1990

Entre o alvo e o objeto do desejo: Marcuse, crítico de Freud

por Bento Prado Jr.

Resumo

Utilizar a ideia de desejo (ou suas metamorfoses) como fio condutor da reconstrução, tanto da história da metafísica quanto da história da sociedade: – eis a tarefa inesperada e sedutora em que se empenhou, em mais de um texto, o filósofo Herbert Marcuse.

A arqueologia marcusiana das relações entre Eros e Logos, dos pré-socráticos a Freud,  permite ao filósofo uma reconstrucão da teoria psicanalítica, que culmina numa brilhante crítica dos vários revisionisnnos “culturalistas”, que amputaram a mais fina ponta crítica do pensamento de Freud. Mas essa reconstrução da arqueologia do conceito de desejo, sobre o fundo da reativação dos racionalismos clássico e dialético, não implica um retorno a um pensamento essencialmente pré-freudiano? Ao superpormos, como faz Marcuse, “Ziel” e “Objekt” de pulsão, não seremos, de fato, obrigados a perder a inquietante descoberta freudiana do “obscuro objeto do desejo”?


A Gérard Lebrun

Or ti puote apparer quant’è nascosa

La veritate alia gente ch ‘avvera

ciascun amore in se laudabil cosa,

peró che forse appar la sua matera

sempre esser buona; ma non sciascun segno

è buono , ancor che buona sia la cera.

Dante, Purgatório ,XVIII, 34-9.

É preciso buscar mais longe o princípio justíficador do hedonismo: na sua concepção abstrata do aspecto subjetivo da felicidade, na sua incapacidade de distinguir entre as verdadeiras e as falsas necessidades, entre o verdadeiro e o falso gozo.

Marcuse, Contribuição à crítica do hedonismo.

Editado no Brasil já em 1968, Eros e civilização, de Marcuse, não carece de apresentação. Ao tomar esse livro (bem como outros escritos de Marcuse, em especial sua Contribuição à crítica do hedonismo[1] de 1938)como objeto de comentário, não pretendo, portanto, apenas resumir caricaturalmente os termos de sua “crítica filosófica do pensamento de Freud”, como indica o subtítulo e cuja exposição exigiria um tempo bem maior que o de uma conferência. O que me interessa é desenterrar, se possível, as bases, nem sempre explícitas, a partir das quais Marcuse pode, ao mesmo tempo, contestar teses básicas de Freud, marcando os limites da Metapsicologia, e reivindicar fidelidade ao mais estrito “freudismo”, como faz no epilogo de seu livro, no qual fustiga, com brio incomparável, os desvios revisionistas dos neofreudianos. Minha hipótese — para indicar desde já o caminho que vou propor — é a seguinte: só podemos compreender a crítica que Marcuse endereça a Freud, bem como sua paradoxal ”ortodoxia”, se compreendermos as metamorfoses que sofre a idéia de desejo, na passagem do campo freudiano para o campo da dialética, em que Marcuse procura re-ins talá-la. Tampouco é meu — é óbvio — o propósito de “criticar” a crítica de Marcuse, em nome do espírito ou da letra do pensamento de Freud: para optar por uma ou por outra direção é necessário verificar se compreendemos como, por quê, a partir de que ponto crítico, eles divergem.

I

Para bem situar, no entanto, minha pergunta, é preciso, na circunstância desta conferência, dar pelo menos uma indicação breve do conteúdo da crítica de Marcuse ao pensamento de Freud. Grosso modo, podemos dizer que se refere ao estatuto atribuído pela Metapsicologia ao princípio de realidade. Desde logo, é preciso dizer que Marcuse está longe de partilhar o preconceito que alguns marxistas nutrem em relação à psicanálise. Pelo contrário, a psicanálise lhe aparece como uma psicologia social e histórica que refaz, em seu nível, a arqueologia da repressão e da alienação e complementa, assim, o movimento da Teoria Crítica. Com efeito, a estrutura do aparelho psíquico e o destino da psique individual são definidos como o resultado de um longo processo que é indissoluvelmente biológico e social. A história natural da vida e a história social das instituições são os dois fios com que Freud alinhava a oposição básica entre prazer e realidade que subtende todo o edifício do aparelho psíquico. Tal gênese (tanto da humanidade como de cada indivíduo) é marcada pela sucessão de acontecimentos cruciais (como na gênese ideal através da qual Rousseau reconstitui o advento da desigualdade). Cada um desses acontecimentos reitera, à sua maneira, o trauma da substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade. No nível da gênese da espécie, o trauma ocorre na horda primitiva, “quando o pai primordial monopoliza o poder e o prazer, e impõe a renúncia por parte dos filhos”. No nível do indivíduo, a experiência repete-se sempre no início da infância, quando os adultos opõem à criança a dura lei da realidade. Diz Marcuse:

Mas, tanto no nível genérico como no individual, a submissão é continuamente reproduzida. Ao domínio do pai primordial segue-se, após a primeira rebelião, o domínio dos filhos, e o clã fraternal desenvolve-se para dar origem a um domínio social e politico institucional. O princípio de realidade materializa-se num sistema de instituições. E o indivíduo, evoluindo dentro de tal sistema, aprende que os requisitos do princípio de realidade são os da lei e da ordem, e transmite-os à geração seguinte.[2]

O que interessa a Marcuse, ao termo dessa genealogia biossocial do aparelho psíquico, são suas consequências para a análise da Civilização presente. Desde logo, a ótica instaurada por Freud, como antes dela a de Nietzsche, mostra o processo civilizatório como um formidável processo de repressão e destruição — a civilização parece indissociável de um forte coeficiente de barbárie. O que há de mais alto na Civilização só parece poder vir ao ser graças ao sacrifício da felicidade e à mutilação da vida, numa palavra: o espírito se constitui sobre os escombros da vida. Quem não se lembraria da frase de Hegel: “A doença do animal é o vir-a-ser do Espírito”? É compreensível, portanto, que Marcuse leia a narrativa freudiana segundo o ritmo dialético da alienação, desencadeada pela contradição entre os princípios do prazer e de realidade. Mas é esse alinhamento dialético da contradição que obriga Marcuse a colocar em novos termos os dois princípios, tornando possível a reconciliação dos adversários. O trabalho pacificador da dialética e a ideia de uma civilização não-repressiva que tal trabalho promove não ferem, segundo Marcuse, a vocação mais profunda do pensamento de Freud. Tudo se passa, ao contrário, como se apenas houvesse faltado a Freud um pequeno impulso para dar por si mesmo esse passo final, a que o convidava todo o seu itinerário anterior, ou seja, para formular a hipótese de um “novo” princípio de realidade. Um princípio de realidade novo, já que tornado possível pelo desenvolvimento social criado às custas do império do princípio de rendimento, da repressão e da mais-repressão. Como a teoria freudiana dos instintos é essencialmente uma teoria histórica não há nenhuma impossibilidade lógica para esse desdobramento teórico. Diz Marcuse:

O princípio de rendimento [ou seja, o “atual” princípio de realidade] impõe uma organização repressiva e integrada da sexualidade e do instinto de destruição. Portanto, se o processo histórico propender para tornar obsoletas as instituições do princípio de rendimento, tenderá também para tornar obsoleta a organização dos instintos — isto é, para libertar os instintos das restrições e desvios requeridos pelo princípio de rendimento. Isso implicaria a possibilidade real de uma eliminação gradual da mais-repressão, pelo que uma crescente área de destrutividade poderia ser então absorvida ou neutralizada pela libido assim fortalecida.[3]

Numa palavra: as forças de produção permitem objetivamente uma organização não-repressiva da sociedade e do trabalho, limitando a esfera da Anankê, abrindo o espaço de uma calma erotização da vida social.

Para encerrar este resumo, recorramos, num ato de violência filológica, a um belo texto de Platão, retirado do Górgias (508a): “Filósofos dizem-nos, Cálicles, que a comunidade e a amizade, a ordem, a temperança e a justiça dão coesão ao céu e à terra, aos deuses e aos homens, e que este universo é assim chamado Cosmos ou ordem, não desordem ou irregularidade”. A frase de Platão, é claro, é “conservadora”, já que fixa a ordem social como consubstancial à Ràzão. Mas, por outro lado, ela aparece como responsável pela própria ordem do Cosmos. O que permite imaginar uma leitura não-platônica, que sublinharia o caráter demiúrgico do social, que lhe permite dar coesão e substancialidade à oposição entre o celeste e o terrestre, o humano e o divino. Com efeito é, para Marcuse, a sociedade da dominação e da opressão que dá coesão à dinâmica instintual, na forma da contradição entre realidade e prazer. Outra forma de sociabilidade poderia instituir uma “coesão” diferente da vida instintiva, reunificando os princípios opostos, reunindo numa só dimensão o celeste e o terrestre, o divino e o humano!

II

Ao cabo deste grosseiro resumo, aparentemente, minha pergunta já parece estar respondida: mantendo as teses básicas da Metapsicologia freudiana, Marcuse nada mais faz que apontar para um poder-ser implícito na sociedade moderna, de cuja ignorância (e só dela) nasce o “pessimismo” freudiano. A diferença entre Marcuse e Freud estaria apenas no grau de plasticidade ou de historicidade que cada um atribui ao instinto. Se Marcuse pode ser, ao mesmo tempo, crítico e ortodoxo, é talvez porque assim vê sua relação com a filosofia da psicanálise. No entanto, é aqui, se tenho razão ao formular minha hipótese, e somente aqui, que o problema pode ser formulado. E só poderá sê-lo num horizonte propriamente “filosófico”, tal: como o desdobram o Intermezzo filosófico de Eros e civilização e o texto mais antigo da Contribuição à crítica do hedonismo.

Mas que lugar “propriamente” filosófico é esse onde se desenrola a crítica de Marcuse a Freud? No Intermezzo — que constitui, na verdade, o coração do livro — a Metapsicologia freudiana é situada dentro da história da Metafísica ocidental, como ponto crucial de uma de suas linhas básicas. A ideia de situar a Metapsicologia dentro da história da filosofia não é, por si mesma, estranha — ao formar a palavra, Freud certamente tinha em mente sua quase irmã: metafísica e metapsicologia manifestam um inconfundível ar de família. Parentesco obviamente claro para Freud, por mais de uma razão. Como exame — à distância do material empírico-clínico trabalhado pela psicanálise — dos conceitos básicos de que esta se serve, a Metapsicologia é, essencialmente, filosofia da psicologia. Mais ainda, comprimida entre uma medicina e uma filosofia que resistem em reconhecê-la como atividade de conhecimento, é nela que a psicanálise vai buscar seus amparos teóricos.

Mas não é nesse registro quase puramente “epistemológico” que Marcuse faz, da obra de Freud, um capítulo da filosofia ocidental. Ele o faz numa outra direção, que não está ausente no próprio Freud, quando este reivindica — contra os filósofos renitentes ou resistentes, que recusam abrir mão da identidade entre psíquico e consciente — sua ilustre ascendência filosófica: Empédocles, Platão, Schopenhauer, Nietzsche. Marcuse cuida menos de epistemologia (tal como transparece, por exemplo, em Pulsões e destinos de pulsões, texto importante para nós e ao qual logo voltaremos) que de ontologia: a Metapsicologia entendida como tese do Eros como essência do Ser. É essa ênfase no eixo ontológico da filosofia ocidental (e não no seu eixo epistemológico, inteiramente negligenciado por Marcuse) que me levou a ler e a comentar erradamente, em julho de 1968 (na Maria Antônia ocupada), esse mesmo capítulo de Eros e civilização. Como Marcuse fora discípulo de Heidegger, e como sua linguagem revela algumas vezes a antiga marca, como retoma, à sua maneira, a tese bem geral do racionalismo como dominação técnica do Ser, interpretei, no texto de Marcuse, a confluência entre Marx e Freud, como capítulo da História do Ser, na linha da Carta sobre o humanismo do mesmo Heidegger. Erro grosseiro — a história da Metafísica não é aqui, como lá, uma história mais fundamental que as outras. Ao contrário, ela nada mais faz que exprimir a história social que a precede — no sentido da frase de Hegel: “A coruja de Minerva só levanta seu vôo ao anoitecer”. O que se pode perceber na história da Metafísica, esboçada em algumas páginas por Marcuse, é que reproduz em seu nível próprio (isto é, no nível do conceito e da universalidade) o mesmo processo filo- e ontogenético que dá o objeto da Metapsicologia, ou, ainda, o processo histórico que culmina na universalidade do Capital. Metapsicologia, Metafísica e Economia remetem, no final das contas, ao mesmo referente, a um mesmo processo de que são, ao mesmo tempo, o resultado e a verdade. A Metafísica, na sua expressão mais abstrata, não é, assim, mera especulação, e sua verdadeira matéria, nem sempre visível, mas sempre presente, é a totalidade da experiência humana. Mais que isso, na calma de sua estrutura puramente conceitual, ela não se limita a espelhar a experiência passada. Ela é Er-innerung, na linguagem de Hegel, isto é, ao mesmo tempo, rememoração e interiorização (re-apropriação) do passado ou do perdido, unificação no interior do presente daquilo que se dispersou na exterioridade da sucessão temporal, numa palavra, lugar privilegiado da compreensão da História.

É compreensível então que o único local que permite medir o valor de verdade da Metapsicologia, como Er-innerung da espécie e do indivíduo, seja justamente a história da Metafísica, na reta linha desenhada pelas obras de Platão, Aristóteles e Hegel, com quem a Metafísica chega realmente à “Idade da Razão”. O lugar de Freud, como o de Marx e de Nietzsche, é depois do fim dessa linha e, se cada um, à sua maneira, faz obra Pós-Metafísica, é à luz da filosofia como passado que devemos interpretar as suas novas empresas prático-teóricas. Assim, a decisão freudiana de fixar o Ser como Eros só revela toda a sua significação ao termo de toda a tradição da Metafísica que tentara neutralizar o Eros, à sombra de um Logos integralmente soberano de si mesmo. Mas é por isso mesmo que a crítica filosófica, que Marcuse endereça a Freud, não pode ser reduzida a uma mera diferença de ênfase no grau atribuído à plasticidade ou à historicidade dos instintos. Ou melhor, tal diferença, em si mesma, só receberá sua plena significação quando reportada ao modo de relação que cada um estabelece entre Eros e Logos, entre o Desejo e o Ser.

Voltemos ao procedimento de Marcuse. Ao retraçar a história da Metafísica, Marcuse aponta, a cada um de seus momentos, algo como um equilíbrio precário, sempre em crise, entre as exigências do Universal e do Particular, da Razão e da Paixão, do Logos e do Eros, do Ser e do Desejo. Trata-se, é claro, de um combate desigual — como aquele travado entre os princípios do prazer e de realidade —, em que o progresso da filosofia também se faz com o prejuízo do desejo ou com a sua sistemática frustração. Desde sua origem na Grécia clássica, mas principalmente na nova idade clássica inaugurada pelo racionalismo burguês, a filosofia aparece como a expressão mais alta da dominação instrumental do mundo interno e do mundo externo. Técnica de dominação do desejo e, ao mesmo tempo, desejo de dominação técnica e agressiva do mundo. Desde o ideal grego da prudência ou da temperança, até a disciplina burguesa e seu lema “affectus comprime” (tão bem comentada por Hirschman),[4] o que há é um enorme e eficaz esforço de objetivação higiênica, que rejeita o desejo para o espaço externo do não-ser e da inverdade. Mas — não exageremos! — é preciso nuançar esse quadro ou essa caricatura do argumento de Marcuse: se fosse assim, seria maniqueísta e não dialético. Na realidade, na gigantomaquia que opõe o Logos manipulatório ao Eros narcisista, há muito de fluxos que passam de um lado da fronteira para o outro, pequenas mas constantes traições e acomodações entre os inimigos. Assim, na primeira filosofia platônica — que não deixa de ser a primeira responsável pelo desencadeamento do processo da expansão da razão técnica — era clara ainda a cumplicidade pré-filosófica entre Eros e Logos, e o amor pelos belos corpos era propedêutica para o amor das belas idéias ou da verdade. Assim também, em Aristóteles, o técnico por excelência do Logos, na sua condição de fundador da lógica como técnica da verdade, mesmo depois de operar a cauterização de todas as instâncias inferiores da alma, que não conduzem à pura teoria ou ao olhar desinteressado, não deixa de permitir um mínimo de impregnação erótica do Ser. É o que diz Marcuse, a propósito de Aristóteles:

Mas a lógica da dominação não triunfa sem discussões. A filosofia que resume a relação antagônica entre sujeito e objeto também retém a imagem de sua reconciliação. O incansável trabalho do sujeito transcendente te por remate a unidade final de sujeito e objeto: a ideia de “ser-em-si-para-si” existente em sua própria realização. O Logos de satisfação contradiz o Logos de alienação; o esforço para harmonizar os dois anima a história interior da Metafísica ocidental. Obteve sua formulação clássica na hierarquia aristotélica dos modos de ser, que culmina no Nous Theos: sua existência não é mais definida nem condicionada por qualquer outra coisa que não seja ele próprio, mas é inteiramente ele próprio em todos os estados e condições. A curva ascendente do devir é convertida no círculo que se move em si mesmo: passado, presente e futuro estão encerrados no círculo. Segundo Aristóteles, esse modo de pensar está reservado aos deuses; e o movimento do pensar, o puro pensamento, é a sua única aproximação “empírica”. Em tudo o mais, o mundo empírico não participa de tal realização; apenas um anseio, “semelhante a Eros”, liga esse mundo com o seu fim-em-si. A concepção aristotélica não é religiosa. É como se o nous theos fosse uma parte do universo, não sendo pois seu criador, nem seu senhor, nem seu salvador, mas apenas um modo de ser em que toda a potencialidade é realidade concreta, em que o “projeto” de ser foi realizado.[5]

Com a distribuição estabelecida por Aristóteles entre a parte dominante do Logos e a parte tolerada do Eros está para sempre fixado o destino da Metafísica. Hegel, é claro, expressão da Metafísica na sua forma final, há de exprimir de maneira exaustiva esse triunfo da Razão que não reprime inteiramente a voz de Eros. E isso porque é com Hegel que a Metafísica chega finalmente à consciência de si. Hegel é aristotélico, Marcuse não o nega, tanto que insiste no fato de que o Saber Absoluto nada mais é que a reedição daquele círculo calmo e impassível do Nous Theos, e comenta a recuperação, no fim da Enciclopédia, do texto da Metafísica de Aristóteles. Entre parênteses, seja dito, a imagem do círculo não é má — não é verdade que, no fim da exposição da Ciência Absoluta, encontramos, como uma espécie de conclusão, o texto que marca o começo da história da Metafísica? É impossível esquecer o protesto de Feuerbach contra a circularidade da filosofia dialética. Dizia mais ou menos o seguinte: se o Saber é circular, então seu fim é seu começo, então, desde que comecemos a ler Hegel, jamais poderemos interromper essa leitura infinita. Mas, esquecendo o protesto externo de Feuerbach, é preciso dizer que o círculo do em-si-para-si hegeliano é diferente, ou mais rico, que o aristotélico, porque não ignora a história real de que se alimenta e de que é sua narrativa final e seu happy end. Marcuse sugere: de fato, Hegel é igual a Aristóteles. Mas com uma pequena diferença, porque agora, ou com Hegel, “a filosofia compreende a base histórica concreta sobre a qual o edifício da Razão foi levantado”. Com efeito, a Fenomenologia do espírito acompanha a formação da Razão filosófica através dos meandros aparentemente sinuosos da história da sociedade e da cultura. Mas, mais importante, na circunstância do Intermezzo de Marcuse, essa gênese é feita a partir do nascimento da consciência de si como desejo. Na sua origem, no seu nascimento, a consciência de si (primeira figura “responsável” da Razão futura) aparece como consciência de sua separação do outro (natureza ou outras consciências) e como desejo da supressão dessa separação. Sua satisfação parece não poder economizar a negação ou a supressão do outro. Mas o duelo entre as consciências termina, como em Aristóteles, por ser pacificado no e pelo reconhecimento mútuo das consciências, no aplacamento do desejo pela satisfação absoluta dessa nova figura do Nous Theos representado pela filosofia dialética, que redime todo passado, como ao termo de uma psicanálise infinitamente bem-sucedida, que permite a Hegel a bela frase que está no coração do Intermezzo filosófico de Eros e civilização — a frase que afirma que “as feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes”, a qual poderia, entre parênteses, ser traduzida desta forma: “mesmo os desejos frustrados estão condenados, do ponto de vista do Absoluto, à sua plena satisfação”.

Mas é justamente aqui — depois do fim da Metafísica e da plena satisfação “lógica” de todos os impulsos eróticos que se quebraram contra o muro da realidade meramente empírica — que Freud encontra seu lugar real (isto é, de rei) na história do pensamento ocidental, ao lado de Nietzsche e de Marx. Os três, no fundo, dizem a mesma coisa — depois de fechado o ciclo de rememoração histórica de todas as formas de alienação recuperadas pelo pensamento —, dizem: algo ficou de fora. Hegeliano, Marcuse não pode impedir-se de dizer:

Na realidade, a relembrança e o conhecimento absoluto não redimem o que era e é. Entretanto, essa filosofia dá testemunho não só do princípio de realidade que governa o mundo empírico, mas também da sua negação. A consumação do ser não é a curva ascendente, mas a conclusão do círculo: o retornar da alienação. A filosofia só poderia conceber semelhante estado como o do puro pensamento. Entre o princípio e o fim está o desenvolvimento da razão como lógica de dominação — o progresso pela alienação. A libertação do reprimido é sustada — na ideia e no ideal.[6]

O lugar de Freud, como o de Marx (esqueçamos Nietzsche), é assim o de complemento “empírico” da supressão da alienação, já realizada no nível da filosofia ou do conceito. Mas, para dar uma idéia dessa positividade do não-filosófico, é preciso recorrer ao outro texto de Marcuse, a que me reportei no início de minha exposição: Contribuição à crítica do hedonismo. Esse texto se relaciona de maneira muito curiosa com o Intermezzo que comentei até agora. Trata-se de um texto muito mais minucioso, muito mais rico filologicamente, e que, tratando finalmente do mesmo assunto, trata-o de uma maneira rigorosamente inversa. Um texto se relaciona com o outro como o rosto se relaciona com sua imagem no espelho — mas não nos maravilhemos, estamos diante de uma escrita rigorosamente dialética, para a qual tais efeitos são indispensáveis. No Intermezzo, encontramos a descrição da história da Metafísica como máquina reiteradora da repressão do Eros, embora reconheçamos que a Razão Manipuladora não foi de todo impermeável aos influxos do desejo — sim, mas essa história é feita do ponto de vista do Eros, isto é, do ponto de vista de uma teoria do aparelho psíquico a ser reformulada contra a permanência prática da repressão e da dominação. Na Contribuição à crítica do hedonismo temos, pelo contrário, uma crítica ao imperialismo do desejo, do ponto de vista da Razão, isto é, do ponto de vista da universalidade da dialética. Também aqui, nenhuma sombra de maniqueísmo — e o hedonismo frequentemente recebe boas notas pela sua significação revolucionária, em seu protesto constante contra o real “atual”. Mas é nesse texto, mais que no Eros e civilização, que é possível localizar, na Ontologia erótica de Marcuse, o lugar e o destino do desejo. Neste texto, como no outro, temos a exposição de uma história da Filosofia. Tanto num, como no outro, temos uma história marcada em três tempos: 1) Racionalismo grego clássico; 2) Racionalismo burguês clássico; 3) Teoria Crítica. No Intermezzo, os nomes são: Aristóteles, Hegel, Nietzsche. Na Contribuição à crítica do hedonismo, temos, como primeiro momento, a tensão entre o eudemonismo e o hedonismo na Grécia clássica. Temos, em seguida, a tensão no mundo moderno, inconciliável, entre felicidade e moralidade, que não deixa de incluir Hegel, para quem o progresso da Razão só se pode fazer às custas da felicidade (Marcuse cita, a propósito, uma bela frase de Hegel: “Os períodos de felicidade são páginas brancas na História”; obviamente essa frase tem algo a ver com outra frase, de Rousseau, que dizia: “Os povos felizes não têm História”), e, finalmente, a Teoria Crítica, que é uma espécie de “hedonismo superior” que se exprime no lema: “A cada um segundo suas faculdades, a cada um segundo suas necessidades”.

É só a Teoria Crítica que pode reconciliar a legítima reivindicação de prazer implícita nos vários hedonismos (mas principalmente na fórmula dos cirenaicos, mais radical, segundo Marcuse, que a dos epicuristas), porque é só com ela que o desejo deixa de se exprimir de maneira teórica e abstrata. Com efeito, a reivindicação do prazer como valor, no hedonismo clássico, é essencialmente atomista, dissolvendo a sociedade numa poeira de “sujeitos desejantes”. Diz Marcuse:

O que há de falso no hedonismo não reside no dever que atribui ao indivíduo de buscar e de encontrar sua felicidade num mundo de injustiça e de miséria. O princípio hedonista, enquanto tal, ergue-se com força contra esse sistema e, se as massas pudessem um dia ser por ele impregnadas, não mais poderiam suportar a alienação de sua liberdade e seriam recalcitrantes diante de toda forma de domesticação heróica [o texto tem data de 1938]. É preciso buscar mais longe o princípio do hedonismo: na sua concepção abstrata do aspecto subjetivo da felicidade, na sua incapacidade em distinguir entre as verdadeiras e as falsas necessidades, entre o verdadeiro e o falso gozo. Ele aceita como dados e válidos em si mesmos os interesses e as necessidades dos indivíduos. Tais necessidades e tais interesses trazem — e não apenas no momento em que são satisfeitos — a marca das mutilações, das repressões e da inautenticidade que acompanham o desenvolvimento dos homens na sociedade de classes. Mas a aceitação dos primeiros [interesses e necessidades] conduz também à aceitação do resto [mutilações, repressão, inautenticidade].[7]

Vemos como este texto é a imagem invertida do texto de Eros e civilização. Lá era preciso valorizar o que escapava ao domínio do Logos, as sorrateiras incursões do Eros na história da Metafísica. (Aliás, no último parágrafo do Intermezzo, Marcuse diz: “A história da ontologia reflete o princípio de realidade que governa o mundo cada vez mais exclusivamente: as visões contidas na noção metafísica de Eros foram soterradas. Sobreviveram, em distorção escatológica, em muitos movimentos heréticos e na filosofia hedonista ).[8] Aqui, ao contrário, trata-se de devolver Eros ao seu “lugar natural”, como faz Platão em sua crítica ao hedonismo no Filebo. Aqui, em seu comentário da distinção platônica entre prazeres falsos e verdadeiros (crítica necessária para restabelecer os direitos do racionalismo eudemonista contra a anarquia sensualista dos hedonistas). Dos prazeres, pode-se dizer, como das idéias ou dos juízos, que são verdadeiros ou falsos. Diz Marcuse:

É mais do que uma simples analogia; atribuímos aqui no sentido próprio uma função cognitiva ao       prazer: ele revela uma forma de ser como voluptuosa ou como objeto de gozo. Dado seu caráter “intencional”, o prazer pode ser medido em sua função de verdade: um prazer não é verdadeiro quando o objeto ao qual se reporta não é voluptuoso por si mesmo (segundo Filebo, quando só se pode manifestar misturado com desprazer). Mas a questão da verdade não concerne apenas ao objeto do prazer, concerne também ao sujeito. Isto é possível pela interpretação que Platão dá do prazer como não pertencendo apenas ao domínio da sensualidade (Ais-thesis), mas também da Psychê (Filebo, 33 e seguintes): cada sensação de prazer supõe forças morais (desejo, espera, memória, etc.) de tal maneira que o prazer concerne ao homem como um todo. Aplicada a este (o homem como um todo), a medida de verdade culmina num resultado que já era aquele do Gorgias: os homens “bons” experimentam os verdadeiros prazeres, os “maus”, os falsos prazeres (Filebo, 40, b, c). Essa relação essencial entre a bondade do homem e a verdade do prazer, onde culmina o debate de Platão contra o hedonismo, transforma o prazer numa questão moral. Pois é, em última instância, a “comunidade” em sua figura concreta que decide dessa relação: o prazer é da competência da comunidade e entra no domínio dos deveres, deveres para consigo mesmo e para com outrem. A verdade do interesse particular e de sua satisfação é determinada pela verdade do interesse geral.[9]

É inegável que, nesse texto, no qual descreve o triunfo teórico de Platão contra o sensualismo e o hedonismo (restaurando o valor de verdade do desejo e o valor do desejo de verdade), Marcuse alinha a Teoria Crítica numa tradição estritamente essencialista. Mais que isso, faz sua a teoria platônica da intencionalidade do prazer (ou do desejo), dentro do horizonte da Polis, isto é, do universal da sociedade política. E é justamente aqui que podemos localizar o destino que o estilo dialético do pensamento de Marcuse atribui à ideia de desejo. Parece-me que tal destino é definido no cruzamento entre a intenção que liga o sujeito desejante ao objeto desejado e a intenção social, como teleologia que conduz à constituição da bela humanidade universal. Meu desejo será tanto mais “verdadeiro” quanto mais ele, por seu próprio movimento, colaborar para a cristalização de uma comunidade solidária. Numa palavra, o verdadeiro objeto do desejo é a humanidade universal, o Telos da História. É o próprio Marcuse quem o diz: “Do abismo que existe entre o que é objeto de gozo e a maneira pela qual tais objetos são concebidos, apreendidos e consumidos, surge a questão do grau de verdade da relação de felicidade (Glücksbeziehung) nessa sociedade: os atos realizados com vistas a esse gozo não chegam sequer à realização dessa intenção, e mesmo quando se realizam não são verdadeiros.[10] No cruzamento entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, emerge aqui um novo princípio, o Glücksprinzip, que, para cada formação social particular, serve de metro para a avaliação da adequação da integração intersubjetiva ao Telos último, obscuro objeto do desejo social, consumação feliz da humanidade transparente, Schöne Menscheit. Decididamente a ontologia de Marcuse é platônica: o objeto do desejo nada mais é, depois de feito o trabalho da reflexão, que o ser ou a verdade. A natureza “intencional” do desejo acaba sendo arrastada pela mais funda teleo-logia da prática histórica e deságua nessa nova forma de Nous Theos, que poderíamos descrever como apropriação erótica do mundo, com-os-outros-em-relação-aos-fins-da-Razão.

Noutras palavras, os hedonistas eram demasiado tímidos e o mais radical libertino ignora a natureza do desejo e sua profunda teleologia, que o condena a desejar necessariamente a verdade e o universal.

III

Em si mesma não é propriamente paradoxal a ideia de uma intencionalidade do desejo ou da emoção. Onze anos antes da publicação da Contribuição à crítica da hedonismo, Max Scheler realizava, no monumental Formalismo na ética, uma operação semelhante. É bem verdade que, para fazê-lo, era obrigado a distanciar-se de Husserl e a atribuir à idéia de essência uma extensão maior que a da ideia de significação . Os valores são justamente essas essências “não-significativas”, acessíveis a uma intuição (não-cognitiva) de tipo emocional. Mais ainda, como o texto de Marcuse, o livro de Scheler é uma crítica simultânea do hedonismo e do formalismo kantiano. Sem dúvida, o resultado final dessas críticas paralelas não é o mesmo: num caso, para além do formalismo e do hedonismo, institui-se uma ética material dos valores, cuja categoria fundamental é a pessoa; no outro, para além da mesma alternativa, o que se institui é uma ética material ou política, essencialmente trans-pessoal, da Schöne Menscheit ou da sociabilidade transparente. Num caso, catolicismo e personalismo, noutro, socialismo e racionalismo dialético.

Mas, ao abrir espaço para uma intencionalidade da vida afetiva, Max Scheler tinha o cuidado de marcar sua distância em relação ao intelectualismo da “psicologia” e da ética da filosofia grega clássica e sua reativação pela filosofia escolástica, particularmente com santo Tomás. Como fica claro no texto seguinte de seu ensaio Amor e conhecimento:

Com exceção da literatura mística edificante e das tradições agostinianas, onde esse princípio [da prioridade das virtudes “caritativas” sobre as “dianoéticas” , a filosofia cristã conformou-se absolutamente ao modo de pensar helênico.

Daí resultou a desarmonia interior entre a consciência religiosa e a sabedoria mundana que dela deriva. Enquanto nas imagens, profundas em sua significação de fé piedosa, os Serafins, abrasados de amor, colocam-se, na hierarquia dos anjos, acima dos Querubins “cognoscentes” , aos pés de Deus, ou ainda, enquanto Maria, que é toda amor, está à frente dos anjos, Tomás de Aquino permanece fiel às definições gregas: o amor de um objeto supõe o conhecimento do objeto. Os valores, no nível ôntico, são apenas função da plenitude do ser (omne ens est bonum). O amor não é um ato fundamental elementar do espírito, mas uma atividade particular da faculdade volitiva e aspirante da alma. Conforme tais princípios, santo Tomás de Aquino só reconhece duas forças da alma: a vis appetitiva e a vis intellectiva, que por sua vez se dividem numa faculdade parcial superior e numa faculdade parcial inferior. A vis appetitiva se decompõe em uma parte inferior, a saber, a concupiscência, que reage passivamente, e a irascibilidade que reage ativamente, numa resistência à lesão que ameaça o corpo; e uma parte superior, a saber, a vontade determinada pela razão (cuja tendência original é considerada como bonum ens entis), o ser em cada coisa existente (omnia volumus sub specie boni); de seu lado, a vis intellectiva se divide numa faculdade cognitiva sensível da percepção, à qual corresponde onticamente a species sensibilis, e a faculdade cognitiva racional, à qual corresponde a species intelligibilis nas coisas. Mas cada atividade da faculdade do esforço supõe previamente uma atividade do intelecto; o movimento da concupiscência, uma presença da species sensibilis na percepção sensível; a vontade, um ato de conhecimento intencional, no qual é captada a essência nocional da coisa. O amor e o ódio, assim como o conjunto do mundo afetivo, apresentam-se nesta concepção apenas como modificações da faculdade do esforço da alma.

É essa ênfase anti-helênica ou anti-objetivista[11] que permite, a Max Scheler, acolher a psicanálise (e a sociologia do conhecimento) numa teoria moral de inspiração fenomenológica. Como se pode, aliás, ver numa nota sobre os limites práticos da reflexão e o interesse propriamente moral da técnica psicanalítica no Formalismo.[12] Ênfase anti-helênica à qual se opõe radicalmente a ênfase platônico-aristotélico-hegeliana de Marcuse, por mais que seu texto revele — como parece — a marca da leitura de Max Scheler.

Numa palavra, é a psicologia clássica do desejo que é restaurada pelo intelectualismo de Marcuse, e que lhe permite — pelo metro inequívoco do objeto do desejo, aqui bem pouco obscuro — distinguir, como nos versos do Purgatório, inscritos em epígrafe neste ensaio, entre bons e maus, verdadeiros e falsos prazeres. Herbert Marcuse e… santo Tomás de Aquino.

Sem dúvida, podemos falar de uma teleologia do desejo no contexto da psicanálise, em que há lugar para a Zweckmässigkeit na determinação do regime pulsional. Mas de uma teleologia que se aparenta antes a uma arqueologia, e na qual a ideia de objeto está longe de desempenhar papel constitutivo. É, talvez, o que se torna claro com a idéia de Anlehnung (“anáclise” ou “apoio”),[13] digerível pela filosofia de Max Scheler e intolerável do ponto de vista de Marcuse. Com efeito, quando se fala de “escolha anaclítica de objeto”, o que se está a dizer é que o objeto é constituído retrospectivamente, por assim dizer, pela dinâmica da pulsão, cuja constituição é determinada pelo seu alvo, que não pode ser, sem contra-senso, confundido com o objeto da pulsão.

O texto crucial, para esse problema, é certamente o texto metapsicológico fundamental sobre Pulsões e destinos de pulsões. Nesse texto, Freud busca desenhar o horizonte do conceito de pulsão (para fixar o regime das pulsões), por oposição tanto à noção de instinto propriamente dito (em sua dimensão biológica), quanto à noção de estímulo externo ou de arco-reflexo. Na obscura interface do biológico e do psíquico, a noção de pulsão é circunscrita através da fixação de quatro pontos de referência: pressão (Drang), alvo (Ziel), objeto (Objekt) e fonte (Quelle). Deixemos de lado as noções de pressão (ou a dimensão quantitativa da pulsão) e de fonte (ou a dimensão propriamente biológica da pulsão), que transcende por princípio os limites da psicologia ou da metapsicologia,[14] para nos limitarmos à oposição fundamental entre Ziel e Objekt. Freud diz:

O alvo [Ziel] de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser atingida pela supressão do estado de estimulação da fonte da pulsão. Muito embora o alvo último de toda pulsão seja invariável, pode haver muitos caminhos que a ele conduzam, de modo que, para cada pulsão, pode haver diferentes alvos próximos, que podem ser combinados ou substituídos entre si. A experiência também nos permite falar de pulsões reprimidas em seu alvo, isto é, de processos que logo sofrem uma inibição ou um desvio. Temos de admitir que, também nestes processos, acha-se implicada uma satisfação parcial.

O objeto [Objekt] da pulsão é a coisa na qual, ou por meio da qual, a pulsão pode alcançar sua satisfação. É o mais variável na pulsão; não está associado a ela originariamente, mas a ela subordinado, em conseqüência de sua eficácia em permitir a satisfação. Não é necessariamente algo de exterior ao sujeito, pode ser uma parte qualquer de seu corpo, e pode ser substituído indefinidamente por outro, no curso dos destinos da vida da pulsão.[15]

Ora, se não estamos enganados, é essa disjunção radical entre Alvo e Objeto que está ausente na reconstrução dialética da Metapsicologia, empreendida por Marcuse. Só fazendo superpor-se Objekt e Ziel é que se torna possível a reconciliação dialética entre a arqueologia do Desejo e a teleologia da Razão, como fizera Hegel, que, recuperando a teoria aristotélica da finalidade, podia dizer: “O resultado é o que é o começo, porque o começo é fim”.[16]

Mas, se assim é, a reconstrução marcusiana é mais que um remanejamento local da teoria freudiana, segundo seu espírito mais profundo. É o próprio coração dinâmico da psicanálise que é comprometido por essa “reforma”. Sem a distinção a que nos referimos, são os processos básicos, ou os “destinos das pulsões” (como, no caso, a transformação no contrário, a orientação em direção da própria pessoa, a repressão e a sublimação) que se tornam rigorosamente incompreensíveis e, com elas, as figuras básicas da teoria, como sadismo, masoquismo, etc. E, neste caso, talvez Marcuse pudesse ser objeto da mesma crítica que endereça, com tanta argúcia e felicidade, aos diversos reformismos pós-freudianos. Numa palavra, entre um falso e um verdadeiro gozo, quem, senão Deus (Nous Theos), veria diferença?

Notas

[1] Aqui sempre citado em sua tradução francesa, incluída no volume Culture et societé, Minuit.

[2] Eros e civilização , p. 36

[3] Idem, p. 124.

[4] A. O. Hirschman, in Paixões e interesses, Paz e Terra.

[5] Eros e civilizaçdo , p. 109.

[6] Idem, p. 113.

[7] Contribuição à crítica do hedonismo, p. 181.

[8] Eros e civilização , p. 118-9.

[9] Contribuição à crítica do hedonismo, p. 189.

[10] Idem, p. 195.

[11] Tradução francesa, in Les sens de la souffrance, Aubier, s. d.

[12] Primeira edição alemã, p. 603; tradução francesa, p. 578-9.

[13] Cf. Vocabulário de psicanálise, de Laplanche e Pontalis.

[14] Idem, verbete fonte de pulsão

[15] Obras completas, tradução espanhola de L. L. Ballesteros y de Torres (aqui levemente corrigida), v. II, p. 2024.

[16] Fenomenologia do espírito, tradução francesa de J. Hyppolite, v. I, p. 20.

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