1988

Fenomenologia do olhar

por Alfredo Bosi

Resumo

Os gregos antigos e os romanos helenístas atribuem duas dimensões axiais ao olhar: o olhar receptivo (ver como receber) e o olhar ativo (ver como buscar, captar). No discurso de Lucrécio e Epicuro, figuras impalpáveis (simulacros) vêm ao encontro dos nossos olhos trazidos pela luz solar, estelar ou lunar. Tal chuva de simulacros possui um nome: conhecimento.

A física clássica do século XVII retoma a teoria atomística de Lucrécio. Mais adiante, no século XX, novas partículas nucleares proliferam e os físicos passam a procurar unidades básicas ainda mais fundamentais.

O olhar filosófico concebe em vez do plural, o uno. Em vez de milhões de partículas mutantes, um Ser primordial, Uno-Todo. Tal pensamento, elaborado pela dialética de Platão, tem seu fundo religioso e vem à tona pelo movimento de buscar no espírito a superação da finitude carnal.

O dilema, entre corpo e espírito, herdado da epistemologia antiga pelo racionalismo clássico, não se encontra no texto evangélico. A visão que contempla o homem, aqui e agora, alcança, nesse ato de percepção, a divindade, “que está no céu”, “que está no meio de vós” e “que está dentro de vós”.

A doutrina neoplatônica medieval para a qual a mortificação dos sentidos, o desapego a toda a fantasia e a renúncia ao prazer são condições necessárias para aceder à visio beatifica se apresenta problemática para a poesia religiosa, dependente de imagens esplendorosas e da força das paixões. A linguagem de Dante Aligheri, poeta católico, só é possível porque explora o olhar cristão originário pelo qual o Verbo se faz carne e habita entre nós. Na viagem de Dante as almas falam, são vistas, vêem, choram, suspiram, se manifestam fisicamente. Como isso é possível? Estácio, um escritor latino pagão, explica para Dante no Purgatório que as sombras dos seres formam corpos sutis mas de certo modo consistentes, pois suas “figuras” variam conforme seus desejos e angústias.

Na Renascença, o olhar/perspectiva. O olhar que vê a linha, a massa, o relevo, a proporção, os tons. A arte realiza a aliança de corpo e alma, aparência e transcendência que a encarnação cristã já havia anunciado.

No pensamento de Marx, de Kierkegaard, de Nietzsche, de Freud, de Max Weber, de Heidegger e de Sartre o olhar se situa no interior de uma existência finita e vulnerável, mas inquieta, interrogante. A psicanálise, a sociologia do saber, a antropologia cultural e algumas vertentes da fenomenologia da existência habitam o mesmo espaço.

Enquanto Sartre parte do olhar ferino do outro, cuja percepção necessariamente me coisifica (e daí me vem a certeza da sua temível existência), o olhar fenomenológico, segundo Merleau-Ponty, “envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis” (O visível e o invisível).

O pensamento de Simone Weil se desloca para o eixo que vai de Espinosa a Hegel cujo discurso de sentido totalizante lhe serve para fundar uma teoria da ação. A filósofa propõe que a educação da atenção é o único meio para vencer a opressão na política e nos meios de produção. Seu discurso se baseia em quatro dimensões estruturais: a perseverança, o despojamento, o trabalho, a contradição.

O olhar fenomenológico e estético de Merleau-Ponty une corpo, alma e mundo. Para Simone Weil, essa união é uma reconquista que a divisão do trabalho e o Estado totalitário parecem tornar cada vez mais difícil.


… a história do mundo vivo se resume na elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no seio de um Cosmos, onde é possível ver cada vez mais.

Teilhard de Chardin, O  fenômeno humano

Os psicólogos da percepção são unânimes em afirmar que a maioria absoluta das informações que o homem moderno recebe lhe vem por imagens. O homem de hoje é um ser predominantemente visual. Alguns chegam à exatidão do número: oitenta por cento dos estímulos seriam visuais.

Sabe-se que a relação do olho com o cérebro é íntima, estrutural. Sistema nervoso central e órgãos visuais externos estão ligados pelos nervos óticos, de tal sorte que a estrutura celular da retina nada mais é que uma expansão diferenciada da estrutura celular do cérebro.

O anatomista norte-americano Stephen Poliak chegou a admitir a hipótese revolucionária de que o tecido cerebral resultou de uma evolução dos olhos em pequenos organismos aquáticos que viveram há mais de um bilhão de anos atrás. Quer dizer: não foi o cérebro que se estendeu até a formação do órgão visual, mas, ao contrário, foi o olho que se complicou extraordinariamente dando origem ao córtex onde, supõe-se, estaria a sede da visualidade.[1]

O OLHO E O OLHAR

A cultura grega, acentuadamente plástica, enlaçava pelos fios da linguagem o ver ao pensar. Eidos, forma ou figura, é termo afim a idea. Em latim, com pouca diferença de sons: video (eu vejo) e idea. E os etimologistas encontram na palavra historia (grega e latina) o mesmo étimo id, que está em eidos e em idea. A história é uma visão-pensamento do que aconteceu.

A frontalidade dos olhos no rosto humano remete à centralidade do cérebro. O ato de olhar significa um dirigir a mente para um “ato de intencionalidade”, um ato de significação que, para Husserl, define a essência dos atos humanos.

Nessa interpretação supera-se, por diferenciação, o nexo entre olho e olhar. Se em português os dois termos aparentemente se casam, em outras línguas a distinção se faz clara ajudando o pensamento a manter as diferenças. Em espanhol: ojo é o órgão; mas o ato de olhar é mirada. Em francês: oeil é o olho; mas o ato é regard/regarder. Em inglês: eye não está em look. Em italiano, uma coisa é o occhio e outra é o sguardo. Creio que essa marcada diversidade em tantas línguas não se deva creditar ao mero acaso: trata-se de uma percepção, inscrita no corpo dos idiomas, pela qual se distingue o órgão receptor externo, a que chamamos “olho”, e o movimento interno do ser que se põe em busca de informações e de significações, e que é propriamente o “olhar”.

O OLHAR ENTRE A TEORIA DA PERCEPÇÃO E A TEORIA DA EXPRESSÃO

Uma teoria completa do olhar (sua origem, sua atividade, seus limites, sua dialética) poderá coincidir com uma teoria do conhecimento e com uma teoria da expressão. Entretanto, até mesmo uma filosofia drasticamente empirista sabe que a coincidência de olhar e conhecer não pode ser absoluta, porque o ser humano dispõe de outros sentidos além da visão: o ouvido, o tato, o paladar e o olfato também recebem informações que o sistema nervoso central analisa e interpreta. O vínculo da percepção visual com os estímulos captados pelos outros sentidos é um dos temas fundantes de uma fenomenologia do corpo. O olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade. Mais adiante retomo essas notações, porque são elas que fazem a ponte entre uma teoria perceptual e uma teoria expressiva do olhar.

1

DUAS VERTENTES DO PENSAMENTO ANTIGO SOBRE O OLHAR-CONHECER

Olhemos para o olhar que o mundo antigo lançou ao olhar.

Os gregos e os romanos helenizados pensaram em duas dimensões axiais do olhar:

o olhar receptivo;

o olhar ativo.

De ambas se pode dizer que são reais, no sentido de que a experiência que se tem delas é universal e incancelável.

O olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o sujeito irá distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar.

Em suma, há um ver-por-ver, sem o ato intencional do olhar; e há um ver como resultado obtido a partir de um olhar ativo. No primeiro caso, o cego, curado de sua doença, poderá dizer: “Estou vendo!”. No segundo, a pessoa dotada de visão, depois de olhar atentamente para o céu, exclamará: “Finalmente consegui ver a constelação do Cruzeiro!”. Ver-por-ver não é ver-depois-de-olhar.

Aparentemente, ambas as situações (a potencial e a atual) têm o mesmo suporte físico: o olho, a luz e os corpos exteriores ao corpo humano.

A diferença profunda que corre entre uma e outra se evidencia quando vista através da história da epistemologia antiga: há uma vertente materialista, ou, mais rigorosamente, sensualista do ver como receber, ao lado de uma vertente idealista ou mentalista do ver como buscar, captar. Nenhuma delas está morta.

EPICURO LUCRÉCIO: O MUNDO OFERECE IMAGENS AO CORPO DO HOMEM

O mundo se dá ao olho humano, segundo o discurso de Epicuro e de Lucrécio, porque a natureza desenvolve um movimento constante, veloz, febril, desprendendo da superfície dos seres os simulacra (eidola, em grego), figuras que duplicam sutilmente a forma superficial das coisas. Os simulacros, por serem materiais, embora tenuíssimos, vêm ao encontro dos nossos olhos, trazidos que são pelos raios da luz solar, estelar ou lunar.

São essas figuras impalpáveis que, entrando por nossas pupilas adentro e impressionando as nossas retinas, nos aparecem como imagines da natureza e dos nossos semelhantes.

Os olhos recebem passivamente, com prazer ou desprazer, contanto que estejam abertos, verdadeiras sarabandas de figuras, formas, cores, nuvens de átomos luminosos que se ofertam, em danças e volteios vertiginosos, aos sentidos do homem. E o efeito desse encontro deslumbrante pode ter um nome: conhecimento.

Para conhecer basta abrir bem os olhos em um espaço iluminado e acolher os levíssimos e agílimos ícones do mundo.

Conhecer é estar imerso em um oceano de partículas cintilantes e nele engolfar-se sensualmente.

Conhecer é ser invadido e habitado pelas imagens errantes de um cosmos luminoso.

A poesia desta matéria está em Lucrécio cujo poema De rerum natura (I a.C.) se detém na descrição das “efígies das coisas”, que jorram dos corpos e se põem a vagar pelo espaço. É “o movimento eterno que arrasta os átomos espontaneamente no espaço” (“sponte sua volitant aeterno percita motu” IV, 28).

Ou então:

De todos os objetos existe o que nós chamamos simulacros: espécies de membranas leves destacadas da superfície dos corpos, e que volteiam em todos os sentidos pelos ares. E tanto na vigília como no sonho são as mesmas imagens cuja aparição vem lançar o terror em nossos espíritos (IV, 32-41).

Como a teoria lucreciana é atomista, as partículas (corpora) ferem os nossos olhos, daí produzindo o fenômeno da visão: “corpora quae feriant oculos visumque lacessant” (IV, 217).

Poesia materialista, poesia cósmica, poesia de uma luz que se oferta ao homem e toca os seus sentidos, pois “é a mesma causa que move o tato e a vista” (“consimili causa tactum visumque moveri”; IV, 233).

É preciso partir do mundo para o sujeito: “é nas imagens que parece residir o princípio da visão, e sem elas nenhum objeto nos pode aparecer” (IV, 237-38).

O que fascina o leitor moderno é apreender a vitalidade perpetuamente em ato dessa matéria produtora de sensações: “De todos os corpos escoam e se espalham em todos os sentidos emanações variadas; eflúvio sem trégua nem repouso” (“nec mora nec requies interdatur ulla fluendi / perpetuo quoniam sentimus et omnia semper / cernere, odorari licet, et sentire sonare” ; IV, 226-29). Tradução, na íntegra: “Eflúvio sem trégua nem repouso, já que nossos sentidos estão sempre afetados por ele, e de todos os objetos podemos sempre perceber a forma, o perfume, o som”.

Nessa epistemologia dos sentidos, estes, a rigor, nunca erram: apenas registram a torrente das partículas, apenas recebem a chuva dos simulacros. Quem pode errar, por “animi vitium”, é o juízo que interpreta falsamente o que os sentidos candidamente lhe concedem…”[…] nec possunt oculi natura noscere rerum; proindi animi vitium hoc oculis ad-fingere noli” (381-82). Tradução: “[…] os olhos não podem conhecer as leis da natureza; por isso, não queiras atribuir à vista o erro do espírito”.

Mas pode o espírito ir além da aparência? A Lucrécio não importa a pergunta sobre a identidade do ser “sob” os simulacros mutantes. Ao artista só lhe interessa o espetáculo das efígies errantes, céleres imagens emanadas sem cessar pelos corpos luminosos.

Não é ocioso lembrar que à física clássica do século XVII, 1700 anos depois de Lucrécio, ao repropor a teoria atomística, não diz outra coisa a respeito da operação visual: “Até quanto posso entender, nós conhecemos o mundo porque as partículas dos objetos ferem os nossos olhos”, afirma Locke, no Ensaio sobre o conhecimento humano, de 1690.

Esse olhar para o turbilhão de partículas não induz à contemplação de qualquer “sentido” inerente ao cosmos ou à vida dos homens. Não se divisa um itinerário, nem parece haver um telos além do caminho temporal entre dois simulacros, percurso da luz à treva, do nascimento à morte. “A vida é um percurso de luz” (IV, 1042). O nascer é um vir às praias da luz. Morrer é perder a luz, voltar as costas para a luz. É um mundo de emissões e dispersões luminosas, que se apaga para os que morrem. Nada depende da consciência; nada obedece à sua vontade. Graças a Vênus, força do amor, os homens “podem aportar às margens divinas da luz”, metáfora belíssima do nascer. Viver é olhar essa luz, por breve mas belo tempo. Diversamente de Platão, cujos discípulos sempre foram inimigos dos epicuristas, Lucrécio não encerra o homem na caverna onde não chegam senão sombras e reflexos do mundo: ao contrário, o curto e intenso lapso de vida que coube em quinhão a cada mortal é iluminado com as graças da luz e o dom da visão; a morte, sim, é que apagará os brilhos do espetáculo, e então virá a treva para sempre. “Decurso lumine vitae” (IV, 1042). A luz semeia os campos, inunda os ares, dissemina-se, tinge-se de cores, floresce,ri. O visível é uma epifania tão sagrada que não precisa dos deuses, e o céu, pacificado, esplende de luz difusa (“placatum que nitet difuso lumine caelum; I, 9).

Coerente, o olhar que vê o nascer para a luz contempla também o mergulhar na treva. Antropologia e cosmologia influem-se reciprocamente. Mundo sem telos, vida sem sentido. Só a morte não morre nesse perpétuo ciclo de nascimento e destruição. “Esta vida mortal a morte imortal a destruiu” (“Mortalem vitam mors cum inmortalis ademit”; III, 869).

O mundo imaginado por Lucrécio é um móvel espetáculo de emissões e dispersões luminosas. Emissões de partículas miudíssimas que, concebidas pelo atomismo pré-socrático (Leucipo, Demócrito), não podem deixar de evocar em nós, homens do século XX, as teorias do átomo, dos elétrons, dos prótons, dos mésons, do neutrino e do quark.

O olho, único sentido capaz de reconhecer a aparência da matéria, já não consegue ver a sua estrutura. Precisa imaginá-la. O que é para o olho a informação de que o elétron tem 1/1837 da massa do próton? O que é, para o olho, o “neutrino”, particular elementar de “carga e massa nulas”? Vamos a Lucrécio: “Quantula sunt! “; “Quão pequeninos são!”(IV,120). “Nonne vides quam sint subtilia quamque minuta?”; “Não vês o quanto são sutis, e quão miúdos?”. Fala dos elementos de que seria formada a substância da alma.

Esse olhar ingênuo e poético do escritor antigo potencia-se no olhar dotado de microscópios e de teorias matemáticas complexas. O núcleo dos átomos seria 10 mil vezes menor do que o próprio átomo, segundo os cálculos de Rutherford. E ao longo do século XX vêm sendo propostas como reais não poucas partículas subatômicas, das quais fazem parte das verdades físicas os elétrons, os prótons e os nêutrons (quantula sunt!), mas que não cessam aí. Lê-se na História das ciências publicada pela Universidade de Cambridge:

Com a descoberta dos neutrinos, mésons e outras partículas ainda mais esotéricas, como “as partículas de estranheza” (fator imaginado para explicar os resultados peculiares observados nas colisões de partículas subatômicas de velocidade muito alta), a teoria do átomo e de suas partes constituintes entrou, desde meados da década de 1950, em uma fase nova e complexa. Novas partículas nucleares proliferaram, com a inevitável consequência de que os físicos passaram a procurar unidades básicas ainda mais fundamentais. De fato, três novas partículas (e suas acompanhantes antipartículas) foram propostas e foram chamadas de quarks, palavra tirada de uma passagem do livro Finnegans Wake, de James Joyce, embora em alemão a palavra quark tenha também o significado coloquial de “nada”.

Até o momento em que este livro foi escrito (1982), nenhum quark foi ainda observado.[2]

“Quantula sunt! Nonne vides quam sint subtilia quamque minuta?”

Esta aproximação entre as intuições de Epicuro e Lucrécio e as hipóteses atômicas nos faz pensar no papel da imaginação científica, que foi primeiro fantasia especulativa entre naturalista e poética, e que hoje nos dá a vertigem de enxergar na matéria o nada ou o quase-nada como seu momento constitutivo.

O olhar antigo captou o movimento sob as aparências da matéria corpuscular. O olhar científico moderno procura descrever, e até nomear, a energia; daí a caça a essas partículas infinitesimais para cujo entendimento parece inadequado usar o conceito de “massa”. E para as quais tem sido, afinal, necessário propor a noção de “antimatéria” . O olhar poético se prolonga e se aguça na teoria atômica que vai infinitamente além do olho orgânico.

Lucrécio olhou para o mundo ao seu redor e maravilhou-se diante do infinito em movimento, fonte de uma alegria de viver breve, mas intensa, que emana de seus versos com uma nitidez adamantina. Hoje, a última ciência, para descrever essa energia operante no coração da matéria, precisa inventar palavras; e vai em busca dos inventores de palavras, os poetas como James Joyce, e deles empresta um som sem sentido. Quark: nada. Alguma coisa a ciência aprende da ficção quando pretende chegar ao realismo absoluto.

DE PITÁGORAS À GNOSE: O OLHAR QUE TRANSCENDE O OLHO

Contemplando a mesma natureza vista pelos epicuristas, o olhar filosófico pode conceber, em vez do plural vertiginoso, o uno. Em vez da dispersão que atordoa, a concentração. Em vez de milhões de partículas mutantes, um Ser primordial, que a tudo precede e a tudo transcende, Uno-Todo.

Essa unidade, difícil de apreender na sarabanda dos fenômenos, poderá ser conhecida pela experiência interior. É a mente que se espelha e se confirma na sua eterna identidade consigo mesma. Fora, no mundo, há também um caminho para o uno: é o que se trilha meditando sobre as propriedades imutáveis das coisas mutáveis. A forma, que a geometria extrai e desenha. O número, que a matemática determina.

Dentro, a mente pura, lisa, sempre a mesma. Fora, as linhas claras e perfeitas. O mundo é transparente para a mente translúcida.

Esse pensamento, que se gesta entre os órficos e os pitagóricos (dos quais conserva selo místico e o corte matemático), será elaborado pela dialética de Platão, encontrará ressôos eloquentes em Plotino e marcará o veio gnóstico, dualista, de toda a filosofia neoplatônica, em parte absorvida por santo Agostinho.

O seu fundo é religioso e vem à tona pelo movimento, que lhe é inerente, de buscar no espírito a superação da finitude carnal, aliviando o filósofo da angústia da morte. A “morte imortal” de Lucrécio.

Fixar o olho da mente nas formas puras é o método que conduz ao resgate da alma ameaçada pela desagregação do corpo. Transcender o olho físico é ter acesso a um mundo que desconhece a lei da morte. O platonismo é a educação desse outro olhar.

Nem todo olhar disporia da mesma capacidade de contemplar. Há o olhar-sensação, o ser tocado pelos raios da luz, matéria privilegiada da teoria sensista; mas esse ver-sentir é precário, segundo a tradição pitagórica que Platão recolhe. Precário porque não consegue dar, por si só, a idéia da coisa, o eidos que enforma cada ser. Dá-nos apenas uma sua aparência, reflexo diminuído, sombra insubsistente da essência imutável. Dá-nos o eidolon, a imagem, o simulacro, não a forma imperecível que o geômetra intui com o seu olhar capaz de abstrair dos objetos, que passam, os formatos, os números, as propriedades invariáveis. Com o número o geômetra pode pensar, liberto da contingência dos fenômenos — importuna, solicitante, dispersiva.

“Quem não vê que a relação entre o lado do quadrado e a sua diagonal é um número incomensurável, não é digno de entrar na Academia.” Geometria: porta de entrada de uma filosofia racional, pura.

A cegueira, diz Sócrates no Fédon, é a perda do olho da mente.

O dualismo está solidamente implantado: corpóreo e espiritual estão entre si como enganoso e o veraz, o perecível e o eterno, o múltiplo e o uno. A opacidade dos corpos é um obstáculo que a virtude ascética, tanto quanto a razão matemática, deverá transpor.

E qual é a atividade própria da contemplação? Lembrar. A doutrina da anamnese funda-se na possibilidade de uma visão mental que alcança os reinos do pretérito, vencendo, neste seu ato, os limites do presente, que é finito e mortal como todo tempo corpóreo.

Quem lembra, enquanto lembra, está triunfando sobre a morte. A reminiscência é o sol dos mortos. Lucrécio negava a possibilidade da memória de vidas pregressas, pois o lapso de tempo que vai de um organismo que já pereceu a outro que está nascendo apagaria, sem remissão, as marcas deixadas nos olhos pelos simulacros das coisas. O esquecimento seria o efeito natural da “mors inmortalis”. No pólo oposto, a memória platônica só é possível porque postula uma energia interna capaz de resistir ao esvaimento das sensações.

De um lado, memória, luminosidade do espírito e sobrevivência chamam-se e completam-se. Do outro: esquecimento, opacidade, morte. Duas dimensões da existência, dois olhares.[3]

“LOGOS SARX”: UMA ANTROPOLOGIA CRISTÃ NÃO PLATÔNICA

O valo profundo entre carne e espírito, que a corrente neoplatônica herdou dos pitagóricos (e estes de seitas orientais reencarnacionistas), não corta os fundamentos da antropologia cristã, tais como se podem depreender da leitura dos evangelhos.

A herança da epistemologia antiga, que o racionalismo clássico irá retomar, é uma herança dilemática: ou conhecer pelos sentidos, ou conhecer pela mente.

Esse dilema, que a gnose aprofundou nos primeiros séculos, não se encontra no modo original pelo qual o Novo Testamento funde espírito-que-fala e carne, Logos e sarx. O Logos que se faz carne, que “devém” carne, no Prólogo de João, nada tem a ver com aquela Luz absoluta de Plotino que, emanando do céu para a Terra, se dispersa e se degrada. Ao contrário, no texto evangélico, não há nem uma sombra sequer de degradação: “Quem me vê, vê o Pai”, é a palavra de Cristo ao deixar patente, pela sua imagem visível, corpórea e humana, a identidade do Filho do Homem e de Deus Pai.

Identidade é a palavra.

A mesma visão que contempla o homem, aqui e agora, alcança, nesse ato de percepção, a divindade, “que está no céu”, “que está no meio de vós” e “que está dentro de vós”. Não há a contraposição estrutural, de tipo gnóstico ou maniqueu, entre o alto e o baixo, o além e o aquém, como se fossem dois alvos excludentes do olhar. “Quem me vê, vê o Pai.” A visão penetra a humanidade de um homem chamado Jesus, captando, em um só lance, a sua figura corpórea e a sua realidade espiritual.

Não é um conhecimento de simulacros ou de emanações desprendidas dos corpos. Tampouco é um conhecimento de sombras, cópias ou reflexos que remetem a idéias transcendentes à visão. É um conhecimento de pessoa, de um ser vivo cujo corpo-alma se dá ao olho que o contempla.

“O Logos se fez carne. E habitou entre nós.” Não só é afirmada a identidade dialética (“se fez”: egeneto: transformou-se sem suprimir-se) de corpo e espírito, como é narrada a passagem pela qual a mente divina entra na historicidade concreta, intersubjetiva: habitou entre nós.

Corporeidade e historicidade, que não têm foro de verdade na tradição neoplatônica, encontram, neste Prólogo, o seu lar. A transformação do Logos e a sua habitação entre os homens é um ato amoroso e livre, uma expansão da mente criadora.

Diferentemente de Eros, que subia do sensível ao espiritual, do belo físico ao Belo absoluto, renunciando à precariedade do corpo, a Graça (Charis, Agape) habitou entre nós em corpo e alma. A imagem da ascensão corporal de Cristo, que sentido tem? A doutrina da ressurreição dos corpos no fim dos tempos, que sentido tem? Um sentido fundamental: o corpo não é um instrumento passageiro para o caminhar das almas de encarnação em encarnação, como acreditavam os órficos e Platão; ao contrário, corpo e alma são indissociáveis, e é a sua separação que deve ser considerada um momento agô-nico e transitório.

A raiz da diferença entre a antropologia cristã e a metafísica neoplatônica e gnósti-ca (sua contemporânea) acha-se no Velho Testamento. Em Gênesis, 1, 26, “Deus disse: — Façamos o homem à nossa imagem como uma semelhança”. E em Gênesis, 5, 1-3: “Quando Adão completou 130 anos gerou um filho à sua semelhança, como sua imagem, e lhe deu o nome de Set”. Esta imagem semelhante, no grego escritural, é eikon; precisamente o mesmo eikon com que Paulo chama Cristo, na Segunda Epístola aos coríntios, 4,4: “imagem de Deus”. A característica forte do eikon (ícone) é a sua visualidade que mostra, diretamente, sem mediações simbolizantes, a afinidade entre o que aparece e o que é. “Imagem visível de Deus invisível” (Epístola aos colossenses, 1,15). A iconicidade resulta d.e uma intenção de superar a dualidade. Não é uma imitação, é uma aparição, em carne e osso, exatamente o que os gnósticos do século I negaram a Cristo: “negaram que Jesus Cristo apareceu em carne” (João 1,7).[4]

A certeza de uma íntima união de corpo e alma receberá tratamento formal em santo Tomás, e passaria, já na Idade Moderna, a doutrina consagrada pela Igreja; mas nem por isso deteve a corrente neoplatônica, que continuou fluindo nos discursos ascéticos dos primeiros séculos e ao longo do Medievo. A mortificação dos sentidos, o desapego a toda fantasia e a renúncia ao prazer com o seu repertório de negações foram considerados pelo neoplatonismo medieval como condições necessárias para aceder à visio beatifica: contemplação do Espírito pelo espírito e clímax de um itinerarium mentis que supera tudo quanto chegou ao homem pela via corpórea.

O Itinerarium mentis in Deum, roteiro da ascese à visão da divindade, que ski Boaventura herdou de santo Agostinho, está pontuado de antíteses radicais que exprimem o seu dualismo de fundo. Aí a Graça se opõe à Natureza, o Céu à Terra e a Cidade de Deus à Cidade dos Homens. A caminhada é uma seqüência de graus e saltos decisivos do estado de pecado para a salvação.

A PALAVRA CONCRETA DE DANTE

Essa doutrina, tensa e dilacerante, que tanto influiu em certos momentos ascéticos do catolicismo (repontará, áspera e aguda, no jansenismo francês do século XVII sob a forma de um discurso cartesiano-cristão), torna-se problemática, se não inviável, quando tem de enfrentar o trabalho concreto da poesia. Porque não é possível fazer grande poesia religiosa sem o esplendor das imagens e a força das paixões. Daí ser altamente instrutivo perguntar-se como o maior dos poetas cristãos, o poeta católico por excelência, Dante Alighieri, criou e moldou o seu próprio itinerarium mentis, a Divina comédia.

A linguagem de Dante só pôde fazer-se realidade, no plano dos significantes e dos procedimentos estéticos, na medida em que explorou, até as últimas potencialidades, o olhar cristão originário pelo qual o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Foi este veio da en(carn)ação (e não o da dualidade gnóstica) que permeou, verso por verso, concretamente, a arte de Dante, fazendo-o ver e ouvir, amar ou detestar as “almas” do Inferno, do Purgatório e do Paraíso.

O que Dante vê?

A sua viagem é uma série de epifanias, uma sequência de visões. A matéria-prima da visão é a imagem.

Mas como podem as almas, despregadas dos seus corpos terrestres, ser vistas e ver, falar, chorar, imprecar, suspirar, manifestar-se, em suma, fisicamente?

Essa perplexidade deveria encontrar uma resolução, já que a proposta fundamental do poeta era narrar uma viagem pelo mundo das almas, descrevendo suas penas ou alegrias.

E a dúvida, que é a nossa, foi, em primeiro lugar, do poeta. A solução, ele a dá no Purgatório, quando, ao encontrar um escritor latino pagão, Estácio, este lhe explica que as sombras dos seres formam, com o ar onde se movem, corpos sutis, mas de certo modo consistentes, pois suas “figuras” variam conforme seus desejos e angústias:

secondo che ci affigono i disiri

e li altri affetti, l’ombra si figura

conforme nos pungem os desejos

e os outros afetos, a sombra se figura.

(canto 25, 106-07)

A forma visível das almas, os seus corpos sutis, objeto do olhar de Dante, se concretizam, “figuram-se”, conforme a direção dos desejos e dos afetos. Modernamente se diria: a forma é expressão. A imagem é o significante da vida psíquica.

Se assim é, as almas podem lembrar e chorar os seus atos e paixões (fortíssimas no “Inferno”), e até emagrecer, como contraponto de suas existências na Terra, cúpidas e glutonas…

O olhar de Dante discerne muito mais do que sombras fugazes, como as que o Ulisses homérico entreviu na lodosa região do Hades, ou as que Enéias pôde divisar no Averno para o qual descera, segundo a misteriosa descrição de Virgílio no canto VI da Eneida.

O olhar de Dante reconhece pessoas. São homens e mulheres que exprimem sentimentos só compreensíveis pela sua inserção na história florentina, recente ou remota, atestada pela memória do poeta ou dos seus contemporâneos. São personagens enlaçada com a experiência afetiva, política ou cultural do Exilado. A evocação que essas almas fazem das suas lutas e desejos produz o tom dramático dos diálogos entre o viajor e os mortos-vivos do seu itinerário.

A socialidade do roteiro pelo mundo “do além” já se manifesta no verso primeiro, “Nel mezzo del cammin di nostra vita”, pelo qual a rota a ser trilhada se abre no centro da existência comum. É a nossa vida.

A trajetória não é um voltar as costas à História: é uma passagem em circuito, um ir para vir. Dante, depois de contemplar os últimos céus e as estrelas que o Amor move, retorna à nossa Terra (terra embora de exílio), de onde traçará a memória da visão, o poema.

O que ele viu não foi o invisível, a pura idéia descarnada, mas o visível levado à plenitude da sua própria forma, não supressa, não apagada, mas construída.

A história dos homens está toda lá, perfeita, e no entanto em movimento. As almas, posto que despidas dos seus antigos corpos, “organizam cada uma os seus sentidos, até mesmo a visão” (“Purgatório”, canto 25, vv. 101-02).

A antropologia cristã do Prólogo joanino, o Logos feito carne entre nós e em nós, tem o seu correlato objetivo na arte imagística, a um só tempo robusta e delicada, da Divina comédia.[5]

E a leitura que se pode fazer do poema como visão unificadora de corpo e alma, sensibilidade e espírito, prepara o entendimento da Renascença, cujo pórtico é o tempo áureo das comunas italianas, o tempo de Francisco de Assis (“Irmão Sol, Irmã Lua, Irmã Água… Irmã Morte”), de Giotto, Dante, Petrarca, Boccaccio.

O NOVO OLHAR: AS NÚPCIAS DA PINTURA COM A CIÊNCIA

O olhar da renascença chama-se perspectiva.

A sua novidade e a sua força residem no desejo de recriar a pintura dos Antigos e fundar a ciência dos Modernos.

Refazer a arte clássica é transpor amorosamente as formas do corpo humano. Criar a nova ciência é descobrir as leis inscritas tanto no vôo dos pássaros quanto na órbita dos planetas.

Para perfazer ambos os projetos deve o pintor-cientista aprender a olhar.

Olhar de perto, olhar de anatomista que observa, em plena luz, as mais

finas articulações dos corpos vivos, olhar de naturalista que tateia, como se fosse com as pontas dos dedos, as rugas das pedras.

Olhar de longe, medindo as distâncias dos astros e o risco que o seu movimento desenha na abóbada celeste. E à noite, como fazia Leonardo, fechar os olhos na câmara escura e rememorar “os lineamentos das coisas” para que as imagens sensíveis, gravadas pela ‘atenção diurna, se transformassem em cosa mentale, trabalho da inteligência, forma geometrizável.

Com a Renascença o olho do pintor convive harmonicamente com o olho do sábio, desfazendo, mediante a prática figurativa, aquele impasse que epicurismo e platonismo não lograram superar: ou conhecimento pelos sentidos ou conhecimento pelo espírito.

A teologia cristã, cujo momento fundante conciliara o Céu e a Terra na pessoa do Deus-Homem, Verbo-Carne, ficara com o tempo enredada em sutilezas e antinomias verbais paralisantes, enfeudando-se em uma práxis política e em um pensamento hierárquico. O ímpeto franciscano e a poesia de Dante se devem ao dinamismo da nova cultura comunal. O discurso teocrático se fossilizara nos distinguo escolásticos. Assim, no mundo pós-medieval, foi à arte, e só à arte, que coube realizar, em uma perspectiva imanente, a aliança de corpo e alma, aparência e transcendência, que a Encarnação cristã anunciara.

A Renascença é um momento de busca fervorosa da unidade que rege microcosmo e macrocosmo. A síntese, porém, logo se desfaria, ou se tornaria cada vez mais problemática à medida que a cultura moderna foi aprofundando as linhas opostas de empirismo e racionalismo. Sempre que a teoria do conhecimento se distancia do pensar e do fazer artístico (e a divisão do trabalho social tende a alargar o intervalo), o entendimento da percepção vai ficando espinhoso, dilemático. Sensismo e idealismo se aguçam dando lugar a posições excludentes. Ou os sentidos ou a razão passam a ser os responsáveis pelo “verdadeiro” saber.

Enquanto for possível manter como vasos comunicantes as atividades criadoras e as cognitivo-lógicas (tal como estava na mente de Leonardo e de Goethe), haverá a esperança de propor hipóteses integradoras sobre o fenômeno perceptivo e suas conexões com o pathos e a vontade, instâncias de um ser que conhece sentindo e sente conhecendo.

Essa passagem foi cavada pelo Renascimento em cujos textos, é verdade, a filologia poderá isolar ora tendências naturalistas radicais, ora um discurso já racionalista. Do Renascimento nos vem o culto da figura e da cor, que os venezianos levaram ao êxtase e que os paisagistas ingleses e os impressionistas guardariam nas suas retinas deslumbradas. Mas do Renascimento nos vem também a perspectiva geométrica dos florentinos, o seu. estilismo “cubista” e abstrato avant la lettre. O Renascimento não é aquele mundo puramente mágico e pré-racional que nos pintou Foucault em As palavras e as coisas. Alberti, Leonardo e Maquiavel não são Bruno e Campanella. E Galileu Galilei é o fruto sazonado da ciência toscana.

Leonardo, pintor-cientista, dá ao olho o poder de captar a prima verità de todas as coisas. “O olho, janela da alma, é o principal órgão pelo qual o entendimento pode obter a mais completa e magnífica visão dos trabalhos infinitos da natureza.” Visão e entendimento estão aqui em estreitíssima relação: o olho é a mediação que conduz a alma ao mundo e traz o mundo à alma. Mas não é só o olho que vê; o entendimento, valendo-se do olho, “obtém a mais completa e magnífica visão”.

A verdade da arte é uma verdade de corpo e alma.

Não há, em Leonardo, nenhuma desconfiança ou parti pris contra os sentidos, tal como ocorreria a partir de Descartes e, mais drasticamente, com os idealistas. A prima verità é o fundamento de uma pintura fidelíssima às impressões visuais, capaz de transpor para o mural ou para a tela cada matiz, cada sombra, cada mancha que a luz e seus obstáculos produzem nas superfícies. E há a pintura do movimento, dos ventos e das tempestades, para cuja representação Leonardo aprendeu a encrespar as linhas e a esfumar as divisões entre os planos. E até o tempo Leonardo saberá figurar no espaço, cobrindo o passado de claro-escuro e iluminando vividamente o presente.

Mas, junto com os procedimentos técnicos que traduzem a qualidade dos objetos, Leonardo aplica-se a cumprir com rigor a ciência nova da projeção das grandezas tridimensionais sobre o plano bidimensional do quadro: a ciência geométrica da perspectiva pela qual a prima verità é também cosa mentale.

O olhar renascentista nada perde: nem a linha, que não existe, enquanto tal, na natureza; nem a massa, nem o relevo, nem a proporção, nem os tons. Esplendor do real natural, mas também ostinato rigore, a pintura é uma ciência da visão que, a partir de Leonardo, não decairá nunca dessa dignidade. Em Paul Klee ela aparecerá como um método que “faz ver”, tornando visível o objeto do nosso olhar.

DE LEONARDO AO OLHAR CARTESIANO

Descartes recortou da visão renascentista apenas o olho central e imóvel da perspectiva geométrica. Olho que analisa quantitativamente a forma formada que está à sua frente. Olho que abstrai as medidas, separando-as das cores, tratadas como qualidades secundárias, pois não são objeto da geometria.

Aquele olhar móvel e intenso que Leonardo julgara capaz de cobrir em um átimo toda a linha do horizonte; aquele olhar que vê a luz do sol porque “tem um lume dentro de si, que é como a centelha desprendida da chama que devora o corpo inteiro”; aquele olhar que “vê” o tempo e representa a memória por obra da arte pictórica.., é agora um olhar frio, imóvel, só presente a si mesmo, metáfora de uma consciência auto-reflexiva e descarnada.

O espírito, que Leonardo definira “una potenza congiunta al corpo”, Descartes o abstrai do mesmo corpo e lhe dá primazia no acesso ao verdadeiro saber científico. Em Leonardo, a prima verità era a verdade que o olho do pintor-cientista captava pela sua experiência e passava ao entendimento. Em Descartes, a única verdade segura é o cogito, a consciência da própria consciência, de que deriva a certeza da própria existência: ergo sum.

A aproximação do olho com o-sol (que as línguas célticas faziam, pois sül é olho em irlandês arcaico e no dialeto bretão) é tema forte nos escritos vincianos.:

II sole immediate the li appare all’oriente subito discorre co’ li sua radi a l’occidente, i quali (radi) sono composti di tre potenze spirituali, cioè: splendore, calore e la spezie della forma della loro cagione.

L’occhio, subito ch’è aperto, vede tutte le sfere del nostro emisferio e la mente salta ‘n uno attimo dall’ oriente all’occidente.[6]

Confronte-se essa exaltação do olho, sol da mente, com as distinções que faria Descartes nas Regulae ad directionem ingenii, escritas em 1628, mas só publicadas em 1701, quando o cartesianismo já tinha virado a escolástica do racionalismo:

Regra 1:

As ciências […] consistem totalmente em um conhecimento do espírito; as artes […] requerem algum exercício e disposição habitual do corpo.

Regra 2:

[…] não só se deve aprender aritmética e geometria, como também os que buscam o reto caminho da verdade não se devem ocupar de nenhum objeto acerca do qual não possam ter certeza igual à das demonstrações aritméticas e geométricas.

Regra 3:

Entendo por intuição, não o testemunho flutuante dos sentidos, nem o juízo falacioso de uma imaginação incoerente, senão uma concepção do puro e atento espírito, tão fácil e distinta, que não fique absolutamente dúvida alguma a respeito daquilo que entendemos ou, o que é o mesmo: uma concepção não duvidosa da mente pura que nasce só da luz da razão.

Só há, pois, para o código racionalista, uma visão verdadeira, uma intuição certeira, e esta não atende ao “testemunho flutuante dos sentidos”. Em vez de intersecção, separação. Em vez de um circuito móvel olho-mente-olho, linhas paralelas que não podem nem devem confundir-se. Essa clivagem antropológica tornará praticamente inviável à inteligência francesa dos séculos XVII e XVIII aprofundar a herança da Renascença italiana.[7] (Esta sobreviverá, contudo, na prática musical e teatral, que um Diderot e um Rousseau, no limiar de uma nova sensibilidade, saberão repensar com paixão.)

Ainda Kant, no prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura (1787), qualifica como “de todo puro” o modo pelo qual a matemática “deve determinar a priori o seu objeto”:

O primeiro que demonstrou o triângulo isósceles (fosse Tales o seu nome ou não importa qual) foi penetrado por uma grande luz, porque compreendeu que não devia seguir passo a passo o que se via na figura, nem apegar-se ao simples conceito dessa figura para aprender as suas propriedades; mas devia produzi-la (por construção) por meio do que, pelos seus próprios conceitos, pensava e representava a si mesmo; e compreendeu que, para aprender-lhe alguma coisa a priori, não devia atribuir à coisa senão o que jorrava necessariamente daquilo que, segundo o seu conceito, nela ele próprio havia posto.

Quanto ao conhecimento da física, apoiando-se nas experiências sobre peso e movimento feitas por Galileu e Torricelli, Kant declara: “a razão vê só o que ela mesma produz segundo o seu próprio desígnio, e com princípios dos seus juízos conforme leis imutáveis deve ela adiantar-se para constranger a natureza a responder às suas perguntas, e não deixar-se guiar por ela”.[8]

Haveria, portanto, uma ordem interna da razão, que não só é a única adequada aos discursos matemáticos (dos gregos aos ilustrados), como deve prevalecer também na linguagem da física na medida em que esta se escreve com símbolos matemáticos.

A direção da ciência clássico-moderna está circunscrita por esse olhar que se exerce soberano entre as regras de Descartes e a crítica de Kant.

Goethe, discordando respeitosamente de Kant (“o Velho do Monte Real”: Koenigsberg…), afirmava que o conhecimento do mundo inorgânico não podia modelar o conhecimento do mundo vivo, que forma com a mente humana uma unidade profunda. Mas atrás de Goethe não está Descartes, estão Bruno, Espinosa e Hegel.

II

O OLHAR COMO EXPRESSÃO

O olho do racionalismo clássico examina, compara, esquadrinha, mede, analisa, separa… mas nunca exprime.

É um olho só capaz de perceber, no objeto, a sua objetualidade; logo, tudo tratar como objeto, não-sujeito.

O contexto que o rodeia é um conjunto de coisas; não é uma situação em que um sujeito reconhece outro sujeito, ou reconhece — no outro — um sujeito.

Goethe, reclamando para os seres animados outro modo de ver, estava, a rigor, propondo uma epistemológia das ciências biológicas e uma epistemologia das ciências humanas. Em outras palavras: estava exigindo um olhar que não se confundisse com a percepção físico-matemática de Descartes, Galileu e Newton.

Esse novo olhar é o que, desde sempre, exprime e reconhece forças e estados internos, tanto no próprio sujeito, que deste modo se revela, quanto no outro, com o qual o sujeito entretém uma relação compreensiva. A percepção do outro depende da leitura dos seus fenômenos expressivos dos quais o olhar é o mais prenhe de significações.

Tomando a analogia ao mundo físico, o olhar não seria apenas comparável à luz que entra e sai pelas pupilas como sensação e impressão, mas teria também propriedades dinâmicas de energia e calor graças ao seu enraizamento nos afetos e na vontade.

O olhar não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. O olhar não é só clarividente, é também desejoso, apaixonado.

Leonardo anotava no seu bestiário, a que não faltam irrupções de um naturalismo animista e popular:

O basilisco é dotado de tanta crueldade que, quando com a sua vista venenosa no pode matar os animais, volta-se para as ervas, e fixando nelas o olhar, as faz secar.

Ou falando do “choco pelos olhos”: “Diz-se que o avestruz e a aranha chocam seus ovos com o olhar”.[9]

Um universo habitado por forças de atração e repulsão é um cosmos vivo onde sujeito e objeto não se contrapõem como um “dentro” e um “fora” abstratos. É uma esfera povoada de acordes, cruzada de simpatias e antipatias: um universo de afinidades. No seu bojo pode o olhar exercer ações fastas ou nefastas, e produzir uma linguagem.

O OLHAR NA LINGUAGEM: ENSAIO DE PROSPECÇÃO

É no uso das palavras que os homens trançam os fios lógicos e os fios expressivos do olhar. Contemplar é olhar religiosamente (con-temp/urn). Considerar é olhar com maravilha, assim como os pastores errantes fitavam a luz noturna dos astros (con-sidus). Respeitar é olhar para trás (ou olhar de novo), tomando-se as devidas distâncias (re-spicio). E admirar é olhar com encanto movendo a alma até a soleira do objeto (ad-mirar). Os termos Sins, contemplação, consideração e respeito conheceram todos um matiz de atenção e superior deferência, que as locuções “ter consideração”, “ter contemplação” e “ter respeito” (fr. “avoir des égards”) por alguém assinalam de modo inequívoco.

Olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o “real” fora de nós. É, tantas vezes, sinônimo de cuidar, zelar, guardar, ações que trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito: olhar por uma criança, olhar por um trabalho, olhar por um projeto. E, não por acaso, o italiano guardare e o francês regarder se traduzem precisamente por “olhar”.

O estudo semântico da fala corrente é um desafio para explorar minas ainda inexaustas. Estar de olho, ficar de olho, não perder de olho e trazer de olho marcam um grau de interesse do sujeito que beira a vigilância. O olho cioso é inventivo. A gelosia é uma grade estreita feita no olho da parede pelo olho do amante que não suporta ver a amada ser vista pelo olho do outro. Zeloso, jaloux, jealous, geloso, celoso, cioso (de “cio”) são a mesma palavra e o mesmo olhar.

O olhar conhece sentindo (desejando ou temendo) e sente conhecendo. Está implantado na sensibilidade, na sexualidade: a sua raiz mais profunda é o inconsciente, a sua direção é atraída pelo ímã da iniersubjetividade. O olhar condensa e projeta os estados e os movimentos da alma. As vezes a expressão do olhar é tão poderosa e concentrada que vale por um ato.

Um ato de acolhimento: dar (ao menos) um olhar, conceder um olhar, pôr os olhos sobre alguém, deitar-lhe um olhar — tudo vem a ser prestar atenção, o que é um sinal ou uma esperança de favor (o ver com bons olhos) se não de benévola aceitação. Quantas orações e quantas súplicas se abrem com locuções como essas! O olhar é linguagem da vontade e da força antes de ser órgão do conhecimento.

A crença no mau olhado será talvez um dos universais antropológicos de todos os tempos. O mau olhado que seca as plantas e faz definhar as crianças mais belas expostas à inveja dos passantes e dos falsos amigos. É provável que as pessoas civilizadas desdenhem os corações simples e timoratos que procuram afastar com uma figa ou um ramo de arruda os maus olhados que os possam molestar; mas todos admitem a existência da inveja, aquela paixão tão bem definida por santo Tomás como “a tristeza provocada pelo bem alheio”. Ora, rigorosamente, a palavra “inveja”, em latim “invidia”, decomposta em seus elementos, significa contra-olhado, mau olhado: in-contra; vid-tema de visão. Inveja e mau olhado são a mesma palavra para a mesma coisa. Quem diz uma diz a outra.[10]

A intuição de que o olhar é um movimento vital que irrompe à superfície do corpo aparece nítida no verbo quando usado na acepção de “brotar”, “deitar olhos”, como nesta descrição sertaneja de Rodrigues de Melo: “O chão parece um tapete verde, as árvores começam a olhar, os algodoais, as ervas, tudo ressurge e revigora ao sopro da nova estação”.

O olho, abertura da planta e do bicho, à flor da pele, é dotado dos atributos próprios da criatura sensível: o olhar é frio, é quente, é viscoso, é duro, é brando, é caricioso, é ríspido, é doce, é amargo, é ácido, é cúpido (o povo diz “olho gordo”, se há sinais de ganância, e “olho comprido” ou “olho bichento”, se o desejo é voraz e manifesto), é parado (“olho de sapo”, “olho de peixe morto”), é agudo (“olho de lince”), é terno (“olho de pomba”), é infiel ou suspeitoso (“olho de gato”), é tímido (“olho de coelho”), é cruel (“olho de cobra”), é sensual (“olho de macaca”), é triste e baço (“olho de vaca laçada”).

O que vem a dizer todo esse bestiário inventado para qualificar aquele que santo Agostinho celebrava platonicamente como “o mais espiritual dos sentidos”?

A corporeidade, imanente na expressão do olhar, busca e acha suas metáforas no ser vivo, não excluindo nossos parentes mais próximos, os animais. Corporeidade que, embora sendo pré-categorial, não é irracional, pois dispõe de razões profundas que enformam o olhar do homem em situação. As várias imagens com que a antropologia popular descreve modos-de-ser, mediante modos-de-olhar, relativizam toda noção apriori de olhar como espelho de uma percepção isenta. Relativizar, aqui, é descobrir as relações, tantas vezes obscuras, entre o ponto de vista e os processos intra e intersubjetivos nos quais o olhar se forma e se move.

Situar o olhar, histórica ou psicanaliticamente, é descrever não só os seus limites, as suas determinações objetivas, mas também sondar a qualidade complexa da sua intencionalidade. O que é cativo e o que é livre no exercício do olhar? A fenomenologia não é um tribunal implacável que se arroga o direito de “desmascarar”, a todo momento, as razões do coração; ela desejaria, antes, compreendê-las. O que é “puro” e o que é “impuro” no interesse, no empenho, na paixão com que o olhar fita as pessoas e as coisas num processo labiríntico onde se enlaçam amor e percepção, medo e conhecimento? A hermenêutica da linguagem cotidiana, com seus símbolos e figuras e suas alianças de ver e sentir, me parece um dos caminhos para perfazer esse exercício de compreensão.

O OLHAR SOB SUSPEITA E O SEU RESGATE

Marxismo e psicanálise são escolas de suspeita. Nem é confiável a percepção “ideológica com que o olho burguês vê a sociedade (é a crítica dialética às ilusões da consciência reificada); nem tampouco o olhar do ego, repuxado entre o id e o superego, está isento de projeções, repressões e desvios de toda sorte (crítica freudiana à ilusão idealista do sujeito onisciente).

Marxismo e psicanálise nos mostram, por vias diversas, um homem enredado nas malhas da sua classe, da sua cultura, da sua constelação familiar, da sua infância, da sua educação, do seu próprio corpo. O olhar, para ambos, não se parece nada com aquele foco de luz permanente e intangível que o pensamento clássico idealizou para a seguran ça da sua própria visão da natureza e da sociedade. O que sobra são centelhas intermitentes que mal se desprendem da maciça opacidade dos corpos físicos e sociais. Mas é dessa chama sempre na iminência de extinguir-se, e é de suas luzes sempre em perigo de apagar-se que se ocupa a fenomenologia.

A crise na ordem das certezas (que, de um certo ponto de vista, começara com o criticismo de Kant) marca a passagem da Era das Luzes para a era da suspeita. E nesta que têm a sua hora o pensamento de Marx, de Kierkegaard, de Nietzsche, de Freud, de Max Weber, de Heidegger, de Sartre. Aí se vê o selo da nossa contemporaneidade: um olhar que já não absolutiza o cogito, porque o situa no interior de uma existência finita e vulnerável, mas sempre inquieta, interrogante.

É possível que a relativização do cogito se deva, em boa parte, à mudança do eixo de interesse da filosofia pós-clássica, a qual se deslocou das verdades matemáticas, tidas por matriciais, para a consideração do homem em sociedade, espírito limitado pelo tempo, ser de carne e osso. Então, foi preciso refletir sobre a constituição do outro, não mais como objeto, mas como sujeito. A psicanálise, a sociologia do saber, a, antropologia cultural e alguns veios da fenomenologia da existência habitam esse espaço comum. A cavaleiro entre as duas eras e os dois olhares ergue-se a Fenomenologia do espírito. E se a Razão cartesiana se aplicara a erigir o eu cogitante, grávido de si mesmo, o pensamento pós-idealista começou a escavar aquele solo de relações em que o eu e o outro se formam, se opõem e se juntam, impelidos pela necessidade, aliciados pelo desejo, temerosos da dor, reclusos no breve tempo que vai do nascer ao morrer, mas abrindo, entre o acaso e o possível, clareiras para o conhecimento e a ação.

Sartre, na terceira parte de O ser e o nada, intitulada “O para o outro”, toca a certeza da existência do próximo após uma longa análise do fenômeno do ser olhado.

Ressalto, de imediato, o que mais me chamou a atenção ao ler o texto sartreano (ao qual, aliás, não faltam traços cartesianos): foi a dupla qualidade, perceptual e expressiva, que está implícita no seu tratamento do olhar. O olhar aqui não é apenas uma luz que conhece, mas uma força que penetra no ser olhado, ferindo-o, tolhendo a sua liberdade, esvaziando-o, dessangrando-o, tangendo-o para o nada.

Olhar e ser olhado, atividade e passividade, exercem-se em um campo de forças onde o poder e o conhecer se fundam mutuamente.

Sei que o outro existe porque sofro a ação da sua liberdade, a qual, por sua vez, quando exercida por mim, é o único critério válido para que eu aceda à certeza da minha própria existência.

O outro é uma liberdade que pode invadir a minha; logo, o outro existe. O olhar é a expressão mesma desse poder.

Esta é a linguagem da finitude e da angústia, tomando-se a palavra no seu sentido forte, grego, de “vale estreito”, “passagem sufocante” e, daí, transcendência ameaçadora. Como não lembrar o episódio do Ateneu de Raul Pompéia, em que o narrador Sérgio evoca o terror de que foi possuído quando o professor o chamou ao quadro negro diante dos olhares ferinos de todos os colegas? O sentir-se olhado levou-o à perda dos sentidos, ao vexame supremo do desmaio. Minutos antes, porém, fora ele que dirigira aos meninos o seu olhar mordaz, que nada poupava e os reduzia a figuras caricatas, a grotescos fantoches. O olhar ferino é ferido no ciclo da bellum omnium contra omnes. Como distinguir aqui, nas fibras da situação vivida, o poder e o conhecer?

“O basilisco — dissera Leonardo — é dotado de tanta crueldade que, quando com a sua vista venenosa não pode matar os animais, volta-se para as ervas e para as plantas, e fixando nelas o seu olhar, as faz secar.”

Na cultura popular, que a fala cotidiana reatualiza, os olhos não só vêem ou percebem, mas querem absolutamente. Os olhos não só cogitam, mas cuidam do mundo (“cuidar” vem do latim “cogitare”): “Meu pai não precisava dizer nada para a gente obedecer. Bastava um olhar! “.

A análise sartreana confirma (por vias diferentíssimas) a exigência de Goethe, pela qual o conhecimento dos seres vivos e, em particular, do ser humano, não se deve reduzir ao olhar físico-algébrico. Uma ciência das coisas e de suas propriedades não é uma ciência de homens. Ver coisas opera com uma intencionalidade que não é a mesma cm que se vêem pessoas. A coexistência e a co-naturalidade que se dão entre sujeitos requerem modos de observar e de pensar rigorosamente afins aos processos interpessoais. A hermenêutica os chamará de compreensão e interpretação.

É também verdade que esse olhar expressivo, esse olhar-linguagem do discurso existencial, aparece, à luz do pensamento contemporâneo, gravado pelas escolas de suspeita que, afinal, melhor o descreveram. É um olhar que já sofreu a redução ideológica de Marx, já veio afetado pelo conhecimento da vontade de poder que nele descobriram Schopenhauer e Nietzsche, enfim já nos apareceu comprometido com as motivações inconscientes acusadas por Freud. Ao contrário do olhar racionalista, que reinou soberano por dois séculos, este olhar já nasceu filosoficamente humilde, pois se sabe cativo no emaranhado das necessidades e dos impulsos.

Entretanto, foi esse olhar, plantado no corpo, que, casando mente e coração, alma, olhos e mãos, tornou possível o gesto da arte. Se ele não pulsasse no fundo da visão cristã de pessoa, nem Dante, nem Giotto poderiam ter plasmado as suas sínteses de pensamento e som, oração e cor, espírito e forma. A pintura não teria aliado a primeira verdade dos sentidos ao rigor da coisa mental da perspectiva, se o olhar, ao mesmo tempo corpóreo e ideal da Renascença, não entrasse a refazer a paisagem do mundo e a face dos homens.

Conhece-se a leitura que Merleau-Ponty faz da criação plástica. É uma operação de resgate desse olhar sintético e primordial do ser humano; olhar que, com outra filosofia, Croce denominava “auroral”, e que sentindo conhece, conhecendo sente, formando exprime, exprimindo forma.

Desde o prólogo à Fenomenologia da percepção (1945), Merleau-Ponty postulava a necessidade de o filósofo acolher generosamente em si o mundo “já dado”, o mundo que Husserl intuíra como o “pré-categorial”, o mundo que “já está aí”. Essa misteriosa realidade (no entanto, familiar e cotidiana) é a nossa escola do olhar, e o seu método encontra na descrição do fenômeno pictórico um terreno fértil de exercício.

Diversamente da posição agônica do Sartre de O ser e o nada, Merleau-Ponty começa por abrir-se ao olhar do outro, que, como o meu olhar, vive mergulhado no espaço fluido e aberto da visibilidade. Assim, o primeiro passo é estético (esfera onde o sensível já tem um sentido imanente), e não “abstrativo”, na acepção de “objetualista”. O olhar fenomenológico vai descobrindo, perfil a perfil, os aspectos coextensivos ao olho e ao corpo e ao mundo vivido.

A descrição mais rica (embora nunca totalizada) desse olhar seria a que conjugasse o tempo todo, sinóptica e sinfonicamente, a visão e o corpo visto. O pintor realiza, no traçado de uma linha ou no matiz de uma cor, um enlace de olhar e mundo olhado, amar e mundo amado. Daí o seu papel exemplar no interior do discurso fenomenológico. Merleau-Ponty lembra o desabafo de Cézanne: “Que vão para o diabo aqueles que duvidam de que, unindo um verde matizado com um vermelho, se entristece uma boca e se faz sorrir a maçã de um rosto”. E o filósofo sublinha: “Esta revelação de um sentido imanente ou nascente no corpo vivo se estende a todo o mundo sensível, e nosso olhar, advertido pela experiência do corpo próprio, voltará a encontrar em todos os outros “objetos” o “milagre da expressão” (capítulo “O corpo como expressão e a palavra”).

A necessidade de o pensamento começar pela visão desse mundo anterior ao cogito, anterior às distinções objetualizadoras, confere uma direção própria ao tratamento do outro.

Para Sartre, o eu olhado, enquanto invadido por uma liberdade que o transcende, vira objeto: esvazia-se, dessangra-se, aniquila-se. Essa combinação letal de Descartes, Hobbes e Sade, posto quephdosophia perennis burgensis, não preside ao primeiro passo de Merleau-Ponty.

O olhar do outro para mim não me abarca inteiramente, porque nem a sua visão nem a minha nos constituem como objetos definidos: tanto a perspectiva do outro desliza espontaneamente na minha quanto “a minha perspectiva desliza espontaneamente na do outro e, juntas, são recolhidas em um único mundo onde todos participamos como sujeitos anônimos da percepção”.

Enquanto Sartre parte do olhar ferino do outro, cuja percepção necessariamente me coisifica (e daí me vem a certeza da sua temível existência), o olhar fenomenológico, segundo Merleau-Ponty, “envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis” (O visível e o invisível).

Há um parentesco entre o olhar do outro e o meu corpo vivo, que remete a “um único mundo”. Essa afinidade, ou essa “intercorporalidade”, consagra-se de modo eminente no ato amoroso e no fazer artístico, pois em ambos se eclipsa, ao longo do processo de união-criação, a dualidade de eu e outro.

A “identidade de vidente e visível” e a postulação de que o sujeito “que olha não seja, ele próprio, estranho ao mundo que olha” criam a imagem de um mundo feito de coexistências, coextensividades, simultaneidades, parentescos, implicações mútuas, afinidades, imbricações, entrelaçamentos, correspondências; em suma, um contexto de reversibilidade, palavra que é,

Nesse mundo a espessura da carne não deve ser temida como um obstáculo que separa o eu do outro, mas acolhida como um meio de comunicação. Eu diria que todo o pensamento de Merleau-Ponty começa e termina com um apelo à fruição desse olhar não só pelos artistas mas por todos os homens.

III

A EDUCAÇÃO PELO OLHAR: SIMONE VEIL E A FILOSOFIA DA ATENÇÃO

Merleau-Ponty e a psicologia fenomenológica que dele deriva, ao buscar os fundamentos de uma ontologia do sensível, tentam levar até o fim a crítica ao dualismo clássico mediante um exercício de atenção voltado sobretudo para as zonas ambíguas da percepção. A tônica desse discurso cai, necessariamente, na representação (ou re-apresentação) de um mundo vivido, pré-categorial, onde o olho e o visível se implicam mutuamente. A totalidade é dada, originária: cabe ao fenomenólogo descrever os seus perfis em uma prosa dúctil feita de imagem e sentimento e, nesse sentido, afim ao trabalho estético

O pensamento de Simone Well respeita, ao contrário, a tradição cartesiana pela qual o primeiro passo é a admissão de uma instância própria do filosofar, a mente pura do cogito. Entretanto, o seu espírito aspira pelo uno-todo que o racionalismo clássico não consegue recuperar enquanto é, por excelência, um pensamento de divisões.

Daí procede o movimento interno à filosofia de Simone Weil que, nunca renegando a sua primeira filiação, se desloca para o eixo que vai de Espinosa a Hegel cujo discurso de sentido totalizante lhe serve para fundar uma teoria da ação.

O mestre de Simone Weil fora Alain, que guiara os seus discípulos para admirar em Descartes e em Espinosa o espírito de fidelidade às construções da mente serena e liberta das paixões. Construções cuja primazia deveria ser dada às figuras e às suas propriedades geométricas. Na esteira de Platão e dos moralistas franceses, Alain desconfiava da imaginação quando apropriada por uma subjetividade dispersiva, prepotente ou caprichosa, logo incapaz de exercer o trabalho sofrido da inteligência, que é propriamente a atenção. Sem a luz da atenção a vontade se esvai em veleidade. Sem a força da atenção a práxis submerge em um mar de ilusões excitadas por um ego só preenchido de si mesmo. O olhar atento nos resgataria desse cativeiro.[11]

Simone Weil é a filósofa da atenção. Primeiro, como atividade superior da mente. Depois, como princípio estratégico para lutar contra a máquina social, o platônico “Grande animal”. Daí, a atualidade das notações espalhadas pelos seus cadernos, e que só viriam a lume após a sua morte. Creio que a militâda da de Simone Weil, fresadora na Renault e professora de filosofia na província, lhe terá dado armas para superar, na prática de um pensamento em situação, aquela forma coisificada de racionalismo de que é subproduto a “racionalização” taylorista, tema de suas páginas mais incisivas.

Aí está um dos pontos nodais da sua obra. A divisão rígida e crescente do trabalho (mecânico vs. intelectual; dirigido vs. dirigente) fez, sem dúvida, aumentar a produção bruta no regime capitalista e no estatismo socialista. No entanto, o mesmo princípio não alcançou redimir (antes, agravou e agrava) a civilização industrial de uma pesada hipoteca de opressão a que é submetido todo ser humano quando impossibilitado de pensar a sua ação no mundo. Simone Weil, que falava de geometria e de tragédia grega a operárias, enfrentou de perto os limites que a vida do espírito sofre nos galpões de uma sociedade rachada por dominações culturais.

Esses limites podem tocar-se com a mão no universo concentracionário da fábrica, mas também se impõem em outras situações, de tipo burocrático, pois o Grande animal goza do dom da ubiquidade.[12]

Filosofia e política, filosofia e técnica, filosofia e educação se chamam reciprocamente como, em outros contextos, pensavam outros militantes empenhados em vencer as práticas mecanicistas: Antonio Gramsci e Rosa Luxemburgo. Como pregar a revolução do sistema sem rever, por dentro, a relação do trabalhador com a máquina? Como sonhar com a democracia socialista sem abrir ao homem e à mulher, que deverão construí-la, um caminho para o livre exercício da sua inteligência, que a “racionalização” freou ou entorpeceu por anos seguidos, no dia-a-dia da linha de montagem?

O trabalho necessário para suprir as necessidades de todos não será contornado por hinos ao lazer e ao consumo. A superação será interna, mediante o pensamento que conceberá um modo não brutalizante de olhar e agir. E que inventará meios inteligentes de produção.

A opressão terá de ser domada na arena política e no cotidiano das técnicas de produção. Para tanto, seria preciso começar educando a atenção, conhecendo as figuras recorrentes do mundo (ainda Platão e o seu átrio pitagórico); e, paralelamente, empreender um plano de transformação sistêmica, executando-o em plena consciência até o seu limite histórico.

As regularidades do universo físico, assim como as contradições do social, são constantes pelas quais se revela a Necessidade (Espinosa); esta se impõe aos nossos olhos, objeto irremovível, permanente desafio a nossa mente e a nossa vontade. Não é lícito ao militante inventar filosofias que trapaceiem a idéia da Necessidade.

Alain praticava uma arte de ensinar sutil mas austera que encarecia o trabalho exploratório, consciente, sensível aos limites e às dificuldades de cada assunto. Mestre seguro de estilo, tinha aversão ao brilho fácil, às não menos fáceis obscuridades, à tirada irresponsável, à complacência nas presunções subjetivas. O respeito que sentia pela liberdade do educando era um convite para que este não fechasse os olhos às particularidades inscritas no cerne de cada matéria e de cada discurso. Assim, cada passo da formação intelectual cumpria uma decisão ética.

Na sua paideia recebiam lugar de honra o estudo do grego, a composição francesa (o topos) e a geometria. Dentre os autores a preferência ia para Platão, Descartes, Pascal, Espinosa e Hegel. Nos últimos anos, Lagneau e Husserl. Quanto aos escritores, Montaigne, Stendhal, Balzac (belo

Foi no contato estreito com esse repertório, acrescido do Bhagavad-Gita, dos pré-socráticos e do Novo Testamento, que se formou a pedagogia do olhar de Simone Weil. Olhar que, no ato de exercer-se, toma o nome justo de atenção.

Como Simone Weil desenvolve o seu discurso sobre a atenção? Os Cahiers contêm longas reflexões ou breves apontamentos sobre o tema. Deles pude extrair quatro dimensões que me pareceram estruturais: a perseverança, o despojamento, o trabalho, a contradição.

A perseverança. A atenção deve enfrentar e vencer a angústia da pressa. A atenção mora e demora no tempo, por isso é lenta e pausada como o respirar da ioga. Só na medida em que o olho se detém e permanece junto ao objeto, ele pode descobrir os seus múltiplos perfis (aspectos, visadas) e, ao longo do mesmo processo, recuperar a sua unidade em um nível mais complexo de percepção:

“Que o pensamento esteja sem cessar a ponto de perder-se na diversidade, e sem cessar salvo pela regularidade” (I, 34) — é uma exigência que só se satisfaz por meio de uma contemplação detida que vai do uno inicial ao múltiplo, e vem do múltiplo ao uno final. Lembro aqui a rota que se traçara Goethe enquanto poeta-filósofo da natureza. A atenção às formas da planta, que ora se estira e dilata nas raízes e no caule, ora se concentra e contrai no botão e na semente, deve ser tão delongada que possa captar aquele momento, átimo imperceptível, do crescimento.[13] O olhar atento chega ao extremo de “ver” o tempo que passa tal qual se dá pelo movimento de cada ser vivo. O olhar atento discerne, na aparência estática da planta, o resultado de uma ação interior que continua latente nas suas células e já prepara a forma que ela está prestes a assumir. Mas, para atingir esse alvo supremo da percepção, é necessário atentar para os fenômenos e esperar pela sua epifania.

O despojamento. A atenção é uma escolha, logo uma ascese. Quem prefere, pretere. O mesmo movimento do espírito que vai ao encalço dos seres esvazia-se dos caprichos do ego; daquele ego enceguecido que, na reveladora expressão da linguagem coloquial, “não quer nem saber”. A atenção, ao contrário, tudo sacrifica para ver e saber. Simone Weil aplica ao seu ideal gnosiológico a sentença evangélica: “Bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus”. O desapego liberta os olhos das ilusões compensadoras entre as quais são particularmente cativantes e tenazes as que lisonjeiam o amor-próprio. A moral rigorosa do détachement encontra belos acordes na meditação que Simone fez da “ação não atuante” do Bhagavad-Gita. Dos Upanishads Simone citava esta breve fábula pela qual se revela a longa distância que vai da contemplação ao consumo:

Dois pássaros unidos um ao outro estão agarrados à mesma árvore. Um deles come um figo saboroso; o outro, sem comer, olha o fruto intensamente.

Os dois pássaros, juntos e diferentes, são as duas metades da nossa alma. Transpondo a alegoria para a linguagem bíblica, Simone Weil comenta: “Se Eva perdeu a humanidade comendo um fruto, a atitude inversa, o olhar um fruto sem comê-lo, deve ser a que salva”. Lá o hinduísmo e aqui o Velho Testamento não estariam mediados pelo olhar de Platão?

Na tradição moderna é ainda Goethe, observador e artista, que pode ser invocado. Refutando o intelecto classificatório de Cuvier e a obsessão que tinham os anatomistas do século XVIII de ossificar os gêneros, as espécies, as subespécies e os tipos, dizia Goethe: “A razão se deleita na evolução, enquanto o intelecto quer segurar tudo para de tudo se aproveitar”.[14]

Haveria, pois, afinidades entre o olhar seccionador, rotulante, e o desejo de apropriação, “que de tudo se aproveita”. No outro extremo se moveria o olhar desapegado que acede a uma razão dialética capaz de admiraras transformações do Uno Todo. Aqui a botânica e a zoologia meramente taxonômicas recebem o golpe do último Goethe leitor de Bruno, de Espinosa, de Hegel e do naturalista Geoffroy Saint-Hilaire. E já se ouvem bater às portas das ciências naturais o monismo e o evolucionismo.

O trabalho. A atenção é um olhar profundo e despojado. Mas não só. A atenção é também um olhar que age. Se alguma coisa se encontra em Simone Weil capaz de relativizar o seu cartesianismo de base é, precisamente, o projeto de construir uma ponte entre a consciência e a ação eficaz.

O nexo da atenção com o trabalho se faz, nos Cahiers, duplo. O olhar atento é, em si mesmo, operante: trata-se do trabalho da percepção. E há um outro nexo, de caráter histórico, entre o olhar e o trabalho. Este, quando livre, permite ao espírito desenvolver a sua aptidão de pensar tanto as regularidades quanto os acidentes da matéria. Mas quando a tarefa é brutal, mecânica e acelerada até a exaustão, ela impede o operário de compreender as leis da Necessidade, inscritas na máquina, que passa então a esmagá-lo.

A reflexão sobre o trabalho industrial ocupa um lugar eminente na obra de Simone Weil. São preciosas as suas notas, muitas delas ilustradas com desenhos geométricos, sobre a estrutura e o funcionamento das máquinas. No seu diário de metalúrgica se combinam teorias cinéticas e política militante. Para Simone, enquanto os trabalhadores não forem capazes de ver, por dentro, os meios e os fins da sua atividade cotidiana, a sociedade industrial, capitalista ou socialista, não saberá enfrentar os prestígios da tecnocracia. Consciência e regime democrático exigem-se mutuamente. Não sei de texto mais iluminador, nesse campo de interfaces, do que “Reflexões sobre as causas da opressão e da liberdade”, testamento filosófico de Simone Weil e obra-prima de concreção e rigor teórico.

A contradição. O olhar atento se exerce no tempo: colhe, por isso, as mudanças que sofrem homens e coisas. Todos os seres, vistos uma só vez, em corte sincrônico, parecem mais simples, coesos e homogêneos do que o são quando contemplados no curso da sua própria história. Só a visão diacrônica revela o processo, tantas vezes conflituoso, que formou a aparência.

Quem trabalha com as mãos e ao mesmo tempo reflete sobre a sua obra, do primeiro gesto à última demão, aprende que está lutando com forças em tensão, desafiando resistências no trato com a matéria. É a práxis conjugada de corpo e consciência que produz a percepção do contraditório.

Em face da estrutura social o militante reconhece, com o passar dos anos, as tensões entre as classes e os grupos de poder que a constituem. O seu olhar perfura a opacidade do moderno Grande animal.

Só a vida inconsciente e a imaginação podem ignorar (ou resolver miticamente) a dor da contradição, mas a consciência, que é tempo e trabalho, não pode negá-la sob pena de pactuar com a mentira.

Olhar frente a frente a contradição é fazer calar a má fé e as ilusões compensadoras. Ciência e ética, de novo, iluminam-se e refletem-se no olhar de Simone Well:

As contradições com as quais o espírito se choca, únicas realidades, critério do real. Não há contradição no imaginário. A contradição é prova da necessidade.

A contradição experimentada até o fundo do ser é o dilaceramento, é a cruz.

Quando a atenção fixada em uma coisa revela, nesta, a contradição, produz-se algo como um descolamento. Perseverando nesta via, chega-se ao desapego.[15]

Que Narciso renuncie, pois, à autocomplacência; não porque o labor da percepção vigilante anule o sujeito, mas, ao contrário, porque o leva animosamente a “reatar, por cima do ídolo social, o pacto original do espírito com o universo”.

A unidade primeira de corpo, alma e mundo já está dada no olhar fenomenológico e estético de Merleau-Ponty; para Simone Weil ela será uma reconquista que a divisão do trabalho e o Estado totalitário parecem tornar cada vez mais difícil.

BIBLIOGRAFIA

Lucrécio, De rerum natura, Paris, Les Belles Lettres, 1960

Pierre Boyancé, Lucréce et l’épicurisme, Paris, PUF, 1963.

  1. H. Dodd, The interpretation of the fourth gospel, Cambridge, 1950.

Dante Alighieri, La divina commedia, comentada por G. Vandelli, Milão, Hoepli, 1958.

Leonardo da Vinci, Scritti letterari, Milão, Rizzoli, 3?. ed., 1987.

Cesare Luporini, La mente di Leonardo, Florença, Sansoni, 1953.

Erwin Panofsky, La prospettiva come ‘forma simbolica”, Milão, Feltrinelli, 1966.

Descartes, Regras para a direção do espírito, trad. Hermes Vieira, São Paulo, Cultura Moderna, 1958.

Jean-Paul Sartre, L’être et le néant, Paris, PUF, 1943.

  1. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945.
  2. Merleau-Ponty, Le Visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 1964.

Marilena. de Souza Chaui, Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo, São Paulo, Brasiliense, 1981.

Alain, Sistème des beaux-arts, Paris, Gallimard, 1963.

Simone Weil, Cahiers, 1, Paris, Plon, 1970; Ii, 1972; Ill, 1974.

Simone Weil, A condição operária e outros estudos sobre a opressão, Ecléa Bosi (org.), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

Notas

[1] Conrad Mueller, Luz e visão, Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.

[2] Volume IV, p. 112

[3] Kant opõe o platonismo ao epicurismo na Crítica da razão pura quando compara o “dogmatismo” idealista com o empirismo.

[4] Não é este o lugar de expor as polêmicas travadas durante séculos pelos teólogos contra os heréticos que separavam a natureza humana da natureza divina em Cristo, ou então admitiam que apenas uma delas fosse real. A doutrina canônica da “união hipostática” das duas naturezas em uma única Pessoa, pela qual o Logos divino assumia integralmente o corpo humano de Cristo, acabou constituindo a fórmula aceita pelos vários concílios que debateram o problema da encarnação: o de,Nicéia, em 325; o de Constantinopla, em 381; o de Calcedônia, em 451.

A teologia católica da Eucaristia reafirmou sempre a idéia da presença real, dedarando que Jesus Cristo vive no sacramento “em corpo e sangue, alma e divindade”; os protestantes distinguiriam, mais tarde, entre a matéria simbólica e a divindade nela simbolizada

[5] Dando um “corpo aéreo” às almas, Dante se afasta abertamente da doutrina tomista: “Anima separata a corpore non habet aliquod corpus” (Sum. Theol.,III, “Suppl.”, 69, 1). As razões da poesia se reconhecem, de preferência, no mistério da Encarnação.

[6] Sobre a “virtù visivale”, pela qual o olho não só recebe os raios do sol, mas projeta a sua luz interior no mundo, ver o ensaio de Cesare Luporini, La mente di Leonardo, Florença, Sansoni, 1953.

[7] Leonardo: “A alma deseja estar com o seu corpo, porque, sem os instrumentos orgânicos desse corpo, nada pode operar nem sentir”.

[8] Valho-me da tradução de Giovanni Gentile e Lombardo-Radice, Bari, Laterza, 6 ed., 1949, pp. 18-19.

[9] Leonardo, Scritti letterari, Milão, Rizzoli, 3a. ed., 1987, p.173.

[10] Dante pune os invejosos cerrando-lhes as pálpebras com um fio de ferro. A mesma operação se fazia, na Idade Média, com os olhos dos falcões selvagens para que não se enraivecessem ao ver os homens que desejavam domesticá-los. “Purgatório”, canto 13, 70-72.

[11] “Irritar-se porque as coisas não cedem aos desejos é o momento pueril do pensamento. A experiência faz prontamente conhecer que a indeterminação dos pensamentos é um mal maior do que provar uma necessidade inflexível, contra a qual a vontade se fortalece e na qual encontra o seu apoio. Diante desse obstáculo firme, que não me ama nem me odeia, e que não engana, eu me ponho a pensar. Tal é a felicidade da contemplação.” Alain, Système des beaux-arts, p. 33.

[12] Com essa imagem da República (493a) Simone Weil nomeava as forças do prestígio social que dobram os intelectuais e os arrastam a seu serviço.

[13] Chamo a atenção do leitor para o denso estudo que Rudolf Steiner escreveu como introdução aos textos científicos de Goethe. A versão em português se lê em A obra científica de Goethe, trad. Ruldolf Lanz, São Paulo, Antroposófica, 1984.

[14] Apud R. Steiner, op. cit., p. 55.

[15] De La pesanteur et la grâce, Paris, Plon, 1948.

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