2011

Fé e saber

por Oswaldo Giacoia Junior

Resumo

A atualidade do problema da “invenção das crenças” pode ser reportada, como tema filosófico, à oposição tratada em Glauben und Wissen, ou fé e saber, que, como tal, encontra uma versão provocativa e sui generis na filosofia de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros textos, nota-se, aliás, uma persistente suspeita acerca das pressuposições fundamentais assumidas inarticuladamente pela racionalidade científica, constituída, para ele, por juízos e valorações inconscientes e por um lastro recôndito de crenças indutoras da produção teórica.

Tais operações consistem sobretudo em estimativas de valor. Isso cabe para a ideia de verdade, que é da ordem da convicção. Cabe também para a certeza de que a verdade é um bem, cuja positividade se impõe com evidência, o que suprime toda dúvida acerca da validade incondicionada ou absoluta do valor-verdade e anima a vontade de saber.

A potência crítica da filosofia da ciência em Nietzsche evidencia-se ao tornar problemáticas crenças sedimentadas pela força do hábito. Num fragmento inédito, pertencente ao espólio filosófico dele, lê-se que “os atos mais originários do pensamento, o afirmar e negar, o ter-por-verdadeiro e o ter-por-não-verdadeiro, na medida em que pressupõem não apenas um costume, mas um direito de ter-por-verdadeiro ou de ter-por-não-verdadeiro, são dominados por uma crença de que há conhecimento, de que o julgar possa efetivamente alcançar a verdade”. E a origem disso – conclui ele – está na moral.

Sendo assim, é necessário, para Nietzsche, ir além do preconceito, deixá-lo para trás, abaixo de si, e trazer à tona conceitos e juízos de valor, que se situam num estrato ainda mais básico do que o da moral. Se esta é o âmbito originário do absoluto, no qual as oposições fazem sentido, problematizar tais estimativas e antíteses exige, antes de tudo, perguntar-se sobre a gênese dessas convicções, sobre sua história de proveniência, que é também o meio eficaz de lançar luz sobre o valor dela. Eis então o programa e o método a que Nietzsche dá o nome de genealogia.

Em resumo, as relações entre substância e atributo — subsistência e inerência —, bem como as de causa e efeito, estão pré-fixadas na estrutura elementar da proposição atributiva da linguagem, ou seja, na relação gramatical entre sujeito e objeto. Ao mesmo tempo, a tais determinações corresponde a atuação latente de avaliações morais objetivamente transfiguradas, decisões prévias a respeito de valores, como, por exemplo, a verdade, a realidade, a eternidade etc.; o homem é fundamentalmente carente de crenças em tais entidades, a exemplo da mais primária delas: a na igualdade, base lógica das inferências analógicas: “Quem, por exemplo, não sabia descobrir o ‘igual’ com suficiente frequência no tocante à alimentação ou aos animais que lhe eram hostis era mais frágil do que quem, em maio ao semelhante, adivinhava logo a igualdade”.

É necessária, portanto, a força da crença na igualdade – a despeito da inexistência dela – para que possa haver certeza, segurança, subsunção.

Daí o homem montar para si um mundo de hipóstases por meio das quais se torna possível e fácil acreditar firmemente em entidades como corpos, linhas, planos, superfícies, espaço, tempo, causa, efeito, movimento, repouso, forma, conteúdo, sujeito, objeto… À luz de uma análise genealógica, porém, tais categorias se demonstraram como pré-condições de juízos possíveis: e, enquanto tais, elas seriam, por um lado, pré-condições orgânicas, ligadas à existência humana. Mas elas são também, por outro lado, linguísticas e culturais, e, desse ponto de vista, ligadas à nossa existência como seres sociais e comunicantes.

É possível, pois, explorar a reflexão de Nietzsche sobre as relações entre ciência e fé a partir dos seguintes aspectos: epistemológico, moral, político, religioso e estético. Esse é um caminho que o próprio Nietzsche percorreu, em grande parte, quando, ao final de sua vida, denunciou o compromisso espúrio e a promiscuidade velada entre a consciência científica moderna e a crença nos ideais ascéticos.


Para Adauto Novaes, com profundo respeito, gratidão e amizade.

A atualidade do problema da “invenção das crenças” pode ser reportada, como questão filosófica, à oposição tematizada sob o título Glauben (fé) und Wissen (saber), que encontra uma versão provocativa e sui generis na filosofia de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros textos, encontramos uma cavilosa e persistente suspeita relativa às pressuposições fundamentais inarticuladamente assumidas pela racionalidade científica. Para Nietzsche, trata-se de juízos e valorações inconscientes, um lastro recôndito de crenças indutoras atuando em surdina na produção teórica. A (auto) crítica e a reflexão sobre esse acervo implicam problematizar a incondicionalidade do valor-verdade, revelando que sua busca não é imparcial e desinteressada, mas vincula-se àquelas pressuposições mentais subjacentes à teorização (“preconceitos, “prejuízos”) que, apesar das alegações em contrário, colocam em seus trilhos habituais os juízos, argumentos e inferências científicas.

Na ciência as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas razões; apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes ser concedida a entrada e até mesmo certo valor no reino do conhecimento — embora ainda com a restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a vigilância a suspeita. Mas isso não quer dizer, examinando mais precisamente, que a convicção pode obter admissão na ciência apenas quando deixa de ser convicção[1]?

Numa formulação paradoxal, pode-se dizer que faz parte do acervo das convicções científicas fundamentais que convicções, como tais, não têm qualquer direito de cidadania nas ciências; ou antes, como afirma Nietzsche no mesmo texto, que a disciplina rigorosa do espírito científico principia por não admitir convicções. Convicções podem ser admitidas apenas como hipóteses de pesquisa, para uso provisório, ficções assumidas para fins heurísticos, cujos resultados, uma vez empírica ou demonstrativamente atestados, transformam-nas no contrário de convicções.

Vigora aqui, no entanto, uma convicção insuspeitada, indisputada e indisputável: que a ciência tem compromisso incondicional com a verdade; admite-se previamente — sem questionamento — a possibilidade da verdade. Admite-se também, sub-repticiamente, o valor positivo da verdade, sua qualificação positiva em relação ao erro, com o que se nota que essa convicção prévia é imperiosa e absoluta a tal ponto que exige o abandono de todas as demais convicções. Mas com isso prova-se também que existem pressuposições e valorações subjacentes à disciplina rigorosa do espírito científico, ou seja, que não existe ciência sem crença em determinados pressupostos.

“A questão de a verdade ser ou não necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto que a resposta exprime a crença, o princípio, a convicção de que ‘nada é mais necessário do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário’[2]”.Trata-se, pois, como vemos, de uma absoluta vontade de verdade, que, para uma curiosidade autenticamente filosófica, é digna de ser colocada em questão, embora, segundo Nietzsche, não tenha sido tomada como um problema digno de ser pensado pela tradição da história da filosofia.

Em tais pressuposições estão incluídas, sobretudo, estimativas de valor, como fica particularmente claro no parti pris a respeito da possibilidade da verdade. Essas tomadas de partido fazem parte daquilo que se pode justificadamente denominar de convicção, ou seja, uma crença mais forte.

Isso vale também para a certeza de que a verdade é um bem — aliás, o bem maior de todos —, cuja positividade se impõe com superlativa evidência, o que suprime toda dúvida acerca da validade ab alio soluta do valor-verdade. Em termos de Nietzsche, uma robusta convicção a respeito da incondi-cionalidade da verdade suscita, sustenta e mobiliza a vontade de saber.

Desde Platão a definição de ciência pode ser enunciada como um conhecimento seguido da crença justificada em sua verdade. “A ideia que vem da Antiguidade segundo a qual o conhecimento é uma crença verdadeira justicada e seu corolário, que especifica que a justificação do conhecimento = epistemologia é a justificação de crenças[3].” Ora, a potência crítica da filosofia da ciência em Nietzsche se exerce tornando problemáticas crenças aceitas e sedimentadas como evidentes pela força do hábito.

Num fragmento inédito, pertencente ao espólio filosófico de Nietzsche, lemos:

Os atos mais originários do pensamento, o afirmar e negar, o ter-por-verdadeiro e o ter-por-não-verdadeiro, na medida em que pressupõem não apenas um costume, mas um direito de ter-por-verdadeiro ou de ter-por-não-verdadeiro, são dominadas por uma crença de que há conhecimento, de que o julgar possa efetivamente alcançar a verdade, resumindo: a lógica não duvida de poder declarar algo verdadeiro em si (isto é, de que a algo não podem ser atribuídos predicados contraditórios)[4].

Por detrás ou por debaixo de contraposições lógicas de valor, seria necessário trazer à luz juízos de valor (moral) a respeito do conhecimento. Identificar e examinar valorações morais subjacentes a oposições lógicas ou epistemológicas importa em reportar, por exemplo, “verdadeiro” e “falso” a “bom” e “mau”, “certo” e “errado” a “legítimo” e “ilegítimo”.

Que eu indique, afinal, pelo menos com uma palavra, para um fato extraordinário e ainda inteiramente não descoberto, que só lentamente se estabeleceu, lentamente: não houve, até agora, problemas mais fundamentais [grundsiitzlichere Probleme] do que os problemas morais; foi a partir da força propulsora deles que tiveram origem todas as grandes concepções no domínio dos valores até agora (por exemplo, tudo o que comumente é chamado de “filosofia”; e isso até lá embaixo, nas derradeiras pressuposições da teoria do conhecimento). Mas há problemas ainda mais fundamentais do que os morais: estes últimos só nos chegam à vista quando temos atrás de nós o preconceito moral[5]

Como se percebe claramente por essa citação, é necessário, para Nietzsche, ir além do preconceito moral, deixá-lo para trás, abaixo de si, para trazer à tona conceitos e juízos de valor, que se situam num estrato ainda mais básico do que aqueles que se situam no registro da moralidade. Se a moral é o âmbito originário do incondicionado, no qual têm sentido oposições absolutas, problematizar tais estimativas e antíteses entre valores exige, antes de tudo, perguntar-se sobre a gênese delas mesmas, sobre sua história de proveniência, que é também o meio eficaz de lançar luz sobre o valor dessa gênese. Eis aí um programa e um método a que Nietzsche dá o nome de genealogia. Esta se pergunta pela proveniência dessas oposições e localiza seu surgimento a partir do solo minado e suspeito das condições de existência.

Tais condições vigoram irrestritamente à contracorrente da crença no incondicionado; elas dominam no âmbito dos condicionamentos, dos interesses e suas circunstâncias. Entre tais condicionamentos encontram-se os de ordem biológica, psicológica, sociológica, histórica, econômica, cultural (aí compreendidas as esferas da religião, da moral, da política, da estética). Condições de vida são necessariamente no plural.

Relações entre substância e atributo — subsistência e inerência —, causa e efeito, estão prefixadas na estrutura elementar da proposição atributiva de nossa linguagem, ou seja, na relação gramatical entre sujeito e objeto. A essas determinações corresponde a atuação latente de estimativas morais objetivamente transfiguradas, decisões prévias a respeito de valores, como, por exemplo, a verdade, a realidade, a eternidade, a identidade, o “ser” etc.; somos fundamentalmente carentes de crença em tais entidades: por exemplo, na mais primária das crenças, a crença no igual, na igualdade, base lógica das inferências por analogia:

Quem, por exemplo, não soubesse distinguir com bastante frequência o -igual-, no tocante à alimentação ou aos animais que lhe eram hostis, isto é, quem subsumisse muito lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção, tinha menos possibilidade de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse igualdade em tudo aquilo que era semelhante[6].

É necessário, portanto, a força da crença na igualdade — a despeito da inexistência efetiva da igualdade —, a firme convicção no resultado da. operação de igualação do desigual, para que possa existir certeza, segurança, subsunção…

O curso dos pensamentos e inferências lógicas, em nosso cérebro atual, corresponde a um processo e uma luta entre impulsos que, tomados separadamente, são todos muito ilógicos e injustos; habitualmente experimentamos apenas o resultado da luta: tão rápido e tão oculto opera hoje em nós esse antigo mecanismo[7].

De um ponto de vista genealógico, pode-se afirmar que qualquer postura cética seria uma espécie de excesso, de “luxo tardio”, que se) poderia conceder a si mesma uma segurança vital já consolidada. Formamos, pois, um mundo de hipóstases por meio das quais torna-se possível e fácil acreditar em entidades como corpos, linhas, planos, superfícies, em representações como espaço, tempo, causa, efeito, movimento, repouso, forma, conteúdo, sujeito, objeto. À luz de uma análise genealógica, tais representações se asseveram como precondições de juízos possíveis: e, como tais, elas seriam, por um lado, precondições orgânicas, ligadas à nossa existência como seres biológicos; por outro lado, funções lógico-gramaticais indutoras do pensamento, cuja natureza é linguística e cultural, e, desse ponto de vista, estão ligadas ao desenvolvimento histórico da linguagem, à nossa existência como seres sociais e dependentes de comunicação.

Um dos aspectos que Nietzsche denuncia com mais veemência em Kant é a estreiteza de escrutínio da Crítica da razão pura, especialmente no que concerne ao papel da linguagem nos juízos sintéticos a priori. Pois, de acordo com Nietzsche, Kant teria tomado o valor desses juízos exclusivamente do ponto de vista lógico, confundindo o que é necessário, do ponto de vista das condições de vida, com o que é logicamente necessário. No entanto, tais juízos sintéticos a priori — estando enraizados em condições de existência — seriam apenas pretensamente a priori, pois promovem e asseguram a vida de criaturas como nós; daí decorre, nesse sentido, sua necessidade” e “universalidade”. No cumprimento dessa função, eles seriam autênticos artigos de fé, do tipo: todo efeito é determinado por uma causa segundo uma regra constante; nenhuma substância pode surgir ou perecer; duas linhas retas não encerram nenhum espaço.

“Sem esses artigos de fé ninguém toleraria agora viver! Mas com isso ainda não são nada demonstrado. A vida não é argumento; entre as condições de vida poderia estar o erro[8].” Esse argumento se encontra em A gaia ciência, no mesmo livro em que Nietzsche reformula e radicaliza a suspeita, que já o inquietava na juventude, a respeito das precondições da faculdade de julgar, da subsunção, da sub-repção, das inferências e de suas ramificações morais e psicofisiológicas. No entanto, em textos muito mais tardios, Nietzsche retorna ao tema que o preocupou desde, pelo menos, o tratado não publicado, datado de 1883, intitulado Sobre verdade e mentira em sentido extramoral.

Assim, relativamente às crenças fundamentais do conhecimento, permanecemos platônicos e cristãos devotos: “Mas já terão compreendido onde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica — que também nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos, ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina…”[9].

Já no século passado, a clássica interpretação por Martin Heidegger da filosofia de Nietzsche procurou diminuir a radicalidade, neutralizar ou mitigar o vigor dessa problematização nietzschiana dos vínculos entre crença e conhecimento, ciência e metafísica, sobretudo em relação ao ponto em que sua crítica pode representar uma ruptura com a linearidade da tradição. A esse respeito, o veredicto de Heidegger é taxativo:

Enquanto mero contramovimento, ela [a filosofia de Nietzsche, OGJ] permanece necessariamente, como todo o anti-, presa na essência daquilo contra o que se vira. O contramovimento de Nietzsche contra a metafísica é, enquanto mera reviravolta desta, o enredamento sem saída na metafísica, tanto que esta se isola contra a sua essência e, enquanto metafísica, nunca consegue pensar a sua essência própria. Daí que para a metafísica e através dela permaneça encoberto aquilo que nela acontece, e aquilo que acontece autenticamente como ela mesma[10].

Por um prisma bastante diverso daquele de Heidegger, Jürgen Habermas também procura mostrar, mais recentemente, que a tentativa de superação da metafísica por Nietzsche conduz ao fracasso, não porque tenha permanecido presa à essência daquilo contra o que se volta, mas por inconsistência, na medida em que é compelida a destruir suas próprias bases e refugiar-se no irracional. Das posições de Nietzsche acerca da teoria do conhecimento, Habermas extrai o seguinte balanço: a amplitude e radicalidade da crítica nietzschiana à objetividade do conhecimento acaba por conduzi-la, de modo inevitável, à autodesqualificação argumentativa. Isso porque Nietzsche ataca as indispensáveis pressuposições lógicas de sua própria argumentação, sem perceber que, para validar-se, sua empresa crítica tem de recorrer aos elementos que ela própria denuncia e coloca sob suspeição. De acordo com Habermas, toda crítica, uma vez tornada total, acaba por destruir seus próprios fundamentos, saltando para fora do espaço da racionalidade.

O próprio Nietzsche fala de “necessitação” [Natigung] com a qual impõem-se as avaliações transcendentais de nossos “preconceitos da razão”; manifesta-se nisso, com certeza, a coerção da natureza, de uma natureza ambiente tanto subjetiva quanto objetiva, sob cujas condições fácticas primeiramente se formaram, num processo transcendental de aprendizagem, os “preconceitos da razão”; “inventados”, eles o são apenas na medida em que também tornaram possível inventar asserções empiricamente corretas sobre a realidade.

Se é correto que o homem não poderia viver “sem deixar valer as ficções lógicas, sem medir a realidade a partir de um mundo do incondicionado puramente inventado, sem um igualar a si mesmo, sem uma constante falsificação do mundo pelo número”; se é certo que renunciar a juízos falsos seria um renunciar à vida, uma “negação da vida”; então, de todo modo, justamente as condições subjetivas da constituição de um mundo disponível de casos idênticos não são “puras” invenções, e primeiramente, dito com justiça, não são “falsificações”, senão que elementos de um projeto de dominação da natureza, específico da espécie. As investigações de Nietzsche em teoria do conhecimento aproximam-se das consequências de um pragmatismo determinado a modo lógico-transcendental. Mas Nietzsche não extraiu tais consequências[11].

Em face desses dois diagnósticos, pretendo sustentar, por um lado, que Nietzsche — embora em diálogo necessário com a tradição filosófica — imprime a seu pensamento uma inflexão de tal maneira radical que chega a produzir uma ruptura com a tradição metafísica. Por outro lado, tentarei colher elementos para evidenciar a plausibilidade e consistência interna da crítica epistemológica de Nietzsche. A resolução da primeira tarefa se evidenciará como conclusão de conjunto do presente trabalho. Quanto à segunda, ela se perfaz ao fio condutor de um diálogo com Habermas, pautado pelas seguintes questões: 1) A consequência extraída por Habermas das posições teóricas assumidas por Nietzsche impõe-se como uma conclusão logicamente irrecusável? 2) A crítica de Nietzsche à concepção tradicional de verdade, sua “teoria” do perspectivismo, está, efetivamente, condenada a desembocar no irracional, com todas as consequências desqualificatórias que esse resultado implica? Pergunto-me também: 3) Estaria a recusa intransigente por Nietzsche, por razões de princípio, em admitir diferença de natureza entre “ilusão” e conhecimento, verdadeiro e falso, real e aparente, sensível e inteligível, em admitir um acesso possível à “natureza ontológica do real”, forçosamente ligada a um conceito ontológico de verdade, e isso de um modo tão firme que a crítica das condições subjetivas da objetividade implicaria eo ipso a aniquilação da possibilidade de asserções ou sentenças verdadeiras sobre a realidade empírica, condenando à perempção todo otimismo epistemológico possível?

A meu ver, a exegese dos textos de Nietzsche autoriza, antes, uma resposta negativa a essas perguntas. Primeiramente porque o pensamento de Nietzsche não é conduzido por, nem baseado em, um conceito ontológico de verdade, cuja disrupção levaria a um relativismo epistemológico, equivalente à noite do espírito em que todos os gatos são pardos. Isso seria confundir o perspectivismo de Nietzsche com um relativismo filosoficamente ingênuo, que nega a própria possibilidade de um conhecimento de tipo científico (objetivo) e que redundaria no alvedrio das opiniões de bel-prazer.

Não se pode recorrer ao aceito ou sucesso empírico de asserções para fundamentar ou justificar, unicamente por isso, a pretensão de conferir-lhes o estatuto de proposições ontologicamente verdadeiras — no sentido da coincidência estrutural entre proposições teóricas (“crenças”) e as estruturas dos estados de coisas a que se referem, abstração feita de seu caráter de interpretação perspectiva. Com efeito, o sucesso empírico demonstra apenas que determinadas proposições podem ser legitimadas ou justificadas no interior de um determinado contexto sintático e semântico que propicia o horizonte de sentido para um conjunto indeterminável de elocuções e práticas intencionais, teóricas e experimentais.

Esse horizonte linguístico, desde que objetivado sob o ângulo metadiscursivo da reflexão, pode ser descrito, em sua estrutura formal de organização, como um conjunto de regras proposicionais e categorias lógicas, reflexivamente demonstradas, que formam a base transcendental tanto para a comunicação entre os indivíduos como para a justificação de asserções e atos intencionais.

Todavia, esse aparato lógico-gramatical não pode encerrar universalidade e objetividade no sentido pretendido por Jürgen Habermas, referido a um projeto de dominação da natureza próprio de um universal genérico como o gênero humano, ou a espécie. Para tanto, seria necessário que esse mesmo conjunto de regras sintáticas e categorias lógicas pudesse ser legitimado e justificado como absolutamente universal, isto é, válido como condição transcendental necessária de todo discurso e comunicação, abstração feita do contexto linguístico particular no qual se insere, sendo, no entanto, por ele mesmo em parte constituído.

Seria necessário que se empreendesse uma fundamentação possível, sem recorrer ao emprego desse mesmo aparato; e, desse modo, ao mesmo tempo pressupor e admitir a validade universal daquilo cuja universalidade se pretende demonstrar. Somente por meio disso seria possível superar a própria particularidade e ascender ao plano de universalidade e objetividade pretendido por Habermas para sua noção de um transcendental linguístico, que funciona como momento ideal ou incondicionado do agir comunicativo.

Em termos de Nietzsche, contudo, seria como encontrar uma fundamentação de fora da própria perspectiva, como se esta pudesse arrancar-se de seu próprio ângulo, perceber-se a si mesma como perspectiva, a partir de um ponto de vista que abarcasse em si a totalidade das perspectivas e não fosse, ele próprio, perspectivo. Para Nietzsche, entretanto, uma perspectiva das perspectivas é impossível.

Nós acreditamos na razão: essa é, porém, a filosofia dos conceitos cinzentos. A linguagem é construída sobre os mais ingênuos preconceitos. Nós, por conseguinte, introduzimos desarmonias e problemas nas coisas, porque só pensamos em forma linguística — com isso cremos na “eterna verdade” da “razão” (por exemplo, sujeito, predicado etc.). Cessamos de pensar quando não o queremos fazer na coerção linguística, chegamos ainda mesmo à dúvida de ver aqui uma fronteira como limite. O pensar racional é um interpretar segundo um esquema que não podemos rejeitar[12].

A relação entre teorias (crenças) e fatos está amarrada a convenções linguísticas, a estruturas gramaticais, elas mesmas derivadas do desenvolvimento histórico imemorial da linguagem.

Verifica-se que, para Nietzsche, a reflexividade e a autorreferência são inerentes ao condicionamento lógico-linguístico do conhecimento, desde que este seja suficientemente consequente e radical para voltar-se contra si mesmo e problernatizar-se. Cabe recordar, nesse contexto, a lúcida observação de Adorno na Dialética negativa:

O pensar não precisa limitar-se à sua própria legalidade, ele é capaz de pensar contra si mesmo, sem abrir mão de si, se fosse possível uma definição de dialética, então esta seria uma a ser proposta. A armadura do pensar não tem que permanecer geminada a ele [ihm angewachsen bleiben]; o pensar é suficientemente amplo para ainda discernir a totalidade de sua pretensão lógica como ofuscamento[13].

Em sentido complementar, argumenta Dean Pickard:

A estrutura de organização de todo sistema de linguagem e pensamento pode ser destilada e expressa em regras lógicas que são necessárias para aquele sistema e podem ser retornadas [turned back upon] àquele sistema para mostrar essa real necessidade. Todo sistema de conhecimento e sentido, na medida em que satisfaz sua pretensão de prover estabilidade e coerência, pode ser mostrado como pressupondo um aparato de categorias e regras, alguma concepção de verdade e consistência que torna esse sistema de conhecimento ou sentido possível em seus próprios termos. Autorreferência é a chave para o processo de justificação em todos os argumentos transcendentais acerca de condições necessárias e sua inevitabilidade[14].

Mas isso não pode significar, de modo algum, que esse sistema possa ser justificado ou fundamento fora de seus próprios limites.

Sem sustentar pretensões de universalidade em sentido rígido, o perspectivismo de Nietzsche não abandona pura e simplesmente as noções de objetividade, universalidade e necessidade, nem abre mão da racionalidade inerente a todo procedimento de argumentação. Não conduz, como consequência, ao apagamento da diferenciação entre verdade e falsidade, ao insistir no caráter essencialmente tropológico, metafórico (e, portanto, falso) de toda linguagem, e, por extensão, de todo conhecimento elaborado em asserções comunicáveis.

Proposições verdadeiras, também para Nietzsche, são aquelas que podem ser justificadas por procedimentos metodológicos de demonstração ou comprovação empírica, cuja validade, no entanto, é dependente de um determinado contexto linguístico, historicamente determinado, que torna possível a comunicação e a prática de atos intencionais para uma comunidade de falantes espaçotemporalmente determinada. Nesse sentido, não pode haver “fatos” ou objetividade independente de contextos linguísticos no interior dos quais proposições são formuladas e comunicadas e teses são asseridas. O enraizamento lógico-gramatical do pensamento, problematizado por Nietzsche, remete precisamente a tais quadros transcendentais, ou jogos de linguagem, para empregar um conceito de Wittgenstein, que proveem a base de fixidez e objetividade necessária para que qualquer procedimento enunciativo e comunicativo possa ser levado a efeito.

No entanto, essa base contextual, ainda que investida da estabilidade necessária para tornar viável o sentido e fundamentar a pretensão de verdade, não pode ser pensada como incondicional ou supra-histórica, mas como variável, retificável, ampliável, na escala de macrotemporalidade histórica onde se desenrolam as vicissitudes e contingências, surgimentos e perempções que determinam o devir de povos e culturas. A isso faz alusão Nietzsche no aforismo 20 de Para além do bem e do mal, quando remete a “economia global da alma” a condições fisiológicas e raciais. Essa referência não visa a uma teorização racista das particularidades dos povos e etnias, mas alude a condições históricas, sociais e culturais no interior das quais devem ser pensados os “sets” de regras e categorias lógico-linguísticas que fornecem as condições necessárias da comunicação social e que não podem ser fundamentados em última instância.

Como observa Henry MacDonald a propósito da seção 201 das Investigações filosóficas de Wittgenstein:

A conexão entre regra e respectiva aplicação, ato intencional e seu objeto, é fundada numa “verdade” ou “rocha” pré-filosófica da ação. A tarefa do filósofo é descrever e elucidar os jogos de linguagem e as formas de vida que fazem possível essa verdade e ação, não questionar a validade dessa verdade e ação, não tentar justificá-los ou fundamentá-los. São nossos jogos de linguagem e formas de vida que determinam a natureza de nossa “lógica” — uma lógica que é necessariamente impura porque sua proveniência é uso e prática. O standard da lógica ou de uma razão ideal não é a medida do uso correto e da prática. “Nenhum curso de ação pode ser determinado por uma regra, porque todo curso de ação poderia ser feito em desacordo com a regra” (I. F. Sec. 201). Uma regra não é anterior à sua aplicação[15].

Tais horizontes transcendentais atuam como limites absolutamente necessários de toda linguagem e conhecimento; não, porém, como limites definitivamente fixos e absolutos, na medida em que só se atestam como necessários no interior do próprio contexto que instituem.

Limites ou regras, conquanto não absolutos, são “necessários” à ordem e coerência e podem ser “extraídos” ou destilados dessa ordem como “precondições”. Eles podem ser concebidos na forma de condições [requirements] lógicas e transcendentais para pensamento, conhecimento e comunicação. Mas, num mundo pós-nietzschiano, sabemos agora que tais limites não fornecem “fundamentação” para nada. Eles meramente refletem a relação recíproca entre a ordenação e o que é ordenado, entre interpretação e sentido. Habermas parece não ter-se conscientizado ainda de que a reflexividade não fornece quaisquer condições objetivas fundantes. Sua inevitabilidade é mal-entendida como uma espécie de necessidade, que ele pensa que poderia servir como uma base para solidariedade ética e social[16].

Em relação a essa identificação entre inevitabilidade e necessidade, parece-me que ainda não foi levado suficientemente em conta o insight de Nietzsche de acordo com o qual “a vida não é um argumento, entre as condições de vida, bem poderia estar o erro”. Um desdobramento possível dessa possibilidade estaria contido na pergunta: não corresponderia a “vontade de verdade a todo custo” – a crença no valor absoluto da verdade – a um tipo particular de vida, que se pretende fazer passar por universal, excluindo possibilidades outras, que poderiam ser até mesmo mais “justas” e menos judicantes – e, num sentido radical, até mesmo mais verdadeiras?

Penso que esse insight torna possível explorar a reflexão de Nietzsche sobre as relações entre ciência e fé a partir de várias coordenadas: em chave epistemológica, moral, política, religiosa, estética. A perspectiva da assim chamada “razão prática”, zelosa das bases para a solidariedade ética e social, já foi amplamente explorada por trabalhos que, em direções muito diversas, procuraram apontar os limites da contribuição de Nietzsche.

Restaria seguir adiante no caminho, ao mesmo tempo tortuoso e sedutor, de uma erosão crítica das pseudoevidências da racionalidade lógica. Elas constituem uma espécie de dispensário, uma “economia doméstica da alma” – são artigos de fé derivados de uma lógica inconsciente, das funções gramaticais da linguagem, que nutrem e fortalecem preconceitos e prejuízos morais. De todo esse processo, não se pode desvincular a denúncia persistente do conúbio entre as condições de existência e a força irresistível da crença no incondicionado.

Esse é um caminho que o próprio Nietzsche percorreu, em grande parte, quando, ao final de sua vida, denunciou o compromisso espúrio e a promiscuidade velada entre a consciência científica moderna e a crença nos ideais ascéticos. Com isso, tentou mostrar como também a ciência contemporânea, com toda a sua pretensa assepsia ética, toma parte na empresa epocal de “rebaixamento de valor do homem”. Nesse processo, a vontade incondicional de verdade seria não o oposto, mas o “núcleo duro” dos ideais ascéticos em nosso tempo – uma espécie de requiem do Deus morto na forma de uma austera nostalgia do absoluto.

A gaia ciência já reflete em vasta extensão e aguda profundidade essa preocupação de Nietzsche, que é retomada em obras como Para além do bem e do mal e, sobretudo, em Genealogia da moral. Como mostrarei a seguir, Nietzsche detecta no cerne da ciência moderna um elemento de dogmatismo, no qual o escrutínio genealógico identifica não um resíduo, mas a medula ética dos ideais ascéticos, o elo velado que mantém a consciência científica, a despeito de sua intransigente honestidade intelectual, subterraneamente caudatária da religião e da ascese.

Pois a força que impele a ciência é a incondicional vontade de verdade.

Esta “ciência moderna” — abram os olhos! é no momento a melhor aliada do ideal ascético, precisamente por ser a mais involuntária, inconsciente, secreta, subterrânea! Eles até agora jogaram o mesmo jogo, os pobres de espírito” e os opositores científicos desse ideal (não se pense, direi de passagem, que eles sejam a sua antítese, algo assim como os ricos de espírito — não o são, eu os denominei hécticos do espírito).

As famosas vitórias desses últimos: sem dúvida são vitórias — mas sobre o quê? Nelas o ideal ascético não foi de maneira alguma vencido, tornou-se apenas mais forte, ou seja, mais inapreensível, espiritual, insidioso, a cada vez que uma muralha, uma fortificação que lhe fora acrescentada, e que lhe vulgarizava o aspecto, era atacada e demolida impiedosamente pela ciência[17].

Sabemos a célebre solução de Kant para a delimitação das fronteiras entre fé e saber. O Aufklitrer Kant considerava que a filosofia precisa de uma ciência especial que determine a possibilidade, os princípios e o âmbito de todos os conhecimentos racionais — ciência denominada Crítica da razão pura[18] — para que seja possível uma resposta logicamente coerente e consistente para as perguntas: Como devo agir? O que posso esperar? Nesse sentido, de acordo com o texto explícito de Kant, a razão vai buscar justamente na ciência uma via de legitimação para a ética e a fé que, como homens esclarecidos, devemos e podemos sustentar, mesmo que para tanto seja necessário estabelecer limites para as pretensões cognitivas da ciência.

Não posso sequer admitr Deus, liberdade e imortalidade com vistas ao uso prático necessário da minha razão sem ao mesmo tempo tirar da razão especulativa sua pretensão a visões transcendentes, pois para chegar a estas ela precisa empregar princípios que, estendendo-se de fato apenas a objetos da experiência possível não obstante serem aplicados ao que não pode ser objeto da experiência, na realidade sempre transformam o último em fenômeno e assim declaram impossível toda ampliação prática da razão pura. Portanto, tive que suprimir o saber para obter lugar para a fé, e o dogmatismo da Metafísica, isto é, o preconceito de progredir nela sem Crítica da razão pura, é a verdadeira fonte de toda a sempre muito dogmática incredulidade antagonizando a moralidade[19].

No fundo, Nietzsche imputa a Kant uma petitio principii não propriamente na ciência, mas no ideal de verdade ínsito à racionalidade científica: a fé no valor absoluto da verdade. Logo, em seu esforço crítico para limitar as pretensões teóricas da razão, Kant recorre justamente ao elemento seminal dos ideais ascéticos: ao incondicionado. E isso poderia ser considerado, do ponto de vista de Nietzsche, uma prova a mais de que “a ciência está longe de assentar firmemente sobre si mesma, ela antes requer, em todo sentido, um ideal de valor, um poder criador de valores, a cujo serviço ela possa acreditar em si mesma — ela mesma jamais cria valores. Sua relação com o ideal ascético não é absolutamente antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força propulsora na configuração interna deste”[20].

Por causa disso, não se pode opor, segundo Nietzsche, a ciência ao ideal ascético, pois a primeira está a serviço do segundo. Ela constitui, no mundo moderno, a mais lídima aliada do ascetismo, a força propulsora; cuja energia é extraída justamente da fé no valor incondicional na verdade. Nesse sentido os ateus e antimetafísicos de hoje ainda permanecem devotos, e a moderna consciência científica tem necessidade de radicalizar seu projeto (auto)crítico para compreender que ela mesma não é sequer um produto da evolução, uma sublimação laicizada dos ideais ascéticos, mas a quintessência deles.

E, na medida em que a ciência moderna não se libertou, nem pode se libertar, da crença em que repousa, ela toma o partido desse projeto e deixa-se instrumentalizar pela forma coletiva da vontade de poder que domina a modernidade política: o projeto de transformação da humanidade em rebanho global, a monstruosa tentativa de padronização e mediocrização do homem. A filosofia de Nietzsche apresenta-se assim, em certo sentido, como um prosseguimento revolucionário do programaautocrítico da razão moderna, ou da dialética do esclarecimento. Numa de suas vertentes — que poderíamos grosseiramente denominar de crítica da ideologia —, ela desvela a aliança entre ciência e ideais ascéticos e traz à luz a parte que cabe à racionalidade lógica na tarefa de assujeitar o homem aos modernos dispositivos de poder político.

Daí o interesse na glorificação moderna da compaixão como núcleo e fundamento da moralidade; na exaltação filosófica do altruísmo (a que corresponde o anátema do egoísmo-raiz do mal); a dissolução de toda autêntica personalidade singular no anonimato uniforme dos coletivos, a preferência pelo gregarismo em detrimento da excelência, a idolatria da igualdade em todos os sentidos como enlevo das “belas almas” contemporâneas (nem Deus nem mestre), a glorificação das ideias e sentimentos negativos e reativos como motores da evolução — adaptação, justiça como derivação da vingança; a essência da ascese como pobreza voluntária, obediência e castidade transmudada em exigência de imparcialidade, neutralidade e objetividade; enfim, a incorporação das palavras de ordem da modernidade política (liberdade, igualdade e fraternidade) no ideário teórico e prático da ciência. Com isso, a moderna racionalidade lógica aparece como expressão do niilismo europeu, como instrumento da vontade de nada. Nossa indigência atual, a desertificação do solo das experiências humanas, o hedonismo exacerbado que identifica felicidade com prazer, segurança, bem-estar, narcose do sofrimento, tem sua raiz cultural nessa associação entre a racionalidade científica e a vontade de poder ascética.

Podemos ver justamente na (necessidade de) crença na objetividade científica, na segurança que daí extraímos, um sintoma do crescente mal-estar na civilização, que constitui a aflição metafísica de nossos dias. Carecemos da verdade científica como de um ponto de apoio, referência e segurança em meio à opressiva ausência de sentido da existência. Que o rigor do método, a anelada imparcialidade e o asseio moral da probidade científica possam substituir o horizonte de transcendência que a religião e as formas tradicionais de moralidade outrora garantiam. Nisso se denuncia, de maneira inarticulada, um signo enigmático de nossa fraqueza e indigência constitutivas:

O quanto de fé alguém necessita para crescer, o quanto de “firme”, que não quer ver sacudido, pois nele se segura — eis uma medida de sua força (ou, falando mais claramente, de sua fraqueza). Na velha Europa de hoje, parece-me que a maioria das pessoas ainda necessita do cristianismo: por isso ele continua a ser alvo de crença. Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia the ser refutado mil vezes — desde que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por “verdadeiro”[21].

Sobretudo acerca desse ponto torna-se necessária a intensificação da reflexão e da autocrítica. Para poder assentar-se sobre os próprios pés, a ciência necessita e requer, de acordo com Nietzsche, uma justificação filosófica; e Nietzsche não estava de modo algum convencido de que, a seu tempo, essa justificação existisse. É por isso que o projeto de uma ciência jovial capaz de colocar sempre de novo em questão suas próprias “verdades” e de autocompreender-se como modalidade da poiesis humana — e não arvorar-se em apreensão intelectual da estrutura ontológica da realidade — poderia apresentar-se como uma justificação contemporânea da ciência, efetivamente antagônica à sua legitimação pelos ideais ascéticos. Pois uma “gaia ciência” recuperaria para a racionalidade lógica um vínculo com a arte e, portanto, com sua modalidade própria de aproximação do mundo, de apreensão e enunciação do vivido com relação a ele — a arte como experiência de simbolização do mundo muito mais antiga e cultivada do que a ciência, em todas as suas modalidades. Esse reatamento com a arte resgataria a cientificidade moderna do peso e da seriedade dos ideais ascéticos.

Se para crescer é indispensável acreditar e confiar, postar-se num solo firme, subtraído às incertezas e abalos, a firmeza desse terreno dá, por certo, uma medida da força para esse crescimento. Também no caso da ciência, isso vale para o surgimento e fortalecimento da confiança num ideal que brotasse a partir dela mesma. Para Nietzsche, a efetiva medida da força seria obtida na perspectiva da força alcançada, ou da planta madura: um poder consolidado, seguro de si, capaz, portanto, de dispensar as ilusões infantis de que se carecia nos estágios mais incipientes e frágeis de seu desenvolvimento. É por essa razão que, para Nietzsche, o problema da ciência moderna continua sendo a velha oposição entre Glauben Wissen, sob várias formas e aspectos, inclusive aquele conhecido como teoria da dupla verdade, cuja dialética marcou os rumos da civilização ocidental. Talvez a medida da força conquistada resida, também em nossos dias, na capacidade de renunciar às pretensões dogmáticas que sempre assediaram a consciência científica ao longo de sua história; em ter-se tornado capaz de mergulhar o olhar no abismo da própria origem, na inverdade da veracidade e na imoralidade da moral incondicional.

Nietzsche via sob essa ótica sua gaia ciência — uma sabedoria capaz de rir de si, de elevar-se acima de si mesma, de desprender-se ironicamente das próprias convicções assentes e, de quando em vez, vestir a carapuça de pícaro —, uma alternativa tanto ao dogmatismo como ao ceticismo que faziam coro com o niilismo reativo do final do século XIX:

Quais se demonstrarão aí como os mais fortes? Os mais comedidos, aqueles que não têm necessidade de extremos artigos de fé, aqueles que não apenas admitem, como amam, uma boa parte de acaso, absurdo, aqueles que podem pensar a respeito do homem com uma significativa redução de seu valor, sem com isso se tornarem pequenos e fracos: os mais ricos em saúde, aqueles que estão à altura da maioria dos malheurs e por isso não temem tanto esses malheurs — homens que estão seguros de seu poder e, com orgulho consciente, representam a alcançada força do homem[22].

Quem sabe se, para nós, uma alternativa à hybris da racionalidade instrumental e da reificação que hoje nos domina não possa ser vislumbrada justamente no limiar daquele desprendimento, paradoxalmente capaz de manifestar uma integridade de força, num poder prescindir de artigos de fé extremos? Nesse horizonte aberto por Nietzsche a partir da autocrítica da razão esclarecida, talvez possamos retomar, em novas bases, mas com igual radicalidade, a pergunta de Kant: o que ainda podemos esperar? Como vemos, as condições atuais de possibilidade de invenção das crenças — esse é um dos problemas cardinais da filosofia de nossos dias.

Notas

  1. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, aforismo 344, pp. 234 SS 
  2. Idem, ibidem. 
  3. Ivan Domingues, O continente e a ilha, São Paulo: Loyola, 2009, p. 39. Quanto à relação entre conhecimento e justificação de crenças, cf. Platão, Teeteto, 201; Mênon, 98. 
  4. Friedrich Nietzsche, “Fragmento póstumo n° 9 [97], do outono de 1887”. In: Giorgio Colli; Mazzino Montinari (ed.), Sámtliche Werke: Kritische Studienausgabe [KSA], Berlim/Nova York/ Munique: de Gruyter/DTv, 1989, v. 12, p. 389. Tradução nossa em todos os trechos aqui reproduzidos. 
  5. Friedrich Nietzsche, “Fragmento póstumo n° 5 [80], do verão-outono de 1887”. In: Giorgio Colli; Mazzino Montinari (ed.), op. cit., V. 12, p. 220. 
  6. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, aforismo ii, pp. 139 ss. 
  7. dem, ibidem, pp. 139 ss. 
  8. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. In: Obra incompleta, São Paulo: Abril Cultural, 1974, aforismo 121, P. 210 (COL Os Pensadores). 
  9. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, aforismo 344, P. 236. 
  10. Martin Heidegger, “A palavra de Nietzsche: ‘Deus morreu’”Caminhos de floresta, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 251. 
  11. Jürgen Habermas, Friedrich Nietzsche: Erkenntnistheoretische Schriften: Nachwort von Jürgen Habermas, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1968, p. 258. 
  12. Friedrich Nietzsche, “Fragmento póstumo nº5 [22]. In: Giorgio Colli; Mazzino Montinari (ed.), op. cit., V. 12, pp. 193 ss. 
  13. Theodor W. Adorno, Negative Dialektik. In: Gesammelte Schriften, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1973, V. 6, p. 9. 
  14. Dean Pickard, “Nietzsche vs. Habermas: Emancipation, Truth and Ethics”, New Nietzsche Studies, Nova York, 1997, V. 2, p. 93. 
  15. Henry MacDonald, “Crossroads of Skepticism: Wittgenstein;Derrida and Ostensive Definition”, The Philosophical Forum, Hoboken, 0990, Spring, v. XXI, nº. 3, apud Dean Pickard, op. cit., pp. 106 ss. 
  16. Dean Pickard, op. cit., p. 93. 
  17. Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, parte Ill, 25, p. 142. 
  18. Cf. Immanuel Kant, Crítica da razão pura, São Paulo: Abril Cultural, 1980, “Introdução”, B 24, p.32 (Col. Os Pensadores). 
  19. Idem, ibidem, “Prefácio à Segunda Edição”, B XXX, p. 17. 
  20. Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, parte in, 25, pp. 140 ss. 
  21. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, aforismo 347, P. 240. 
  22. Friedrich Nietzsche, “Fragmento póstumo n° 5 [71], do verão de 1886 – outono de 1887”. In: Giorgio Colli; Mazzino Montinari (ed.), Stimtliche Werke: Kritische Studienausgabe [KsA], Berlim/Nova York/Munique: de Gruyter/DTv, 1989, V. 12, p. 211. 

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