2005

Imagens impossíveis

por Adauto Novaes

Resumo

Evgen Bavcar, filósofo e fotógrafo cego, nasceu na Eslovênia em 1946. É autor de “Imagem, vestígio desconhecido da luz”, ensaio que integra “Muito além do espetáculo”.

Trata-se de apresentar um pouco de seu mundo ou do invisível. Ele que, mais do que significar algo oculto, possibilita a criação da obra de arte e de pensamento, o que a seguinte definição de autoria de Maurice Merleau-Ponty explica: “Ver é ver mais do que se vê”. Ora, o que significa isso? Que o paradoxo da visão mantém relação com o invisível. O caso da profundidade, por exemplo. Ela não é uma coisa em si. Não, pelo menos, no sentido da visibilidade. Antes, o que há é uma noção que se apreende a partir da relação entre objetos, pessoas, paisagens… Logo, não se vê a profundidade, mas se vê através dela. Por isso a fixação de Bavcar pelo quadrado negro de Malevitch. Ele que expressa visualmente o impulso de, dado o positivo, “descobrir o negativo” – assim como professava Kafka. Tal quadrado… Não expressaria ele também uma defesa da subjetividade sobre a ditadura da objetividade? O olhar interior, a partir do qual se cria?

Nisso, as fotografias de Bavcar – o artista-pensador – são exemplares, com suas visões do espírito, presenças alusivas. Afinal, trata-se de um olhar único, uma vez que desprovido do que há de negativo no poder, ódio, julgamento, sarcasmo, medo, orgulho, constrangimento. Tudo que se vê quando se coisifica o sujeito ou quando se aceita o que é oferecido à primeira vista. Afinal, é preciso reaprender a ver.

Mas como fazê-lo?

De início, ao ir além do “ver e ser visto” ou do simples recolhimento da imagem, é preciso estabelecer relações. Passa-se, então, a criar ferramentas que possibilitem novas ferramentas, de modo a ver cada vez melhor, num movimento que vai de encontro à dicotomia cartesiana entre corpo e espírito, assim como propõe Merleau-Ponty em sua análise da pintura: “(…) todos os problemas da pintura aí estão. Eles ilustram o enigma do corpo, e ela os justifica. Visto que as coisas e meu corpo são feitos do mesmo estofo, cumpre que a sua visão se faça de alguma maneira nelas, ou, ainda, que a manifesta visibilidade delas se reforce nele por meio de uma visibilidade secreta: ‘a natureza está no interior’, diz Cézanne. Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante de nós, só estão aí porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz acolhida. Este equivalente interno, esta fórmula carnal da sua presença que as coisas suscitam em mim por que não haveriam de, por seu turno, suscitar um traçado, visível ainda, onde qualquer outro olhar reencontrará os motivos que sustentam a sua inspeção do mundo?”.

Eis mesmo uma citação plena de sentido, já que, além da mencionada dicotomia, ela critica a – ainda cartesiana – visão tecnocientífica do corpo como “máquina orgânica superior”. Mais: ela apresenta o corpo como espelho e símbolo dos símbolos, uma vez que “princípio da fecundação infinita do pensamento”, como ensina Giordano Bruno.

Nesse sentido, Bavcar manifesta-se assim: “Minhas fotos são trabalho da minha imaginação” e “só vejo o que sei”.

E arremata: “A maior deficiência é o desnível entre a percepção do mundo tal como é e a do mundo tal como poderia ser. À utopia das ideias é preciso somar à do corpo, o que não se impõe à natureza, mas se descobre com o possível”.

 


 

“A mais bela imagem não tem forma”

Tao

Comecemos com a frase poeta Kazantsakis, citada por Bavcar em sua conferência no Rio de Janeiro: “Que tristeza que nossos olhos de argila não possam alcançar o invisível”.

Gostaria, pois, de aceitar o desafio de Kazantsakis e convidá-los a uma pequena experiência — talvez a única possível aqui — que é a de entrarmos no mundo de Bavcar, isto é, o mundo da invisibilidade. Isso porque entendemos por invisibilidade não aquilo que está encoberto ou oculto do olho humano e que, ao mobilizarmos outros sentidos ou outros artifícios, conseguimos desvendar. Tal como Bavcar, filósofo e artista, entendemos o invisível como condição de criação das obras de arte e das obras de pensamento. Quando Merleau-Ponty escreve que “ver é sempre ver mais do que se vê”, ele quer dizer que o paradoxo da visão envolve uma relação com o invisível. Ele dá um exemplo que ajuda a compreender este paradoxo: não podemos ver a profundidade, mas ela se desdobra entre nosso olhar e as coisas vistas, vemos através da profundidade, e é exatamente por ser condição da visão que a profundidade permanece invisível. Da mesma maneira que volume e sombra são duas coisas inseparáveis e que sem sombra não pode haver volume, não pode haver corpo, assim também não pode haver visível sem invisível. Bavcar diz a mesma coisa, só que de maneira poética: “sem escuridão não podemos ver as estrelas”. Uma das expressões mais fortes do pensamento de Bavcar — e que está estruturalmente ligada à sua obra — é o quadrado negro de Malevitch. Ora, o que significa o quadrado negro de Malevitch, tanto do ponto de vista da arte quanto do ponto de vista de uma visão de mundo? Bavcar cita Kafka: “o que é positivo está dado, é então preciso descobrir o negativo”. Bavcar considera a experiência de Malevitch como a defesa radical da subjetividade contra um mundo exageradamente voltado à objetividade, que leva à perda do sujeito criador. Mais ainda: o quadrado negro pode ser visto como a expressão de um olhar interior. Gottfried Benn nos diz que olhava a si mesmo, mas o que via eram dois fenômenos, a sociologia e o vazio. Sabemos que as imagens do mundo dissimulam em nós o vazio, e aí podemos entender a importância conceitual do quadrado negro: transformando nosso olhar interior no ponto zero — página vazia do livro interior —, ele vai realizar experiências sobre si mesmo, fazendo aparecer “algumas estrelas redentoras brilhando sobre o novo”, contra o lugar-comum das imagens ordinárias do quotidiano. O invisível é, pois, o outro de uma presença, o outro lado do visível sem o qual qualquer obra não viria à expressão; o invisível é, pois, condição da visibilidade. Este invisível, sinônimo de criação, está em todas as fotos de Bavcar: em vez de nos reter na imagem/objeto, suas fotos nos convidam à aventura da imaginação e do pensamento, tornam possível mostrar um sentido invisível a partir dos dados visíveis. Junção do visível e do invisível, visão do olho e, ao mesmo tempo, visão do espírito, a obra de Bavcar desperta em nós o desejo de desvendar presenças alusivas. Por isso, mais do que fotógrafo, Bavcar é um artista e um pensador.

Por que dizemos que o mundo visionário de Bavcar é diferente? Por uma razão bastante simples: quem conhece a visão rigorosa e exigente de Bavcar sabe que tanto em suas fotos quanto em seus textos teóricos não encontramos vestígios daquilo que faz a cegueira do mundo: os olhos do poder, da hostilidade, da condenação, da ironia, do medo, da vanglória, da vergonha; olhos poderosos capazes de despir, devorar e até mesmo matar; olhos que transformam o sujeito em coisa, como diz Sartre, roubando-lhe a condição de sujeito. Em síntese, olhos transformados nas famosas paixões tristes que nos dominam e que impedem nossa potência de pensar, criar e agir. Mas a maior cegueira de nossos dias — ausente em Bavcar — é aquela que aceita permanecer naquilo que é oferecido à primeira vista, que considera a visão primeira e imediata como verdade, o olhar unidimensional de que ele fala em seus textos. Cegueira fatal que obscurece a multiplicidade da escolha e impede o domínio pleno de nossos atos. Precisamos, pois, de um novo aprendizado do olhar; temos de aprender a ver de novo, e Bavcar nos ensina isso.

Ora, sabemos que a visão constitui o laço vivo entre nós e o mundo, entre nós e os outros, e, por isso, o olhar tem a capacidade de pôr em questão toda a realidade. A visão se faz em nós por tudo aquilo que está fora de nós, traz o mundo para dentro de nós. O olhar consiste, pois, não apenas no ato de ver ou de ser visto (e este é o fracasso do olhar contemporâneo, a condição trágica do homem moderno que só pensa no ver e no ser visto). É da natureza do olhar querer mais do que ver e ser visto: ele quer e pode fazer ver. Fiquemos, pois, com a definição precisa de Jean Starobinski: o olhar é menos a faculdade de recolher imagens e mais a faculdade de estabelecer relações. E é isso que Bavcar nos dá: ele estabelece relações entre o visto e o não visto, entre os sentidos — o olho e as mãos —, e nos faz ver o mundo de outra maneira. Bavcar mantém o rigor da própria origem do termo “olhar”, que quer dizer uma retomada obstinada, “um ver que sabe ver e que inventa meios para ver cada vez melhor”, como se estivéssemos animados “pela esperança de ampliar nossas descobertas ou reconquistar o que está em via de nos escapar”. Daí essa “energia impaciente” que habita o olhar, como define Starobinski, e que deseja sempre outra coisa além daquilo que nos é dado:

É o meu apetite de ver mais, de recusar e atravessar meus limites provisórios, que me incita a pôr em questão o já visto e tê-lo como um décor enganoso. Assim começa a estranha revolta daqueles que, para chegar ao ser além das aparências, tornam-se inimigos daquilo que é imediatamente visível: eles denunciam a ilusão do parecer.[1]

O que, de início, chama a atenção nos textos e fotos de Bavcar é a permanente crítica à visão pura e descarnada do olhar. É certo que a tradição do pensamento ocidental sempre reduziu o ver ao pensamento do ver. A vista sempre foi definida como o mais intelectual de todos os sentidos, o mais próximo do intelecto, o sentido do conhecimento e da razão. Basta lembrarmos do Mito da Caverna, de Platão, para associarmos, de imediato, olhar, luz e conhecimento. Ao lado da tradição intelectualista, outra tradição — muito forte hoje nos meios científicos — reduz a visão a processos fisiológicos ou a mecanismos óticos, como se a visão fosse pura atividade ocular. Todos sabem que este dualismo da visão, isto é, o intelectualismo e o objetivismo, é tributário da visão cartesiana que cria o dualismo substancial alma/corpo. A visão desdobra-se em visão intelectual e visão sensível: ela é, de um lado, pensamento, “inspeção do espírito”; e, de outro, a visão corporal, em ato.

Ora, sabemos que a visão, o olhar e o ver não se esgotam no sensorium — a vista ou o olho —, não se limitam àquilo que a vista apreende. Há uma relação de “promiscuidade”, uma dinâmica concreta da visão e do que é visto.

Quem melhor fez a crítica a essa tradição cartesiana foi o filósofo Merleau-Ponty. Lemos, por exemplo, tanto em seu livro O olho e o espírito quanto em sua última obra, inacabada, O visível e o invisível, que a visão é indissociável do corpo, esse “visível arquétipo”, que, como ele diz, “concentra a visibilidade esparsa” do mundo e que é, ao mesmo tempo, vidente e visível, visível e invisível. Mais ainda: a visão, para Merleau-Ponty, é uma experiência da inerência daquele que vê com o que vê. Emergido no visível pelo seu corpo, ele mesmo visível, o vidente não se apropria do que vê, apenas o aproxima pelo olhar, abre sobre o mundo.[2]

A visão, portanto, vem à expressão, toma forma, tanto nas obras de arte como nas obras de pensamento, por meio dos sentidos: é o que Merleau-Ponty define como “a dignidade ontológica do sensível”. Desdobrando a visão no corpo (totalidade aberta) e, em seguida, no objeto do olhar, Merleau-Ponty dá como exemplo o trabalho do pintor. Cita o poeta Paul Valéry, que diz: o pintor “emprega seu corpo”. E, com efeito, comenta Merleau-Ponty, não se vê como um espírito pudesse pintar.

Ao emprestar seu corpo ao mundo, o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender estas transubstanciações, há que encontrar o corpo operante e atual, aquele que não é um pedaço de espaço, um feixe de funções, mas um entrelaçamento de visão e de movimento […] O mundo visível e o mundo dos meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser.[3]

Ora, desde que se dá esse estranho sistema de trocas — continua Merleau-Ponty

(…) todos os problemas da pintura aí estão. Eles ilustram o enigma do corpo, e ela justifica-os. Visto que as coisas e meu corpo são feitos do mesmo estofo, cumpre que a sua visão se faça de alguma maneira nelas, ou, ainda, que a manifesta visibilidade delas se reforce nele por meio de uma visibilidade secreta: “a natureza está no interior”, diz Cézanne. Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante de nós, só estão aí porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz acolhida. Este equivalente interno, esta fórmula carnal da sua presença que as coisas suscitam em mim por que não haveriam de, por seu turno, suscitar um traçado, visível ainda, onde qualquer outro olhar reencontrará os motivos que sustentam a sua inspeção do mundo?[4]

Nesse sentido, Bavcar é um verdadeiro merleau-pontiano ao dizer que ele não apreende as coisas ou as pessoas nas fotos, mas antes tenta dá-las ao mundo, fazer o mundo vê-las, e essa é sua contribuição contra a cegueira do mundo. As fotos de Bavcar são a expressão do invisível que fala em nós muito mais do que nós falamos nelas. Ou melhor, estas relações do visível e do invisível, do logos do mundo visível e do logos da “idealidade”, expressam-se, vêm à luz, por meio da linguagem, das artes e da própria filosofia. É a isso que chamamos de avesso, ou o outro lado do visível. E, nesse sentido, podemos entender melhor o que Merleau-Ponty diz: o invisível é constitutivo do visível, condição da sua existência. É graças ao visível que podemos ver o invisível que Bavcar nos oferece, e não apesar do seu não-visível ou de sua deficiência.

Essa operação do olhar fenomenológico tem um alcance filosófico muito maior do que se imagina à primeira vista. Quando os fenomenólogos escrevem “eu sou meu corpo”, com isso eles querem dizer que o corpo é o elemento central de toda reflexão filosófica, a trama de toda a experiência, o mediador de todas as relações sociais, ou, como diz Merleau-Ponty, o “geometral” de todo ponto de vista, de toda a prática.

Recentemente, Bavcar ajudou-nos de forma brilhante a fazer a crítica do corpo como “máquina orgânica superior”, como o pensamento tecnocientífico tende a defini-lo. Sem risco de errar, podemos dizer — a partir da teoria e das fotos de Bavcar — que o corpo é o espelho de todas as instâncias simbólicas (linguagem, artes, mitos, etc.), “o lugar de origem de toda a produção simbólica e de toda a atividade cultural” — símbolo entre os símbolos — e, portanto, o significante universal, porque multidimensional e polimorfo, na definição feliz de Jean-Marie Brohm.[5] O corpo de Bavcar pode fotografar exatamente porque ele se põe como espelho da linguagem e das artes.

Na mesma linha de raciocínio, a professora Isabel Dias mostra em seu livro Uma ontologia do sensível que, ao deslocar a visão em direção ao corpo, Merleau-Ponty não apenas desloca o centro da visão — do vidente (sujeito, pensamento) em direção à relação vidente/visível —, como também descentra e ontologiza a própria visão.[6] Ou, em outras palavras, como escreve Merleau-Ponty, a visão não é certo modo de pensamento ou presença a si: é o meio que nos é dado de ser ausente de nós mesmos, de assistir dentro de nós à fissão do Ser.[7] É essa fissão do Ser que acaba com as divisões clássicas entre corpo e alma, interior e exterior, visível e invisível, e todas as antinomias que quisermos criar. Todo o esforço consiste, pois, em superar o dualismo e buscar a unidade, que está não na consciência constituinte, como costuma dizer o pensamento da tradição, mas sim na experiência perceptiva. O corpo é o mediador da experiência, e entre os corpos se estabelece uma relação reflexiva. Eis, na nova ontologia, o sentido do Sensível, da carne: a comunicação com o outro, indissociável da percepção, enraíza-se no corpo próprio e na inerência ao mundo do qual é constitutivo: “O outro e meu corpo nascem juntos do êxtase original”, escreve Merleau-Ponty. E ele diz ainda: “Ele e eu somos como os órgãos de uma única intercorporeidade”. Ou, como ainda escreve Sartre, em O ser e o nada, ao falar da intersubjetividade e da construção do próprio ser: sou possuído pelo outro: o olhar do outro estrutura o meu corpo na sua nudez, o faz nascer, o esculpe, o produz como ele é, o vê como jamais o verei. O outro detém o segredo daquilo que sou.[8]

Se a visão não é o centro, mas um meio, Merleau-Ponty está transferindo o epicentro da visão para o exterior do vidente, e com isso ele quer dizer que não somos nós que fazemos a visão, mas é ela “que se faz em nós”. O corpo, segundo ele, é carne do mundo, sujeito-objeto e, ao mesmo tempo, a soma das experiências possíveis. Da mesma maneira que o outro que está à nossa frente, o mundo e as coisas também nos vêem: elas não são apenas visíveis, mas também videntes-visíveis. Merleau-Ponty ilustra essa relação com uma bela frase do pintor Cézanne: eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim.

Como entender então a obra de Bavcar, quando ele mesmo é o primeiro a dizer que suas fotos são o trabalho da imaginação, que são imagens interiores que ele reproduz? Mais intrigante ainda é sua afirmação, aparentemente “idealista”: “Vejo apenas o que sei”. Não estaria ele apenas reproduzindo o velho conceito de Leonardo da Vinci — tão discutido — que diz que toda pintura é coisa mental? Penso que não, e por duas razões. Um dos relatos mais emocionantes que já ouvi foi a descrição feita por Bavcar de seus últimos dias de olhar. Sabendo de sua cegueira progressiva, a mãe de Bavcar o fazia consumir o máximo possível de imagens como se, em estado de dicionário, devesse guardar na memória o máximo possível de lembranças visuais. É sobre a lembrança, forma nobre da memória, que Bavcar trabalha suas imagens.

Mas, para mim, o mais importante não é isso; o mais importante é a sua concepção de imaginação. Costuma-se associar imaginação à ideia de fantasia, sonho, erro e desordem que invadem o espírito. Montaigne chega mesmo a descrever aqueles que “acreditam ver o que não vêem”. Ora, penso que, para Bavcar, sua ideia de imaginação é bem outra: para ele, a imaginação mistura-se à percepção e às operações da memória. Poderíamos mesmo aproximarmos de Aristóteles que diz no De Anima que a imaginação é um movimento engendrado pela sensação em ato — movimento que se impõe de fora para dentro do nosso intelecto.

Ou, usando uma terminologia platônica, a imagem criada pela imaginação é a passagem entre o sensível e o supra-sensível.

Uma tradição que começa no século XVI e que passa por Giordano Bruno define a imaginação não como um dos sentidos interiores apenas, mas como o conjunto dos sentidos interiores e “princípio da fecundação infinita do pensamento”. Pensada assim, a imaginação “é o órgão essencial de nossa relação com o todo”. Na bela definição de Robert Klein em seu livro sobre Giordano Bruno, a imaginação é vestimenta da alma e primeiro corpo do pensamento.[9] Penso que, se seguirmos esta tradição, podemos entender as duas afirmações de Bavcar: “Minhas fotos são trabalho de minha imaginação” e “Só vejo o que sei”.

Essas ideias me levam a uma segunda observação que eu gostaria de fazer a respeito de Bavcar: vemos nele uma troca de poderes de cada sentido. Ou, mais precisamente, uma íntima relação entre a visão e o tato. Para relativizarmos a potência tanto do olho como do tato na constituição de uma obra de arte ou no entendimento do mundo, concordemos mais uma vez com Merleau-Ponty e Bavcar, que dizem que não é o olho que vê. Também não é a alma que vê. É o corpo como totalidade aberta: “é o corpo que produz a pregnância e que se põe a perceber quando as ações do mundo o atingem”. Ou, como diz ainda Merleau-Ponty, “a carne do corpo nos faz compreender a carne do mundo”.

Diz Bavcar:

Não sou fotógrafo, mas “qualquer coisa que fotografa”, porque minha deficiência não me permite o olhar físico distanciado, mas apenas o toque, a que chamo olhar aproximado […] Para mim, a única possibilidade de me assegurar da existência é um corpo-a-corpo permanente do objeto da percepção com o sujeito que percebe.

O olhar e o tato são fenômenos que se equivalem: na ideia de corpo como totalidade aberta, o olhar é também palpação da mesma maneira que o tangível é, de direito, um visível: é preciso que nos habituemos — escreve Merleau-Ponty — que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido, de alguma maneira, à visibilidade.[10] Poderíamos recorrer a inúmeros estudos científicos para ilustrar essa reversão dos sentidos, mas preferimos dois dos maiores autores da literatura. Goethe diz em uma elegia célebre: as mãos querem ver, os olhos desejam acariciar, Proust abre um dos volumes do Em busca do tempo perdido, assim:

Logo de manhã, a cabeça ainda virada para a parede, e antes de ter visto, acima das grandes cortinas da janela, qual era o matiz da raia de luz, eu já sabia que tempo estava fazendo. Os primeiros ruídos da rua já mo haviam informado, conforme me chegassem amortecidos ou desviados pela umidade ou vibrantes como flechas na área ressoante e vazia de uma manhã espaçosa, gélida e pura; desde o rodar do primeiro bonde, eu percebera se o tempo estava enregelado na chuva ou a caminho para o azul.[11]

Mas gostaria de terminar essas observações com Bavcar. Ele diz que, nós, modernos, que temos uma visão unidimensional do mundo, somos todos deficientes. A nossa maior deficiência é o desnível entre a percepção do mundo tal como ele é e tal como ele poderia ser. À utopia das ideias, Bavcar, materialista/idealista, junta a utopia do corpo que, segundo ele, não deve impor-se à natureza, mas trabalhar com a cumplicidade dos nossos possíveis. E ele conclui:

Este poderia ser também o grande ensinamento dado por todos os que, no século XX, escolheram a auto-imolação para protestar contra a redução do espaço utópico, pelos totalitarismos. Seus corpos transformados em chamas ou aniquilados pela fome acabam tendo a última palavra que é ainda a palavra autêntica do corpo exigindo a liberdade.

Através de imagens impossíveis de serem vistas a olho nu, aceitemos a proposta de Bavcar e esgotemos o campo do possível.

Notas

[1] Jean Starobinski, L’oeil vivant (Paris: Gallimard, 1985), p. 25.

[2] Maurice Merleau-Ponty, L’oeil et l’esprit (Paris: Gallimard, 1964). Ed. brasileira: O olho e o espírito, trad. Paulo Neves (São Paulo: Cosac & Naify, 2004); Le visible et l’invisible (Paris: Gallimard, 1964). Ed. brasileira: O visível e o invisível, trad. José Arthur Giannotti & Armando Mora d’Oliveira (São Paulo: Perspectiva, 1992).

[3] Maurice Merleau-Ponty, L’oeil et l’esprit, cit., p. 16.

[4] Ibid., pp. 21-22.

[5] Jean-Marie Brohm, Le corps rassemblé (Montreal: Agence d’Arc, 1991).

[6] Isabel Dias, Uma ontologia do sensível: a aventura filosófica de Merleau-Ponty (Lisboa: Centro de Filosofia da UL, 1999).

[7] Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, cit.; L’oeil et l’esprit, cit.

[8] Jean-Paul Sartre, O ser e o nada, trad. Paulo Perdigão (Petrópolis: Vozes, 1997).

[9] Robert Klein, “A imaginação como roupagem da alma em Marsílio Ficino e Giordano Bruno”, em A forma e o inteligível, trad. Cely Arena (São Paulo: Edusp, 1998).

[10] Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, cit.; L’oeil et l’esprit, cit.

[11] Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, trad. Fernando Py, vol. 5, A prisioneira (Rio de Janeiro: Ediouro, 1994), p. 5.

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