2003

Estado sem nação: a criação de uma memória oficial no Brasil do Segundo Reinado

por Lilia Moritz Schwarcz

Resumo

Claro está que a identidade, em seu sentido mais óbvio, é um pressuposto; não é dado puro, sendo sempre uma construção. Não é, porém, o espaço do aleatório, na medida em que seu sentido parte de um universo cultural reconhecível e compartilhado. Mas nada como lançar mão da comparação, já que nem todos os países tematizam a questão da mesma maneira. Basta lembrar do caso dos ingleses, franceses ou mesmo da reflexão que faz Eduardo Lourenço com relação a Portugal. Na opinião desse autor, “nem o estatuto cultural nem a situação histórico-política são, para os portugueses, um problema”. Seguindo a definição, é o passado — “a certeza de saber quem somos por ter sido largamente quem fomos” — que faz de Portugal um país centrado, bem concentrado e definido: “Gente inscrita em certo espaço físico e cultural que padece de ‘hiperidentidade’, de uma quase fixação na contemplação da diferença”.

Não é o caso de entrar nessa seara escorregadia. Na verdade, cada povo existe em função de certo momento solar, que “confere sentido, euforiza magicamente a memória do que é”. Poucos, porém, guardam para si o papel medianeiro e simbolicamente messiânico que Portugal desempenhou quando a História ocidental convertia-se em História mundial.

Mas o tema em questão é outro. Apesar de o Brasil jamais ter incorrido no risco de imaginar-se narcisicamente o centro do mundo — sendo quase uma ilha de memória —, também aqui, e em vários momentos, selecionaram-se determinados ícones, prontamente transformados em símbolos da nacionalidade. Muitos foram os momentos privilegiados — 1822 (com a Independência), 1888 e 1889 (com a Abolição e a República) ou durante a revolução de 1930 —, mas talvez o contexto em que esse tema se associou de forma mais imediata às práticas de Estado tenha sido durante o Império, e mais particularmente no decorrer do Segundo Reinado, quando se investiu de forma pesada na recuperação e idealização de um ideário nacional e na conformação de um imaginário que colava o rei à imagem do Estado e afastava a população do fórum de decisões.

O próprio processo de emancipação nacional, marcado pelas vicissitudes da afirmação de uma monarquia nos trópicos, reiterava a representação do rei como expressão integral do poder. O Império, no entanto, oscilava. De um lado, a representação alterativa de uma realeza civilizada, iluminada por sua origem Bragança, Bourbon e Habsburgo; de outro, a relevância econômica do tráfico de escravos e desse tipo de mão-de-obra que se espalhava por todo o território. Enredado por essa contradição fundante, o Império foi pródigo na criação de discursos que primaram por criar um tipo de memória, mas, paradoxalmente, obscureceram o trabalho cativo, ao mesmo tempo em que naturalizaram a política, como o local de exercício dos mais dotados. Nesse esforço de bem costurar uma imagem para dentro e para fora do país, destacou-se a atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que, criado em 1838, congregou a elite carioca e cuidou da — boa — imagem do rei. O modelo vinha da Academia Real de História, que procurou recontar a própria história de Portugal no sentido da afirmação do poder régio, em associação com a história eclesiástica lusitana. O IHGB daria à monarquia brasileira uma nova história, uma iconografia original e uma literatura épica. Nele, enquanto o passado era relembrado de forma enaltecedora, a partir de uma natureza grandiosa e de indígenas envoltos em cenários românticos, já a realeza surgia como um governo acima de qualquer instituição, e a escravidão era, literalmente, esquecida. Especializada, também, na confecção de peças comemorativas e espetáculos rituais, coube a essa instituição, em associação com a Academia Imperial de Belas-Artes, “inventar um passado”, recuperar o presente e associar certa “aparência a uma essência”: a de um Estado idealizado por meio de seu soberano e de suas instituições quase ausentes.


INTRODUÇÃO OU “HAVIA UM PAÍS CHAMADO BRASIL, MAS ABSOLUTAMENTE NÃO HAVIA BRASILEIROS”

Auguste de Saint-Hilaire, viajante francês que passou por terras brasileiras na primeira metade do século XIX, resumia de maneira inesperada a impressão que deixava esse imenso Império incrustado bem no meio da América: “Havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia brasileiros.” O estrangeiro notava, com seu olhar distanciado, uma característica clara, desde os primeiros momentos da história brasileira: uma realidade que se demonstrava por meio de decretos, alvarás e ordens régias. No Brasil, “Estado sem ser nação”, evidenciava-se uma estrutura que delimitava uma estrita distinção entre instituições representativas e seus cidadãos e relegava o exercício político a uma esfera externa e mais afastada das decisões cotidianas. Esse não é, por certo, um depoimento isolado. Gustave Aimard, em 1892, afirmava que “no Brasil não há um povo”. Alberto Torres, em 1902, reclamava: “Este Estado não é uma nacionalidade, este país não é uma sociedade, esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos.”

Não é o caso de multiplicar os exemplos. O que mais importa é destacar como, no Brasil, o tema da nacionalidade parece estar sempre em questão, e, com ele, a noção de identidade e a própria delimitação da cidadania. Com efeito, todo momento parece propício para colocar esse tipo de questão em pauta: “Que país é este?” ou “Afinal, o que faz do Brazil, Brasil”?

Claro está que a identidade, em seu sentido mais óbvio, é um pressuposto; não é dado puro, sendo sempre uma construção. Não é, porém, o espaço do aleatório, na medida em que seu sentido parte de um universo cultural reconhecível e compartilhado. Mas nada como lançar mão da comparação, já que nem todos os países tematizam a questão da mesma maneira. Basta lembrar do caso dos ingleses, franceses ou mesmo da reflexão que faz Eduardo Lourenço com relação a Portugal. Na opinião desse autor, “nem o estatuto cultural nem a situação histórico-política são, para os portugueses, um problema” (1994,10). Seguindo a definição, é o passado — “a certeza de saber quem somos por ter sido largamente quem fomos” — que faz de Portugal um país centrado, bem concentrado e definido: “gente inscrita em um certo espaço físico e cultural que padece de “hiperidentidade”, de uma quase fixação na contemplação da diferença”. (1994, 12.)

Não é o caso de entrar nessa seara escorregadia. Na verdade, cada povo existe em função de certo momento solar, que “confere sentido, euforiza magicamente a memória do que é”. (Lourenço, op. cit.:10.) Poucos, porém, guardam para si o papel medianeiro e simbolicamente messiânico que Portugal desempenhou quando a História ocidental convertia-se em História mundial.

Mas meu intuito, aqui, é outro. Apesar de o Brasil jamais ter incorrido no risco de imaginar-se narcisicamente o centro do mundo — sendo quase uma ilha de memória —, também aqui, e em vários momentos, selecionaram-se determinados ícones, prontamente transformados em símbolos da nacionalidade. Muitos foram os momentos privilegiados — 1822 (com a Independência), 1888 e 1889 (com a Abolição e a República) ou durante a revolução de 1930 —, mas talvez o contexto em que esse tema se associou de forma mais imediata às práticas de Estado tenha sido durante o Império, e mais particularmente no decorrer do Segundo Reinado, quando investiu-se de forma pesada na recuperação e idealização de um ideário nacional e na conformação de um imaginário que colava o rei à imagem do Estado e afastava a população do fórum de decisões.

O próprio processo de emancipação nacional, marcado pelas vicissitudes da afirmação de uma monarquia nos trópicos, reiterava a representação do rei como expressão integral do poder. O Império oscilava, no entanto, entre dois grandes pêndulos: de um lado, a representação alterativa de uma realeza civilizada, iluminada por sua origem Bragança, Bourbon e Habsburgo; de outro, a relevância econômica do tráfico de escravos e desse tipo de mão-de-obra que se espalhava por todo o território. Enredado por essa contradição fundante, o Império foi pródigo na criação de discursos que primaram por criar um tipo de memória, mas, paradoxalmente, obscureceram o trabalho cativo, ao mesmo tempo em que naturalizaram a política, como o local de exercício dos mais dotados. Nesse esforço de bem costurar uma imagem para dentro e para fora do país, destacou-se a atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que, criado em 1838, congregou a elite carioca e cuidou da — boa — imagem do rei. O modelo vinha da Academia Real de História, que procurou recontar a própria história de Portugal no sentido da afirmação do poder régio, em associação com a história eclesiástica lusitana. O IHGB daria à monarquia brasileira uma nova história, uma iconografia original e uma literatura épica. Nesse local, enquanto o passado era relembrado de forma enaltecedora, a partir de uma natureza grandiosa e de indígenas envoltos em cenários românticos, já a realeza surgia como um governo acima de qualquer instituição, e a escravidão era, literalmente, esquecida. Especializada, também, na confecção de peças comemorativas e espetáculos rituais, coube a essa instituição, em associação com a Academia Imperial de Belas-Artes, “inventar um passado”, recuperar o presente e associar certa “aparência a uma essência”: um Estado idealizado por meio de seu soberano e de suas instituições quase ausentes.

TRÓPICOS E NACIONALIDADE

A natureza americana sempre deu muito o que falar. Sobretudo a partir do século XVI, as descrições da América e do Novo Mundo fazem desse território um local de especial atenção. É nesse período que, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1969), o imaginário europeu, até então concentrado no Oriente, volta-se, maravilhado para a América. Dá-se, portanto, um deslocamento que busca na natureza americana seu lugar de encantamento; encantamento feito mais de imagens de segunda mão do que de observações, já que nesse momento, como diz Laura de Mello e Souza, era bem melhor “ouvir do que ver” (1987, 39).

Dessa maneira, se desde seus primórdios a América foi descrita a partir de sua flora e de sua fauna singulares — sua natureza exuberante, suas plantas exóticas e animais desconhecidos —, uma nova faceta tornava-se evidente a partir de meados do XVI. Enquanto no tocante à natureza houve um processo contínuo de edenização, com relação à humanidade as divergências eram mais evidentes. Homens estranhos em seus costumes (que incluíam a nudez, a poligamia e o canibalismo) e virtudes — “sem fé, sem lei e sem rei”— conviviam em ambiente paradisíaco, manifesto na grandiosidade da natureza. (Gerbi, 1996). As posições, é claro, não foram unívocas, isso se pensarmos nos modelos contrastantes do bom selvagem de Rousseau e do selvagem decaído de Buffon ou degenerado de De Pauw.[1] Mas se “as gentes americanas” sempre foram matéria de descenso, com relação à natureza as posições tenderam a se reafirmar, sobretudo quando buscaram na exuberância e no “maravilhoso” elementos suficientes para representar o novo local. Elabora-se lentamente a construção de uma verdadeira mitologia com relação à natureza brasileira, quando vão sendo acopladas à paisagem natural visões culturalmente herdadas a esse respeito.

É certo que essa concepção cultural da natureza não se conforma no século XIX. Na verdade, em um processo de longa duração vão se formalizando representações sobre “a natureza brasileira e seus naturais”, que recebem uma versão mais oficial no período imperial. É dentro dessa perspectiva, portanto, que podemos entender o uso da natureza enquanto emblema, durante o período monárquico, mais particularmente no decorrer do Segundo Reinado. Com efeito, logo após a independência política de 1822, desenha-se uma cultura imperial pautada em dois elementos constituidores da nacionalidade: a realeza como centro de civilização; a natureza territorial com suas gentes e frutas como base natural desse mesmo Estado.

Para tanto, importava menos “ver” e mais “imaginar”; manipular documentos, riachos, árvores e indígenas, tudo em nome do bom cenário e da paisagem exemplar; de uma representação que deveria ser unívoca. Afinal, como diz Gonçalves Magalhães em seu épico Confederação dos Tamoios (1857), “A pátria e seus elementos não passam de mero pretexto na conformação da narrativa”.

É, portanto, em meados do século XIX que no Brasil aparecem as primeiras tentativas de fundar uma historiografia literária nacional, ou mesmo uma representação oficial. Fundar uma disciplina — uma forma de conhecimento — implicava, nesse caso, uma descoberta da origem da própria literatura e da história nacional em suas diferenças e enquanto dotadas de marcas definidoras de nacionalidade. Enquanto Gonçalves Magalhães perguntava, em 1836, “qual a origem da literatura do Brasil”, no seu “Discurso sobre a história da literatura do Brasil”, Von Martius, em 1845, respondia “Como escrever a história do Brasil”, vencendo o concurso promovido pelo IHGB. Por sua vez, José de Alencar, vinte anos depois, e nas críticas que faz a Magalhães, sugeria que tal fundação ainda não se completara (Sussekind, 1990:16). Na verdade, parecia estar em questão menos uma investigação crítica do que o estabelecimento de uma espécie de marco, perseguido por esses historiadores e literatos. Com efeito, diante das dificuldades de se estabelecer uma referência pré-portuguesa, esses senhores indicavam a si próprios como agentes privilegiados nessa função, que implicava, no limite, fundar artisticamente a nacionalidade e criar uma história oficial.

Nesse processo, era preciso, obviamente, romper com a tradição europeia e encontrar discursos coesos e coerentes de brasilidade. Afinal, como afirmou Antônio Cândido: “Como a época era de exigente nacionalismo, consideravam que lutaram dois séculos para se formar a partir do nada, como expressão de uma realidade própria, descobrindo aos poucos o verdadeiro caminho, isto é, a descrição dos elementos diferenciais, notadamente a natureza e o índio” (1976:26). “Eternos Adãos”, na feliz expressão de Sussekind (1990:17), caberia a esses senhores nomear e classificar a produção nacional, e também diferenciá-la da estrangeira. E nessas gêneses literárias os traços distintivos estariam em eventos e heróis destacados, em sua honradez brasilidade, mas sobretudo na descrição da natureza tropical, diversa em sua conformação, uniforme em sua alteridade.

Boa parte dessa inspiração estaria presente no Resumo da história literária do Brasil (1825), de Ferdinand Denis, que realça dois poemas — Caramuru, de Basílio da Gama, e Araguaia, de Santa Rita Durão — como modelos de “literatura para a literatura do Novo Mundo”, que “tira seus assuntos de uma natureza que não lhe é desconhecida”. Posição semelhante era defendida por Almeida Garret, que, em 1826, pedia que se pintassem menos cenas de Arcádia — “quadros inteiramente europeus” — e mais painéis com as cores do país (Sussekind, op. cit.: 282).

Tratava-se, portanto, de procurar uma “nacionalidade essencial”, uma identidade sem nuances e feita de continuidades. Nesse contexto, a afirmação da unidade nacional passava pela seleção da paisagem americana e de seus naturais, tomados de forma idealizada e sem que qualquer negatividade se estabelecesse entre o narrador e suas tramas. É, dessa maneira, na associação entre dois gêneros que se dá a fundação de uma literatura nacional. De um lado, a literatura não-ficcional de viagem, produzida sobretudo pelo olhar estrangeiro que vem em busca dos trópicos[2]. De outro, o paisagismo, em especial aquele que destaca a exuberância tropical ou cenas do cotidiano e, mais especialmente, da própria história nacional, que, nesse momento, é também redefinida e submetida a novo calendário.

É, portanto, nesse jogo entre prosa e ficção que o discurso sobre a paisagem se impõe entre o descritivismo mais realista e a postura mais idealizada e exemplar. Entre deslocamentos reais e paisagens imaginárias, compunha-se uma representação nacional, feita de literatura, história/memória e iconografia oficial. É assim que os documentos redescobertos passam a ser a base da ficção e dos novos épicos de cunho oficial, que, por sua vez, servem de pretexto para as grandes telas dos pintores acadêmicos, que também selecionam a natureza como marca de originalidade. Dessa maneira, a arte surge como “mapa unificador, tratado descritivo, paisagem útil” (Sussekind:1990:22), nesse processo que faz da diferença algo a mais: um ícone de nacionalidade. Como matéria-prima da originalidade, a natureza se convertia em paisagem. A própria nação aparecia descrita como paisagem; uma paisagem só natural e exuberante, longe de uma sociedade que fazia questão de se vestir à europeia e afastava a imagem da escravidão e da violência: falas mudas nesse cenário.

Sem negros, o Brasil dessa geração parecia retratado a partir da natureza e de seus naturais: todos convivendo em um passado não conspurcado pela civilização. Descobrir o Brasil significava, assim, insistir em um país natural pitorescamente natural; marco aprazível para falar da jovem nação. Papel fundamental nesse processo desempenhará o IHGB, onde se concentrará boa parte da elite carioca, tendo o monarca Pedro II como seu mecenas, a partir dos anos 1850.

ROMANTISMO E OS TRÓPICOS

O IHGB nasce vinculado ao contexto imediato da emancipação política de 1822 e como um de seus filhos diletos. Como uma “monarquia cercada de repúblicas por todos os lados”, o Império brasileiro enfrentaria problemas de ordem externa e interna na sua afirmação. Não é hora de entrar nesse embate; apenas destacar que, se no plano político uma monarquia americana era vista sob suspeita pelas demais nações do continente[3], internamente era também preciso assegurar e — nesse caso — criar uma identidade local. Pode-se entender, dessa maneira, a fundação apressada das duas faculdades de direito do país em 1826 — uma em Recife, outra em São Paulo —, a reformulação das escolas de medicina em 1830, assim como a criação de um estabelecimento dedicado “às letras brasileiras”. Em 1838, tendo como modelo o Institut Historique, fundado em Paris em 1834 por dois amigos conhecidos do Brasil — Monglave e Debret[4] —, funda-se o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), congregando a elite econômica e literária carioca. É justamente esse recinto que abrigará, a partir da década de 1840, os românticos brasileiros, quando — alguns anos depois — o jovem monarca D. Pedro II tornar-se-á assíduo frequentador e incentivador dos trabalhos desse estabelecimento. A partir de então, o IHGB se transformaria em um centro de estudos bastante ativo, estimulando a vida intelectual e funcionando como um elo entre esta e os meios oficiais.

Com efeito, em finais dos anos 1950, contando com um cenário político e econômico bastante favorável, na medida em que as insurreições do período regencial haviam sido debeladas, a situação financeira do país encontrava-se saneada, em função da penetração do café brasileiro nos mercados internacionais e de uma política interna que seguia um rumo cada vez mais estabilizado, tendo o monarca — e seu poder moderador[5] — como fiel da balança, o monarca se preparava para uma política cultural mais efetiva.

Na revista Illustração Luso-Brazileira, de 1858, aparecem sintetizadas as representações positivas que incidiam sobre a monarquia brasileira nesse momento: “O seu império imenso recortado de rios caudalosíssimos e constantemente coberto de uma vegetação maravilhosa, que vae debruçar-se no oceano (…) é hoje considerado o ponto central da civilização do Novo Mundo (…) salvo da anarchia que pouco a pouco devora os outros estados da América do Sul (…) É lá que floresce, no seu solo virgem, um novo ramo da antiga e transplantada árvore dos Bragança (…) foi o imperador D. Pedro II que o pacificou e lhe deu a prosperidade que hoje se vê naquelle magnífico império cujo destino está, mais do que em outras nações ligado com o de seu monarcha …” (p. 258)
O Império parecia ser entendido como um oásis — natural, físico e moral — em meio à confusa América Latina. Na representação, um monarca europeu surgia como garantia de paz e civilização, por extensão, enquanto “uma vegetação maravilhosa” surgia como índice de originalidade. Mas, com a estabilidade do regime, a elite brasileira parecia ambicionar um projeto maior: era preciso não só assegurar a realeza, como destacar uma memória, reconhecer uma cultura. Composto, em sua maior parte, pela “boa elite” da Corte, que se encontrava sempre aos domingos e debatia temas previamente selecionados, o IHGB parecia disposto a cumprir esse papel. “Não deixar mais ao gênio especulador dos estrangeiros a tarefa de escrever nossa história …”, eis nas palavras do secretário perpétuo, Januário da Cunha Barboza (Rev. do IHGB:1839), a meta desse estabelecimento[6].
Se desde o início o Estado entrava com 75% das verbas da instituição, a partir de 1840 D. Pedro passará a frequentar com assiduidade as reuniões, e o próprio estabelecimento deixará sua antiga sede para se estabelecer no Paço Imperial, em 1849. A partir de então, o Instituto histórico funcionará como uma espécie de “porto seguro”, um estabelecimento oficial para as experiências desse jovem monarca, tão interessado em imprimir um “nítido caráter brasileiro” à cultura local. A participação do imperador não era apenas financeira[7]. Através do financiamento direto, do incentivo ou do auxílio a poetas, músicos, pintores e cientistas, D. Pedro II imiscuía-se em um grande projeto, que implicava não só o fortalecimento da Monarquia e do Estado, como a própria unificação nacional, que seria obrigatoriamente uma unificação cultural.

D. Pedro e sua elite preocupavam-se, dessa maneira, não só com o registro e perpetuação da sua memória, como com a consolidação de um projeto romântico, para a conformação de uma cultura “genuinamente nacional”. Era assim que se lançavam as bases para uma atuação que daria a D. Pedro a centralidade do processo e a imagem do mecenas, do sábio imperador dos trópicos. Seguindo o exemplo passado de Luís XIV, formava-se não apenas uma Corte, como elegiam-se historiadores para cuidar da memória, pintores para gravar e enaltecer a nacionalidade, literatos para selecionar um tipo local, símbolo da nossa nacionalidade.

Modelos não faltavam, mas parecia necessário encontrar originalidade na cópia. O romantismo aparecia, aos poucos, como o caminho favorável à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções que permitiam afirmar o particularismo, e portanto a identidade, em oposição à metrópole, mais identificada com a tradição clássica. O gênero vinha, dessa maneira, ao encontro do desejo de manifestar na literatura uma originalidade do jovem país, em oposição aos cânones legados pela mãe-pátria.

O projeto literário toma forma, como vimos, já em 1826, quando Ferdinand Denis e Almeida Garret chamavam a atenção para a necessária substituição dos gêneros clássicos e convenções, em favor do aproveitamento das características locais. Os brasileiros deveriam se concentrar na descrição de sua natureza e costumes, dando realce sobretudo ao índio, o habitante primitivo e o mais autêntico, segundo Denis. (Cândido, 1989.) Mas foi só mais tarde que o romantismo associou-se a um projeto de cunho nacionalista. Nesse processo, foi decisiva a conversão de um grupo de jovens brasileiros residentes em Paris, mais ou menos entre 1832 e 1838, e que lá foram acolhidos por intelectuais franceses que tinham vivido no Brasil e faziam parte do Institut Historique[8]. Esses mesmos literatos brasileiros publicaram em 1836 os dois únicos números da revista Niterói, considerada um marco do romantismo brasileiro. Seguindo o lema “tudo pelo Brasil e para o Brasil”, os organizadores da publicação previam a busca e exaltação das originalidades locais.

No título, Niterói, ficava evidente o programa nativista, anunciado já no primeiro número por José Gonçalves Magalhães (1811-188), que seria, em futuro próximo, um dos protegidos do imperador. O nome pretensamente indígena havia sido descoberto na narração do francês Thevet, viajante do século XVI, e tencionava indicar aos brasileiros as fontes de inspiração da nova literatura: a cultura indígena e a vegetação; sendo esses dois elementos parte de um único cenário natural. Nessa revista, segundo Cândido, advogava-se um espírito moderno, que “consistiria em romper a coexistência e promover o triunfo da literatura nacional, que no caso brasileiro deveria levar em conta a capacidade poética do índio” (1989:12). A característica moderada do grupo, em seu desejo de reforma, ajudou na recepção desse projeto, em meio a um ambiente pobre e preso ao neoclassicismo. Trabalhando com as noções de autonomia e patriotismo, o grupo propunha uma transição branda e quase imperceptível.

Com Magalhães, conviviam Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891)[9], Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)[10], Gonçalves Dias (1823-1864), e Francisco Adolfo de Varnhagem (1816-1878), um dos fundadores da historiografia brasileira[11]. É basicamente esse o grupo central que vai passar a frequentar o IHGB a partir de 1840, tendo na revista do Instituto — que começa a ser editada em 1839 — um órgão dileto de divulgação de suas ideias. Por outro lado, o caráter oficial e respeitável desse estabelecimento auxiliou na aceitação do grupo e do projeto de renovação literária, sobretudo em função da presença constante do imperador. Este, por sua vez, se contribuiu decisivamente para o fortalecimento do grupo, patrocinando as diferentes atividades, não obstante gerou um certo conformismo palaciano, tolhendo as iniciativas mais rebeldes ou alternativas. É, assim, a partir da entrada e do mecenato do imperador, que o romantismo brasileiro transforma-se em projeto oficial, em um verdadeiro nacionalismo, e como tal passa tratar do que considera serem as “coisas locais”.

Sabia-se muito pouco a respeito dos indígenas, mas na literatura ferviam os romances épicos, com chefes e indígenas heróicos, amores silvestres, tendo a floresta virgem como paisagem. Os antigos dicionários de línguas nativas feitos pelos jesuítas passaram a ser estimados, pois as estrofes literárias podiam ser entremeadas por termos indígenas. Por outro lado, a nobreza que então se criava ganhava logo denominações tupis, como a garantir a existência de um “baronato tropical”. A natureza passa pelo crivo da geografia, e os novos mapas delimitam as fronteiras políticas do Império, assim como garantem, simbolicamente, a originalidade do Estado.

O próprio imperador, inspirado por essa voga, passa a estudar o tupi e o guarani, que lhe seriam úteis durante os litígios com o Paraguai, na década de 1860, e mesmo para que ganhasse uma espécie de liderança do movimento romântico.[12] Não é a toa que nessa época tenha ficado famosa a frase proferida pelo jovem monarca brasileiro nos recintos do IHGB: “A ciência sou eu.” Sem dúvida, uma clara alusão ao dito de Luís XIV, que como ninguém simbolizou em sua pessoa o Estado e a nação.

A NATUREZA E OS NATURAIS COMO SÍMBOLO NACIONAL

Mas se cabia à historiografia formar um novo panteão de heróis nacionais, foi na área da literatura que esse tipo de projeto ganhou maior visibilidade. Debaixo da proteção direta do monarca, tomava força o movimento que pretendia promover a autonomização da literatura brasileira, sob os moldes do romantismo e da convenção do indianismo. A própria revista Guanabara, fundada em 1850 por Porto Alegre, Gonçalves Dias e Manuel de Macedo, entre outros, em seu primeiro número salientava a proteção do Imperador aos literatos. Delineavam-se então, as bases de uma verdadeira política literária. É nesse contexto que Magalhães publica A confederação dos Tamoios (1857), que fora diretamente financiada pelo monarca, e, depois de longo preparo, era aguardada como o grande documento de demonstração de validade nacional do tema indígena[13]. Retornando ao modelo de Rousseau do “bom selvagem”, Magalhães construía, sob encomenda, o que deveria ser o maior épico nacional centrado na figura dos heróis indígenas, com seus atos de bravura e seus gestos de sacrifício. Tentando fundir a “excentricidade romântica com a pesquisa histórica”, esse autor acreditava ser possível superar as especificidades regionais para chegar-se a um mito nacional de fundação (Puntoni, 1996). Apesar do fraco resultado, a importância do livro associou-se a seu vínculo institucional. Dedicado ao imperador, o livro trazia uma trama onde se opunham os colonizadores portugueses vilãos aos indígenas naturais e determinados.

Inspirada em artigo de Balthazar da Silva Lisboa, publicado em 1834, a obra conta a saga da nação tamoio que luta pela liberdade contra os agressores portugueses — caracterizados como selvagens e aventureiros. Mas as oposições não se limitam aos pares descritos linhas atrás. Enquanto os brancos podem ser divididos entre portugueses colonizadores (que parecem representar a impureza do ato que transforma uma nação livre em escrava) e brancos religiosos (padres jesuítas mancomunados com o futuro Império), também os indígenas encontram-se separados. De um lado, os silvícolas bárbaros ou (pela sua simplicidade) catequizados; de outro, os aborígines indomáveis e livres como a natureza. Nessa batalha, o par enaltecido é o que lembra a pureza: os portugueses do futuro Império (que representam a unidade nacional, mas sobretudo a fé cristã que se cola ao sacrifício dos nativos), os indígenas não conspurcados pela civilização. É num momento significativo da trama que Tibiriçá, índio converso da tribo guayaná, tenta convencer seu sobrinho rebelado, Jagoanharo, das vantagens do mundo civilizado. Após a conversa, é Jagoanharo quem tem um sonho divinatório, onde prevê, em pleno século XVI, a chegada da família real, a Independência, o Império, a Guerra do Paraguai e por fim o reino do justo monarca Pedro II.

Transformado em uma monarquia de justos, o Império aparece contraposto à colonização portuguesa, terreno da desigualdade. Mas é a chegada de Pedro II a mais aguardada: “Esse infante gentil, que no seu berço pelo sol tropical foi aquecido … e si Pedro lançou do Imperio as bases, Outro o fará subir á mor altura (…)” (180-1). Aclamado como um “genio em tenros anos”, que “por voto da nação empunha o cetro” (181), D. Pedro II surge no romance de Magalhães como um messias da paz, um mensageiro de Deus. É assim que a literatura cede espaço ao discurso oficial e o indígena transformado em um modelo nobre toma parte, mesmo que como perdedor, na grande gênese do Império. Como um exemplo a ser seguido, o indígena surgia como herói e vítima de um processo que o atropelava. Nascido livre, morto em liberdade.

A primeira missa — tema do quadro de Vítor Meireles de Lima (1860), sem dúvida inspirado na carta de Caminha e na obra de Magalhães — fecha os destinos dos diferentes personagens desse romance. Como um “fardo da civilização”, o Império impunha-se por meio da representação do indígena, mas, também, sobre o indígena: sua grande vítima. Nesse épico, saem destacados dois grandes elementos da nacionalidade. O Estado Imperial surge representado como um modelo de justiça, enquanto a natureza americana, com seus naturais, compõe o restante da cena. Toda a paisagem retorna ao início da colonização, momento em que a escravidão negra não existia e os silvícolas apareciam como emblemas do trabalho e de uma nobreza não tocada pela civilização.

Além de Magalhães (depois visconde de Araguaia), outros autores, como, por exemplo, Gonçalves Dias, mereceriam a atenção do imperador, a quem parecia não escapar a significação nacional de um movimento como esse. Considerado como o grande autor romântico brasileiro, Gonçalves Dias trouxe o indianismo para a poesia. Partindo de documentos e utilizando-se da etnografia da época, ele cria uma poética dedicada à formação do país: terra virgem, intocada até os primeiros contatos com a civilização. Entre seus Primeiros cantos (1847), Segundos cantos (1848) e Últimos cantos (1851), logo louvados no país, Dias dedicou muitos poemas à América e suas gentes.

Seu poema mais consagrado I-Juca-Pirama[14] trazia para o Brasil o modelo do canibalismo heroico, consagrado em textos como Os canibais, de Montaigne (1580). Tal qual uma refeição ritual, só se comia o bravo, o espírito indomável livre até na morte. É esse o argumento do poema de Gonçalves Dias, que reconta a história de um bravo guerreiro tupi que é feito prisioneiro pelos timbiras e espera por sua morte, mas teme pela sorte do pai — velho, fraco e cego —, a quem serve como guia. Em suas descrições, Gonçalves Dias esmera-se não só em introduzir termos e palavras locais, como descreve, com minúcia, as cerimônias em que se matavam os guerreiros inimigos. O drama todo retoma a questão da bravura do herói guerreiro. Diante do choro do jovem tupi, os timbiras soltam-no: não se mata e come o covarde. No entanto, o encontro com o pai é marcado pela decepção. O velho tupi lamenta a fraqueza do filho e o maldiz:

Tu choraste em presença da morte?

Na presença de estranhos choraste?

Não descende o cobarde do forte;

Possas tu, descendente maldito

De uma tribo de nobres guerreiros,

Implorando cruéis forasteiros,

Sêres presa de vis Aimorés (522)

É então que o jovem guerreiro se afasta do pai e prova sua bravura enfrentando sozinho os timbiras. Estes, reconhecendo o valor do tupi, concedem-lhe o sacrifício da morte em terreiro. Filho e pai reconciliam-se: Este sim que é meu filho amado (525). Por fim, para garantir a “veracidade” da narrativa. Gonçalves Dias coloca na boca de um velho timbira a memória dos feitos heroicos: “E à noite nas tabas se alguém duvidava do que ele contava, Dizia prudente: “Meninos, eu vi.” (525)

O índio surgia assim como um exemplo de pureza, um modelo de honra a ser seguido. Diante de perdas tão fundamentais — o sacrifício em nome da nação e o sacrifício entre os seus —, surgia a representação de um indígena idealizado, cujas qualidades eram destacadas na construção de um grande país. Mas não era “um índio qualquer”. Enquanto os aimorés e os timbiras representavam a degeneração e as práticas canibais, os tupis surgiam como modelos de nacionalidade existentes no passado. Entre a literatura e a realidade, história e ficção, os limites pareciam tênues. No caso, a história estava a serviço de uma literatura mítica que, junto com ela, selecionava origens para a nova nação.

Foi, portanto, nos decênios de 1850-60 que o Brasil conheceu a consagração do romantismo, cuja manifestação considerada a mais “genuinamente nacional”, o indianismo, teve nele o momento de maior prestígio, alcançando não só a poesia e o romance, como a música e a pintura. Em 1865, era publicado o romance que se tornou uma espécie de ícone dessa geração, apesar da inserção contraditória de seu autor entre os demais indigenistas[15]Iracema, o livro mais conhecido de José de Alencar, não só trazia os temas e paisagens caros ao gênero, como em seu nome (e invertendo-se as letras) incorporava o anagrama de “América”.

Seguindo de perto a moda do indigenismo, era Alencar quem afirmava ser “o conhecimento da língua indígena o melhor critério para a nacionalidade da literatura” (1865/1996:84). Em suas obras, uma demonstração frequente dos conhecimentos sobre a natureza e os naturais do Brasil transparece a ponto de muitas vezes o caráter didático de seu texto impor-se, em detrimento da narrativa. Em Ubirajara (1874), por exemplo, o autor começa o livro com uma advertência em que aparecem não só referências documentais, como alusões à “alma brasileira” e à “magnanimidade do drama selvagem”. Na verdade, com esse livro (considerado por Alencar como “irmão de Iracema”), Alencar pretendia dar “uma ideia exata dos costumes e índoles dos selvagens” (12,13). Para tanto, introduz 66 notas, no decorrer de todo o livro (em que descreve costumes indígenas e acidentes geográficos) e interrompe sua narrativa constantemente, a fim de descrever a paisagem em seus detalhes exóticos: “Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o jovem caçador (…) Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador. (…) O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador também despreza o jaguar, que já cansou de vencer. (…) É assim que começa esse romance que relato, em ambiente idílico e integrado, a paisagem natural com suas gentes e animais.”

Mas voltemos a Iracema, talvez o grande símbolo dessa geração. Nesse romance, a bela “virgem dos lábios de mel” aparece retratada em meio a um passado mitificado, nesse caso o cenário intocado do Nordeste de inícios do século XVII. A obra representa o nascimento do Brasil, diante, mais uma vez, do sacrifício indígena. O casal central — Martim e Iracema — simboliza os primeiros habitantes do Ceará, e de sua união resultará uma nova e predestinada raça. Em meio à trama, Iracema morre para que seu rebento Moacir (o “filho do sofrimento”) viva, e Martim deixa as praias do Ceará para fundar novos centros cristãos. A partir de então, deveriam ter todos “um só Deus, como tinham um só coração” (175). Mais uma vez distantes do Brasil do século XIX, tão marcado pela escravidão, heróis brancos e indígenas convivem em ambiente afastado. Se existem alguns indígenas bárbaros, resumem-se a poucos grupos isolados. Como os europeus, os silvícolas são acima de tudo nobres. Nobres se não nos títulos, ao menos em seus gestos e ações. Envolvendo a trama, surge a natureza não conspurcada, marca dos romances de Alencar. “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros” (11).
Mas as experiências de Alencar com o indigenismo não haviam começado com Iracema. Publicado originalmente em folhetins no Diário do Rio de Janeiro, entre janeiro e abril de 1857, O Guarani ganhava a forma de livro no mesmo ano. O romance, como os demais, ocorre no passado, no século XVII, às margens do Rio Paraíba. Seu principal protagonista é Peri, grande herói do livro e par romântico para a loura e alva Ceci. Já no título — O Guarani —, Alencar pretendia representar o indígena brasileiro em seus primeiros momentos de contato “em um momento de vigor e não degenerado como se tornou depois” (1857/1995: 27). Peri é a própria representação do bom selvagem rousseauniano: forte, livre como o vento, fiel e correto em seus atos. A trama desenvolve-se em torno de dois grandes grupos de tensão. De um lado, Peri protege a família do fidalgo português, D. Antônio de Mariz (pai de Ceci), do ataque dos bárbaros aimorés. De outro, ajuda a desvendar as artimanhas de Loredano, aventureiro que almejava as riquezas da família e Ceci.

Mais uma vez, o embate se dá entre nobres e selvagens. Selvagens são os aimorés e os aventureiros brancos. Nobres são todos aqueles que têm ou merecem tal título em função da bravura e altivez de seus atos. É assim que o tema da nobreza de Peri surge com frequência nas páginas do romance, como a indicar um feliz encontro entre uma nobreza branca, que veio ao Brasil oriunda da Europa, e os “nobres da natureza”. É de D. Antônio Mariz a frase: “Crede-me, Álvaro, Peri é um cavalheiro português no corpo de um selvagem” (1857/1995:45). Peri era portanto muito diferente dos demais indígenas, “nos quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase apagado o cunho da raça humana” (218). Descritos como ignorantes, bárbaros e com instintos canibais, os aimorés representavam os selvagens que, de tão diabólicos, deveriam ser esmagados pela civilização[16]. Uma natureza decaída. Muito diferente é a natureza que se afirma em Peri. Em uma terra de passado recente e de uma nobreza inventada, Alencar recria um passado mítico com seus senhores valentes e bondosos; indígenas fiéis e honrados; uma natureza grandiosa como cenário. Trata-se de um encontro de dignidades: o cavalheiro e o selvagem. Mais que isso, Peri era rei nas florestas: “Esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o resplendor da natureza (280) (…) “no meio do deserto, livre, grande, majestoso como um rei “(285). Nessa “corte tropical”, nada mais justo do que imaginar um rei das selvas, que conviveria com a realeza dos civilizados, e, séculos depois, lhe deveria vassalagem.

Anos depois, em 1870, estrearia com êxito, no Scala de Milão, a ópera composta por Antônio Carlos Gomes (1836-1896), O Guarani, cuja inspiração para o libreto vinha da obra de mesmo nome, de Alencar. Tendo seu trabalho também financiado por D. Pedro II[17], a obra de Carlos Gomes combinava as normas europeias com o desejo de exprimir os aspectos considerados mais originais em nossa cultura. Compunha-se, assim, música romântica mas de base indígena, como a afirmar uma identidade ao mesmo tempo universal e particular.

Como se vê, por meio desses e de outros autores, o romantismo no Brasil não foi apenas um projeto estético, como também um movimento cultural e político, profundamente ligado ao nacionalismo e ao desejo de independência. Diferentemente do movimento alemão de finais do século XIX, tão bem descrito por Elias (1983), o nacionalismo brasileiro, pintado com as cores locais, partiu sobretudo das elites cariocas, que, associadas à monarquia, esforçavam-se por alcançar uma emancipação em termos culturais.

Atacados de frente por historiadores como Varnhagen, que os chamava de “patriotas caboclos” (Puntoni, op. cit:129), os indigenistas brasileiros ganharam, porém, popularidade e tiveram sucesso na imposição da representação romântica do indígena como símbolo nacional, envolto pela grande natureza local. Acusado de ser fantasioso e de defender os selvagens em detrimento dos civilizados, é dessa maneira que reage Magalhães: “Nós que somos Brasileiros, porque no Brasil nascemos, qualquer que seja a nossa origem indígena, portugueza, hollandeza ou alemã, fazemos causa commum com os que aqui nasceram antes de nós e consideramos como estrangeiros os mais homens. Assim fazem todos os homens a respeito de seus compatriotas.” (op. cit.:353). Por fim, além de defender-se das acusações de lusofobismo, Magalhães acaba concluindo: ‘A Pátria é uma idéa, representada pela terra em que nascemos. Quanto a origem das raças humanas, isso é questão de história, pela qual não se regula o patriotismo. De resto, o heróe de um poema é um pretexto, uma regra d’arte para a unidade da ação (…)” (353-4).

Fazendo da literatura um exercício de patriotismo, esse gênero ganhava um lugar oficial nos planos do Estado. A valorização do pitoresco da paisagem e das gentes, do típico ao invés do genérico encontrava no indígena o símbolo privilegiado e nos trópicos seu “lugar natural”. Representando a imagem ideal, o indígena romântico encarnava não só o mais autêntico, como o mais nobre, no sentido de se construir um passado honroso. Por oposição ao negro, que lembrava nesse contexto uma situação humilhante em função da escravidão[18], o indígena permitia prever uma origem mítica e unificadora.

A natureza brasileira também cumpriu função paralela. Se não tínhamos castelos medievais, igrejas da antiguidade, ou batalhas heroicas a serem lembradas; possuíamos o maior dos rios, a mais bela vegetação tropical. Entre palmeiras, abacaxis e outras frutas tropicais, apareciam representados o monarca e a nação, destacando-se a exuberância de uma natureza sem igual.

Mas o projeto cultural escapava aos poucos dos circuitos restritos da Corte local e ganhava a iconografia política. Nas imagens da época, o indianismo não só era um modelo estético, como incorporava-se à própria imagem da realeza. É assim que, em um primeiro momento, e próximo da representação barroca, o monarca aparece circundado de alegorias clássicas e indígenas, quase brancos, idealizados em ambiente tropical. É o imperador que, com sua centralidade, representa a nação tropical. Já após a Guerra do Paraguai será a natureza com seus heróis “naturais”, retirados da literatura romântica, que ganhará a cena. Nesse contexto, são os trópicos que se transformam em ícone e marca.

A ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS-ARTES E A EXALTAÇÃO DOS TRÓPICOS

Também no interior da Academia Imperial de Belas-Artes, a vertente romântica, que elegeu o exótico como símbolo local, proliferou e adaptou-se ao projeto de D. Pedro II em outras áreas[19]. No plano pictórico, a Academia seria a grande responsável por uma transformação bastante radical: aos poucos, o barroco é relegado a segundo plano, e o neoclassicismo passa a imperar, ao menos de forma oficial. Segundo Campofiorito (1983:13), era “sintomático que, logo no início desse período, a necessidade de reaparelhamento da nova sede metropolitana já tivesse levado o governo do regente D. João a medidas como a contratação de uma missão de artistas franceses que, fugindo do novo governo que se instalara no país, trazia para a América uma reação católica, monárquica e tropical às doutrinas estéticas e preconceitos moralistas da recente revolução burguesa. Essa renovação laica, mas imposta de fora, além de cortar a tradição colonial de raízes religiosas e barrocas, deu início ao ensino oficial de belas-artes no Brasil, imprimindo-lhe os cânones austeros e acadêmicos que marcariam tão fortemente a evolução de nossa pintura oitocentista”.

Na verdade, uma certa contenção acadêmica e o convencionalismo temático acabaram por afastar o ambiente pictórico local dos debates que, na Europa, opuseram neoclássicos, românticos, realistas e expressionistas. Aqui, ao contrário, a arte serviu aos desígnios da Corte, mais ligada a um projeto palaciano e pouco atenta à tradição local. Desde o início, de fato, o estabelecimento centralizou a adoção de padrões estéticos europeus, preocupado como estava em impor novos modelos de produção artística: os parâmetros bem comportados do neoclássico francês.

A criação da Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios teria como tarefa primeira propagar pelo Império uma certa cultura das belas-artes, a partir da introdução do modelo clássico francês (tendo à frente a influência de Lebreton) ou português, com Henrique José da Silva (que copiou os estatutos da Academia de Lisboa). Enquanto efetivação, o estabelecimento representava o resultado imediato da missão francesa que chegara ao Brasil em 26 de março de 1816 com o intuito de aqui fundar uma academia de artes. Tendo Joaquim Lebreton (secretário perpétuo da classe das artes do Instituto Real da França) como líder e os artistas Nicolas Antoine Taunay (pintor do mesmo instituto), Auguste M. Taunay (escultor), Jean Baptiste Debret (pintor de história e decoração e discípulo de David), Grandjean Montigny (arquiteto) e outros funcionários e participantes, o grupo francês era caracterizado a partir da diversidade de atividades e da especialização profissional de seus membros. A Missão trazia consigo, também, 54 quadros ingleses e franceses, destinados a dar início a uma pinacoteca local. Com os componentes, chegavam, portanto, o desejo de se montar todo um aparato laico com relação às artes, diferente do modelo sacro que se estabelecera desde o período colonial, e a intenção de impor uma nova “cultura artística”, mais afinada com as vogas europeias.

Era nessa época embaixador do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve o marquês de Marialva, que soube tirar partido do descontentamento que reinava entre os artistas partidários da revolução de 1789, depois da queda de Napoleão Bonaparte, agora perseguidos pela Restauração. É, portanto, nesse contexto que Lebreton, destituído do posto de secretário do Institut de France, reúne artistas igualmente apreensivos diante da situação política e que se arriscam a enfrentar uma longa viagem e as incertezas que representava um império nos trópicos.

No entanto, a escola só passaria a funcionar, de fato, dez anos depois, e mesmo assim contando com muitas dificuldades de ordem econômica. Segundo as atas, a Escola Real de Ciências Artes e Ofício abriu seus trabalhos no dia 13 de agosto de 1816, em instalações provisórias. Documentos falam da existência de uma Escola Real em 12 de outubro de 1820. No entanto, é só em 17 de dezembro de 1824 que recebe o nome de Academia Imperial de Belas-Artes e em 5 de dezembro de 1826 é instalada no prédio construído por Grandjean de Montigny (Vale, 1997:350).

Foi, porém, apenas durante o Segundo Reinado que a Academia viveu uma situação mais estabilizada, sobretudo em função dos auxílios públicos e privados do Império. Empreendendo uma política semelhante à do IHGB, a monarquia passou a distribuir prêmios, medalhas e bolsas para o exterior e financiamentos, assim como participou assiduamente das “Exposições Gerais de Belas-Artes”, promovidas anualmente, ou distribuiu insígnias das Ordens de Cristo e da Rosa aos artistas de maior destaque. Com efeito, já em 2 de dezembro de 1829, Debret, na função de professor de pintura, organizou a primeira exposição de arte no país, da qual participaram apenas alunos e professores do estabelecimento. Não obstante, só após 1840 é que as exposições foram abertas aos artistas em geral, sendo que de 1840 a 1889 realizaram-se 26 mostras. Inauguravam-se, assim, todo um calendário e um cotidiano próprios ao estabelecimento, que começava a reconhecer e premiar suas figuras exponenciais e impunha novos modelos e gostos.

Na verdade, diante da inexistência de um mercado de arte, a aquisição das obras ficou vinculada à órbita imperial, dado esse que muito contribuiu para o perfil bem comportado da produção do grupo, mais dedicado à perpetuação da memória da realeza, da afirmação de uma arte em grande parte alheia às raízes locais e vinculada a um evidente convencionalismo estético. A própria conformação da escola e a seleção de programas e cursos comprovam seus vínculos com a elite palaciana. Se as aulas com “modelos vivos” eram motivo para polêmicas, já que os negros e mulatos que posavam não eram considerados modelos de beleza e de eugenia (Durand, 1989:V), as classes de “paisagem” causavam impasses, na medida em que julgava-se oneroso retirar os estudantes da escola.

O certo é que eram as cadeiras de “pintura histórica” e a “retratística” que mais sucesso faziam nesse local. Em primeiro lugar, os retratos imperiais, de personalidades políticas e da elite social próxima da Corte representavam a oportunidade mais habitual de trabalho. Por outro lado, tornavam presente e reconhecido o grupo dirigente que passava a expor e divulgar sua imagem pelo Império afora.

Mas eram, mesmo, os quadros históricos aqueles que mais se destacavam na Academia. Com efeito, na Europa e mesmo nos jovens estados americanos, a pintura histórica, norteada pelas propostas neoclássicas, foi usada para a montagem de verdadeiras “iconografias nacionais”. No caso do Brasil, apesar de não ultrapassar os limites da Guerra do Paraguai e de concentrar-se nas grandes datas e eventos da Corte, esse tipo de produção alcançou uma maior repercussão interna, permitindo estabelecer uma referência pictórica oficial que se aproximava do calendário de “fatos” e “da recriação histórica” que se produzia no IHGB.

Na Academia, portanto, a exaltação do exótico, de uma natureza modelar e do indígena romântico tornou-se uma marca na produção das artes plásticas daquele contexto. Dessa maneira, se durante o período colonial o barroco se impôs como gênero, e teve nos escravos artistas relevantes agora, a intenção da Academia era mudar padrões, estilos e técnicas. O centro inauguraria todo um didatismo, uma nova pedagogia, com exigências de nível de escolaridade, currículos mínimos e cursos de anatomia. A partir de 1834, com a posse do novo diretor da Academia, Felix-Emile Taunay, ocorre toda uma revitalização desse projeto. Foi ele quem estruturou a Academia, criando as Exposições Gerais de Belas-Artes, com suas premiações, prêmios de viagem à Europa e outras atividades, que levaram à estabilização do novo centro. Taunay é também responsabilizado por sugerir, em 1848, a criação da cadeira de História da Arte. É então que se estreitam as relações entre o Império e a Academia, sobretudo a partir da atuação de Porto Alegre e de seu esforço em demonstrar a relevância das artes na construção de um regime e seu papel para o fortalecimento do próprio Estado.

As consequências mais imediatas foram a nomeação de Porto Alegre para diretor, em 1855, e o início de uma reforma interna — hoje conhecida como Reforma Pedreira — que regularizou as atividades da Academia e estabeleceu de vez as relações com a Monarquia. É interessante destacar, ainda, que a instituição brasileira ficaria bastante imune à crise que ocorria na Europa, envolvendo as demais Academias e seu mais importante gênero: a pintura histórica. Como se sabe, a valorização da pintura histórica (que incluía cenas históricas, religiosas e da mitologia pagã) nascera de uma larga tradição do paragone; isto é da competição entre artes visuais e literatura iniciada no Renascimento (Mattos, s.d.:4). Não se tratava, porém, da pura imitação da natureza, e sim da sua elevação, que lhe daria a capacidade de exemplus virtutis. Derivada dessa tradição, a pintura histórica se converteria no grande sustentáculo do ensino acadêmico, o mais nobre dos gêneros — na medida em que congregava todos os demais —, seguida, de longe, pelo retrato, pela pintura de gênero, pela paisagem e finalmente pela natureza morta[20].

Era próprio do gênero histórico apresentar uma única ação, de caráter sempre moralizante. Seu cumprimento exigia, também, um alto grau de idealização, já que as figuras retratavam cenários e heróis destacados em sua virtude moral. Cada quadro como que narrava uma história, de maneira que os personagens dispostos à esquerda indicassem o prelúdio da ação, e as figuras à direita o desenvolvimento da trama. Como mostra Claúdia Mattos (s.d.:5) “o quadro deveria ser lido como um livro, da esquerda para a direita, e a ação única do herói deveria conter em si todo o desenvolvimento da história”. Essa maneira exterior e pontual de conceber a pintura explica-se em função do caráter exemplar e ideal, exigido do pintor, que não deveria se preocupar com a reprodução imediata, da história propriamente dita.

O modelo vitorioso no Império brasileiro estava, porém, a léguas de distância das críticas que pairavam sobre o gênero em outros circuitos artísticos. Na França, por exemplo, o interesse cada vez maior na reprodução exata de eventos históricos — tal como propunham o historiador Jules Michelet e um novo grupo independente que então se afirmava — acabou por expor os salões da Academia Francesa a intenso debate e desestabilizou o edifício conceitual que sustentara, até então, os fundamentos do gênero histórico. O confronto maior se daria entre “realistas e idealistas”; entre aqueles que optavam pela forma mais vinculada à descrição do ambiente e os outros profissionais que, por oposição, selecionavam uma cena de forma idealizada e buscavam enfatizar o caráter moral da pintura histórica. (Mattos, s.d.:2)

Na “nova tradição brasileira”, não obstante, pouco espaço restaria para o modelo mais realista. Na verdade, se as pinturas se fizeram mais “realistas” na descrição dos detalhes, o conjunto era sobretudo “idealista”, fazendo dos poucos eventos selecionados da história local, modelos de virtude, afirmações da nacionalidade e do Império. Produtora, a partir de então, de todas as imagens oficiais do Império, a Academia imporá não só estilos como temas: o motivo nobre, o retrato, a paisagem e sobretudo a pintura histórica estarão em voga. Em boa parte produzidos no exterior, em função da política de financiamento[21], essas obras apresentavam uma idealização da paisagem e da população, coerente com o olhar de quem descreve ao longe, sem contato imediato com a realidade.

MEIRELES, A PRIMEIRA MISSA E O BATISMO NACIONAL [22]

Esse é o caso da obra de Vítor Meireles de Lima, que em A primeira missa no Brasil (1860) busca passar para a tela uma descrição, bastante específica, da carta de Pero Vaz de Caminha. Com efeito, todo o processo de composição do quadro é um exemplo expressivo desse processo de “redescoberta” do Brasil, empreendido no século XIX, logo após a emancipação política. Vinculado ao projeto de construção nacional, realizado pelo Estado Imperial em sua associação com o movimento romântico nascente, Meireles selecionava o tema da primeira missa, dando continuidade, no plano pictórico, à agenda histórica que se montava no IHGB, que inscrevia um novo calendário de datas, num só vetor de acontecimentos, e que tinha na “primeira missa” o ato fundador por excelência.

Como sabemos, a chegada das naves ao Brasil é descrita por um documento de grande valor, um relato que narrava passo a passo, do dia 21 de abril ao 10 de maio de 1500, o desembarque dos portugueses nas novas terras. O texto, redigido com notável capacidade de observação, estabelecia de imediato o elo com a ideia de um paraíso primordial da Bíblia. De forma retrospectiva, é possível perceber na carta a percepção que Sérgio Buarque de Holanda chamou de Visão do Paraíso (1969) e que passando por Jean de Léry a Montaigne, de Montaigne a Rousseau, daria mote ao tema do “bom selvagem”, modelo de reflexão alterativa para que o Ocidente pensasse a si próprio a partir de um desenho ideal. Nascida da reflexão sobre esse bom selvagem francês dos primeiros tempos, o tema seria retomado no XIX, através do romantismo de cunho oficial. Mas voltemos à carta. Publicada pela primeira vez em 1817 — na Corografia Brasílica de Aires de Casal —, o documento se projeta nesse novo imaginário histórico do XIX, ganhando lugar especial, como demonstra Capistrano em O descobrimento do Brasil: “a carta de Pero Vaz de Caminha, diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura …” (1883: 238/9).

Distante da ideia da “descoberta documental”, que supõe apenas sorte e acaso, é forçoso reconhecer que o documento é editado em momento estratégico, quando historiadores e literatos construíam um passado e davam sentido à nossa origem. A carta juntava, em um só momento ritual, índios (pagãos) e portugueses (católicos) e dava à Igreja a centralidade necessária a esse processo que culminaria com a conformação de um Estado. Estava tudo descrito e documentado: os objetos ocidentais, o espanto indígena, a imensa cruz que se impunha à paisagem, o primeiro batismo nacional; enfim, um belo retrato desse primeiro ritual tropical e católico.

Mas nada como retornar à pintura de Vítor Meireles (um jovem e promissor pintor) e seu papel nesse processo. Demonstra Jorge Coli (1998:110) que Meireles havia partido para a Europa em 1853, em função do prêmio de viagem distribuído pela Academia de Belas-Artes. Após um período em Roma, instala-se em Paris e é ali, em 1859, que decide pintar A primeira missa no Brasil. Seu mentor no Brasil era Araújo Porto Alegre, que, seguindo o modelo de Denis, juntou atividades literárias e de artes plásticas e deu a elas um cunho nacional. Foi ele quem insistiu para que Meireles se deixasse contaminar pelo texto de Caminha: “Leia cinco vezes o Caminha que fará uma cousa digna do país.” Porto Alegre destacava, ainda, a importância de que fosse reproduzida uma natureza tropical, juntando na paisagem embaíbas, coqueiros e palmeiras.

A responsabilidade era, portanto, de monta: presentear a nação com seu “instante de nascimento” (Coli, op. cit.:111). E insistia Porto Alegre ” (…) Lê Caminha, pinta e então caminha” ou então: “Não se esqueça de por algumas embaíbas, que são formosas e enfeitam o bosque pelo caráter de plantas diversas, altas (…) Lembre-se bem das nossas árvores e troncos retos, carregados de plantas diversas, altas e com coqueiros e palmitos pelo meio, pois esses crescem à sombra dos grandes madeiros. Pouco, mas característico, mas genuinamente brasileiro” (4/05/1859) Mello, 1982.

Mas ainda segundo Coli (op. cit:112), o pintor faria mais. Basear-se-ia na tela de Horace Vernet — Première messe en Kabilie —, pintada para o Salon de 1855. Apesar de a obra desse último autor retratar um episódio recente referente à colonização francesa do norte da Africa — datado de 1853 — (e, sobretudo, de o pintor ter participado de todo o evento), alguns elementos aproximam esse cenário da cerimônia portuguesa em terras americanas, liderada por frei Henrique de Coimbra: nos dois casos, tratava-se de uma celebração de conquista em terra de infiéis, que participavam do ato. É preciso que se diga, entretanto, a favor de Meireles, que o procedimento de utilizar citações era legítimo dentro da pintura histórica. Com efeito, como vimos, o gênero era considerado hierarquicamente superior aos demais, mesmo porque englobava a todos. Era mais relevante, portanto, chegar ao tipo exemplar — à cena idealizada — do que buscar a originalidade e a novidade autoral. Nesse sentido, o quadro de Meireles deveria apresentar uma representação sacralizada da cena, já que estava em questão, nesse caso, a formação da própria nação.

É por isso mesmo que, seguindo os ensinamentos de Porto Alegre, o jovem discípulo pinta, no exterior, uma “natureza nacional”, em que um “templo natural” (Coli, 114) substitui a igreja, na medida em que a cerimônia tinha que ocorrer ao ar livre. Além disso, à semelhança do primeiro projeto de von Martius — “Como escrever a história do Brasil” (1844) —, que representava o Brasil a partir da metáfora de um grande rio, alimentado por afluentes, todos simbolizando as diferentes raças que no país conviveriam, também Meireles imprimiria ao ritual a noção de fusão e mescla de culturas convergentes. Coerente com o próprio modelo palaciano, o Brasil aparecia representado como um Império tropical, marcado pela convivência pacífica entre portugueses e selvagens.

A obra apresentada no Salon parisiense de 1861 tornou-se uma espécie “de verdade visual do episódio narrado na carta” (Coli, op. cit.:115), um ícone definitivo de um momento espiritual e harmonioso em quem se uniam povos tão diversos. Ao centro, a cruz e a igreja, mais à esquerda os índios que passivamente integram a paisagem, feita de árvores majestosas e um único morro a adornar o céu do Brasil. Modelo épico transplantado para as telas, A primeira missa ganharia uma popularidade só alcançada por outro pintor, Pedro Américo, que, em 1885, realizaria outro ícone de fundação da história brasileira; dessa feita imperial. Trata-se de Grito do Ipiranga, que celebrava a independência do Brasil e sua maioridade política.

PEDRO AMÉRICO E O GRITO DO IPIRANGA: DESSA VEZ NASCE O IMPÉRIO[23]

O debate que opunha noções como “função e forma” e grupos “realistas” (mais interessados na reprodução fiel de eventos históricos) a “idealistas” (aqueles que enfatizavam o caráter moral e ideal da pintura histórica) dividia opiniões dentro do mundo acadêmico. Como pintor do gênero histórico, Pedro Américo — que fora aluno da École des Beaux-Arts e viajava com frequência à Europa conhecia de perto essa polêmica, apesar de se posicionar a favor do gênero tradicional de pintura histórica. O artista tornara-se professor da Academia em 1865 e, desde então, mantivera uma relação de grande proximidade com o monarca D. Pedro II. Na verdade, as pinturas de Pedro Américo — e sobretudo seus quadros históricos falam muito do mecenato imperial e do papel desse gênero de pintura dentro do projeto nacional e oficial empreendido a partir do Segundo Reinado. Parte fundamental desse projeto político estético, a Academia transformou-se, com o tempo, em órgão estratégico nessa produção acelerada de símbolos monárquicos.

No interior desse panorama, o quadro Independência ou morte, terminado em 1888, pareceu representar a versão visual e “real” de nossa maturidade política e permite avançar a análise dos vínculos que se estabelecem entre o projeto acadêmico e a construção de um imaginário nacional, especialmente a partir de meados dos anos 1850. Mas a obra de Américo insere-se em um momento particular. Como procurei demonstrar em outros trabalhos, ocorre, após a Guerra do Paraguai, uma mudança evidente na iconografia oficial do Império[24]. Ao mesmo tempo em que o monarca “tira a coroa e veste a cartola”, e passa a se apresentar como “um monarca cidadão”, nas pinturas percebe-se um movimento paralelo. Em vez de centrarem-se exclusivamente na figura do soberano, os quadros descrevem cenas patrióticas, eventos e heróis da história nacional. Em comum, apenas os trópicos. Com efeito, se logo após a maioridade estabelecem-se vínculos mais imediatos entre o imperador e seu império tropical, mesclando-se símbolos e objetos rituais da casa imperial portuguesa (e por sua vez com toda a tradição real europeia) com elementos típicos da paisagem local — índios, abacaxis, folhas de café e de tabaco —, já após os anos 1870 é a cena tropical que representará a nação.

Chama a atenção, dessa maneira, como, após os anos de embate contra o Paraguai, dá-se não só uma mudança nas imagens oficiais que retratam o imperador — primeiro como um “rei guerreiro” e depois como “monarca cidadão” —, como um certo deslocamento do imaginário nacional: da figura do imperador em direção aos heróis nacionais. Em vez da figura central — símbolo de um grande império —, as cenas de batalha, ou as evocações a passagens presentes nos romances indigenistas produzidos na época, tornam-se as novas fontes evocativas da nação, ao mesmo tempo em que impõem a substituição do modelo alegórico por um modelo narrativo, organizado a partir de uma primeira ação (Mattos, s.d.b:7). À frente, não mais o nome ou o retrato do rei, mas o grande feito.

O modelo vem da pintura acadêmica francesa, não mais na tradição absoluta — que destaca o rei ao centro da alegoria — mas na iconografia associada Napoleão Bonaparte, sempre vinculado aos acontecimentos históricos que lhe eram contemporâneos. Idealista no conjunto e realista nos detalhes (Mattos, s.d.b:8), o quadro de Pedro Américo fala de um gesto de D. Pedro I mas recupera o ato de emancipação brasileira como momento heróico: ritual de iniciação de um império que então se afirmava.

O quadro, como o título diz, representa D. Pedro I levantando sua espada, bem no alto da colina do Ipiranga: ato oficial de rompimento entre Brasil e Portugal. Junto ao jovem príncipe, vemos os cavaleiros de seu séquito, que saúdam o gesto e acenam[25]. Ao longo da estrada, um caipira se detém com seu carro de boi, a fim de observar o ato histórico. Se o monarca e seu séquito (todos a cavalo e não em lombo de burro) personificam a nação em seu gesto de rompimento político, o caipira representa a figura do observador — do próprio povo —, que guarda a cena em nosso lugar: seu momento memorável e idealizado. O pobre caipira vive (real e simbolicamente) o desnível criado por Pedro Américo, que destaca D. Pedro I acima da colina, tal qual uma estátua equestre, na melhor tradição iconográfica. A composição repõe, por sua vez, a estrutura hierárquica do regime, representando o caipira o próprio povo brasileiro. O ato de bravura do monarca, por sua vez, funda a nação emancipada e uma nova ordem política e moral.

A pintura de Pedro Américo mais uma vez dialogava com outras obras do gênero. No caso, o que o artista não mencionava era que seu quadro lembrava a tela de Ernest Meissonier — 1807, Friedland — pintada em 1875. Não se sabe se Pedro Américo evitava reabrir a acusação anterior, de ter plagiado a Batalha de Montebelo de Appiani, em sua “Batalha do Aval”; o fato é que a semelhança entre os dois quadros é grande. É certo que o quadro de Meissonier refere-se à batalha vencida por Napoleão em 1807, mas em ambas as pinturas a figura central — seja D. Pedro I, seja Napoleão — é colocada no alto de um terreno, cercada por seus estados-maiores (Carvalho, 1999:12). Além disso, ladeando a cena, e em movimento circular, soldados saúdam o evento, e os cavalos — verdadeira mania de Meissonier — tomam espaço na dinâmica da representação. Por fim, nos dois casos não restam dúvidas sobre a leitura final dos pintores: “a exaltação do herói guerreiro”, que funda a nação.

Mas outro aspecto mereceu a atenção de Pedro Américo. Tratava-se de construir um imaginário particularmente brasileiro em sua forma, e o artista inclui atributos específicos a esse universo exótico tropical. A nova estrutura visual que traz referências pontuais a essa natureza particular, já presente em obras do ciclo indianista como A Primeira Missa (1860), Moema (1866) e Iracema (1881), comporta-se como “cenário” da narrativa. No caso, o artista sobrepõe sentimentos patrióticos às qualidades particulares da paisagem paulista. “Há uma dramaticidade encenada nos acidentes do terreno, que associam claramente o sítio ao acontecimento histórico representado” (Mattos, s.d.b:15), fazendo da paisagem um pretexto menor diante da grandiosidade da cena que se apresenta.

Sobre o tema, diz o próprio artista. “Para satisfazer o geral desejo de ver representado o célebre riacho do Ipiranga — o qual na realidade passaria a distância de alguns metros atrás de quem observa o primeiro plano —forcei a perspectiva pintando um simulacro de corrente aos pés dos cavaleiros do primeiro plano. Desculpe-me o público essa quase insignificante violência à topografia, considerando a necessidade de consagrar na pintura a ideia do ribeiro cujo nome tão intimamente ligou-se ao glorioso fato da nossa emancipação política”. (Cf. “O Brado do Ipiranga”.) Dessa maneira, não só os elementos típicos da nação — a vegetação, o casebre, os nativos — são selecionados, como “força-se” a natureza em nome de enaltecer o ato glorioso. Mais uma vez, natureza e história se agregam quando se trata de fundar momentos inaugurais dessa nação[26]. Percebe-se, dessa maneira, como o projeto que vincula a nação à natureza e seus naturais chega à pintura de forma coadunada com o projeto literário nativista e com a própria historiografia. Nessas obras, os indígenas passivos e idealizados, colados à paisagem tropical generosa, compõem a cena sem alterá-la fundamentalmente. Seja como peça essencial, seja como coadjuvante em um evento histórico, o fato é que a natureza aparece como sustentáculo simbólico de uma dramaticidade histórica, que se encena por meio dela.

Esse é também o exemplo de O último tamoio (1883), de Rodolfo Amoedo, e da escultura em terracota de Francisco Manuel Chaves Pinheiro, denominada Índio simbolizando a nação brasileira (1872). Negro, de origem humilde, Chaves produziu o documento mais emblemático de sua geração, ao embutir no título de sua obra a intenção do projeto indianista. Com uma postura corporal idêntica à imagem oficial produzida por Pedro Américo no mesmo ano, na tela D. Pedro na abertura da Assembleia Geral — também conhecida como Fala do Trono —, no caso, o indígena de Chaves carrega o cetro da monarquia em vez de sua arma, um escudo com o brasão real em vez de sua borduna. O cocar está na cabeça, mas é o manto do rei que cobre a “nudez natural” desse “símbolo nobre e puro de nossa origem”. Meio índio, meio nobre, meio selvagem, meio rei, a escultura de Chaves sintetiza e torna concretas representações dispersas, assim como faria Angelo Agostini, nesse mesmo ano, com a caricatura que mistura a tela e a escultura e veste D. Pedro II com os trajes do indígena criado por Manuel Chaves. Difícil dizer quem, afinal, simboliza quem. Deixemos como está.

PAISAGEM E MEMÓRIA; UMA CERTA MEMÓRIA

Simon Schama (1996) mostrou como a paisagem, antes de ser um repouso para os sentidos, é obra da mente. Afinal, a natureza não fala e demarca a si mesma, nem se nomeia. Não há olhar livre de cultura, e é preciso reconhecer que nossa percepção transformadora é que estabelece a diferença entre matéria bruta (ou natureza) e paisagem. Segundo Schama, ainda, a própria palavra landscape (paisagem) teria entrado na língua inglesa, no século XVI, procedente da Holanda. Significava tanto uma unidade de ocupação humana — uma jurisdição, na verdade — quanto qualquer coisa que pudesse ser o aprazível objeto de uma pintura (1996:20). É nesse sentido que a identidade nacional, enquanto exemplo um tanto óbvio, perderia muito de seu fascínio sem a mística de uma tradição paisagística particular: sua topografia mapeada, elaborada, enriquecida e selecionada na forma da “terra natal”.

No caso brasileiro, mais particularmente, o que se procurou demonstrar é como existe um modelo de nacionalidade que passa da literatura e da história para as pinturas. Por outro lado, a representação da natureza e da “paisagem”, que refaz uma certa memória, surge ora como elemento central, ora com o elemento acessório de uma composição. Ela permite, de toda maneira, refletir acerca da conformação de um imaginário onde a natureza passa pelo rigor acadêmico neoclassicista, que submetia até mesmo a cena paisagística a uma relação convencional e modelar. Era a “pintura histórica” que continha o “motivo nobre”, na qual a paisagem entrava apenas como fundo de composição.

Mais paradoxal é pensar como nesse Império, dotado de uma vegetação exuberante, o ensino da “paisagem” desenvolvia-se entre as quatro paredes de uma sala, com vidraças cheias de pó. A natureza virava obra de imaginação, matéria da memória realizada no interior da escola ou, ainda, nas viagens ao exterior, que a própria Academia financiava. É assim uma sociedade europeizada, em sua “conformação política e social”, e tropical/excêntrica em sua natureza, que será retratada nessa escola que, didaticamente, recria o Império com um tanto de realidade, muito idealismo e imaginação.

Tendo, portanto, a natureza como modelo distante e um formalismo indiferente à realidade brasileira, esse tipo de produção dialogou com um rigor estético produzido alhures e participou de forma destacada desse contexto onde identidade combinava com a conformação de um imaginário ao mesmo tempo particular e comum. Comum, porque a civilização deveria mesmo ser uma só e tínhamos à frente do Estado um monarca de sangue Habsburgo, Bourbon e Bragança. Particular, na medida em que o contexto era específico, e os trópicos, mesmo que idealizados, revelavam cores, gentes e uma natureza diversa. No entanto, pouco “particular” foi a produção da Academia. Distanciados dos movimentos europeus de renovação estética, nossos artistas mantiveram-se apegados às raízes acadêmicas de ensino oficial e absolutamente vinculados a uma Corte que via a arte como um recurso ilustrativo de sua existência e não como um diálogo com a realidade social ou mesmo natural.

Esse tipo de produção nacional e oficial alcançou, portanto, grande penetração, tendo o indígena como símbolo e a natureza como cenário. Os índios — dizimados nas florestas — nunca foram tão brancos, assim como o monarca e a cultura brasileira tornavam-se mais e mais tropicais. Afinal, essa era a melhor resposta para uma elite que se perguntava incessantemente sobre sua identidade e acerca de sua “verdadeira” singularidade. Diante da rejeição ao negro escravo e mesmo ao branco colonizador, o indígena restava como o único representante digno e legítimo, e a paisagem surgia no lugar de monumentos históricos inexistentes em uma nação de origem recente. Puros, bons, honestos e corajosos, os “selvagens” atuavam como nobres no exuberante cenário da selva brasileira e em total harmonia com ela.

Era Magalhães quem reconhecia que “A Pátria é uma idéa, representada pela terra em que nascemos (…) De resto, o heróe de um poema é um pretexto (…)” (353-4). Paralelamente, Pedro Américo, em seu pequeno texto sobre a pintura Independência ou morte, afirmava: “No que concerne especialmente ao estilo histórico, o mesmo não consiste na caracterização da atividade concreta e imediatez das pessoas e ações, nem no simples pavonear-se externos de um pathos convencional; tão pouco em verdades naturais individuais, ou em efeitos retratísticos trivais, quanto um esquema acadêmico rígido e meticuloso (…) ou melhor, origina-se como uma consequência lógica do sentido maior e mais geral, que as pessoas retratadas obtém enquanto representantes de uma grande ideia (…)” . Como se vê, apesar de apegados a documentos, dados e pesquisas territoriais, literatos e artistas faziam da realidade um pretexto narrativo, e da natureza um adorno que, sem precisar ser observado, surgia, sobretudo, como “uma grande ideia”, cenário ideal de uma nação que chegava à maturidade e que se afirmava como Estado sem ser nação. Nada como lembrar a popular Canção do exílio de Gonçalves Dias, poema no qual o Brasil é descrito por meio de suas aves, de suas belas palmeiras, céus e estrelas, isto é, através de uma natureza idealizada que surge no lugar das instituições políticas e sociais.

Como diz Roberto da Matta (1983), trata-se de uma visão de natureza passiva, um domínio imanente e generoso — a mãe dadivosa —, uma verdadeira mátria e não pátria, na versão de Antônio Vieira. Por outro lado, estabelece-se um elo estrutural entre a natureza e o homem; não o homem degenerado da civilização, mas o indígena adornado por um cenário tropical impecável. Junto com a visão edênica da natureza, aparece uma noção mistificada do indígena e da fusão entre raças. Basta ver, na própria carta de Caminha, ou na representação dos primeiros momentos do país, como se confunde “fundação” com “descoberta”, como se se tratasse de processo natural e sem rupturas: a descoberta abrigada por uma natureza grandiosa e naturais hospitaleiros, prontos para a civilização. É como se a terra se oferecesse aos portugueses, tal qual um processo natural, onde restam afastados os conflitos, rupturas ou a responsabilidade das instituições sociais.
A natureza surge, assim, tal qual “natureza-morta”, “dentro de uma, moldura e protegida por vidros” (da Matta, 1983:116). Trata-se de uma visão encantada de natureza, lida a partir de lentes naturalistas que estetizam o fenômeno e abrem mão de ambientes históricos e de conflitos sociais. É por isso mesmo que esses autores, apesar de tão apegados à sua imaginação, muitas vezes cedem espaço ao didatismo que confere ao romance e à pintura a credibilidade necessária. Viajantes, cronistas, historiadores, nomes como Gabriel dos Santos, Rocha Pita, Caminha, Manuel da Nóbrega saem dos compêndios e entram nas notas explicativas que acompanham o texto ou que dão base aos quadros. O índio nobre teria, sim, existido em um passado remoto e glorioso, e era ele, assim mitificado e adornado por uma paisagem que lhe era inseparável, que inspirava os dramas e quadros produzidos na Corte.

A história escorrega, assim, para a literatura e para a pintura, tendo a natureza e seus naturais como foco matricial. A afirmação da particularidade se dá pela narrativa histórica, marcada por uma natureza sem igual. Nesse caso, portanto, a idealização do modelo heróico e episódico combina com a particularidade da natureza e de seus habitantes “naturais”. Nada como uma boa seleção que esquece o momento presente para eleger um passado perdido no tempo, no qual, longe da escravidão, bons selvagens comportam-se como nobres das florestas entre nobres da civilização. Harmoniosas são as relações entre as raças, assim como receptiva e prazenteira é a natureza.

Apesar das críticas da geração realista de finais do século XIX, que viu nessa produção um gênero imaginoso e subjetivo, a representação romântica criou raízes no país. Sua popularidade talvez advenha menos do que contém de artificial e extrínseco e mais de seu processo de invenção, reelaboração e adaptação a essa realidade dos trópicos. Como um bom selvagem tropical, o indígena mitificado permitiu à jovem nação fazer as pazes com um passado honroso, enquanto uma natureza sem igual anunciava um futuro promissor. Naturais e natureza formam um elo coeso e revestem uma certa memória que se faz história; história oficial.

PARA TERMINAR: “AS REVOLUÇÕES TRAZEM SEMPRE DESPESAS”

Peça-chave na arquitetura do Império, o romantismo, enquanto gênero literário vinculado a um determinado projeto do Corte, teve sucesso, assim como a ritualística que cercavam o jovem soberano. Exemplos não faltam: a murça de penas de tucano (nas palavras de D. Pedro II, uma homenagem “aos caciques da terra”); os títulos de nobreza que garantiam os “símbolos de civilização” mas conservavam a especificidade dos trópicos nos nomes tupis; ou mesmo a fazenda Santa Cruz, que mantinha escravos negros cantores de óperas italianas. Isso para não falar do próprio termo “Império”, que, segundo os relatos, teria sido resultado de um conselho de José Bonifácio a D. Pedro I. Segundo o influente político, o conceito era apropriado não só porque o território era extenso, mas sobretudo em função “do povo conhecer o termo”. A explicação estava a léguas de distância da estrita lógica política; o povo reconheceria o nome imperador, pois estava habituado a escolher um Imperador do Divino a cada ano.

É assim que o cálculo político se utiliza da “imaginação” e da representação popular para garantir, também, sua própria legitimidade. Por meio desses exemplos, é possível perceber, por um lado, a “construção e invenção” de símbolos nacionais ou mesmo da identidade. No entanto, esses mesmos elementos não são objeto da exclusiva manipulação. Ao contrário, a eficácia simbólica não é aleatória; seu “sucesso” está ligado a uma comunidade de sentidos e à possibilidade de serem, ao mesmo tempo, inteligíveis e partilhados. Nesse processo, o imperador surge idealizado em seu “corpo duplo” — terreno e espiritual. É o fiel da balança, aquele que se impõe diante do jogo político imediato, o chefe que orquestra a conformação de novos argumentos culturais, mas surge idealizado diante de seus súditos, como se, em si próprio, simbolizasse a nação.

Se isso tudo é fato, o argumento vem em direção a um enraizamento de um certo ideário que se impunha de fora para dentro: era o Estado que imaginava a nação, ou melhor, “o grupo duro do monarca”, uma certa elite escravocrata que pensava o modelo da nacionalidade e da política como um desempenho de propriedade prévia.

Não é para menos que o jogo partidário tenha ficado retido nas mãos de poucos — do revezamento de dois partidos basicamente iguais entre si —, e o exercício do poder exposto como encenação, em que o rei figurava como ícone nacional . Para além disso, tornaram-se ainda mais evidentes as amarras do clientelismo e do personalismo, que deitariam raízes na tradição republicana que se iniciaria, de forma um pouco desavisada, em 1889. Foi o historiador Sérgio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil (1936), quem melhor estabeleceu os legados desse sistema, a força desse ideário e as repercussões políticas. “Em terra em que todo mundo é barão, não há acordo político possível” (1936:87), dizia esse pensador que refletia sobre os problemas do personalismo em nossa “breve” tradição política, marcada pela conformação de poderes localizados. “Daremos ao mundo o homem cordial”, afirmava o mesmo autor, destacando que cordialidade não queria dizer bondade, boas maneiras e civilidade. Na civilidade, dizia ele, “há qualquer coisa de coercitivo (…) é justamente o contrário de polidez. Ela pode iludir na aparência” (1936:107). Cordialidade vinha, portanto, de “cor” — coração —, ou melhor, de relações pautadas acima de tudo na afetividade e que desconhecem o formalismo. Tal argumentação implicava pensar que no Brasil tudo virava questão da intimidade. Santos aparecem no diminutivo, nomes sem sobrenome, política só entre pares — esses seriam alguns exemplos dessa “ética de fundo emotivo”, de apego aos valores da personalidade.

Por certo, estamos longe dos anos 1850 ou dos impasses vivenciados pelo Império. Até mesmo o indígena, como símbolo nacional, cedeu lugar à representação da mestiçagem que é estetizada e manipulada de forma oficial a partir dos anos 1930, transformando-se em um novo índice da nacionalidade: na cultura, nos esportes e mesmo na religião. Mas essa já é outra história. Melhor voltar a pensar aqui nas repercussões dessa política de cunho nacional, que se impunha de fora para dentro, fazendo da cultura uma extensão do personalismo do monarca.

Basta lembrar o uso inesperado do termo “imperialismo”, que, no Brasil do Segundo Reinado e até mesmo depois da República proclamada, serviu como designativo predileto para qualificar o “poder pessoal” do imperador do Brasil. O conceito nada tinha a ver com a política expansionista adotada no Prata ou com o modelo inglês de intervenção, que estariam mais de acordo com o uso moderno da palavra. No Brasil, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1977), falava-se em “imperalismo” como sinônimo de poder pessoal do imperador já durante a década de 1860-70, sendo que o significado, hoje, mais usual, só surgiria na Inglaterra dos anos 1890. O sentido local é, porém, claro e depreciativo, na medida em que designa a abusiva hipertrofia do poder do chefe de Estado.

Além disso, não se pode falar do tema sem pensar no uso do Poder Moderador, espécie de quarto poder privativo do monarca, que lhe garantia não apenas esse mando, como as atribuições de um chefe do Executivo e primeiro representante da nação. Portanto, diferente da fórmula de Thiers, segundo a qual o rei “reina e não governa”, no Brasil venceu o lema de Itaboraí, que afirmava que no país o rei “reina, governa e administra”[27].

O termo sinalizava, ainda, para a prática vigente. É no ocaso do Império que vão aparecer nitidamente as contradições de um sistema pretensamente parlamentarista, mas onde a decisão última cabia ao chefe de Estado, que em várias oportunidades as tomou de forma ostensiva. Essa era a “vontade imperial” que se consolidava, também, no velho princípio da filiação ou da unção real, que lhe garantia um “duplo corpo”, na expressão de Kantorowicz (1989). Dessa maneira, dispõe o soberano de uma espécie de poder sagrado, sobranceiro às razões humanas, e que, por si só, justifica suas decisões pessoais. Nada mais natural que, na Carta Outorgada de 1823, o chefe supremo da nação fosse solenemente declarado imperador “pela graça de Deus e unânime aclamação dos povos”. No dualismo dessa fórmula, inscrita na página inicial da Constituição, inscrevia-se a própria ambiguidade do exercício político do monarca. Nas palavras de Donoso Cortez, lente da Faculdade de Direito do Recife, o “imperador resume o Estado em sua pessoa”, é a “constituição encarnada”.

Foi justamente nas duas décadas anteriores à proclamação da República que as contradições desse sistema ancorado no imperador vieram à tona. Ao mesmo tempo, afirmava-se o princípio moderno da soberania popular e da sanção divina; um sistema nominalmente representativo e a carência verdadeira de representação; um regime de natureza aristocrática e a inexistência de aristocracias tradicionais; entre um liberalismo formal e a falta da democracia; uma carta outorgada de cunho claramente monárquico e uma constituição não escrita que pendia para o parlamentarismo. (Holanda, 1977:69.) A novidade está não na coexistência passageira, mas no fato de terem coabitado e se equilibrado por quase três quartos de século. (Holanda, 1977.)

Na própria carta constitucional, ficam evidentes as controvérsias. Segundo o artigo 102, por exemplo, o imperador “é o chefe do poder executivo e o exerce através dos seus ministros de Estado”. Já o artigo 99 declara que “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada, não se sujeitando a responsabilidade nenhuma”. Em suma, tendo o Poder Moderador em uma das mãos e sua “sagrada decisão” em outra, pode-se dizer que a vontade do povo ficava reduzida, em última instância à vontade do imperador. Era essa entidade sobranceira que se impunha ao povo e aos partidos, como dizia Couty: “Uma personalidade resume essa nação (…) tudo depende de uma vontade só e todos ficam à espera dela”. Aí estaria resumida a singularidade do modelo imperial brasileiro: uma espécie de autoridade tutelar, uma representação liberal que comportava o trabalho servil, restringia o exercício da política e era destituída de qualquer base democrática. O resultado é que as fórmulas e as palavras são as mesmas, embora o conteúdo e o significado fossem totalmente distintos. Longe da representação dos apologistas que vincularam à imagem do mecenas cultural a noção de uma “democracia coroada”, vemos um modelo político que se afirmava sob a égide do personalismo e no lugar do Estado e da própria nação.

Hora de terminar. Trata-se de pensar como, diante dos impasses de um mundo globalizado pela economia, da difusão de um modelo liberal e racional de fazer política, frente ao tão falado ano 2000 e de nossos quinhentos anos de colonização ou de descobrimento (como queiram), o Brasil e os brasileiros são mesmo realidades históricas bem mais recentes. Nos primórdios, só havia “brasílicos”, isto é, moradores luso-afro-brasileiros aqui nascidos e criados e que se distinguiam dos portugueses vindos do Reino; somente no século XVIII, quando o ouro das Minas Gerais junta tudo numa realidade só, é que o Brasil e os brasileiros aparecem no horizonte. (Alencastro, 1999.)

Não que o caráter mais ou menos jovem de uma nação explique seus modelos de identidade e de cidadania. Não se quer concluir, também, que o passado determine de forma previsível o futuro que vem por aí; mas, antes, que este é um país que repensa sempre suas origens, desconfia, refaz trajetos e se desfaz de seus modelos. No entanto, percebe-se como, em momentos selecionados, são eleitos modelos nacionais idealizados ou afirmam-se certas formas específicas e essencializadas de “ser brasileiro”. Nesse processo, os legados da tradição imperial estariam bastante preservados, na visão intimistas de fazer política, na maneira “cordial” de entender a cidadania e de desconsiderar as instituições representativas, na forma misturada em que se conforma certa cultura nacional/oficial ou na maneira insistente de solapar o universo das leis. Na visão de Roberto da Matta (1981), expostos a um mundo dividido entre “sujeitos e pessoas”, a lei seria entendida como um “castigo” exclusivamente aplicado aos primeiros.

Não se faz política pela mera imposição simbólica, mas, da mesma maneira, não se pode duvidar da eficácia política da dimensão simbólica do poder. Talvez seja por isso que no Brasil a imagem do governante esteja, ainda, tão associada à figura do pai: D. Pedro II, o pai de todos; Getúlio Vargas, pai dos pobres. Nessa complexa relação entre esferas públicas e privadas, o mais difícil é estabelecer, de fato, uma delimitação precisa. Ante o desconhecimento sistemático do modelo oficial, dessa má consciência que se instaura diante do Estado e das instituições representativas, ocorre uma releitura do privado, desfocado dessa maneira. “Política se faz em casa”, e talvez tivesse razão Sérgio Buarque de Holanda quando alertava para o perigo da adoção de modelos externos e afirmava que “no Brasil liberalismo sempre foi um mal-entendido” (1936:123).

Nada como terminar com uma boa história. Em Esaú e jacó (1908), Machado de Assis narra a trajetória de dois irmãos gêmeos — Paulo e Pedro — que teriam brigado já na barriga e assim continuariam pela vida afora. Um seria médico, outro engenheiro. Um monarquista, outro republicano. Em comum, apenas sua classe social e o amor pela mesma mulher. O enredo divide a vida desses dois irmãos, assim como a sorte daqueles para quem os regimes políticos “só atrapalham”. Custódio, que tinha uma confeitaria, foi à Rua da Constituição, onde, bem no dia da Revolução, pintava-se uma nova tabuleta para a sua tradicional confeitaria. “Só algumas das letras estavam pintadas — a palavra Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra Império estavam só debuxadas a giz. Ele gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a reforma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo. Ao acordar de manhã, não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias; viu passar um batalhão e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia: “Pare no D”. Com efeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido (…) Sempre haveria palavra que ocupasse o lugar das letras restantes” (1904/1988:138). No entanto, para desespero de Custódio, o trabalho fora terminado. Frente à necessidade de uma nova placa, Custódio procurou o conselheiro Ayres, que sugeriu que o nome passasse para Confeitaria da República. Temeram, no entanto, que em poucos meses pudesse haver nova reviravolta e mais uma vez o título do local tivesse que ser alterado. O conselheiro sugeriu, então, o nome de “Confeitaria do Governo”, que se prestava a qualquer regime. Mas depois concluíram que qualquer governo tem oposição, e que essa bem poderia quebrar a tabuleta.

Aires arriscou ainda que Custódio deixasse o título original — Confeitaria do Império — e só acrescentasse “fundada em 1860”, a fim de dirimir quaisquer dúvidas. Mas o proprietário achou que o timbre o ligaria a tudo que “é antigo”, o que naquela época de modernidade não soava muito bem. Decidiram, por fim, pelo próprio nome do dono: “Confeitaria do Custódio”. E assim terminava a complexa conversação: “Gastava alguma cousa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções trazem sempre despesas” (op. cit.:142).

Sem muitos comentários — porque neste caso são dispensáveis —, aí estaria exposta a forma distanciada como os brasileiros pensam as revoluções, as instituições e o próprio jogo político. Já nos primeiros anos de país independente, afirmou-se a primazia do Estado monárquico, enquanto símbolo da centralização, em detrimento de outras formas de participação. O modelo imperial de participação política implicou, portanto, uma concepção estreita de cidadania e frouxa das instituições representativas, cujo legado se faz presente na atual tradição republicana brasileira.

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MONTAIGNE, “Os canibais”, em Os pensadores. São Paulo, Abril, 1980.

PUNTONI, Pedro. “Gonçalves Magalhães e a historiografia do Império”, em Novos Estudos Cebrap, número 45. São Paulo, 1996.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo, Companhia das Letras,1996.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. “As teorias raciais, uma construção histórica do século XIX. O contexto brasileiro”, em Raça e diversidade. São Paulo, Edusp, 1996. Lilia Moritz. “Nem preto, nem branco; muito pelos contrário”, em História da Vida Privada no Brasil IV. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

______. Lilia Moritz. As barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo, Companhia das Letras,1988.

Notas

  1. A bibliografia sobre o tema é vasta e não parece o caso de recuar a esse contexto. No artigo “Teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. O contexto brasileiro” (1996), tive oportunidade de tratar da questão com mais vagar. 
  2. É conhecida a importância desse tipo de literatura para a produção nacional. Analisei esse tema, com mais vagar, em duas ocasiões. No ensaio “Os viajantes e a festa” (Casa de Rui Barbosa, 1999) e “0 Império das festas e as festas do Império” em As barbas do Imperador (1998). 
  3. Apesar de não se conhecerem histórias de represália ao regime brasileiro, ao menos no que tange ao processo de abertura de relações diplomáticas, a oficialização da independência brasileira, pelos Estados Unidos da América, foi morosa. Enquanto o reconhecimento das demais nações latino-americanas foi quase imediato, no caso do Brasil a oficialização tardou um ano. 
  4. Debret, por exemplo, chegou ao Brasil em 1816, logo depois da vinda da família real, com o objetivo de documentar pictograficamente a nova colônia. Anos depois seria responsável pela formação da Academia Imperial de Belas-Artes, que alterou os padrões até então dominantes e instituiu o academicismo no país. 
  5. Trata-se de uma espécie de quarto poder, de uso exclusivo do Imperador, e que lhe facultava interferir em todas as áreas da política imperial. 
  6. Para uma ideia mais pormenorizada sobre esse estabelecimento, sugiro a leitura de meu livro O espetáculo das raças (1993), em que analiso mais detalhadamente essa instituição. 
  7. Ao contrário, D. Pedro interessou-se pessoalmente pelo centro, tendo presidido um total de 506 sessões — de dezembro de 1849 até 7 de novembro de 1889 —, só se ausentando em caso de viagem. 
  8. O próprio imperador tornar-se-ia membro do Instituto francês em 1842. 
  9. Grande admirador de Magalhães, esse autor participou de um importante trabalho de reconstrução histórica sobre a Inconfidência Mineira. 
  10. Macedo é mais conhecido por seu romance de costumes A moreninha (1844), o primeiro grande êxito de público da literatura brasileira. Além de sua carreira como romancista, Macedo dedicou-se à dramaturgia, crônica e poesia. Foi também secretário do IHGB. 
  11. Varnhagen não apenas escreveu monografias baseadas em documentação primária, como localizou textos inéditos e elaborou, entre os anos de 1854 a 1857, História geral do Brasil, uma grande obra em dois volumes, na qual construiu um dos primeiros modelos para se pensar a história nacional. Ao contrário da maioria de seu grupo, Varnhagen possuía uma concepção anti-romântica do indígena, apresentando-o como selvagem, cruel, desprovido de crenças humanizadas, o que, a seu ver, justificava as ações impiedosas dos colonizadores. 
  12. Era D. Pedro II quem financiava, particularmente, projetos de pesquisa de documentos relevantes à História do Brasil, no país e no estrangeiro. D. Pedro também interessou-se pelas pesquisas de etnografia e linguística americana. Ajudou, de diferentes maneiras, o trabalho de cientistas como Martius, as pesquisas de Lund, de Gorceix, dos naturalistas Couty e Goeldi, dos geólogos O. Derby, Carlos Frederico Hartt, do botânico Glaziou, do cartógrafo Seybold, além de vários outros naturalistas que estiveram no país. Além desses, o imperador financiou profissionais de diferentes áreas, como advogados, agrônomos, arquitetos, um aviador, professores de escolas primárias e secundárias, engenheiros, farmacêuticos, médicos, militares, músicos, padres e muitos pintores. 
  13. José de Alencar, famoso autor romântico, apesar de vinculado indiretamente ao grupo, teceu sérias críticas ao livro de Magalhães, o que em muito desagradou o Imperador que sob o pseudônimo de “o outro amigo do poeta” escreveu no Jornal do Commercio artigo de apoio a Magalhães. Em carta datada de 25 de março de 1880, dizia o imperador ao Conselheiro Saraiva. “(…) já eu fiz o plano de defeza do poema (…) eu não abandono posição de defensor e elogiador (…) Talvez seja ocasião de uma pena florida escrever algumas poesias fazendo realçar as belezas da Confederação (…) não queria que o Ig (José de Alencar) se empavonasse mais descobrindo um único adversário (…) Quanto a ele, ou se entra no grupo, ou se está fora …” (Ar q. IHGB) 
  14. O título da poesia, traduzido literalmente da língua tupi, quer dizer “o que há de ser morto, o que é digno de ser morto”. 
  15. Como vimos, as críticas de Alencar à Confederação dos Tamoios tinham conseguido irritar o imperador. Usando o pseudônimo de Ig, Alencar afirmava que as índias do livro de Magalhães poderiam figurar em um romance árabe, chinês ou europeu. Também na política, Alencar se desentenderia com D. Pedro II. Eleito deputado e depois ministro da Justiça, o literato tanto se opôs à política oficial, que o monarca dessa maneira teria se referido a ele: “É teimoso esse filho de padre.” E partiu para a desforra. Embora Alencar fosse o nome mais votado, em uma lista tríplice para o Senado, o imperador vetou sua entrada, revelando dessa maneira a força de seu poder pessoal. 
  16. Os aimorés estão para a literatura como os botocudos estão para a ciência determinista da época. Representam os índios “deprimidos e degenerados”, encontrados na América. 
  17. Os Bragança possuíam uma respeitável tradição musical. D. João VI desenvolveu atividades junto à capela imperial e criou cursos de música na Fazenda Santa Cruz, para escravos cantores de música sacra. D. Pedro I era músico e compositor mediano. D. Pedro II, por sua vez, estudou piano e teoria musical e incentivou essa arte em geral. A primeira ópera escrita em português —Marília de Itamaracá — foi regida pelo maestro Gianinni no Teatro Lirico Fluminense em 1855. Prova da penetração do nacionalismo romântico nessa área é a defesa de que as óperas deveriam ser executadas em português. 
  18. Não se pode esquecer que nesse momento a pressão pelo final da escravidão tornava-se cada vez mais forte. No entanto, a despeito do contexto político adverso, o Brasil seria o último país a abolir a escravidão, fazendo-o somente em 1888, após Estados Unidos e Cuba. 
  19. Na verdade, a origem da Academia data de 1816, momento da vinda para o Brasil da Missão de artistas franceses. Em 1820, a escola é transformada, por decreto, em Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, e no final do mesmo ano passa a se chamar Academia de Artes. Em 1827, finalmente, outro decreto mudou o nome do estabelecimento para Academia Imperial de Belas-Artes. Dos fundadores, restavam apenas Debret e Montigny, assim como Felix E. Taunay e os irmãos Ferrez, que a princípio não faziam parte da Missão francesa. 
  20. Segundo especialistas, a posição da pintura de gênero sempre foi incerta às vezes aparecendo abaixo dos demais gêneros. 
  21. O imperador auxiliou um total de 24 artistas brasileiros no exterior, dentre os quais destacam-se nomes como Pedro Américo e José Ferraz de Almeida Júnior. 
  22. Essa análise do quadro de Meireles deve muito ao estudo de Coli, 1998. 
  23. A análise do quadro Grito do Ipiranga está muito pautada nas interpretações realizadas por Claudia Valladão Mattos em dois ensaios: “Algumas palavras acerca do texto O Grito do Ipiranga e de sua ligação com a tradição acadêmica” e “Independência ou morte! O quadro, a Academia e o projeto nacionalista do Império.” 
  24. Estou me referindo aqui a meu livro As barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos (1998), em que pude desenvolver esse argumento com mais cuidado. 
  25. É o próprio Pedro Américo quem descreve os personagens: Joaquim Maria da Gama Freitas Berquó, João Carlota, João de Carvalho Raposo, Francisco Gomes da Silva e, provavelmente o guarda-roupas João Maria da Gama Freitas Berquó. Depois, vinham marquês de Cantagallo, o padre Melchior Pinheiro, o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão. 
  26. São conhecidas as rivalidades entre Pedro Américo e Vítor Meireles, e as associações do primeiro com a estrutura oficial do Império. Esses vínculos levaram Pedro Américo a vivenciar situações políticas delicadas logo nos primeiros anos da República. 
  27. É importante notar que o termo “imperialismo” não era usado de forma unívoca: tanto podia indicar a hipertrofia do poder imperial, como as pessoas ou o partido que desse respaldo à ação do imperante. 

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