2009

Entre vícios e virtudes

por Adauto Novaes

“Eles admiraram coisas que quase não se admiram mais;

viram, ao vivo, verdades que estão mais ou menos mortas;

especularam, em suma, sobre valores cuja baixa ou a

ruína é tão clara, tão manifesta e tão desastrosa para suas

esperanças e

crenças quanto a baixa e a ruína dos

títulos e das moedas que antes eles tinham,

como todo o mundo, por valores inquebrantáveis.

Eles assistiram à ruína da confiança no espírito,

confiança que tinha sido

o fundamento, e, de alguma

maneira, o postulado de suas vidas.

Eles confiaram no espírito, mas que espírito, e que

entendem por esta palavra?”

Paul Valéry[1]

Em um de seus mais célebres ensaios — A política do espírito — Paul Valéry descreve o caos da civilização ocidental como sinal de uma fase crítica, que se expressa na coexistência de contradições nas nossas ideias e na inconsequência de nossos atos: “anulamos valores, dissociamos ideias, arruinamos sentimentos que pareciam inquebrantáveis por terem resistido a vinte séculos de vicissitudes e para exprimir este estado de coisas restam-nos apenas noções imemoriais.[2] Pouco depois, em outro ensaio, ele nos convida a refletir sobre o esquecimento da palavra virtude — palavra que estaria em fim de carreira e que sobrevive apenas em estado de dicionário.

Neste ensaio, Valéry declara que ela não vem mais oferecer-se como uma expressão espontânea do pensamento de uma realidade atual. A palavra virtude “não é mais um desses elementos imediatos do vocabulário vivo em nós, cuja facilidade e frequência manifestam as verdadeiras exigências de nossa sensibilidade e de nosso intelecto”.[3] Valéry conclui com a “obscura sensação” de que as virtudes não mais pertencem ao nosso tempo. Elas estão fora do tempo e, portanto, fora de nós. Diante de quadro tão pessimista, ele propõe: se a Virtude se desfaz e “morre no uso desse tempo que é o nosso e que é nosso, não deveríamos identificar-nos com este acontecimento, interrogarmos esta agonia que se passa em nós e dar-lhe toda profundidade?”.[4]

Os onze ensaios de Vida Vício Virtude aqui publicados são uma resposta. Eles põem em questão não apenas os vícios dominantes em nossa era — a intolerância, a indiferença, a intemperança, o vazio de pensamento, a passividade — mas ainda interrogam como, depois de séculos de “progresso”, em nome de tantas virtudes, pôde-se construir um mundo tão miserável, de desordem acelerada em estado quase perfeito, incoerência na sensibilidade, inconstância nas afetividades, e inconsistência na política. É como se a verdade suportasse o erro. Pior: o que o comum — os políticos em particular — designa como virtude não seria a origem dos vícios? Pensemos na Liberdade — uma dessas “detestáveis palavras que têm mais valor do que sentido”[5] — que não se reconhece mais e que, muitas vezes, só serve para receber aplausos em discursos pomposos. Ou, como Musil escreveu em O homem sem qualidades, vivemos a época de singular predileção do pensamento científico, que declara “que a famosa liberdade ética do caráter é um anexo mental da livre-troca, surgido automaticamente”.[6] Musil diz ainda que o capitalismo poderia ser considerado “a mais gigante organização do egoísmo”.[7] As ações políticas e artísticas, origem da liberdade, perdem sentido. Pensemos ainda na virtude do diálogo ou da persuasão, fundamentos da democracia. Mas, ao desconfiar de uma ideia, o poder muitas vezes recorre ao “débil poder persuasivo com o uso de um porrete”.[8]

Reconhecemos, de início, que a primeira grande derrota da virtude é o esquecimento da palavra que a expressa. Quando palavras como Sabedoria, Liberdade, Justiça, Coragem, Amizade — virtudes cardeais — são esquecidas ou perdem seu sentido original e passam a ter apenas valor fiduciário, é o próprio homem que se enfraquece com elas.

O esquecimento dessas palavras é origem de grande desordem. Uma palavra que se impõe é, muitas vezes, todo um mundo de relações que ela revela; o logos já está incorporado em cada uma delas — razão incorporada aos fenômenos sensíveis, aos meios de expressão. Quando uma palavra perde o vigor, é uma ideia que perde a vida. É isto que o filósofo Husserl nos diz no texto Lógica formal e transcendental: falar não é traduzir um pensamento em palavras, é visar a certo objeto através da fala:

A intenção de significar não está fora das palavras ou ao lado delas, mas ao falar, realizo constantemente uma fusão interior da intenção com as palavras. A intenção, por assim dizer, anima as palavras, e o resultado desta animação é que as palavras e toda fala encarnam nelas uma intenção e, uma vez encarnada, a trazem nelas como seus sentidos.[9]

Em síntese, é através do ato da fala e da palavra que encontramos a possibilidade de uma existência ideal e da comunicação entre os sujeitos. É a palavra que aclara nossa existência no mundo das ideias, da política e dos objetos culturais.

Mas, a força da palavra é tão grande que, mesmo no seu declínio, ela pode nos ensinar algo: “o próprio desuso confere a um termo moribundo uma espécie de suprema significação”.[10]

O que significa hoje o desuso ou o enfraquecimento da palavra virtude? Os ensaios de Vida Vício Virtude não pensam propriamente na morte das virtudes. Procuram antes mostrar por que as virtudes hoje se tornam suspeitas, e como os vícios desorganizam a sociedade. Além de dizer que uma época pode ser definida por aquilo que ela preza ou despreza como estilo de vida, os ensaios aqui reunidos vão além, ao buscar a origem das mutações dos valores que afetam todas as relações humanas.

O leitor vai encontrar neste livro, lado a lado, ideias e doutrinas antigas e modernas. Em momento de mutação, quando pensadores, não muitos, procuram especular sobre a moral do nosso tempo, talvez seja útil lembrar que antes houve uma doutrina que, durante séculos, orientou as ações humanas. Não se trata de voltar à moral antiga; a história não se repete, como nos lembra Marx. Mas, como nos mostra Victor Brochard em seus ensaios sobre filosofia antiga e moderna, não seria a primeira vez que o espírito moderno ganharia ao aproximar-se dos antigos e voltar, depois de longo desvio, a pontos de vista abandonados. Como já se escreveu, a filosofia pensa grego. Lembremos que foi em nome de princípios da moral antiga que se fez a Revolução Francesa.

Mas o que se entende por vício e virtude? De maneira bem simplificada, com os clássicos, pode-se dizer que o vício é uma disposição para o mal, assim como, em contrapartida, a virtude é uma disposição para o bem.

O pensamento clássico nos ensina que virtude é a “excelência” da parte irracional da alma, que pode, através do exercício e do hábito, ser sensível à razão: se nos aplicamos a fazer atos de justiça, de moderação, de coragem, tornamo-nos justos, sóbrios, corajosos. Seremos chamados igualmente “virtuosos” ou “viciosos”, escreve o filósofo Léon Robin, em seu ensaio A moral antiga, “conforme a qualidade habitual dos nossos atos singulares, quer nas relações com nossos semelhantes, quer na nossa atitude relativa aos nossos desejos e paixões”.[11] Em síntese, a educação e a legislação, enquanto formam hábitos, “têm uma parte considerável na aquisição da virtude”.[12]

Como se deu a passagem ou a substituição das concepções puramente racionais dos gregos pela moral que, mesmo laica, ainda guarda um sentido religioso dominante no mundo moderno em muitos de seus fundamentos? Para Brochard, ela resulta de uma inovação, nos primeiros anos do século XIX — obra da Escola Eclética, combinação de elementos da moral kantiana com elementos antigos —, que resultou nas ideias de obrigação e de dever.

Os antigos pensavam a ética com os ideais de liberdade, justiça e felicidade. Seria, então, possível a fusão do antigo e do moderno, quando sabemos que a virtude é definida de maneira inteiramente diferente, isto é, o reino do dever, da obrigação e da responsabilidade? Do ponto de vista moderno virtude é o hábito de obedecer a uma lei claramente definida e de origem suprassensível; do ponto de vista antigo, ela é a posse de uma qualidade natural. Brochard dá dois exemplos: conceitos morais que nos são familiares não figuram nas morais da Antiguidade: “Os gregos discutem as ideias de erro e falta. Mas não há lugar para o ‘pecado’ no sentido muito particular que damos ao termo; entendo por ele uma infração consciente a uma lei interior.[13] E sobre a liberdade: “Quando (os gregos) se esforçam em provar que o homem é livre, eles não procuram mostrar que as ações emanam dele, e que ele deve sofrer as consequências, boas ou más, destas ações. Sua preocupação é mostrar, antes de tudo, como o homem pode livrar-se da fatalidade exterior, realizar o supremo bem, isto é, chegar à vida feliz”.[14]

Sabe-se, entretanto, que o advento do cristianismo na civilização ocidental fez triunfar as ideias de uma moral fundada no dever e na crença, que, de religiosos, transformaram-se em poderosos conceitos políticos. Alain, com a ironia dos seus Propos, faz excelente síntese sobre o uso das boas virtudes:

Há um diálogo de Platão, bem curto e muito fácil de ler, o Euthyphron. Sócrates pergunta se o Bem é aquilo que agrada aos deuses. Isso tem enorme consequência. Se o Bem é aquilo que agrada aos deuses, é preciso consultar os deuses e seguir as regras dadas por eles com a ajuda de padres e profetas. Ora, os deuses são normalmente muito bons diabos. Conheci uma pessoa muito rica, muito católica, que dizia: “Deus encarregou-me de gerar uma parte da fortuna dos pobres; devo antes pagar salários do que dar esmolas, porque está escrito: ganharás o pão com o suor do rosto. Meu trabalho é organizar o trabalho”. Partindo disso, esta pessoa construía para si mesma uma bela casa para que os operários pudessem ganhar o paraíso… mas eis a verdadeira questão: não saber se os deuses me aprovam, ou se as pessoas me aprovam, mas se eu me aprovo a mim mesmo.[15]

A lição de Alain nos lembra Nietzsche: voltar-se contra os valores habituais e os hábitos valorizados. Este princípio ético, generalizado, escreve Édouard Gaède em seu ensaio Nietzsche et Valéry, “esta espécie de contra-educação aplica-se a qualquer hábito porque todo hábito, tendendo a solidificar, cria obstáculos à mobilidade essencial do espírito.[16] É certo que esta reversão herética pode desagradar os moralistas, mas é preciso reconhecer que as virtudes ocidentais produziram muitos vícios agradáveis aos espíritos medianos. O que Main propõe é concentrar todas as virtudes no próprio homem, não em conceitos abstratos ou instituições, muito menos polemizar com esta ou aquela doutrina moral. É preciso extirpar os hábitos de obediência instalados no mais profundo de nós mesmos, escreve Nietzsche:

Todo hábito urde em torno de nós uma rede cada vez mais sólida com fios de aranha: percebemos de imediato que os fios se tornaram lagos e que ficamos no meio, como uma aranha que se prendeu e que deve nutrir-se do próprio sangue. Eis por que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, tudo o que dura e se torna definitivo, e assim ele destrói, com dor, a rede que se constrói sempre de novo em torno de si; ainda que deva sofrer por causa das muitas feridas, pequenas e grandes, uma vez que é dele mesmo, de seu corpo, de sua alma que ele deve arrancar estes fios.[17]

O espírito livre repudia todas as crenças e deveres, exceto a fé na liberdade e no trabalho paciente do pensamento. Eis, portanto, o maior dos vícios: a tendência contemporânea a um modo de vida cada vez mais superficial, que põe em baixa as virtudes intelectuais. Isso porque, no mundo veloz e volátil, tudo é regido pelo aqui e agora, máxima que determina nossos comportamentos em todas as coisas. O tempo é abolido. A ideia de duração, que está em declínio, é definida como aquela que garante a existência de todos os outros valores humanos: “Está aberta a era do provisório:” — conclui Paul Valéry — “não se pode mais amadurecer nela estes objetos de contemplação que a alma encontra inesgotáveis e dos quais ela se pode nutrir indefinidamente. O tempo de uma surpresa é nossa presente unidade de tempo”.[18] O hábito, ao destruir a possibilidade de invenção permanente, submete-nos ao dever e à obediência, que aceitamos de maneira involuntária.

Tanto na ética cristã quanto nos preceitos políticos, se as ordens forem observadas ou transgredidas, um ato poderá ser recompensado ou punido. O dever, assim entendido, escreve Brochard, repousa sobre um contrato: “é uma dívida, e este é o sentido verdadeiro e original da palavra dever”.[19] Paul Valéry acrescenta às ideias de dever e crença, essenciais para o funcionamento da política, a ideia de fidúcia. Para ele, toda estrutura social é fundada sobre a crença ou sobre a confiança e todo poder se estabelece sobre propriedades psicológicas:

Pode-se dizer que o mundo social, o mundo jurídico, o mundo político são essencialmente mundos míticos, isto é, mundos nos quais as leis, as bases, as relações que os constituem não são dados, propostos pela observação das coisas, por uma constatação, por uma percepção direta; mas, ao contrário, recebem de nós sua existência, sua força, sua ação de impulsão e de retenção; tanto esta existência quanto esta ação são tanto mais potentes quanto ignoramos que elas vêm de nós, de nosso espírito.[20]

A crença exige de nós o esquecimento da verdadeira natureza das coisas. Mas não é um esquecimento vazio: ele é cheio de “valores” que nada têm a ver com a própria coisa. Com ela há sempre uma ilusão de presença; ela é, portanto, arbitrária e imaginária. É isso que dá, por exemplo, ao tirano a sua força e ao mesmo tempo o temor de reconhecer sua verdadeira potência. “Não se deve acreditar — porque não se deve dar às afirmações feitas ou que nos são propostas outros valores que os próprios. A nota do banco. Moeda fiduciária. […] Acreditar = dar mais do que receber — Receber palavras, retribuir em atos. […] Que o homem possa “afirmar” sem “saber” — ver sem ter visto —, fiar-se em um resto que contradiz o que ele vê — não sujeitar-se ao valor atual de seu conhecimento… É uma propriedade que lhe permite construir tanto uma ciência quanto uma religião”.[21]

Talvez devêssemos aceitar com atenção algumas das mutações por que passa a civilização ocidental e cristã: é que grande parte de suas lições morais não valeu mais do que as lições de teologia.

Eis as questões: para onde vão as virtudes e os valores no mundo dominado pela tecnociência, ou seja, em um mundo construído sobre as ideias de crença e fidúcia?

É certo que o uso abstrato de algumas dessas palavras em discursos oficiais, “instrumentos de uma guerra civil permanente”[22] só fez degradar o seu sentido e esvaziar o pensamento contido nelas.

Se usarmos, para as grandes transformações, a metáfora marítima proposta por Paul Valéry, podemos dizer que navegamos em mares inteiramente novos onde os velhos instrumentos de navegação se tornaram obsoletos. Que novos sentidos dar às velhas virtudes? Existe hoje uma assimetria, um descompasso, entre as condições de produção material e técnica e seus equivalentes em valores espirituais e mentais — entendendo por valores espirituais o trabalho do espírito e sua “potência de transformação”. Isso quer dizer que, em determinados momentos da história, pode haver acontecimentos sem conteúdo, pesadelos de uma realidade que não constrói vínculos com o pensamento, com os valores e com as virtudes. Ora, sabemos que as teorias políticas, estéticas, morais, não podem submeter-se aos acontecimentos imediatos sem o risco de uma prática cega. Os vínculos entre virtude e razão podem ser definidos, pois, como trabalho do pensamento e da sensibilidade ética. Enfim, como escreveu o filósofo Maurice Merleau-Ponty, “só resta à nossa filosofia fazer a prospecção do mundo atual”.[23]Hoje, portanto, falar de virtude é quase tão difícil e problemático quanto falar de vícios, porque muitas das reflexões são cercadas de condicionamentos. Dois deles são evidentes: o sociologismo, que insiste em afirmar que vícios e virtudes são expressão apenas de uma situação social — a vida do homem não seria senão o resultado das condições externas agindo sobre ele —, e o idealismo, que atribui tudo a efeitos de uma vida interior, sem nenhum contato com a experiência contingente. O resultado destes dois erros está na conduta política irracional e sem critérios. Sigamos Merleau-Ponty, quando analisa o método proposto por Husserl para superar esta dicotomia:

reafirmar a racionalidade ao nível da experiência, sem nada sacrificar das variedades que pode comportar esta experiência e tendo por verdadeiros todos os condicionamentos dos quais a psicologia, a sociologia e a história podem nos falar. Trata-se de descobrir um método que permita pensar ao mesmo tempo a exterioridade que é o princípio mesmo das ciências do homem e a interioridade que é condição da filosofia, as contingências sem as quais não existe situação e a certeza racional sem a qual não existe saber.[24]

Ou seja, o homem que pensa deve superar o dualismo ou certo automatismo expresso na síntese de Valéry: Tantôt je pense et tantôt je suis. O que Valéry quer dizer é que, quando o homem moral se torna atento ao que o mundo político descreve, este mesmo homem não é apenas parte do mundo, mas também portador de uma reflexão sobre o mundo: em um processo de entrelaçamento, ele não existe no mundo apenas, mas também pensa o mundo. É a passagem ou transformação do “condicionamento sofrido em condicionamento consciente[…] um mundo transformado pelo espírito não oferece mais ao espírito as mesmas perspectivas e as mesmas direções de antes; ele lhe impõe problemas inteiramente novos, inúmeros enigmas”.[25]

Lemos em alguns teóricos e pensadores da filosofia política que vivemos um momento de mutação dos valores — momento de transformação radical daquilo que dá sentido a nossas ações e às nossas vidas. Muitos deles atribuem tais mutações à revolução tecnocientífica, que produz uma “materialidade sem alma”, “um mundo sem espírito”, uma “desvalorização dos valores supremos”: tudo — inclusive o ser — é reduzido a um único valor: o valor de troca. Tudo metodicamente calculado, tudo uma eficiente administração das coisas e das pessoas. Em um mundo dominado pela especulação, nossa ideia de valores morais e estéticos escreve o poeta e ensaísta Paul Valery — tende a reduzir-se ao modelo do valor da Bolsa: flutua em um vasto mercado. Até mesmo o “valor espírito”, diz ele, não é diferente do valor “trigo” ou do valor “ouro”. Essa indiferença em relação aos valores e virtudes cardeais torna o homem incapaz de orientar suas ações. Daí a retomada das interrogações postas pelo Iluminismo: “Onde estamos?”, “Para onde vamos?”.

Em um ensaio — “Nas trevas desta época: Wittgenstein & o mundo contemporâneo” —, o filósofo Jacques Bouveresse escreve, acerca de Musil, ter este constatado serem as virtudes que tornaram possíveis as grandes descobertas científicas do mesmo gênero que os vícios, aos quais se atribui geralmente o sucesso dos homens de guerra, dos caçadores e dos mercadores:

Antes que os intelectuais descobrissem a volúpia dos fatos, apenas os guerreiros, os caçadores e os comerciantes, isto é, naturezas artificiais enganosas e violentas, a haviam conhecido. Na luta pela vida, não há lugar para o sentimentalismo do pensamento, apenas o desejo de suprimir o adversário da maneira mais rápida e mais eficaz; todo o mundo é positivista.[26]

O espírito dos fatos, como o denomina Musil, continua Bouveresse,

fez triunfar, no domínio do intelecto como em todos os outros aspectos da existência, um tipo de homem cujas qualidades dominantes são a habilidade, o engano, a tenacidade, a ausência de escrúpulo e de inibição, a desconfiança em relação a qualquer espécie de idealismo, a coragem de destruir tanto quanto de empreender, a arte de esperar e tirar partido das mínimas circunstâncias.[27]

Mais adiante, Bouveresse escreve:

Kraus estima que a crença romântica nas virtudes do progresso científico e técnico é feita de pessoas que julgam a situação atual através de conceitos que há muito cessaram de se aplicar e que falam dela com uma linguagem completamente ultrapassada, esquecendo que um processo que se tornou completamente autônomo e cego e que se faz no essencial sem o homem e mesmo, em certos casos, contra ele, não deveria suscitar nenhuma exaltação romântica. O progresso de uma parte e a moral convencional de outra parecem ter feito hoje uma aliança ofensiva contra a natureza em geral e contra a natureza humana em particular: O progresso […] inventou a moral e a máquina para expulsar da natureza e do homem a natureza, e se sente ao abrigo em uma construção do mundo cuja histeria e conforto mantêm a consistência. O progresso celebra vitórias de Pirro sobre a natureza. O progresso faz bolsas com pele humana.[28]

Enfim, que virtudes estão vinculadas à ideia de progresso? Sabemos que disciplina, organização, eficácia e, principalmente, administração metódica da vida, tudo isso como condição da existência do progresso técnico, produziram fenômenos extraordinários. Paul Valéry foi um dos primeiros pensadores a falar do naufrágio de “imensos navios carregados de riquezas e de espírito”,[29] impérios que iam a pique não só com seus homens e engenhos mas também com seus valores. Ao descrever a morte das civilizações e ao anunciar o surgimento do que ele definiu como “uma conquista metódica” dos alemães antes da Primeira Guerra, Valéry mostrou que as virtudes não mais se reconheciam neste novo mundo. Ele dizia que se deveria temer o que iria nascer: nenhum espírito sagaz poderia escapar a “essa impressão de trevas”. As virtudes clássicas passavam por uma mutação radical. Mais ainda: invertiam o seu papel. Valéry conclui que as grandes virtudes da Alemanha foram mais eficientes em produzir males do que o ócio foi capaz de criar vícios. A Alemanha era apenas um exemplo do que se transformaria a Europa:

Vimos, com nossos olhos, o trabalho consciente, a mais sólida instrução, a disciplina e aplicação mais sérias adaptadas a espantosos desígnios. Tantos horrores não seriam possíveis sem tantas virtudes. Sem dúvida, muita ciência foi necessária para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo; mas não foram menos necessárias qualidades morais. Saber e dever, sois, portanto, suspeitos?[30]

Pensemos na difusão deste exemplo, seguido por impérios da Europa e dos Estados Unidos antes e depois das duas grandes guerras. Diante das “virtudes” da ciência e da técnica, que foram capazes de criar um mundo administrado racionalmente, o primeiro e verdadeiro inimigo foi o acaso. Isto é, a errância do Espírito, esta potência de transformação, que leva incessantemente o homem a opor-se “ao que existe pelo cuidado daquilo que não existe”,[31] e que impõe à realidade “alterações crescentes que a aproximam de seus sonhos”.[32] Tudo, a partir de agora, passa a ser planejado cientificamente, até mesmo os sonhos. As ações dos homens passam a ser realizadas racionalmente, cegamente.

Pode-se dizer que estamos entre dois mundos. Temos o sentimento de pertencer a uma “geração de passagem”, confluência de dois rios, como escreveu Chateaubriand, na qual mergulhamos “em águas turvas, distanciando com pesar do velho ribeirinho onde havia nascido e nadando com esperança em direção ao desconhecido onde vão aportar as novas gerações”.[33]

O século XXI nasce sob o signo da derrota dos projetos políticos revolucionários de emancipação e de um silêncio provisório da “aposta de refundação” filosófica, espiritual, ideológica ou política, ao se ver cercado de tragédias e guerras sem que valores e virtudes se contraponham à barbárie. Como podemos ler no Rapport sur le prix de la vertu,

toda política e toda moral fundam-se, em definitivo, sobre a ideia que o homem tem do homem e de seu destino. Desde muitos séculos, a humanidade ocidental não cessou de perseguir a edificação da personalidade. Lentamente, laboriosamente, e muitas vezes dolorosamente, o valor civil, político, jurídico e metafísico do indivíduo foi criado e finalmente levado a uma espécie de absoluto que designaram as noções tornadas banais e desacreditadas de liberdade e igualdade.[34]

Vivemos um paradoxo: é exatamente no contexto da mundialização que virtudes e valores tendem a perder a sua universalidade. Talvez seja correta a hipótese de oposição entre mundial e universal. O pior é que a ideia da relatividade destes valores e virtudes demonstrou que não tem força para enfrentar os problemas postos hoje a todas as áreas da atividade: política, estética, sensibilidade, mentalidade, costumes, etc. Em síntese, vivemos um momento que o filósofo Bernard Stiegler define como terceira revolução industrial, no qual a cultura, ou melhor, “o controle da cultura tornou-se o coração do desenvolvimento mas isso ao preço de um tornar-se gregário que é também um tornar-se inculto generalizado, que só pode resultar em uma descrença e um descrédito da política”.[35] Trata-se de reconstruir uma economia libidinal (uma filia), conclui Stiegler, “sem a qual não há cidade, democracia, economia industrial, nem economia espiritual possíveis”.[36]

Eis a questão: não se trata de saber se Deus me aprova (se sou cristão), se, como cidadão, a República me aprova, se os outros me aprovam, mas sim se eu me aprovo. Alain escreve: vejo apenas uma virtude no mundo, escutar-se a si mesmo. Certamente Alain queria dizer: governemos nossa vida. A vida perde sentido humano se negamos essa responsabilidade.

Notas

[1] Paul Valéry, “La politique de l’esprit”, em Œuvres I, Col. Bibliothèque de la Pléiade (Paris: Gallimard, 1957).

[2] Ibid., p. 1018.

[3] Paul Valéry, “Rapport sur le prix de la vertu”.

[4] Ibid., p. 941.

[5] Paul Valéry, “Regards sur le monde actuel et autres essais” em Œuvres II, Col. Bibibliothèques de la Pléiade (Paris Gallimard, 1957).

[6] Robert Musil, O homem sem qualidades, trad. Lya Luft & Carlos Abbenseth (Rio de Janeiro: Nova Fronteita, 2006), p. 332.

[7] Robert Musil, Essais: conferences, critiques, aforisme et reflexions (Paris: seuil, 1984), p. 371.

[8] Citação feita por Maurice Merleau-Ponty en Sciences de l’hommme et la phénoménologie, nos Cours de la Sorbonne, Centre de Docummentation Universitaire.

[9] Edmund Husserl, Lógica formal e transcendental, apud Maurice Merleau-Ponty, Les sciences de l’hommme et la phénomenologie, cit.

[10] Paul Valéry, “Rapport sur le prix de la vertu”, em Œuvres,

[11] Léon Robin, La morale antique (Paris, PUF, 1947).

[12] Ibidem.

[13] Victor Brochard,”La morale ancienne et la morale moderne”, em Études de la philosophie ancienne et de la philosophie moderne (Paris: Vrin, 1974), p. 493.

[14] Ibid., p. 494.

[15] Alain, Propos II, Col. Bibliothéque de la Pléiade (Paris, Gallimard, 1957), p. 122.

[16] Edouard Gaède, Nietzsche et Valéry – Essai sur la comédie de l‘esprit (Paris: Gallimard, 1962), p. 114.

[17] Ibidem.

[18] Paul Valéry, “La politique de l’esprit”, cit., p. 1025.

[19] Victor Brochard, “La morale ancienne et la morale moderne”, cit., p. 497.

[20] Paul Valéry, “La politique de l’esprit”, cit., p. 1033.

[21] Paul Valéry, Cahiers II, COL, Bibliothéque de la Pléiade (Paris: Gallimard, 1974), p. 590.

[22] Paul Valéry, “Rapport sur les prix de la vertu”, cit., p. 941.

[23] Maurice Merleau-Ponty, Les sciences de l’homme et la phénomenologie, cit.

[24] Ibidem.

[25] Paul Valéry, “La politique de l’esprit”, cit., p. 1040.

[26] Citado por Jacque Bouveresse, Essais I: Wittgenstein, la modernité, le progrés et le déclin (Marselha: Agone, 2000), p. 56.

[27] Ibidem.

[28] Ibid., p. 79.

[29] Paul Valéry, “La politique de l’esprit”, cit., p. 1016.

[30] Paul Valéry, “La crise de l’esprit, première lettre”, em Œuvres I, cit., p. 989.

[31] Paul Valéry, “Petite lettre sur les mythes”, em Œuvres I, cit., p. 966.

[32] Obid., p. 967.

[33] François-René de Chateaubriand, Memoire d’outre tombe, Col. Bibliothèque de la Pléiade (Paris: Gallimard, 2003).

[34] Paul Valéry, “Rapport sur les prix de la vertu”, cit., pp. 947-948.

[35] Bernard Stiegler, Mécreance et discrédit, I: la décadence des démocraties industrielles (Paris: Galilée, 2004), p. 38.

[36] Ibidem.