalismo iluminista: a do verdadeiro e do verossímil, do sujeito verdadeiro mas absurdo, do falso mas coerente. Quer dizer, não há mais aqui a noção de um centro de gravidade subjetivo. Se a vida é um sonho, se vivemos entre imagens cambiantes, a “imagem dialética” nos diz que na modernidade a dúvida não se dá mais no plano do sensível, porque se duvida do próprio inteligível.

Sem garantia nas Formas transcendentes platônicas ou na imanência do Eu cartesiano, passa-se, hoje, da construção do Sujeito à sua dissolução, o que transparece, em Benjamin, nas análises da grande metrópole, universo fugidio de onde estão ausentes referências estáveis e origem: falta-nos um lugar de retorno. Na metrópole moderna se dá, especificamente, o desaparecimento das referências visuais. Que se pense no vidro, cuja materialidade translúcida tudo volatiliza: “A sensação de irrealidade e de infinitude torna-se praticável com o uso inovador do vidro, permitindo efeitos de luz inusitados e acentuando as linhas ambíguas de passagem entre o interior e o exterior”. Vidro, transparência, olhar — perda do olhar. Nas reflexões benjaminianas sobre Paris e Baudelaire, encontra-se o tema: na grande cidade, os olhos perdem a capacidade de olhar. “Baudelaire descreve olhos dos quais se poderia dizer que perderam a capacidade de olhar. Poder-se-ia dizer que tanto mais subjugante é um olhar quanto mais profunda é a ausência de quem olha” (“Alguns temas de Baudelaire”). A perda de dimensão do olhar significa a dissolução do sujeito: não há mais sujeito verdadeiro em um mundo onde as leis do mercado regem a vida de cada um. E o vidro é sua expressão paradigmática: “Não é por acaso”, escreve Benjamin, “que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa […]. As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é o inimigo do mistério” (“Experiência e pobreza”). As galerias no século XIX são as primeiras construções em ferro e vidro. Nesses “aquários humanos” reinam o comércio de luxo, a prostituição e o jogo, e é aí que vão se acumular as mercadorias que revelam o momento histórico, fundamento da reprodutibilidade técnica: “[…] a obra de arte torna-se reprodução mecânica com a fotografia. A literatura, documento informativo, a arquitetura, construção de ferro, assunto de engenharia, a imaginação, publicidade” (Jean Lacoste, prefácio a Sens unique).

Construção em vidro não deixa rastros, o vidro priva-a de sua aura tradicional e, em sua “transparência”, essa construção é a antítese do interior burguês, vale dizer, do sujeito que se fundava no “limite privado”, em sua interioridade. Além disso, o vidro fará como se fosse um jogo de espelhos. Isto aparece de maneira expressiva na canção de Chico Buarque, “As vitrines”, de sabor baudelairiano-benjaminiano:

Eu te vejo sumir por aí

Te avisei que a cidade era um vão

Dá tua mão

Olha pra mim

— Não faz assim

Não vai lá não

Os letreiros a te colorir

Embaraçam a minha visão

Eu te vi suspirar de aflição

E sair da sessão, frouxa de rir

Já te vejo brincando, gostando de ser

Tua sombra a se multiplicar

Nos teus olhos também posso ver

As vitrines te vendo passar

Na galeria

Cada clarão

É como um dia depois do outro dia

Abrindo um salão

Passas em exposição

Passas sem ver teu vigia

Catando a poesia

Que entornas no chão

A vitrine[15] mostra, expõe, liga o interior e o exterior, mas ao mesmo tempo devolve a imagem, reflete: “reflete não como o espelho, mas como só o vidro sabe refletir, isto é, provocando uma superposição de imagens. Tudo se passa […] no registro óptico”. Benjamin cita Simmel, segundo o qual “as relações entre homens nas grandes cidades são caracterizadas pela predominância do olhar”, mas de um olhar que não vê, a não ser na multiplicação de imagens, em sua superposição exterior como simulacro — não é possível distinguir entre o modelo e a cópia. Não é por acaso que o verbo ver domina o poema: “te vejo sumir”, “te vi suspirar”, “te vejo brincando”, “nos teus olhos […] posso ver”, “as vitrines te vendo passar”, “passas sem ver”, “olha pra mim”, bem como termos do mesmo campo semântico: visão, clarão, sombra, letreiros, colorir, olhos, exposição, vitrine. Visão embaralhada, sombra a se multiplicar. A cidade é, assim, um signo ameaçador: “[é] um vão”, “não vai lá não”.

Se a caverna platônica oferecia sombras cuja realidade se ancorava no supra-sensível, na “caverna moderna” há sombras que trazem tochas que se iluminam a si mesmas, parcialmente e mutuamente, mas não há nenhum fogo central, nenhum modelo. As sombras modernas formam visões variáveis, comportando iluminação de ângulos diferentes, quadros descontínuos. A noção de “perda da aura” é a condenação definitiva da crença em outro mundo.

Não obstante, há uma “dialética do moderno” nestas “imagens”. Nas “imagens dialéticas”, interior e exterior se anulam e se cancelam. Nesta “racionalidade” das “imagens dialéticas”, a razão renuncia tanto à certeza da razão cartesiana quanto a seu contrário, a certeza sensível hegeliana.

Reabilitando a noção de imagem e restituindo à aparência seu tônus de conhecimento, a dialética não é, aqui, compreendida como em Hegel ou Marx, enquanto movimento histórico do conceito ou como unidade mediada do sujeito e do objeto[16]. A história é a dimensão própria de um mundo de imagens no qual não está dada a localização, pois é um mundo sem “onde”. É a isto que Benjamin designa por limiar (Schwelle): “Trata-se de um instante de imobilização que é nada mais do que uma desmobilização”. Este limiar, o presente que pode parecer um ponto fixo, é bem o contrário de um lugar seguro. Ele é o lugar que requer a arte de prever o presente: “Antes de termos aprendido que as coisas se encontram em uma situação determinada, já mudaram diversas vezes. Assim, sempre percebemos os acontecimentos tarde demais, e a política necessita sempre prever, por assim dizer, o presente” (P. W., p. 598).

O limiar, Benjamin o encontra também na fotografia: por um lado, declínio da aura artística diante da reprodutibilidade técnica; por outro, uma intensidade vinda de uma misteriosa presença. Ao comentar os retratos do fotógrafo inglês das origens da fotografia, Davis Octavius Hill, Benjamin explicita sua magia: pense-se na Pescadora de New Haven, na qual “resta algo que é impossível reduzir ao silêncio e que reclama com insistência o nome daquela que lá viveu, que ainda está lá, real, e que não passará jamais inteiramente na arte”. Basta meditar por algum tempo diante de tal imagem para reconhecer quanto se tocam, aqui, os contrários: “Lá onde o pensamento subitamente se paralisa em uma constelação carregada de tensões, ela lhe comunica logo um choque pelo qual ela mesma se cristaliza enquanto mônada” (“Sobre o conceito de história”, tese XVII). Essa imagem deverá ser construída com “imagem dialética”, pois trata-se “do aparecimento por imagens da dialética (hegeliano-marxista)” : “O novo método dialético na história se apresenta como a arte de compreender o presente como o mundo no despertar, um mundo ao qual se liga verdadeiramente esse sonho que chamamos de passado” (G. S., I, p. 491). Esse limiar entre o sono e a vigília é o instante de rememoração (Eingedenken). Benjamin recupera o conceito de Orígenes — a apocatástase: tão grande era o poder de Deus que, depois de salvar os justos, Ele salvaria também os pecadores, encaminhando todos para o Reino dos Céus. A “Salvação da história”, de todas as aspirações libertárias do passado, se simboliza na ideia da “humanidade redimida”. É a revolução — redenção que se opõe à noção hegeliano-marxista de totalidade e de sistema, isto porque a total administração da sociedade (verweltete Gesellschaft) é a tradução política da categoria da totalidade à qual são sacrificados os partidos, os indivíduos, lá onde a revolução, realizando-se, fracassa.

Na imagem dialética, Benjamin aproxima a evidência cartesiana e o enigma da ambiguidade na história. Nela não há um quadro coerente: sua desordem interna é necessária. É o Bildraum, o espaço onde desfilam as imagens da “rememoração involuntária”.

Ele é o alarme de uma consciência histórica que se perdeu, é a queda da experiência, recoberta pelo fardo do historicismo. Quanto mais o historiador historicista fala de história e de experiência vivida (Erlebnis), menos, em geral, ele as possui. Aceitar a pobreza, como em Erfahrung und Armut (G. S., II, 1, p. 214 ss.), implica realizar um percurso oposto ao do historicismo — que quer movimentar o que é petrificado (cf. a crítica benjaminiana, tese VII) —, oposto à articulação historicista do passado. Contra ele, Benjamin quer parar o que está em movimento, em falso movimento, bloquear o “trem do progresso” e da revolução: “As revoluções não são a locomotiva da história, mas o freio de emergência da humanidade que viaja nesse trem”. A Dialektik in Stillstand é o que há de mais contraditório com a tradição. Rompe desde logo com Hegel, cujo pensamento possui um Zeitkern [índice temporal], ideia de que a verdade reúne no tempo o cognoscente e o conhecido (cf. P. W., p. 578). Sua dialética se efetua por ideias e conceitos e não sob a forma de imagens: “A Imagem é a Dialética em repouso” (P. W, p. 978). “A imagem”, diz Benjamin, “não encontra seu lugar em nenhuma realidade.”

Ao mostrar que a modernidade é pobre de experiência e nela fazemos a experiência da pobreza e de possibilidades, Benjamin mostrou também que o mundo das imagens modernas perdeu tanto sua aura religiosa quanto artística, mas semeou novas, inesperadas, atomizadas. Faz a passagem, assim, da crítica do fetichismo à meditação acerca da potência da fantasmagoria.

Em Origem do drama barroco alemão, a história é descrita como “história natural”, com o mesmo caráter de fixidez essencial e retorno ao idêntico de uma formação geológica. Esta petrificação da história, sua naturalização, se manifesta de maneira emblemática na caveira barroca, no crânio. É a facies Hipocratica, na “petrificada paisagem primeva”. É o orgânico mais próximo do inorgânico, em que o efêmero e o eterno coincidem. E a máscara é seu elemento essencial: “A alegoria”, escreve Benjamin, “está mais tenazmente radicada lá onde a caducidade e o eterno se chocam diretamente”. A carne e o esqueleto, portanto. Na escolha da máscara, observa Massimo Canevacci, em Antropologia da comunicação visual, há a ofensa humana à decisiva categoria do tempo; a petrificada paisagem primeva, nem mesmo a morte consegue decompor. Todo o erro e toda a dor do passado histórico “se configuram num rosto — ou melhor: na caveira de um morto”. Animismo e misticismo estão envolvidos no mais duradouro e “materialístico” dos materiais: a caveira descarnada. Por isso, a interpretação benjaminiana diz: além da exposição barroca, a representação visual das dores do mundo contém um código mais complexo, que persegue a superação da rendição à morte, e para tal fim exige uma mascarada desumanizante. Esta caveira-máscara é o “rosto rígido da natureza”. A máscara, como réplica inorgânica do rosto orgânico, tende a constituir-se como unidade e também como identidade do vivo com o morto, do ser com o nada. Daí o culto barroco da ruína e dos escombros —o que resiste à destruição. Em toda máscara há essa contemporaneida-de do rígido e do móvel, uma “síntese de natureza sincrética”: a máscara é inquietante porque ao mesmo tempo é fixidez da morte, inexpressividade e também comunica-nos algo sempre novo, mostra-nos uma identidade cambiante e imprevisível, mostra escondendo e esconde mostrando, com a mesma aparência mas nunca idêntica a si mesma.

A “caducidade do moderno”, a “perda da aura” têm sua redenção: elas constrangem objetos sem olhar (sem o suporte de um sujeito a ver). A aura hoje — a dimensão do culto dos objetos — se aloja onde menos se espera, como na fotografia. Esta, se bem olhada, pode nos revelar “a fortuna e o destino da vida daquele que está lá”. A perda da aura, diz Benjamin, tendo as obras de arte perdido seu caráter cultual ou religioso, remete ao mundo das mercadorias, da reprodução em série, das fantasmagorias. Mas a aura é também a inevitável e salutar ilusão criada por uma modernidade insatisfeita com um real empobrecido. A perda da aura é a “caducidade do moderno” e torna contemporâneos o século XVII barroco e o do poeta-alegorista pelo sentimento da transitoriedade. Aquilo que Benjamin trata como “caducidade do moderno” é a perda, a transitoriedade da natureza. O tratamento da história como “alegoria” ou “segunda natureza” reconduz à existência da transitoriedade da realidade material. Este momento de transitoriedade é “o ponto mais profundo para o qual história e natureza convergem” (Adorno, em “Die Idee der Naturgeschichte”, in Negative Dialektik, p. 358).

A noção de transitoriedade da natureza é a fonte do sofrimento, mas, ao mesmo tempo, porque sua essência é transformar-se, é a fonte de esperança. Já Freud, em um artigo de 1916, “A transitoriedade”, trata desse sentimento e do luto que a ele se associa: “O pensamento de que toda beleza está condenada à extinção, pois desaparecerá (no que tange à natureza, ao verão sucederá o inverno), e também toda beleza humana e tudo de belo que os homens criaram ou poderiam criar”, é o sentimento da transitoriedade. Ao melancólico, tudo o que se ama e admira parece despojado de valor pela transitoriedade ser o destino de tudo:

Sabemos que tal preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito pode dar origem a duas tendências na psique. Uma conduz a um doloroso cansaço, outra à rebelião contra o fato constatado […]. Também que é doloroso pode ser verdadeiro […]. Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humanos no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhe acrescenta mais um encanto […]. Para o psicólogo, […] o luto é um grande enigma.

Se com a palavra enigma somos conduzidos à palavra destino, é no sentido em que ele designa não o caráter inevitável do que acontece, mas seu caráter imprevisível (tanto na história individual quanto naquela coletiva). A aura aparece em lugares e detalhes inesperados que são figuras de sua redenção:

Quem ama [escreve Benjamin] não se apega aos “defeitos” da amada, não apenas aos caprichos e às fraquezas de uma mulher: rugas no rosto e sardas, vestidos surrados e um andar desajeitado o prendem de maneira mais durável e mais inexorável do que qualquer beleza […]. E por quê? Se é correta a teoria segundo a qual os sentimentos não estão localizados na cabeça — que sentimos uma janela, um museu, uma árvore, não no cérebro, mas antes naquele lugar onde as vemos —, então estamos também nós, ao contemplarmos a mulher amada, fora de nós mesmos […]. Ofuscado pelo esplendor da mulher, o sentimento voa como um bando de pássaros. E, assim como os pássaros procuram abrigo nos esconderijos frondosos das árvores, também se recolhem os sentimentos, seguros em seu esconderijo, nas rugas, nos movimentos desajeitados e nas máculas singelas do corpo amado. Ninguém, ao passar, adivinharia que justamente ali, naquilo que é defeituoso, censurável, aninham-se os dardos velozes da adoração (G. S., IV, p. 921).

NOTAS

  1. Cf. apud Massimo Canevacci, em Antropologia da comunicação visual (São Paulo, Brasiliense, 1990).
  2. As Imagens Modernas são de “materialidade especial”, diversa tanto da perspectiva platônica quanto da cartesiana. Nestas, a imagem e a imaginação vinculam-se à experiência sensível, fonte de ilusões, sujeita a metamorfoses — o que pode nos levar ao engano, ao erro, à extravagância. Esta significa “ir além do que é conveniente a uma caminhada segura”. É ultrapassar o limite máximo do conhecimento, é cair na errância. Este caminhar sem direção definida faz apelo a um ponto de origem, a um ponto fixo. Platão o encontra nas Ideias — essências eternas das coisas — que reinam no sobrenatural, na transcendência; Descartes o encontra na consciência de si reflexiva.
  3. Não foi possível encontrar o radical comum de imagem e magia no grego e no latim, como se pode verificar nos verbetes correspondentes em J. Corominas, Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana (Madri, Gredos, 1954); Ernout-Meillet, Dictionaire etimologique de langue latine (4ª. ed., Paris, Klincksieck, 1967); e A. G. Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982). Há suposições de uma origem comum de imagem e magia no persa antigo, mas não nos foi possível realizar essa pesquisa.
  4. “Soluis restat est Platonici putant — phantasias jurentis vel phantasticae rationis perium in homine ipso, quae odio […] et timore commota versat secum longo ordine tristes imagines” (Théologie platonique, XVIII, 10, p. 421).
  5. É esta a função do talismã, “figura do mundo”. “Simultaneamente ícone, ídolo, signo, símbolo, encarnação das qualidades do mundo, miniatura do todo, conjugando pedras, metais, ervas, líquidos, cores, essências astrais, angélicas e espirituais e, entrando em harmonia com nossos olhos, é iniciação ao mistério do mundo e proteção contra o mais terrível dos males d’alma, a melancolia. É preciso oferecer aos olhos talismãs que os protejam contra malévolos sortilégios, eflúvios e encantamentos, assim como é preciso oferecer-lhes talismãs que os façam ver o invisível, a formosura total do universo. Dentre os inúmeros talismãs elaborados por Ficino, talvez o mais famoso seja aquele que encomendou para seu discípulo, Lorenzo de Medici, para protegê-lo dos eflúvios melancólicos de Saturno: a Primavera, de Botticelli” (Marilena Chaui, em “Janelas da alma, espelho do mundo”, in O olhar [São Paulo, Companhia das Letras, 1989], p. 52).
  6. Burton, em The anatomy of melancholy (Nova York, Vintage Books, 1977), v. I p. 131, fala na privação da imagem de Deus — a “destruction of God’s image” e também o despedaçamento de nosso corpo vivo, de nosso microcosmo que vive e pensa, contra o qual “stars, heavens, elements […] are armed” (op. cit., p. 133). Todos estes elementos, todas estas criaturas de Deus “are now ready to offend us”.
  7. No famoso texto da escola aristotélica Prolemata (XXX, I,), realiza-se uma síntese entre a teoria médica da melancolia e a concepção platônica do furor. Na parte introdutória, que é integralmente retomada e reelaborada pelos neoplatônicos florentinos do final dos anos 1400, em particular por Ficino, lê-se: “por que todos os homens excepcionais, nas atividades filosóficas ou políticas, artísticas ou literárias, têm um “temperamento” melancólico (…), alguns a tal ponto de serem afeitos a estados patológicos que dele derivam?”. A leitura positiva da melancolia, que já se inspirava em outra, a de “chave patológica”, fixa suas raízes na relação com o divino e com a transcendência. Tanto Platão quanto Aristóteles distinguiram a “melancolia natural” da “melancolia patológica”, entre o “furor divino” e o furor-doença.
  8. J. Starobinski, em Histoire du traitement de la mélancolie des origines à 1900 (Basileia, 1960), mostra que os modernos herdam do mundo antigo uma concepção de melancolia não inteiramente subjugada ao confisco médico ou à hipoteca patológica: a própria doutrina dos quatro humores — lugar por excelência dessa hipoteca — pressupõe um estado de saúde do melancólico, distinguindo a doença propriamente dita do “temperamento”.
  9. O desequilíbrio entre a alma e o corpo assumirá papel decisivo na figura da melancolia. Ficino dá três explicações para o fenômeno: 1) uma causa celeste, ligada aos maus eflúvios dos planetas Mercúrio e Saturno, portadores de aridez e frigidez; 2) uma causa natural, ligada aos eflúvios da terra “à qual a morbidez melancólica se assemelha”. A ciência é melancólica porque o homem deve, para obtê-la, recolher-se em si mesmo, retirar seu ânimo das coisas exteriores para as interiores, assim como de uma certa circunferência para o centro […] e este retirar-se da circunferência para o centro é próprio da terra; 3) uma causa humana, ligada ao movimento contínuo da mente e do coração, que deixa inativo o estômago e o fígado. A inação, a prostração melancólica desfaz o equilíbrio do corpo, torna o “ânimo” “tímido” e “passivo e triste”. O tédio está estruturalmente ligado à constelação melancólica, e seu indicador é o terror e a angústia: o terror das “trevas interiores” que, para Ficino, provocam a atitude de destacamento da vida e da “perda do engenho”.
  10. E. R. Dodds, em Pagani e cristiani in una epoca de angoscia (Florença, La Nuova Italia, 1970), denomina o século II como a “época de angústia”, época que influenciou amplamente Marsilio Ficino e Pico della Mirandola. A “verdade”, como se lê no Discurso secreto da montanha de Hermes Trismegisto a seu filho Tat, traduzido por Ficino, “é aquilo que não está contaminado, que não tem limites, nem cor, nem forma”; é “o Bem inalterável, o Incorpóreo”. O corpóreo é, assim, o contrário do Bem e da Verdade. A matéria é o Mal, o que se interpõe à ascensão a Deus, o que constitui uma “punição da matéria”, e a segunda punição depois dessa é a tristeza (cf. ainda Frances Yates, Giordano Bruno e a tradição hermética [São Paulo, Cultrix]).
  11. É conhecida a distinção platônica entre duas espécies de imagens, a cópia e o simulacro. No diálogo O sofista, as cópias são imagens que imitam as Formas do supra-sensível no sensível e se fundam na semelhança — de seu interior possuem a medida, o metron, da pretensão à Ideia. Quanto aos simulacros, são “falsos pretendentes”, a um só tempo fingidores e pretensiosos, construídos na dessemelhança, na perversão, no desvio em relação à essência. Platão visa separar as cópias legítimas e os simulacros que naufragam na dessemelhança. Aquilo a que pretendem, só o possuem por uma espécie de agressão, de subversão, sem passar pela Ideia. Esta pretensão sem fundamento recobre uma dessemelhança, um desequilíbrio interno. O simulacro não é a cópia degradada, mas provém de uma potência que nega tanto o original quanto a cópia, o modelo e sua representação. O que Platão expulsa do conhecimento não é o sensível mas a aparência convertida em essência, seu simulacro. Razão pela qual Platão exclui de sua República o artista: diferentemente do artesão que fabrica no plano sensível, a partir de uma essência anterior, transcendente e independente, as próprias coisas, o artista realiza cópias de cópias, não podendo reivindicar nenhum contato com o inteligível, o que extravia o homem do caminho da verdade: “qual é o objeto da pintura?”, pergunta Sócrates a seu interlocutor Glauco. “0 de representar o que é, tal qual parece? Imita a aparência ou a realidade?” Glauco: “A aparência […]”. Sócrates: “Um pintor, por exemplo, pinta um sapato raro, [a obra de um] carpinteiro ou outro artesão qualquer, sem ter nenhum conhecimento de suas respectivas artes. Isso não impede, se é bom pintor, de iludir às crianças e aos ignorantes, mostrando-lhes de longe um carpinteiro por ele representado e que tomam por imitação da verdade”. Se o artista é aquele incapaz de abarcar o processo de sua criação, é porque não cria, apenas acrescenta acaso ao acaso, segundo a infinita possibilidade de combinações visuais, sonoras ou verbais. Platão não expulsa o artista de sua República porque o ato de criação seja irracional, mas por ser casual — o que minaria a verdade, indiferenciando artifício e natureza.
  12. Algumas observações parecem confirmar nosso percurso. No Grand dictionnaire universel Larousse, v. 9, verbete “Magie”, vemos que: — Magie procede do latim magia, do grego mageia (de magos, mage): arte de produzir efeitos maravilhosos pelo emprego de meios sobrenaturais e, particularmente, pela intervenção de demônios: “A magia foi, na origem, o conhecimento de alguns segredos da natureza”. J. Tisson, doyen de la Faculté des Lettres de Dijon, 1 v., in 8° — 1868, divide sua obra sobre a Imaginação — “ses bienfaits et ses égarementes, surtout dans le donaine du merveilleux” — em quatro livros. Os dois primeiros são um ingresso no assunto; contêm, considerações sobre a imaginação e seu papel na vida intelectual. O terceiro livro, “De l’imagination dans le rêve et dans les états analogiques”, trata, em seu último capítulo, do papel da imaginação nas hipóteses cósmicas ou metafísicas, como a pedra filosofal, a astrologia, os sistemas quiméricos (os átomos, os números, as entidades celestes das diversas escolas litúrgicas, a ubiquidade do corpo desse Cristo na eucaristia, o fetichismo em torno das formas, o demonismo e, enfim, o antropomorfismo). O livro IV que abrange dois terços da obra se intitula “A Imaginação no maravilhoso: superstição: física/ mágica/histórica/teológica”. A imaginação na feitiçaria (duzentas páginas) aplica-se às pesquisas históricas sobre a feitiçaria na Alemanha, depois do corajoso livro do padre Spé (1632) e sobre a feitiçaria na França, particularmente em Franche-Comté, a partir de documentos extremamente curiosos.
  13. Macróbio (Commentaire, livro 1, VII, Oeuvres complètes, trad. N. A. Dubois, Paris, 1855, pp. 251-2) escreve que a adivinhação diz primeiro respeito ao futuro, pois este escapa à prognosis, à previsão racional; em seguida, ocupa-se do passado e do presente naquilo que possuem de inacessível à investigação comum.
  14. É pela razão que se tem consciência da verdade do objeto; eis por que a atenção será essencial, na medida em que garante que a sequência dos quadros dos pensamentos não ocorra de maneira fortuita. A análise do “pedaço de cera” nos revela que não há uma “razão oculta da natureza” mas que a razão está “enraizada na natureza”; motivo pelo qual a “inspeção do espírito” não significa que o “espírito” desce até a natureza, mas que a natureza se eleva ao conceito. A percepção, ou melhor, a aparência perceptiva das ilusões é a ilusão das ilusões, pois só se vê o que é, aquilo que é, simultaneamente “coisa concebida e ato de conceber”: “eu observava”, nota Descartes, “que os juízos que tinha costume de fazer destes objetos formaram-se em mim antes que eu tivesse o tempo de pesar e considerar as razões que me pudessem obrigar a fazê-los” (6ª Meditação). Quando Descartes reencontra a estrutura inteligível do “pedaço de cera”, é porque ele não o constitui enquanto inteligibilidade, apenas o reconstitui.
  15. Cf. Adélia Bezerra de Menezes, em “Do Eros politizado à Polis erotizada”, in Rev. Brasileira de Psicanálise de São Paulo, nº 12, 1986.
  16. “É característico do texto filosófico”, escreve Benjamin, “confrontar-se, sempre de novo, com a questão da representação […]. Ela não pode ser invocada more geométrico […]. Se a filosofia quiser permanecer fiel à lei de sua forma, como representação da verdade e não como guia para o conhecimento, deve-se atribuir importância ao exercício dessa forma, e não à sua antecipação como sistema. Esse exercício impõe-se em todas as épocas que tiveram consciência do ser indefinível da verdade, e assumiu o aspecto de uma propedêutica. Ela pode ser designada pelo termo escolástico do tratado, pois este alude, ainda que de forma latente, àqueles objetos da teologia sem os quais a verdade é impensável […]. Os tratados não recorrem […] aos instrumentos coercitivos da demonstração matemática […]. Método é caminho indireto, desvio […]. Sua renúncia à intenção, em seu movimento contínuo: nisso consiste a natureza básica do tratado” (Origem do drama barroco alemão, pp. 49-50).

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