2009

Entre dois mundos

por Adauto Novaes

Pode-se dizer que tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, acabou por opor-se a tudo o que somos

Paul Valéry, Le bilan de l’intelligence

A CONDIÇÃO HUMANA é o segundo livro da série sobre AMutações. O primeiro foi Novas configurações do mundo, publicado em 2008. A relação entre os dois livros – que integram um projeto mais amplo – é evidente: se vivemos um momento muito particular da história, com o advento da revolução tecnocientífica, se estamos na confluência de dois mundos, um que ainda não começou inteiramente e outro que não se completou ainda, tentemos entender o espetáculo do novo mundo e a nova condição do homem. As recentes invenções científicas provocam mudanças nas ideias de Natureza, de Mundo e de Humano. Estamos, pois, muito distantes das antigas concepções de mundo. A revolução tecnocientífica exige de nós pensar uma nova racionalidade no nível da experiência. Os ensaios aqui reunidos tiveram o cuidado de não cair na armadilha do sociologismo ou do logicismo, preferindo buscar uma “razão oculta na história” e trabalhar, como nos sugere o filósofo Maurice Merleau-Ponty, um método que permite “pensar ao mesmo tempo a exterioridade, que é o princípio mesmo das ciências do homem, e a interioridade, que é condição da filosofia, as contingências sem as quais não existe situação e a certeza racional sem a qual não existe”[1] Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações constituem, então, uma só obra, um incontornável desejo de recolher e analisar as experiências de um mundo incerto e provocante.

Mas a aventura de pensar a condição humana não é das mais simples se partimos da ideia de que a revolução tecnocientífica é feita em boa parte à revelia ou no vazio do pensamento. Se nas revoluções precedentes o poder da ciência era uma extensão do saber ou de uma construção intelectual, tendemos hoje a ver o contrário: “A entrada em cena da teoria da energia e da teoria da aplicação dos cálculos estatísticos à física marca uma época do espírito. Essas teorias marcam o abandono da pretensão de conhecer o universo físico em si e manifestam a resignação em trocar o saber pelo poder. Não se trata mais de penetrar o íntimo das coisas, mas de limitar-se às suas manifestações finitas, isto é, sensíveis e tangíveis – ou numeráveis.”[2] O que Paul Valéry quer dizer é que a ciência troca a noção de causa pela de função puramente estatística e, com isso, como observa o filósofo Jacques Bouveresse, ela renuncia a especular sobre os mecanismos internos responsáveis pela ocorrência e sucessão dos fenômenos para concentrar-se “exclusivamente na tarefa que consiste em se dar meios de descrever, medir, calcular e predizer seus efeitos”.[3] Essa visão é muito próxima do que conclui Heidegger sobre a relação entre ciência e pensamento: “Esta frase ‘A ciência não pensa’, que provocou tanto barulho quando a pronunciei em uma conferência em Friburgo, significa: a ciência não se move na dimensão da filosofia. Mas, sem o saber, ela se liga a esta dimensão. Por exemplo: a física move-se no espaço, no tempo, no movimento. A ciência enquanto ciência não pode decidir sobre aquilo que é movimento, espaço, tempo. A ciência não pensa, pois; ela nem mesmo pode pensar neste sentido com seus métodos. Não posso dizer, por exemplo, com os métodos da física o que é a física. Não posso pensar o que é a física à maneira de uma interrogação filosófica. A frase ‘A ciência não pensa’ não é um reproche, mas uma simples constatação da estrutura interna da ciência: é próprio da sua essência que, de uma parte, ela dependa daquilo que a filosofia pensa, mas que, de outra parte, ela mesma esqueça e negligencie o que exige ser pensado.”[4]

Assim, pode-se entender que a revolução tecnocientífica tem a capacidade de calcular, pesar, predizer mesmo alguns movimentos, mas tudo isso acontece no vazio do pensamento. Se o pensamento tem a capacidade de esclarecer, de conferir sentido ético e político às ações humanas, à ciência cabe apenas verificar suas consequências.

Tomemos, então, como um dos pontos de partida para pensar a condição humana uma das conclusões de Valéry em seu ensaio “Discours aux chirurgiens”: “Tantôt je pense et tantôt je suis.”[5] A metáfora do funcionamento do corpo, construída ao longo desse ensaio e bem resumida na máxima citada, pode ajudar a explicar o que acontece hoje. Existe um papel funcional da ignorância do funcionamento do nosso corpo, isto é, “nossa ignorância de nossa economia tem um papel positivo na realização de algumas de nossas funções que não são compatíveis, ou são pouco compatíveis, com uma consciência clara de seu desempenho; que quase não admitem a partilha entre o ser e o conhecer, que só respondem à excitação através do ato se a atenção intelectual for nula ou quase nula”[6]. O funcionamento das sociedades segue também esse preceito: ora ela pensa, ora ela existe apenas. O rigor mecânico do tecnocientífico ganha todos os domínios da vida. Ou seja, não refletimos ou não pensamos o que acontece. Existimos apenas. A coordenação metódica, a técnica dos fatos e o domínio da ciência, que se transformou na alma difusa de nosso tempo, não abrem espaço para previsão do pensamento, que em outros momentos da história acompanhava ou mesmo antecipava os acontecimentos. Assim, “entramos no futuro de costas”, como observa Péguy.

Ora, o que somos nós sem o trabalho do espírito, se sabemos que ele é a inteligência, “potência de transformação” que participa da criação, dá forma e significação ao mundo exterior? Pensar é dizer não, ensina Alain. Valéry foi um implacável crítico do dualismo clássico espírito/matéria. Assim, devemos levar a sério o que ele escreve, e não apenas como uma boutade, como pensam alguns intérpretes: “É claro que o espíríto opõe-se à matéria, uma vez que ele foi fabricado para isso e por isso.” Mais: “O espírito é um momento da resposta do corpo ao mundo.” Por fim, e o mais pertinente para a análise da relação entre ciência e pensamento: “O espírito se recusa a viver na sua obra.” Sabemos que a civilização tecnocientífica, com seus artefatos, teorias, visões de mundo, é obra do espírito. A desordem e a incoerência que dominam a época contemporânea decorrem daquilo que o espírito produziu de mais racional, resultando na velocidade, nas intensidades fora de qualquer proporção humana, dominadas por um “empirismo detestável”.[7] Esse empirismo traduz-se hoje na figura do especialista técnico, o homem medíocre que não é nada fora do que faz. Isso vale para pequenas e grandes especialidades, como nos lembra Alain: não existe nenhuma administração que não mate seu homem porque ele se basta no pequeno mundo. O espírito alarga-se, como a visão, ao ver a distância: “Quando leio Homero, associo-me ao poeta, a Ulisses e Aquiles e também à multidão daqueles que leram estes poemas e ainda à multidão daqueles que apenas ouviram falar o nome do poeta. Em todos eles e em mim mesmo faço soar o humano, escuto o passo do homem. A linguagem comum designa com o belo nome de Humanidades esta procura do homem, esta busca e esta contemplação dos signos do homem. Diante destes signos, poemas, músicas, pinturas, monumentos, a reconciliação não está por fazer, ela já está feita. Entretanto, pode-se acreditar que a sociedade humana está bem longe de se fazer.”[8] A civilização tecnocrática vive do aqui e agora, do tempo veloz e volátil e do esquecimento do passado e do futuro. Sem memória, portanto, sem fazer reviver a imortalidade dos grandes mortos, não se cria sociedade. Alain nos diz ainda: o homem pensa a humanidade ou não pensa em nada: suponhamos que ele esqueça essas grandes lembranças, esses poemas, e que se limite ao seu ofício, e eis que surge o animal, como o fazem as moscas. O espírito sente-se um estrangeiro neste mundo.

Valéry, Musil, Alain e outros humanistas ainda acreditavam nas possibilidades de outra escolha. Mas, se isso fosse possível, a ciência e a técnica poderiam ser controladas pelo homem. A visão de Heidegger é mais radical. Na célebre entrevista dada ao semanário alemão Der Spiegel em 1966, publicada somente dez anos depois, ele diz que, por sua essência, a técnica é coisa que o homem não pode controlar. Ela corresponde a “uma exigência mais potente que qualquer determinação de fins pelo homem […], uma exigência que está acima do homem, de seus projetos e de suas atividades”[9]. Se a técnica adquiriu, na sua essência, tal autonomia, a saída, se existe, só poderia vir, segundo Heidegger, não do homem, mas do mesmo lugar de origem, “sob a forma de outro começo”.[10] A essa reversão da condição humana, provocada pela tecnociência, pode-se dar o nome de mutação. Ela se manifesta de forma intensa na instabilidade – ou no desaparecimento – do sujeito não pela ação humana, mas por “poderes invisíveis, anônimos, se densidade suficiente para que pudéssemos enfrentá-los”, como escreve Franklin Leopoldo e Silva: “Nesse cenário deserto, a condição humana mostra sua heteronomia ética, sua desintegração política, sua fragmentação subjetiva, sua alienação histórica, sua regressão existencial, como se o propósito do homem contemporâneo fosse a desinvestidura do humano.”[11] E o homem em tudo isso? Qual é nossa condição hoje? Com o grande avanço da biotecnologia e da tecnociência, novos problemas se apresentam. A antropologia sempre nos disse que, apesar das diferenças, é possível afirmar que todos os homens são iguais, o que nos permite ver o mundo com menos estranhamento, menos radicalmente diferente de nós mesmos. Mas, o que dizer diante das promessas – prestes a se tornarem realidade para muitos cientistas – de novos seres criados em laboratórios, os cyborgs, os híbridos, biotrônicos, a inteligência artificial equiparada à inteligência dos humanos, em síntese, diante dos transumanos? Que dizer ainda da biologia sintética, que pretende criar vida artificial, da convergência das nanotecnologias, das técnicas da informação e das ciências cognitivas?

Citemos a impressionante precisão com que Hannah Arendt examina possíveis caminhos do humano na direção do que hoje se denomina realidade pós-humana: “É possível que nós, criaturas terrestres, que começamos a agir como habitantes do Universo, não sejamos mais capazes de compreender, ou seja, de pensar e exprimir as coisas que, no entanto, somos capazes de fazer. Neste caso, tudo se passaria como se nosso cérebro, que constitui a condição material, física de nossos pensamentos, não pudesse mais acompanhar o que fazemos, de modo que doravante teríamos realmente necessidade de máquinas para pensar e para falar em nosso lugar.”[12]

O corpo humano passou a ser, pois, objeto de experimentação das ciências. Olhamos para o corpo como uma máquina, mas isso não é mais uma metáfora, observa Newton Bignotto: “Mudar o funcionamento de órgãos, prolongar a vida por meios artificiais, confundir o corpo humano com suas extensões mecânicas são feitos tão banais que nem mesmo sabemos que ao usar a palavra humano ainda nos referimos a uma realidade reconhecível por meio de nossos instrumentos conceituais.”[13]Já Jean-Pierre Dupuy pergunta: a utopia ou a passagem seguinte da evolução biológica, na qual a espécie humana terá dado lugar a uma era pós-humana e na qual as máquinas cibernéticas inteligentes e conscientes dominarão o mundo, seria o fim ou a apoteose do humanismo?[14]

O objetivo propriamente metafísico das tecnologias atuais – responde Dupuy – consiste em fazer do homem um demiurgo ou, talvez, mais modestamente, o “engenheiro dos processos evolutivos”. A evolução, “procedendo por bricolagem, muitas vezes concluiu seu trabalho, mas ela não se deveria sentir especialmente orgulhosa de sua última fabricação, o homem. Mas o homem deve concluir o trabalho, o que o põe na posição de deus fabricante do mundo, o demiurgo, e ao mesmo tempo o condena a considerar-se superado. O orgulho e a desmesura de certo humanismo científico conduzem diretamente à obsolescência do homem. É nessa ampla perspectiva que é preciso sempre repor as questões específicas ditas éticas que dizem respeito à engenharia do homem pelo homem”.[15] Mas suspeitamos que nosso maior problema esteja no descompasso da relação entre ciência e pensamento. Ou, para usar os termos de Merleau-Ponty, no surgimento da rivalidade entre o conhecimento científico e o saber metafísico, entendendo por metafísico “não a construção de conceitos através dos quais tentaríamos tornar menos sensíveis nossos paradoxos”, mas a experiência de todas as situações da história pessoal e coletiva “e de todas as ações que, assumindo-as, as transformem em razão”.[16]Mas eis a pergunta que os ensaios deste livro procuram responder: o que é humano? A pergunta é provocada por uma verdadeira revolução antropológica – revolução tecnocientífica – que, segundo alguns pensadores, tende a levar a uma “desqualificação definitiva” do homem. São múltiplos os caminhos que se abrem para responder à questão, mas o que nos interessa nesse novo ciclo pode ser resumido na seguinte pergunta: “o que é o homem no mundo?” A resposta pede nossa atenção não apenas para a relação do homem com os outros homens, mas também com tudo o que é radicalmente diferente dele, o mundo não humano. Mas, antes, surge ainda outra pergunta: é possível hoje o diálogo entre ciência e pensamento? O que queremos sugerir é que existem pelo menos dois mundos que dificilmente se cruzam: um, instituído pela ciência e que se apresenta sempre como coisa acabada, e o mundo de nossa vida construído por nossa experiência e de nossa ação, multiplicidade aberta e indefinida que se inscreve na natureza, na cultura e na história. Falar da condição humana consiste, pois, em tentar entender o estado da relação desses dois mundos.

Os antigos – todos sabem – faziam da cidade a condição de uma vida plenamente humana. A famosa frase “O homem é um animal político por natureza” quer dizer, entre tantas interpretações, que o homem, dotado de uma linguagem articulada – o logos -, tem a capacidade de fundar comunidades em que são definidos o justo e o injusto, o legal e o ilegal, os vícios e as virtudes, enfim, aquele que é capaz de criar as condições de “excelência para se fazer o que se deve, quando se deve, nas circunstâncias nas quais se deve, às pessoas às quais se deve, pelo fim pelo qual se deve, como se deve”.[17]

Humanistas e pensadores políticos do Renascimento retomam a definição do homem como um ser essencialmente político cuja natureza humana só se realiza na participação ativa da vida pública. O que institui o humano, portanto, é a capacidade do homem de criar uma ordem política através da qual ele possa dominar destino e paixões, “aquilo que permite decidir soberanamente a existência”. Devemos entender essa visão de mundo como uma ruptura, ou deslocamento do valor da vida contemplativa em direção a uma vida ativa: fim da ideia de um mundo naturalmente hierarquizado que estabelecia o lugar de cada indivíduo na ordem natural; aplicação da ideia de que a política é uma autêntica criação humana. O humano é, enfim, esse elo entre a ordem natural e a ordem política, ou entre o “estado de natureza” e o “contrato social”, como queriam os filósofos do século XVII.

Em síntese, o homem é o criador de suas próprias condições de existência, animado por necessidades, desejos e direitos. Pensando assim, pode-se dizer que o destino ético da humanidade está dado: os modernos mostram, por exemplo, que o problema da origem e imputação do mal é deslocado do domínio metafísico e teológico para o domínio da moral: os males de que os homens são capazes são “sua própria obra”. Mais: não é o homem isolado que é responsável, mas a sociedade humana. Seja na forma da passagem da “natureza” à “política”, ou na ideia de “espírito universal”, ou de “Razão”, síntese da universalidade e da diferença individual encarnada na definição do Estado moderno, o que está em jogo é sempre a condição humana. Mas a pergunta do nosso tempo é: o que é feito da condição humana em um mundo que dedica uma reverência religiosa à mercadoria como se essa exercesse uma potência sobrenatural sobre o homem? Que condição é essa que, tanto na vida como no trabalho, reproduz sem cessar os mesmos gestos – em um tempo “homogêneo e vazio” no qual se passa sempre a mesma coisa -, gestos incapazes de criar a experiência de relações dotadas de sentido? Podemos, então, temer um mundo “vazio”, isto é, que ele nos pareça “estranho” – escreve Kojeve -, “mas o medo desaparece (ou torna-se outra coisa, a angústia sem objeto transforma-se em um medo concreto diante do inimigo, etc.) no momento em que encontro outro homem: vejo logo que meu medo não tem sentido, que o mundo não me é tão estranho como me pareceu de início […] Apesar de tudo, vendo outro homem, construo um sentimento de comunidade com ele”.

Certamente, nossa relação tende a ser bem diferente da que mantemos com os objetos não humanos que conhecemos (os animais e mesmo os objetos técnicos), porque os transumanos terão não apenas formas diferentes, mas também diferentes conteúdos qualitativos e diferentes modos de ser. Podemos perguntar, então: permanece o mesmo sentimento de comunidade, a interação entre o homem e o mundo será a mesma? O homem será o mesmo? Essas questões são particularmente angustiantes quando pensamos que estamos em fase de transição e que não temos conhecimento do que acontece: não se pode dizer mais, com o pouco de certeza que se tinha, “o que é o homem”, “o que é o mundo”.

Com o advento da revolução tecnocientífica, essa noção ganhou outros contornos sem que o homem se desse conta da mutação: “de repente, viramos e o mundo inteiro mudou de rosto”, escreve Péguy, que nos induz a pensar que entramos no novo mundo de costas. Quando conseguimos virar a cabeça, deparamos com um rosto tão desconhecido pelas inúmeras e impressionantes mudanças que tudo se mostra quase impenetrável, tornando difícil discernir qualquer imagem do humano. Certamente não o reconhecemos porque temos ainda em mente, dominando nosso imaginário, o desafortunado e pouco nobre rosto do velho mundo que nos legou, entre tantos feitos positivos, invenções técnicas prodigiosas e teorias bem-acabadas, a era da bomba atômica, anúncio da “Revolução científica”, como escreveu em manchete o jornal francês Le Monde no dia de Hiroshima, e mais 191 milhões de vítimas diretas e indiretas da violência política apenas no século XX, síntese de certa concepção de humano.

Qual o lugar do homem na nova configuração do mundo, estruturada em uma cosmologia relativista e uma microfísica quântica “que delineia uma matéria dessubstancializada, elusiva e eivada de indeter­ minação, configurando-se uma realidade não ‘objetiva’, fundamentalmente incerta”, como escreveu o físico-filósofo Luiz Alberto Oliveira?

A mutação tecnocientífica enriquece a cada dia nosso vocabulário. Agora temos que lidar com transumanos, pós-humanos, borgues, híbridos biotrônicos, próteses de cognição (que quer dizer controle da informação infundida em um sem-número de objetos, produção de artefatos dotados de autêntica inteligência artificial com os quais o homem passa a “dialogar”; cyborg híbrido homem-máquina-computador), redesenhos da forma humana e da forma da vida. Tudo isso a uma velocidade sem precedentes. Entramos em um processo de redefinição do homem em todos os aspectos da vida, da sua natureza aos seus valores. Seria correto dizer, como querem muitos teóricos, que a relação do homem com a natureza está chegando ao fim e o que predomina hoje é a relação do homem com o artifício, “com máquinas inteligentes dotadas de racionalidade”?

Cientistas e pensadores identificam três áreas que afetam de maneira radical a natureza humana: a hipercomputação, a biotecnologia e a neurociência. Percepções de espaço e tempo são alteradas da mesma maneira que o próprio corpo. Revolução antropológica e metafísica, como quer o filósofo Jean Baudrillard com a “inauguração de um mundo sem o homem… e o desaparecimento do sujeito, seja do poder, do saber ou da história”, ou pelo menos sem o homem tal como o entendíamos até há pouco? A nova condição humana deve surgir nesse campo.

Entretanto, suspeitamos que nosso maior problema hoje esteja no descompasso da relação entre ciência e pensamento. A conclusão de Merleau-Ponty no ensaio “O metafísico no homem” define bem nossa condição hoje: “Uma ciência sem filosofia não saberia dizer literalmente do que fala; uma filosofia sem exploração metódica dos fenômenos só chegaria a verdades formais, isto é, a erros.”[18]

O pensamento rigoroso nos ensina que o homem não se define apenas pela ação política, que não é senão parte do ser. Há também o corpo e seus desejos, sujeito-objeto que participa do mundo e se opõe a todas as coisas do mundo, vínculo e ao mesmo tempo fissura entre o eu e o mundo “entre o ser e o não ser”. A realidade humana é feita, portanto, de desejos sempre renovados. Essa é a grande contribuição da relação consciência-inconsciente. Para introduzir essa questão, ainda que de maneira apressada, nada melhor que o recurso a um texto clássico de um filósofo que influenciou tantos intelectuais – Introdução à leitura de Hegel, de Alexandre Kojeve. Escreve ele: “De maneira geral, o Eu do Desejo é um vazio que só ganha um conteúdo positivo através da ação negadora que satisfaz o Desejo destruindo-o, transformando e ‘assimilando’ o não-Eu desejado […]. Se, portanto, o Desejo recai sobre um não-Eu ‘natural’, o Eu será ‘natural’ também. O Eu criado pela satisfação ativa de tal desejo terá a mesma natureza que as coisas sobre as quais recai esse Desejo: será um Eu ‘coisificado’, um Eu apenas vivo, um Eu animal. E este Eu natural, função do objeto natural, poderá apenas revelar a si mesmo e aos outros como Sentimento de si. Jamais chegará à Consciência de si.

“Para que haja Consciência de si, é preciso que o Desejo recaia sobre um objeto não natural, sobre algo que supere a realidade dada. Ora, a única coisa que supera este real dado é o próprio Desejo. Porque o Desejo enquanto Desejo, isto é, antes de sua satisfação, não é senão um nada revelado, um vazio irreal. Sendo o Desejo a revelação de um vazio, a presença da ausência de uma realidade, ele é essencialmente coisa diferente da coisa desejada, outra coisa que não uma coisa, que um ser real estático e dado, mantendo-se eternamente na identidade consigo mesma […] Uma vez que o Desejo se realiza enquanto ação negadora do dado, o próprio ser deste Eu será ação […] Dito de outra maneira, o próprio ser deste Eu será futuro, e a forma universal deste ser será não espaço, mas tempo. Sua manutenção na existência significará pois para este Eu: ‘não ser o que ele é (enquanto ser estático e dado, enquanto ser natural, enquanto ‘caráter inato’) e ser (isto é, vir-a-ser) o que ele não é’. Este Eu será assim sua própria obra […] No seu próprio ser, o Eu é futuro intencional, evolução desejada, progresso consciente e voluntário. Ele é o ato de transcender o dado que lhe é dado e que é ele próprio. Este Eu é um indivíduo (humano), livre (em relação ao real dado) e histórico (em relação a si mesmo). E é este Eu, e apenas este Eu, que se revela a si mesmo e aos outros enquanto Consciência de si.”[19] (19)
Podemos entender o que acaba de ser dito como um elogio ao mundo do Espírito, não um Espírito descarnado longe dos estados do saber e dos meios e formas desse saber, mas um “Espírito-Experiência” nascido da vida refletida, que envolve movimentos racionais, imagens, lembranças e paixões da alma, sensibilidade subjetiva, ação intelectual e percepção deliberadamente realizada, o ato de pensar e sua obra. É o “Espírito-Experiência” que se opõe à “natureza dada” (animal) que se repete incessantemente. Ele cria hábitos ou repetições que não existiam ainda. É.certamente esse sentido que Paul Valéry atribui ao conceito de Espírito corno potência de transformação, de onde nasce a noção de entendimento discursivo. Vale aqui reproduzir a citação que Heidegger faz de Schelling da Introdução ao projeto de um sistema da filosofia da natureza: “A inteligência (isto é, o espírito) é produtiva de duas maneiras: cegamente e sem consciência; livre e conscientemente. Produtiva sem consciência na visão de mundo, conscientemente produtiva na criação de um mundo ideal.”[20] Ou melhor, o espírito não é senão suas obras e só existe revelando-se. Acrescentemos, portanto, que a noção de Espírito aqui só faz sentido se entendermos o seu traba­ lho corno negatividade, que decompõe a realidade dada ou imaginada. A atividade de decompor é a força e o trabalho do entendimento, “prodigiosa potência do negativo, energia do pensamento”, como escreve Hegel em urna passagem clássica do prefácio à Fenomenologia do Espírito: “A beleza sem força odeia o entendimento porque o entendimento espera dela o que ela não pode dar[…] O espírito conquista sua verdade apenas com a condição de se reencontrar a si mesmo na absoluta cisão. O espírito não se assemelha ao positivo que se desvia do negativo (corno quando dizemos de algo que não é nada, ou que é falso e que, livrado dele, passamos de imediato a outra coisa), mas o espírito é esta potência que se sabe apenas olhar o negativo de frente, sabendo coabitá-lo. Esta coabitação é o poder mágico que converte o negativo em ser. Este poder é idêntico ao que chamamos acima sujeito.”[21]

O que há de peculiar entre nós, hoje, é que a superação das repetições – ou seja, as transformações da conservação – é muito rápida e talvez independente da nossa vontade e desejo e sem que possamos pensar essa passagem. São transformações produzidas por movimentos próprios da ciência e da técnica, movimentos que ganham a forma de produto, levando a percepção e o pensamento a uma transformação desigual porque mais lenta. Ou melhor, não podemos dizer com certeza o que se conserva hoje. Esse descompasso de tempos torna difícil a construção de representações coerentes dos fenômenos criados pela tecnociência. Mais difícil é a tentativa de parar um momento nesse “despenhadeiro fatal de descobertas para nos dar, em tal dia e hora, uma ideia bem definida do ser vivo. Ninguém pode hoje fixar-se diante desta situação e construir uma obra […] temos contra nós a quantidade e o desconhecido de possibilidades experimentais. Precisamos, pois, solucionar problemas cujos dados e enunciados variam a cada instante e de maneira imprevisível”[22]. Sem o trabalho do pensamento, isso acaba por delegar à técnica toda a potência criativa do espírito.

Perguntamos: há espaço para a política hoje, entendendo por política não apenas a criação de direitos, mas também projetos e ideais abstratos? Não estaríamos vivendo um momento no qual esses ideais “transcendentes” são esquecidos em favor dos “fatos” e dos objetos técnicos?

Pensar a civilização tecnocientífíca significa pensar também a nova condição humana, aquilo que nos lança em direção a nós e contra nós – pôr em discussão não apenas as necessidades artificiais, mas também a origem dos problemas criados pelo próprio espírito. Seremos obrigados a pensar contra nosso próprio espírito? Tarefa difícil para aqueles que se sabem enraizados em um mundo passado e que acham pouco útil – para alguns pensadores, impossível – recorrer às ideias passadas para a solução de problemas atuais. Isso não quer dizer que se tenha de abandonar a tradição ou o passado, tendente a desaparecer. O filósofo Jacques Bouveresse nos lembra que a tradição, para Wittgenstein, não deve ser concebida “simplesmente como um obstáculo ou entrave às aspirações do indivíduo e ao progresso da espécie, mas igualmente como a condição de possibilidade de toda a forma de vida humanamente aceitável”.[23] Estamos perdendo a tradição, mas o grande problema é que, tendo perdido essa tradição, dificilmente podemos recuperá-la. Ela não é algo que se aprenda, “não é um fio que o homem pode retomar quando quiser, da mesma maneira que é impossível escolher os próprios ancestrais”.[24] Enfim, retomar a grande tradição do pensamento e da cultura torna-se tarefa mais difícil quando sabemos que predomina ainda a herança positivista de uma história linear. Wittgenstein nos alerta contra essa visão determinista da história: “Quando sonhamos o futuro do mundo, temos sempre em mente o lugar onde ele se encontrará se ele continuar sua trajetória como o vemos fazer agora, e não conseguimos pensar que a trajetória não é reta, mas feita de curvas, e que sua direção muda constantemente.” Ou seja, é preciso pensar no acaso e no imprevisível. O próprio ato de pensar já é um movimento de liberdade, ação livre contra as coisas dadas, previsíveis.

Em síntese, tornamo-nos verdadeiramente humanos quando criamos o mundo das “coisas vagas”, entendendo por “coisas vagas” o mundo das artes, da política, do imaginário, da literatura, etc., momento que saímos de nós para entrar em nós. Mas atenção: ao evidenciarmos o papel da tecnociência, que tende a dar forma à barbárie, não queremos dizer com isso que ela seja o único motor dessa história trágica. A tecnociência é parte da história e certamente tem o papel preponderante de potencializar a barbárie. Mas a pergunta que se deve fazer antes de tudo é: há algo de estruturalmente inumano no humano? Ou, acompanhando Nietzsche, que nos convida a inverter a maneira de pensar: aquilo que se tem por inumano não seria o próprio “solo fecundo de onde pode surgir certa humanidade sob a forma tanto de emoções quanto de ações e obras”? Ou seja, o homem é estruturalmente ambivalente e originariamente desumano. Nessa luta, podemos e devemos pensar que as ações morais podem ser derrotadas, o inumano pode vencer. Existe, no homem, uma pulsão primitiva, “mistura abominável de volúpia e crueldade”? Ao tomar a tragédia grega como referência para falar da modernidade composta de um equilíbrio de desmesura cruel e bárbara e de dinamismo medido e criativo no campo das artes, Nietzsche escreve: “É assim que os gregos, os homens mais humanos da Antiguidade, têm um caráter cruel e trazem neles mesmos a marca de um desejo selvagem de destruição […] Da mesma maneira que, na verdade, a ideia grega do direito desenvolveu-se a partir do crime e do castigo, assim também a mais nobre civilização ganha sua primeira coroa de vitória no altar expiatório […] O gênio grego estava, apesar de tudo, preparado para responder a outra questão: ‘Que vontade anima uma vida de combates e vitórias?'” “Para compreendê-la”, continua Nietzsche, “devemos partir do fato de que o gênio grego valorizou este instinto outrora tão terrivelmente presente e considerou-o legítimo […] O combate e a alegria de vencer foram legitimados: nada separa o mundo grego do nosso a não ser a coloração, que deriva desta legitimação, de certas categorias morais, como a discórdia e a inveja.”[25]

Certamente não foi utilizando as últimas invenções técnicas que os homens de Ruanda promoveram recentemente o espantoso massacre de mais de 800 mil pessoas. Haveria uma pulsão de morte da humanidade? Em um ensaio sobre a “concepção apocalíptica do mundo”, Jacques Bouveresse cita alguns autores (Eduard von Hartmann, Oswald Spengler e Ulrich Horstmann, entre outros) segundo os quais o verdadeiro destino do homem seria pôr fim à “anomalia e à monstruosidade que ele representa, fazer em relação a ele e em relação às outras espécies a caridade suprema que consistiria em acabar com a vida terrestre sob todas as formas sem pena, sem escrúpulos, sem sobreviventes”.[26] Dispomos hoje dos meios necessários para realizar essa tarefa, concluem os autores: “por trás de uma fachada humanista dos discursos piedosos sobre desarmamento e paz, dissimulam-se na realidade a convicção de que devemos acabar com a humanidade e a esperança de fazê-lo em breve”. E, enfim, pergunta: “O que tornaria suportável a sucessão de guerras, atrocidades e massacres, que constituem a história da humanidade, se não fosse o último massacre que poria um fim definitivo a todo o sofrimento?”[27] Guardaríamos certo conforto se pudéssemos atribuir a esses autores um excesso de ironia.

No prefácio de La crise de la culture [A crise da cultura], Hannah Arendt tem uma definição precisa do que acontece. “Vivemos”, diz ela, “uma cisão entre o passado e o futuro, intervalo no tempo que é inteiramente determinado por coisas que não mais existem e por coisas que ainda não existem. Na história, estes intervalos mostraram, mais de uma vez, que podem ocultar o momento da verdade”. Hannah Arendt referia-se não apenas ao tempo histórico, mas ao “estranho entre-dois”, isto é, o momento indeterminado, ou o vazio de pensamento, da passagem para o mundo de um novo pensamento.

Mas, para se falar da condição humana no mundo moderno, somos levados a recuar na história, não para buscar analogias – isso não faz nenhum sentido, uma vez que a mutação hoje parte de outros pressupostos: se a era moderna nasce com as matemáticas puras, a mecânica e a física e todas as espécies de variações mensuráveis, temos hoje um domínio sem precedentes da ciência e da técnica e, ao mesmo tempo, um predomínio da biotecnologia. Se o mundo moderno foi a abertura de fronteiras em todos os sentidos, um florescimento em todas as áreas, nossa condição hoje é feita no vazio do pensamento, em uma enorme ausência de paradigmas. A pergunta mais radical que se põe é se o mundo moderno, tal como construído pelo homem, pode ainda ser compreendido no seu conjunto pelo próprio homem ao fim de uma trajetória com resultados tão obscuros e enigmáticos, como insinua Baudrillard. Ou não seria apenas mais um daqueles momentos de fraqueza e descompasso da interiorização do que acontece quando “a filosofia vem sempre muito tarde […] a ave de Minerva voa apenas ao cair da noite”? (Hegel). Nossa capacidade de entendimento e imaginação já foi ultrapassada pela invenção técnica. O projeto da modernidade – lembra o filósofo Peter Sloterdijk – repousa em uma utopia cinética: “a totalidade do movimento do mundo deve tornar-se a realização do projeto que temos para ele. Progressivamente, os movimentos de nossa própria vida identificam-se com o movimento do mundo; o processo do mundo no seu conjunto torna-se cada vez mais a manifestação da nossa vida […] Dizer que a modernidade prometera fazer a história humana seria minimizar os fatos. No mais profundo dela, a modernidade quer fazer não apenas a história, mas igualmente a natureza”.[28] Ou, dito de outra maneira por Baudrillard, é toda a modernidade “(todo o Ocidente) que a partir de agora é incapaz de responder a seus próprios valores de progresso e crescimento ilimitado”. Sem dúvida, a ciência apresentou-se ao homem moderno de maneira bem diferente do que ela é em nosso tempo. Mas ela abriu caminhos, estabeleceu princípios que há três séculos não cessam de solucionar ilimitados problemas, mas principalmente propor ao homem novos problemas.

Somos herdeiros de uma primeira revolução científica e de certa racionalidade. Lemos, por exemplo, em uma das passagens de Descartes: “As sementes das ciências estão em nós.” Por mais paradoxal que pareça, ao lermos esse axioma tendemos a pensar que o Espírito ganha uma dimensão infinita, abstração ideal materializada nas concepções de movimento e progresso, enquanto o homem perde a sua potência para “reinventar um universo finito”. A imagem antiga do universo era a de que tudo no cosmos, perfeitamente ordenado, era construído inteiramente para o homem e à sua medida. A física de Descartes redefine essa ideia. No seu lugar, ele põe as ideias de extensão e movimento. Ou matéria e movimento. Tudo não é senão matéria e movimento, e essa noção vai alterar fundamentalmente a ideia de ordem em todos os campos. O universo não é ordenado para o homem: ele não é mais ‘ordenado’. A estrutura do mundo – comenta Alexandre Koyré – “não implica nenhuma finalidade, e não se explica por um fim; ela resulta das leis matemáticas do movimento”. “O mundo não está na escala humana, ele está na escala do espírito […] O nascimento da ciência cartesiana é sem dúvida uma vitória decisiva do espírito. É, entretanto, uma vitória trágica: nesse mundo infinito da nova ciência, não há mais lugar para o homem, nem para Deus.”[29] A ciência não é outra coisa senão o espírito humano aplicado diversamente aos objetos – observa ainda Koyré: essa passagem para o novo mundo constitui “uma das mais profundas revoluções intelectuais e mesmo espirituais que o mundo conheceu, conquista decisiva do espírito pelo próprio espírito”.[30] O Discurso do método pode (e, segundo alguns comentadores, deve) ser lido como uma introdução a uma nova ciência, “anúncio de uma revolução intelectual da qual a revolução científica será o fruto”: na edição original ele era acompanhado de três tratados científicos: Dióptrica, Meteoros e Geometria. Mas o que nos interessa é ressaltar a passagem de uma ciência puramente contemplativa a uma ciência ativa, “operativa”, que iria transformar a condição humana e “fazer do homem ‘mestre e possuidor da natureza”‘ sob o império da razão. No ensaio “Le monde incertain”, Koyré descreve o movimento dessa mutação: alargamento sem precedentes da imagem histórica, geográfica e científica do homem e do mundo; “crítica, enfraquecimento e, enfim, dissolução e mesmo destruição e morte progressiva das antigas crenças, das velhas concepções, das velhas verdades tradicionais que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação”.[31] Se o diagnóstico é parecido com o que acontece hoje, a origem dos problemas certamente é outra. Mas é irresistível pensar que haja, talvez, um ponto em comum: ou, pelo menos, a realização acabada de velhas noções do século XVII: a busca da exatidão, aplicada à natureza, “apossando-se do mundo”, momento que procura substituir “o mundo do mais ou menos”. Como escreve Koyré, “para os modernos, exercitar a física quer dizer aplicar no real as noções rígidas, exatas e precisas das matemáticas. Isso trouxe ao mundo um emaranhado de riquezas e escombros. Privado também de suas normas tradicionais de julgamento e escolha, o homem sentia-se perdido em um mundo incerto. Mundo no qual nada é seguro. E no qual tudo é possível.”[32] Impressiona pela proximidade de nossos problemas hoje: “Se tudo é possível é porque nada é verdadeiro. E se nada é certo apenas o erro é certo”,[33] e pouco a pouco a dúvida se estabelece. É nesse momento de incerteza que se procura resposta às questões: o que é o humano?; quem somos?; onde estamos?; para onde vamos? O homem busca o seu lugar “na grande cadeia do ser” e na ordem do mundo. Ou seja, no momento de grandes mutações, quando Mundo e Ser enfrentam a incerteza e o vazio, o trabalho do pensamento tende a começar por interrogar o homem, sua existência e destino. O que é, pois, humano hoje?

O humano é constituído da ideia de experiência, não no sentido matemático e técnico apenas. Isto é, experiências são atos conscientes, que permitem separar e articular meios fins. Talvez uma das ideias mais precisas seja a de Maurice Merleau-Ponty: “O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência.”[34] Humano e experiência andam juntos. É a experiência que dá sentido ao homem, ideia impressa na própria palavra – sair de si rumo ao exterior, “viagem e aventura para fora de si, inspeção da exterioridade”. Merleau­ Ponty conclui, em uma nota de O visível e o invisível, que experiência é permanente iniciação aos mistérios do mundo: “É à experiência que nos dirigimos para que nos abra ao que não somos nós.” É isso o existir como um humano. Sair de si para entrar em si.

Quando Paul Valéry escreve que é preciso interessar os espíritos pelo destino do Espírito, ele deixa claro, no ensaio sobre a liberdade do Espírito, que é a relação do homem com o mundo que está em questão: verdades estão quase mortas, valores em baixa, ruínas de esperanças e crenças, ruína da confiança no espírito, confiança que era o fundamento da vida. Valéry define assim o humano – ou o trabalho do espírito – em oposição a uma atitude “natural” do homem: entende-se por espírito “esta atividade pessoal, mas universal, atividade interior, atividade exterior – que dá à vida, às forças mesmas da vida, ao mundo, e às reações que excita em nós o mundo um sentido e um emprego, uma aplicação e um desenvolvimento de esforço, ou um desenvolvimento de ação diferentes daqueles que são adaptados ao funcionamento normal da vida ordinária, à exclusiva conservação do indivíduo”.[35] Ele designa espiritual tudo o que é ciência, arte, filosofia, conhecimento especulativo, valores artísticos, obras de arte e de pensamento – riquezas materiais e imateriais -, etc. Entende-se por espírito, enfim, “a possibilidade, a necessidade e a energia de separar e desenvolver os pensamentos e os atos que não são necessários ao funcionamento de nosso organismo”.[36] Mas esse incessante movimento do espírito, essa necessidade de se criarem outras necessidades e outras invenções que não a conservação da vida apenas, esse “curioso desvio” que levou a espécie humana a uma grande “aventura da qual ela mesma ignora o objetivo, o fim e até mesmo da qual ele acredita ignorar os limites”.[37] É isso que vemos hoje através do indomável processo de desenvolvimento da tecnociência. Aquilo que é fruto do trabalho do espírito volta-se hoje contra o próprio Espírito, uma vez que a positividade do mundo dirigido pela técnica exclui da aventura humana “os pretextos e todas as ilusões necessárias à ação” humana. Os tesouros criados não são, portanto, imortais, como nos lembra Valéry: “Escrevi há muito tempo, em 1919, que as civilizações são tão mortais como qualquer ser vivo, que não é mais estranho pensar que a nossa possa desaparecer com seus procedimentos, suas obras de arte, sua filosofia, seus monumentos, como desapareceram tantas civilizações desde as origens – como desaparece um grande navio que afunda.”[38]

Em inúmeros ensaios, Valéry recorre ao mar para definir a situação precária de nossa civilização: armada com os procedimentos mais modernos “para se dirigir, para se defender do mar, orgulhar-se das poderosas máquinas que a movem, elas a conduzem tanto em direção à sua perda quanto ao porto; ela afunda com tudo o que traz, corpos e bens”.[39]

Valéry não está sozinho nessa visão trágica da civilização ocidental. Nietzsche e em seguida Spengler, Kraus, Musil, Wittgenstein e Heidegger (por diferentes análises) caminham no mesmo sentido: no fundo, a crítica da civilização dominada pela ciência e técnica: “O conhecimento transformou-se em nós em uma paixão que não teme nenhum sacrifício e no fundo nada teme a não ser sua extinção […] talvez a humanidade esteja a ponto de morrer desta paixão de conhecimento!”[40] Assim, o ser do homem estende-se para além de todas as antigas fronteiras, o infinito muda de sentido para tornar-se uma realidade antropológica. Essa mudança axiológica em referência ao poder humano de estabelecer valores – escreve Eugen Fink – “rompe os limites estreitos dos quais se tinha a compreensão do homem por ele mesmo, mas, assim liberado de seus entraves, o homem perde os contornos da finitude. Não seria uma vaidosa pretensão do seu ser querer ser todas as coisas, pretender ser criador de todo o universo de significações culturais?”[41] Como resultado dessa construção, lemos um futuro sombrio da civilização técnica, como escreve Wittgenstein: “A concepção apocalíptica do mundo é, propriamente falando, aquela segundo a qual as coisas não se repetem. Não é desprovido de sentido, por exemplo, acreditar que a época científica e técnica é o começo do fim da humanidade; que a ideia do grande progresso é uma ilusão que nos cega, como aquela do conhecimento finito da verdade; que, no conhecimento científico, nada existe de bom e desejável e que a humanidade, que se esforça por alcançá-la, precipita-se numa armadilha. Não está absolutamente claro que este não seja o caso.”[42] Esta é também a visão de Kraus: “O progresso, de cabeça para baixo e de pernas para o ar, dança no éter e garante, a todos os espíritos rasteiros, que domina a natureza. Ele inventou a moral e máquina para expulsar da natureza e do homem a natureza. E sente-se ao abrigo em uma construção do mundo cuja histeria e conforto mantêm a consistência. O progresso celebra a vitória de Piro sobre a natureza. O progresso fabrica porta-moedas com a pele humana.”[43] E ainda: “O verdadeiro fim do mundo é o aniquilamento do espírito.”[44] Kraus pergunta ainda: depois do aniquilamento do espírito, pode ainda existir um mundo?[45]

Em Heidegger, a questão da técnica é mais radical e complicada. Citemos apenas um fragmento – muitas vezes comentado – da Introdução à metafísica: “a Rússia e a América são, do ponto de vista metafísico, a mesma coisa, a mesma loucura desesperante da técnica liberada e da organização sem limites do homem normal”. Jacques Bouveresse observa que, para Heidegger, nenhum dos sistemas políticos tinha condições de pôr em discussão seriamente o problema da técnica e muito menos solucioná-lo. Essa dificuldade existe não apenas por razões políticas, mas principalmente teóricas: Heidegger não vê oposição entre metafísica de um lado e pensamento tecnocientífico de outro. Para ele, a questão da técnica só pode ser discutida a partir da própria história da metafísica, isto é, a partir da questão do ser e do “esquecimento do ser”. Bouveresse interpreta o pensamento de Heidegger como uma crítica a uma aliança da metafísica, da ciência e da técnica, que ameaça ser fatal para a humanidade, “uma vez que a técnica, no fundo, não é outra coisa senão a metafísica realizada, acabada”. Bouveresse cita em um ensaio sobre a relação entre os filósofos e a técnica uma entrevista de Heidegger com o professor Richard Wisser em 1969, publicada no Cahier de l’Herne de 1983: “Não, falo da história da decadência, mas apenas do destino do Ser na medida em que ele se afasta cada vez mais em relação à manifestação do Ser entre os gregos – até que o Ser se torne uma simples objetividade para a ciência e hoje um simples fundo de reserva para a dominação técnica do mundo.”[46] Em termos sartrianos, pode-se dizer que a técnica – ou um “conjunto de receitas” – precede a própria existência. O Ser – ou a realidade humana – é previamente definido por um conjunto de normas técnicas, antes mesmo da própria existência. Ele não se faz na experiência e na prática, não “se concebe”, que é o princípio da ideia de subjetividade. Para Sartre, humano é aquele que se define como um projeto para o futuro.

A análise de Paul Valéry caminha em outro sentido, mas tende a chegar às mesmas conclusões de Heidegger. No ensaio Une conquête méthodic [Uma conquista metódica] ele adverte para dois perigos que “não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem”,[47] que são, exatamente os objetos do trabalho do espírito. Eis o paradoxo: o espírito constrói a ordem e a estabilidade e, ao mesmo tempo, faz tudo para arruiná-las. Mais: no prefácio às Cartas persas, Valéry define como barbárie a era dos fatos e diz que nenhuma sociedade pode organizar­ se, ordenar-se, sem as Coisas vagas, isto é, sem as normas morais, as ficções hereditárias, hábitos, regras, projetos políticos, imaginários, etc. Ao longo da história, o espírito criou ordem e desordem. Ele mesmo se desenvolveu no paradoxo dos tempos da ordem e da desordem.

Hoje, também o trabalho do espírito passa por grande mutação. O trabalho puramente funcional e técnico que lhe é atribuído pela tecnociência tende a pô-lo em questão. Pode-se dizer que o espírito, incapaz de compreender o vir-a-ser do mundo, “teria conseguido imprimir ao mundo as leis do seu próprio vir-a-ser”,[48] isto é, um mundo incompreendido e incerto. Mais: diante daquilo que o próprio espírito criou, não só no campo dos objetos, mas também no do pensamento (racionalidade técnica), o que esperar? A resposta de Valéry, “angustiante e angustiada”, parece evidente: o espírito tornou-se impossível – impossível porque supérfluo. Lemos em muitos de seus ensaios a advertência: O espírito sofre perigo mortal. O comentário do filósofo Édouard Gaede no seu Nietzsche et Valéry: essai sur la comédie de l’esprit parece certeiro: quando, para caracterizar a época contemporânea, “Valéry põe em evidência a desordem, incoerência, imprevisibilidade que a dominam; ele sabe que esta desordem não decorre das ficções, dos mitos e dos ídolos, mas daquilo que o espírito produziu de mais racional. A técnica, cujos progressos invadem o planeta; as massas, as velocidades, as intensidades fora de qualquer proporção humana; a extensão, a frequência e a complicação das trocas de todo gênero, que fazem do globo um corpo sem nervura, tremendo ao mínimo choque em uma de suas partes; distanciamento cada vez maior entre as forças postas a serviço do homem e as inteligências que as comandam […] Este mal-estar é acrescido da consideração de que uma espécie que soube modificar tão profundamente seu meio vital foi incapaz de organizar de maneira racional as relações entre seus membros. Enquanto a precisão científica entrou, pouco a pouco, no comércio do homem com a natureza, ‘as relações do homem com o homem permaneceram dominadas por um empirismo detestável’.”[49]

A precisão, hélas!, tem seus inconvenientes. Artifício do espírito e sua obra, ela se volta contra ele e o ameaça na sua própria existência. Nascido de uma desordem limitada, tendendo a uma ordem ilimitada, o espírito tende a ser anulado. Isso porque o papel puramente funcional que a sociedade-modelo lhe reserva o conduz diretamente à sua perda, ou melhor, à perda da liberdade do espírito. “Dominar o espírito leva, inicialmente, a enfraquecê-lo para, em seguida, suprimi-lo. Espírito e liberdade são termos solidários e mesmo correlatos: só existe espírito livre; a única coisa livre é o espírito – comenta Gaede. […] Com o espírito, toda nossa civilização está em jogo. Seja pelo excesso de precisão ou pelo excesso de potência, seja pelo rigor inumano ou pela bruta precipitação, a civilização está prestes a se destruir por seus próprios meios. A ordem absoluta que o espírito quis imprimir ao mundo volta-se pois para sua perda – volta à desordem. Que mudança extrema, que extrema, que extranha transmutação!” Valéry obsrva este cenário fascinado: “Estamos na situação de um jogador que percebe com espanto que a mão do seu parceiro lhe dá cartas jamais vistas e que as regras do jogo são modificadas a cada lance. Nenhum cálculo de probabilidade é possível e ele nem pode mais lançar as cartas contra seu adversário. Por quê? É que, mais ele o encara, mais se reconhece nele! […] O mundo moderno forma-se à imagem do espírito do homem.”[50]

Antes, essa mesma visão do espírito formando o mundo à sua imagem lhe havia servido para sugerir a harmonia e a consistência que o pensamento pretende introduzir no real. Agora, o pensamento move-se em pesadelo, e contempla, no espelho do mundo, seu próprio caos. Para extrair a ordem da desordem, foi preciso o espírito: teria sido necessário o espírito para mergulhar mais uma vez a ordem na desordem. Uma e outra são feitas à sua imagem, e ele vive de passar de uma a outra. Ele vive disso: mas, no presente, parece morrer disso.

Desaparecimento do indivíduo com o aperfeiçoamento das estruturas coletivas nas quais ele está enredado: “A civilização, amparando-se nas próprias ações, reconhecendo e explorando racionalmente seus recursos – agindo de maneira metódica -, deixa sempre menos espaço à pessoa e tende a suprimi-la. Assim, ela trabalha para destruir aquilo mesmo que constitui sua substância vital e que, por uma espécie de criação contínua, a mantém no ser: ela tende, pois, a se abolir a si mesma. É o mesmo movimento de autodestruição que, no espírito do homem, abole as ideias.” Dir-se-ia que o espírito, incapaz que foi de compreender o futuro do mundo, conseguiu imprimir no mundo as leis de seu próprio futuro.

Esse movimento se realiza em diversos tempos; tempo entendido no sentido não estritamente cronológico, uma vez que os movimentos do espírito não se situam em um contínuo linear de sentido único.

Lemos na abertura de O olho e o espírito, do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty: “A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las[…] Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como ‘objeto em geral’, isto é, a um tempo como se ele nada fosse para nós, e, no entanto, se achasse predestinado aos nossos artifícios […] O pensamento ‘operatório’ torna-se uma espécie de artificialismo absoluto, como se vê na ideologia cibernética, onde as criações humanas são derivadas de um processo natural de informação, porém concebido, por sua vez, segundo os modelos das máquinas humanas.”[51]

Isso pode ser lido de duas maneiras: uma, apressada e superficial, que tende a interpretar o texto como uma condenação à técnica; a outra leitura é mais cuidadosa: devemos ser sensíveis à diferença entre os conceitos da técnica e da ciência contemporânea e a forma que ciência e técnica dão ao mundo. Em síntese, é preciso fazer a distinção entre técnica e civilização técnica.

Essa forma do mundo dada pela ciência e pelos conhecimentos científicos desvaloriza, de alguma maneira, toda nossa experiência vivida: a natureza das coisas e do homem passa a ser definida e dada não pela experiência humana e pelos sentidos, mas pela tecnociência. Ou melhor, nossos sentidos são pensados como coisas ilusórias, aparentes e irracionais. A razão passa a ser coisa de saber metódico dos cientistas. Enfim, o mundo verdadeiro “não são essas luzes, essas cores, esse espetáculo sensorial que meus olhos me fornecem, o mundo são as ondas e os corpúsculos dos quais a ciência me fala e que ela encontra por trás dessas fantasias sensíveis”, conclui Merleau-Ponty.

É evidente que Merleau-Ponty não manifesta aversão à ciência e aos avanços da técnica. Nem se pode atribuir a ele uma visão nostálgica do mundo. O que ele questiona é a ideia de uma ciência como representação do mundo que se basta, “sem que tenhamos mais nenhuma questão válida a pôr além dela”. As questões válidas além da ciência são aquelas que constituem o humano. Inicialmente a ideia de que a vida humana é fundada em uma mobilidade permanente, muitas vezes produzida pelas construções científicas. Mas, para entender essa mobilidade, os homens precisam desenvolver, a cada momento, uma grande imaginação, o que pede o trabalho da percepção muito além do saber metódico da ciência. Aliada a essa mobilidade permanente está também a ideia da experimentação sobre si mesmo, experiência inscrita no próprio homem, e não apenas conservação de si, uma vez que a conservação implica certo automatismo inerente ao pensamento técnico.

Humano é ainda aquele que é capaz de criar linguagens e, portanto, criar o mundo. Ou, como diz Wittgeinstein, o mundo é tudo aquilo que se pode dizer. Humano é também, e principalmente, a invenção da política, isto é, a criação de laços sociais que fundam a comunidade. Enfim, muitos são os elementos que constituem o humano, todos eles contrários à prática utilitária da tecnociência. Hoje, portanto, são muitas as determinantes que põem em causa o humano. Lembremos o que disse Karl Kraus: o advento da ciência e da técnica é o provável começo do fim da humanidade: “[…] no fim de tudo, há uma humanidade morta deitada ao lado de obras que custara tanto espírito para serem inventadas mas nenhum espírito restou para utilizá-las. Fomos muito complicados para construir a máquina e somos muito primitivos para nos servirmos dela”, escreve ele no famoso texto chamado Apocalipse.

Em outro ensaio publicado recentemente e também dedicado às consequências da razão técnica, o filósofo Jacques Bouveresse diz que Kraus estima que a crença romântica nas virtudes do progresso científico e técnico decorre do fato de as pessoas julgarem a situação atual “em função de conceitos que cessaram há muito tempo de se aplicarem e que falam dela em uma linguagem completamente ultrapassada, esquecendo-se de que um processo que se tornou completamente autônomo e cego e que quase se faz no essencial sem o homem e mesmo, em certos casos, contra ele não deveria suscitar nenhuma exaltação romântica. O progresso de um lado e a moral convencional de outro parecem ter feito hoje uma aliança ofensiva contra a natureza em geral e contra a natureza humana em particular.”[52]

Pensadores contemporâneos vão além nessa avaliação da nova condição humana: lemos, por exemplo, em Heiner Müller, em uma entrevista de 1990 citada por Laymert Garcia dos Santos: “O verdadeiro problema deste século da tecnologia é a desrealização da realidade: a fuga da realidade na imaginação. As coisas não são como estão. Tudo é cada vez mais em sentido figurado. É a tendência.” Na mesma oportunidade, continua Laymert Garcia, “o poeta surpreendeu seu interlocutor, e seus leitores, ao apontar que a estratégia da aceleração total econômica e tecnológica se fundava no princípio da seleção, e que o sujeito humano ia desaparecer no vetor da tecnologia. Podemos, pois, concluir que as transformações da técnica têm mais impacto na nossa maneira de viver e pensar do que a política”.

No mesmo artigo, Laymert Garcia cita ainda Ray Kurzweil e seu livro A era das máquinas espirituais: “A introdução da tecnologia na Terra não é meramente uma questão particular de uma das inumeráveis espécies da Terra. É um evento fulcral na história do planeta. A maior criação da evolução – a inteligência humana – está providenciando os meios para o próximo estágio da evolução, que é a tecnologia. A emergência da tecnologia é prevista pela Lei dos Retornos Acelerados. A subespécie Homo Sapiens emergiu apenas dezenas de milhares de anos depois de seus antepassados humanos. De acordo com a Lei dos Retornos Acelerados, o próximo estágio da evolução deveria medir seus eventos relevantes em meros milhares de anos, rápido demais para a evolução com base no DNA. Esse próximo estágio da evolução foi criado pela inteligência humana propriamente dita, outro exemplo do mecanismo exponencial da evolução usando suas inovações de um período (seres humanos) para criar o próximo (máquinas inteligentes). […] A emergência da tecnologia foi um marco na evolução da inteligência na Terra porque representou um novo meio de a evolução registrar seus desenhos. O próximo marco será a tecnologia criando sua própria próxima geração sem intervenção humana. O fato de que existe apenas um período de dezenas de milhares de anos entre esses dois marcos é outro exemplo do ritmo em aceleração exponencial que é a evolução.”[53]

A conclusão de Laymert é assustadora: “Não deixa de ser irônico”, escreve ele, “constatar que a última pergunta é angustiante: até que ponto a inteligência é relevante no Universo?”[54]

A nossa proposta consiste, portanto, em retomar o tema das mutações, mas, desta vez, pondo o homem e a ideia de humano no centro dos debates. De Heidegger a Foucault, chegando até aos cientistas e filósofos contemporâneos, uma das grandes questões está na ideia da morte do sujeito, na crise da subjetividade. Temas como experiência histórica, novas noções de espaço e tempo, transformações da percepção etc. são também discutidos em A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações.

Notas

  1. MERLEAU-PONTY, Maurice. Les sciences de l’homme et la phénoménologie. Paris: Centre de Documentations Universitaires, 1958. 
  2. VALÉRY, Paul. Cahiers II. Paris: Gallimard, 1974, p. 851. 
  3. BOUVERESSE, Jacques. “Les philosophes et la technique”. Essais IV. Marselha: Agone, 2004, p. 123. 
  4. “Entrevista do professor Richard Wisser com Heidegger”, citada por Jacques Bouveresse em “Les philosophes et la technique”. Essais IV. Marselha: Agone, 2004, p. 124. 
  5. VALÉRY, Paul. “Discours aux chirurgiens”. ln:____. Oeuvres I. Paris: Gallimard, 1957, p. 916. (Bibliotheque de la Pléiade). 
  6. Idem, p. 915-916. 
  7. GAÈDE, Édouard. Nietzsche et Valéry – Essai sur la comédie de l’esprit. Paris: Gallimard, 1962, p. 105. 
  8. ALAIN. Propos II. Paris: Gallimard, 1970, p. 392. 
  9. Citação feita por Jean-Pierre Sêris em La technique. Paris: PUF, 1994, p. 289. 
  10. Idem, p. 303. 
  11. Programa Mutações, – a condição humana, Artepensamento, 2008, p. 34. 
  12. ARENDT, Hannah. Condition de l’homme modeme. Paris: Calman-Lêvy, 1983, p. 36. 
  13. Programa Mutações, – a condição humana, Artepensamento, 2008, p. 50. 
  14. Idem, p. 68. 
  15. Idem, p. 68. 
  16. MERLEAU-PONTY, Maurice. Les sciences de l’homme et la phénoménologie. Paris: Centre de Documentations Universitaires, 1958. 
  17. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
  18. MERLEAU-PONTY, Maurice. “O metafísico no homem”. ln____: São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 179. (Coleção Os pensadores). 
  19. KOJÉVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947, p. 11-12. 
  20. Citado por Jacques Bouveresse em “La conception apocalyptique du monde”‘. Essais II. Marselha: agone, 2001, p. 47. 
  21. HYPPOLITE, Jean. Genèse et structure de la phénoménologie de l’esprit de Hegel. Paris: Aubier, 1946. 
  22. VALÉRY, Paul. Cahiers I. Paris: Gallimard, 1973, p. 837. (Bibliotheque de la Pléiade). 
  23. BOUVERESSE, Jacques. “La ‘conception apocalyptique du monde’”. Essais II. Marselha: Agone, 2001, p. 20. 
  24. Idem. 
  25. NIETZSCHE, Friedrich. Cinq prefaces à cinq livres qui n’ont pas été écrits. Paris: Gallimard, 2000, p. 314. (Bibliothèque de la Pléiade). 
  26. BOUVERESSE, Jacques. “La ‘conception apocalyptique du monde’”. Essais II. Marselha: Agone, 2001, p. 20. 
  27. Idem, p. 21. 
  28. SLOTERDIJK, Peter. La mobilisation infinite. Paris: Christian Bourgois Éditeur, 2000p. 57. 
  29. KOYRÉ, Alexandre. Introduction à la lecture de Platon, suivi de Entretiens sur Descartes. Paris: Gallimard, 1962, p. 163. 
  30. Idem. 
  31. Idem. 
  32. KOYRÉ, Alexandre. Études d’histoire de la pensée philosophique. Paris: Gallimard, 1971, p. 335. 
  33. Idem, p. 153. 
  34. MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971, nota de trabalho, p. 187. 
  35. VALÉRY, Paul. “La politique de l’esprit”. ln:____ –Oeuvres I. Paris: Gallimard, 1957, p. 1.014. (Bibliotheque de la Plèiade). 
  36. Idem. 
  37. Idem. 
  38. Idem, p.1022. 
  39. ____ Cahiers II. Paris: Gallimard, 1974, p. 921. 
  40. NIETZSCHE, Friedrich, Aurora, parágrafo 429, “A nova paixão”, citado por Jacques Bouveresse em “La ‘conception apocalyptique du monde”‘, Essais II. Marselha: Agone Éditeurs, 2001, p. 8. 
  41. FINK, Eugen. “Nouvelle expêrience du monde selon Nietzsche”. ln: Nietzsche aujourd’hui? 10/18, Centre Culturel International de Cerisy-la-Salle, 1973. 
  42. WITTGENSTEIN, Ludwig. Citado por Jacques Bouveresse em “Pourquoi pas des philosophes?”. Essais I. Marselha: Agone, 2004, p. 51-52. 
  43. KRAUS, Karl. Citado por Jacques Bouveresse em “Dans les ténèbres de cette époque”. Essais I. Marselha: Agone, 2000, p. 79. 
  44. Idem. 
  45. Idem. 
  46. HAAR, M. Cahier de l’Herne, n. 45: Martin Heidegger. Paris: L’Herne, 1983, p. 384. 
  47. VALÉRY, Paul. Oeuvres I. Paris: Gallimard, 1957, p. 971. (Bibliotheque de la Pléiade). 
  48. GAÈDE, Édouard. Nietzsche et Valéry. Paris: Gallimard, 1962, p. 346. 
  49. Idem, p. 105. 
  50. Idem, p. 106. 
  51. MERLEAU-PONTY, Maurice. “O olho e o espírito”. ln:____ São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 85. 
  52. BOUVERESSE, Jacques. “Kraus, Spengler & le declin de l’Occident”. Essais II. 
  53. Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2008. 
  54. Idem.