2006

Engajamento e traição

por Marcelo Coelho

Resumo

Um livro de Julien Benda publicado em 1927, A traição dos clérigos (nome que ele dá aos intelectuais como defensores de “realidades espirituais”), merece ser lembrado ao se tratar de uma questão que agitou o século XX (em particular a intelectualidade francesa) e que ainda hoje se coloca: a do engajamento partidário do intelectual. Dois casos podem ilustrá-la: o de Sartre, que justificava suas adesões (primeiro ao partido comunista soviético, depois ao maoísmo) sempre de um ponto de vista tático, qualificando de “abstrata” e “burguesa” toda pretensão à universalidade; e o de André Gide, que nos anos 1930 também se aproximou dos comunistas (para se afastar pouco depois), mas justificando sua posição de um ponto de vista claramente moral. Essa é também a posição de Benda, que fala de traição dos intelectuais quando eles se tornam ideólogos (como Maurice Barrès, por exemplo, que dizia: “mesmo se a pátria estiver errada, temos de lhe dar razão”). Contra uma verdade “particular”, ele se apoia no valor universal do famoso panfleto “J’accuse” de Émile Zona (1898) que ajudou a reabilitar a verdade do caso Dreyfus ao desvincular a ideia de justiça dos interesses de alguma “razão de Estado”, e que dizia defender Dreyfus não por ser judeu, mas por ser homem simplesmente. Segundo Benda, os intelectuais traem quando não cumprem esse dever para com valores, como a verdade e a justiça, que devem ser vistos de maneira muito real e concreta como “absolutos” sempre que o ser humano é ofendido e injustiçado.

 


Discussões sobre o papel dos intelectuais não constituem novidade, mas foi estimulante que viessem formuladas, no ciclo de palestras que deu origem a este volume, em torno de uma situação recente e relativamente incomum: não a mera “crise” ou o sempre apontado “declínio” dos intelectuais, e sim o seu “silêncio”.[1]

Não caberia no espaço de um ensaio, ou de uma palestra, fazer o balanço do envolvimento dos intelectuais com a política, ao longo do século XX. Fica de todo modo claro, em uma visão retrospectiva, que o engajamento de pensadores, poetas, artistas e escritores na prática partidária levou a que incorressem em erros frequentes, quando não vexaminosos; deste ângulo, um relativo “silêncio dos intelectuais” teria de constar como consequência natural do muito que já se registrou de impróprio, acintoso e infeliz em suas declarações.[2]

O tema não se dissocia de uma questão mais antiga, a que cabe voltar. Foi apresentada, em termos candentes, em um livro que fez história na vida intelectual francesa: trata-se de A traição dos clérigos, de Julien Benda. Publicado em 1927, o ensaio tornou-se famoso de imediato, dando origem a prolongadas polêmicas. Vinte anos depois, teve uma edição revista e ampliada pelo autor; contudo, num período de plena voga existencialista e de notório prestígio do tema do engajamento político, as considerações de Benda pareciam irremediavelmente condenadas ao esquecimento, quando não ao mal-entendido puro e simples. O título do livro continuou a ser mencionado como uma espécie de slogan, mas o impacto de suas ideias só fez decrescer com o tempo. Fenômeno bastante explicável, de certo ponto de vista. Para Julien Benda, ocorre “traição” sempre que um intelectual (ou “clérigo”, clerc, como ele prefere escrever) abandona o mundo das ideias puras, das considerações abstratas, das “realidades espirituais” e trata de condicionar seu pensamento aos interesses políticos, econômicos e partidários imediatos. Sem dúvida, por trás de seus argumentos há uma concepção bastante rígida e maniqueísta da atividade intelectual; uma separação inapelável entre o “clérigo” desinteressado e o intelectual traidor, entre o âmbito das ideias e o âmbito das paixões terrenas, não tinha como ser aceita no contexto intelectual e político do século XX. Antifeminista convicto, Benda chegava ao extremo de considerar o casamento prejudicial à atividade de um clérigo autêntico; melômano talentoso, deixou de se dedicar ao piano devido ao excessivo apelo sensorial que a música é capaz de exercer (eis um ponto, entre outros, que Benda possuía em comum com a figura de Settembrini, o personagem iluminista de A montanha mágica que  considerava  a  música  “politicamente  suspeita”).[3]

Podemos sorrir de tais pudores; o fato é que também nos acostumamos, enquanto isso, a suspeitar de todos os termos que Julien Benda prezava e defendia: a Verdade, os Direitos do Homem, a Justiça, a Razão… Do uso das letras maiúsculas na grafia de tais termos, passou-se insensivelmente a colocá-los entre aspas; pouca coisa escapou de um longo trabalho de crítica, de desconfiança e relativização filosófica, e sempre haveria de parecer ingênuo o teórico que se dispusesse a invocar, como Benda, a neutralidade, a imparcialidade, a universalidade do  pensamento.

Nascido em 1867, o autor de A traição dos clérigos morreu quase nonagenário, em 1956, e já na década de 1930, ou antes disso, surgia no ambiente intelectual francês como uma voz minoritária, ultrarracionalista, “cartesiana”, para usar um termo carregado de conotações negativas até hoje. Entretanto, os argumentos de Benda merecem ser lembrados: tanto em função da irresponsabilidade dos pronunciamentos políticos de muitos intelectuais quanto dos erros que cometeram ao se calar.

Tomaremos a tese de Benda como referência para analisar, de forma panorâmica, alguns momentos privilegiados da atuação dos intelectuais na política francesa. Se, com isso, há um risco de anacronismo e excessiva severidade nos parâmetros de julgamento de que fazemos uso, por outro lado, contextualizando melhor o pensamento de Benda a partir das disputas políticas concretas que o inspiraram, talvez o tema de A traição dos clérigos não nos pareça tão ultrapassado assim.

Este texto se dividirá em três partes, seguindo uma ordem cronológica invertida. Inicialmente, enfocamos dois casos concretos de intervenção intelectual no debate político, por parte de escritores que, em seu tempo, foram considerados “mestres de pensamento” para suas respectivas gerações: Jean Paul-Sartre (1905-1980), para a geração que chegou à idade adulta depois da Segunda Guerra Mundial, e André Gide (1869-1951), que desempenhou um papel equivalente no período do entre guerras. Em seguida, trataremos de A traição dos clérigos e de como as atitudes de Sartre e Gide se relacionam com o modelo de Julien Benda. Depois disso, dirigimo-nos ao final do século XIX, para entender a origem histórica das posições de Benda, durante a eclosão do Caso Dreyfus, e avaliar em que medida, a partir daquele momento histórico particular, faria sentido a ideia de uma traição dos intelectuais. Resta-nos saber, encerrado esse caminho retrospectivo, se  ainda  faz.

1

Vejamos, de início, dois momentos especialmente contestáveis no longo e sinuoso percurso de engajamentos políticos a que Sartre se dedicou até o final da vida. Sem dúvida, o destaque alcançado por esse autor na vida intelectual do século XX deve muito aos seus atos de extrema autonomia diante dos poderes constituídos, e a atitudes não raro espetaculares de independência e sinceridade pessoais. Mas foram comuns, na carreira de Sartre, momentos de súbita associação não com a procura da verdade, não com a independência de julgamento, mas sim com a mistificação e com a violência; dois casos desse tipo serão analisados aqui.

O primeiro momento a assinalar está datado de julho de 1954, e ocorre no contexto de uma estranha mudança nas ideias políticas de Sartre. Ele voltava de sua primeira viagem à União Soviética. Lembremos que Stalin tinha morrido em 1953. O processo de desestalinização da União Soviética era naquele momento uma promessa a ser desenvolvida — sabe-se, claro, dentro de que limites; com Stalin ou sem Stalin, é inegável que a vida política na União Soviética não estava caracterizada por um clima de liberdade individual.

Lembremos também que Sartre tinha sido, por longo tempo, um crítico dos regimes do Leste e do marxismo ortodoxo. Durante a ocupação alemã, Sartre procurou criar uma organização antifascista sem ligações com o PC, com o grupo “Socialismo e Liberdade”; no pós-guerra, teve o projeto de abrir uma “terceira via”, alternativa ao capitalismo ocidental e ao sistema soviético, por meio de um agrupamento partidário mais amplo, o RDR (Rassemblement Démocratique Révolutionnaire), que durou até 1950.

Lembremos ainda o caso de Paul Nizan, amigo e colega de Sartre, que abandonara a vida universitária para se engajar no PCF em 1927. Na década de 1930, ele assumiria cargos importantes na imprensa partidária; passou entretanto a discordar da linha de Stalin algum tempo depois da assinatura do pacto germano-soviético, em 1939. Rompendo com o partido, Nizan morreria no ano seguinte, no front. Sua memória foi então atacada por figuras de primeiro plano do partido, como Maurice Thorez, Henri Lefebvre e Aragon: os livros de Nizan foram analisados longamente para mostrar quanto prefiguravam a “traição” protagonizada por ele ao sair bruscamente do PCF.

É sem dúvida aludindo a esses procedimentos com relação a Nizan que Sartre, ainda em 1947, escrevia frases como estas:

Caso se pergunte hoje se o escritor deve, para atingir as massas, oferecer seus serviços ao partido comunista, respondo que não; a política do comunismo stalinista é incompatível com o exercício honesto do ofício literário […] Nunca se responde ao adversário, a tática é desacreditá-lo: ele é da polícia, é do Intelligence Service, é um fascista. Quanto às provas, nunca são dadas, pois são terríveis e envolve muita gente. Se você insiste em conhecê-las, eles lhe pedem que pare e acredite na acusação sob palavra: Não nos force a dizer, isso complicaria a sua vida. Em suma, o intelectual comunista retoma a atitude do estado-maior que condenou Dreyfus com base em provas secretas […] Pobres intelectuais comunistas: fugiram da ideologia de sua classe de origem, para reencontrá-la na sua classe de opção. Desta vez, acabou a brincadeira; trabalho, família, pátria: eles têm de cantar. Imagino que muitas vezes tenham vontade de morder, mas estão acorrentados: só lhes permitem uivar contra fantasmas ou contra alguns escritores que permaneceram livres e não representam nada […] o PC entrou hoje na ronda infernal dos meios; é preciso tomar e manter posições-chave, isto é, meios de adquirir outros meios. Quando os fins se distanciam, quando os meios se multiplicam a perder de vista, como insetos, a obra de arte também se torna meio, integra a cadeia, os seus fins e princípios se tornam exteriores a ela; passa a ser comandada de fora, não exige mais nada, prende o homem pelo estômago ou pelo sexo; o escritor conserva a aparência do talento, ou seja, a arte de encontrar palavras que brilhem, mas lá dentro alguma coisa morreu, a arte se transformou em propaganda. No entanto, é alguém como o sr. Garaudy, comunista e propagandista, que me acusa de ser um coveiro. Eu poderia devolver-lhe o insulto, mas prefiro assumir a minha culpa: se tivesse poder para isso, enterraria a literatura com as minhas próprias mãos, para que ela não servisse aos fins para os quais ele a utiliza. Ora, os coveiros são pessoas honestas, certamente sindicalizados, talvez comunistas. Prefiro ser coveiro a ser lacaio.[4]

Em julho de 1954, sete anos depois de ter escrito esse texto, e logo após seu retorno da União Soviética, Sartre concede uma entrevista ao jornal Libération,[5] que seria publicada sob uma espantosa manchete: “A liberdade de crítica é total na URSS”. Eis a argumentação de Sartre, conforme transcrita por Annie Cohen-Solal, na sua biografia do autor:

O cidadão soviético possui inteira liberdade de crítica, mas trata-se de uma crítica que não se concentra em pessoas, mas em medidas. O erro seria acreditar que o cidadão soviético se mantém calado, sem fazer críticas. Isso não é verdade. Claro que ele critica, e de maneira muito mais eficaz que a nossa. O operário francês diz meu patrão é um canalha!. O soviético não diz: o diretor da minha fábrica é um patife!, mas: esta medida é absurda. A diferença é que o francês comenta num café, enquanto o soviético declara publicamente, assumindo a responsabilidade da crítica durante uma reunião oficial… Muitas vezes isso acontece de forma agressiva, mas sempre num sentido positivo. E o que vale para os operários vale para todo mundo.[6]

Não só da perspectiva de hoje, quando conhecemos de que modo eram tratados os críticos do sistema soviético, mas também da perspectiva do próprio Sartre, que tampouco ignorava a longa história de perseguição aos opositores de Stalin desde a década de 1930, não há muito o que comentar a respeito dessas considerações, exceto que exemplificam o evidente compromisso de um grande intelectual com a mentira e a violência totalitária.

Sem dúvida, cabe notar que está presente aqui um tema constante na obra de Sartre: a ideia de que a liberdade é indissociável da ideia de responsabilidade. Até certo ponto, as frases de Sartre nessa entrevista não diferem de outra, muito famosa, que ele escreveu antes mesmo do término da Segunda Guerra: “Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã”. Evidentemente, essa forma de encarar a liberdade nada tem a ver com a questão concreta de saber se existe ou não liberdade política, pública, dentro de um sistema, de um regime — e sem dúvida não havia liberdade nenhuma de crítica na União Soviética. Mas o que importa enfatizar aqui não é a questão da “responsabilidade” sartriana, mas a forma puramente propagandística com que o filósofo enfocava a questão da liberdade no regime soviético. Não se tratava, por exemplo, de simplesmente defender a União Soviética como “o pior dos males” naquele momento particular. Colocando-se acima de quaisquer considerações de tática política, Sartre afirma em tese, em absoluto, que a qualidade da crítica é melhor na União Soviética do que na França, uma vez que naquele país vigora um espírito de “crítica construtiva”, em comparação com o mero xingamento a que se entrega o operário francês. Toma-se, em suma, uma restrição da liberdade por um aperfeiçoamento da liberdade. Citemos mais uma frase dessa entrevista. O repórter pergunta: “Os soviéticos têm vontade de viajar e conhecer países estrangeiros?”. “De viajar, não”, responde Sartre; “não têm a menor vontade de viajar por enquanto. Há muitas coisas ainda a fazer por lá.”[7] Veremos, mais adiante, de que modo André Gide comentara, décadas antes, a questão das relações entre os cidadãos soviéticos e o estrangeiro.

Dito isso, é importante contextualizar um pouco as afirmativas de Sartre, que parecem sinistramente humorísticas hoje em dia — e talvez naquela época também. De 1952 a 1956, ele viveu uma aproximação estreita com o PC, tornando-se, como se diz, um autêntico “companheiro de viagem” do partido. Embora não justifique as declarações que Sartre, como intelectual, estivesse fazendo publicamente, essa aproximação tinha motivos do ponto de vista tático.[8] Sua experiência com o RDR havia fracassado, em parte por falta de sustentação popular e eleitoral; tratava-se de um período em que a guerra fria estava no auge, tornando alvo de ataques cruzados a proposta de uma “terceira via”. Diga-se, ademais, que o alcance das liberdades políticas e individuais nos Estados Unidos ou na França — embora incomparavelmente superior ao que se verificava nos regimes socialistas — era também menor do que o que conhecemos hoje em dia. Nos Estados Unidos, a ameaça do macarthismo era palpável, e incidia sobre os mais diversos representantes do pensamento crítico. Os direitos civis dos negros eram menosprezados de forma cabal em diversos estados americanos. De modo geral, um conformismo não apenas no campo ideológico, mas também no plano dos costumes, da arte, da sexualidade, faziam do Ocidente um lugar bem mais fechado e opressivo do que viria a ser depois da explosão libertária dos anos 1960 — para a qual o exemplo da vida e da obra de Sartre, nunca é demais lembrar, contribuiu decisivamente.

Na França, o clima de intimidação política da guerra fria levou a que ocorressem alguns incidentes significativos; citemos dois casos contemporâneos ao engajamento de Sartre com o PC, narrados por Annie Cohen-Solal.[9]

O primeiro é o caso de Henri Martin. Tratava-se de um marinheiro filiado ao PCF, que militava contra a presença francesa no Vietnã; por distribuir panfletos contra a guerra, foi condenado a cinco anos de prisão. Natural que os intelectuais, e Sartre entre eles, se entregassem a um daqueles momentos de mobilização, de generosidade, de “simbolização” muito importantes, que justificam o seu papel político: criou-se um ruidoso affaire, graças à organização de uma grande frente de intelectuais contra o poder de Estado; denunciava-se assim, segundo uma bela tradição, a opressão de toda uma máquina sobre um homem só, culpado de agir segundo suas convicções e sua consciência.

Outro incidente também ajuda a explicar a proximidade de Sartre com os comunistas nesses anos: em maio de 1952, o PCF e a esquerda francesa marcaram uma manifestação contra a visita de uma autoridade militar americana, o general Ridgway, à França. Tratava-se de um protesto contra o uso de armas químicas e bacteriológicas na Coréia pelos Estados Unidos. O chefe de polícia de Paris, Baylot, proíbe a manifestação, afirmando: “Todo comunista é um soldado russo. Consciente ou não, é o que ele é”. Na noite da manifestação, o secretário interino do Partido Comunista Francês, Jacques Duclos, é preso ao voltar de carro para sua casa. Trazia no carro alguns pombos para fazer um assado, presente de um amigo que morava no interior. A polícia considerou que eram pombos-correio, acusando Jacques Duclos de estar em comunicação clandestina com a URSS, e Duclos, o segundo nome na hierarquia do PC depois de Maurice Thorez, ficou preso por mais de um mês.

Diante do que constituía um escandaloso exemplo de perseguição e arbítrio estatal, Sartre não hesitou em defender os comunistas: “Minha visão se alterou por completo [depois desse episódio]: todo anticomunista é uma criatura desprezível, tenho certeza absoluta, nada me fará mudar de opinião”.[10] Escreve então um ensaio intitulado Os comunistas e a paz, alinhando-se à política do partido.

O entusiasmo de Sartre arrefeceria pouco tempo depois, com a invasão de Budapeste pelos tanques russos, esmagando a tentativa húngara de democratizar o socialismo em 1956. Apesar de condenar a invasão, as boas relações de Sartre com a URSS só se interromperiam definitivamente depois de 1968, com a invasão da Tchecoslováquia.[11] As idas e vindas do relacionamento de Sartre com o PC ocupariam o espaço de um longo ensaio; se os incidentes citados nos ajudam a entender melhor o que pesou em sua opção pró-soviética, não resta dúvida, entretanto, de que em suas declarações para o Libération, ao voltar da URSS, o raciocínio tático prevaleceu acima de qualquer compromisso com a verdade.

Passemos a outro momento da trajetória de Sartre, no qual o tema que nos ocupa encontra uma formulação explícita. Trata-se de uma série de três conferências pronunciadas no Japão, em 1966, depois reunidas em um volume intitulado Em defesa dos intelectuais. Um trecho, em especial, merece análise. Sartre está criticando os pensadores do Iluminismo, cujo erro foi o de ter acreditado que se poderia aplicar diretamente o método universal e analítico à sociedade em que se vive. Exatamente porque viviam nela, ela os condicionava historicamente, de forma que os preconceitos de sua ideologia se insinuavam em sua pesquisa positiva e em sua própria vontade de combatê-los. A razão desse erro é clara: eram intelectuais orgânicos, trabalhando para a própria classe que os produzira, e sua universalidade não passava da falsa universalidade da classe burguesa que se tomava pela classe universal. Assim, quando buscavam o homem, só chegavam ao burguês. A verdadeira pesquisa intelectual, se pretende livrar a verdade dos mitos que a obscurecem, implica uma passagem pela singularidade do pesquisador. Este precisa se situar no universo social para capturar e destruir nele e fora dele os limites que a ideologia impõe ao saber. […] Não basta (para citar apenas um exemplo) combater o racismo (como ideologia do imperialismo) com argumentos universais, tirados de nossos conhecimentos antropológicos: esses argumentos podem convencer no nível da universalidade; mas o racismo é uma atitude concreta de todos os dias; em consequência, pode-se acreditar sinceramente no discurso universal do antirracismo e, nas longínquas profundezas ligadas à infância, continuar racista, e, ao mesmo tempo, se comportar, sem saber, como racista na vida cotidiana. Assim, o intelectual nada terá feito, mesmo que demonstre o aspecto aberrante do racismo, se não se voltar o tempo todo para si mesmo e dissolver um racismo de origem infantil através de uma pesquisa rigorosa sobre esse monstro incomparável, o eu.[12]

Vale chamar a atenção para o corte no pensamento, diríamos quase que a mesma distorção de raciocínio que havia nas frases de Sartre ao voltar da União Soviética. Retomemos sua argumentação.

Se, durante o século XVIII, os filósofos invocavam princípios universais como a liberdade religiosa ou a liberdade de imprensa, por exemplo, não há como negar que esses termos eram condicionados historicamente. Na época, a ideia de liberdade religiosa estava cercada de limites que não são os mesmos que temos hoje; atualmente respeitamos, por exemplo, cultos indígenas e africanos que um iluminista veria apenas como manifestações de primitivismo e superstição. Tampouco o direito à greve, por exemplo, e mesmo ao sufrágio e à instrução universais eram automaticamente admitidos pela maior parte dos pensadores do século XVIII. Ou seja, havia limites “burgueses” para o universalismo desses filósofos.

Partindo dessa constatação crítica, em linhas gerais correta, Sartre recai entretanto num dos clichês mais típicos da ortodoxia de esquerda ao longo do século XX. Trata-se de dizer, não que esses conceitos de liberdade, direitos individuais etc. tinham limites em sua aplicação prática, mas que tais limites os tornavam teoricamente falsos. Estamos em um universo de discurso em que termos como “liberdades burguesas” ou “democracia burguesa” funcionam menos como uma definição do que como uma completa desqualificação ideológica. Em vez de ser ampliada, então, a liberdade pode ser suprimida… ou não, pois seu valor é nulo se o que a fundamenta é um princípio falso e burguês. Mas que a sociedade burguesa não siga os princípios de seus filósofos não quer dizer que tais princípios  sejam inválidos.

É assim que do “não basta” (“não basta combater o racismo…” etc.) Sartre passa rapidamente para o “de nada vale” (“o intelectual nada terá feito…” etc.). Em vez de ressaltar os pontos em que não vigorava a universalidade pretendida, a denúncia se volta contra a pretensão à universalidade. Mas seria esta pretensão à universalidade algo de irrealizável em qualquer circunstância? Ou simplesmente de irrealizado numa circunstância específica? Em vez de tomar o conceito como recurso crítica — afirmando que a ideia de democracia, a ideia de direitos, a ideia de liberdade teriam de ser aprofundadas, teriam de valer para mais situações —, o argumento de Sartre leva a diminuir, a desqualificar a universalidade em si, até mesmo nos pontos em que já foi conquistada. O instrumento abstrato de que o intelectual dispõe para criticar cada situação concreta se vê, assim, menosprezado; o que prevalece é a circunstância política do momento, a preferência pessoal, o arbítrio do pensador ou dos poderes a que se submete: é isso, aliás, o que permite a um intelectual apoiar a URSS em 1955, criticá-la em 1956, e voltar a apoiá-la alguns anos depois.

Não se trata mais, portanto, de criticar o filósofo do século XVIII em nome de seus próprios princípios, mas de uma “prática” que em tese seria menos abstrata. Ocorre que uma “prática”, qualquer que seja, não funciona nem como “princípio” ético para o julgamento de uma ação, nem como instrumento analítico para o estudo de uma sociedade.

No fundo, o pensamento de Sartre se baseia em uma ambiguidade que pode inicialmente passar despercebida quando lemos o trecho. Inicialmente, Sartre critica os iluministas a partir de um ponto de vista científico, segundo padrões sociológicos: dispunham de um “método universal e analítico”, embora tenham errado ao aplicar esse método “à sociedade em que viviam”. Nesse caso, uma espécie de cegueira ideológica os impedia de perceber muitos casos em que princípios universais eram desrespeitados. Mais adiante, contudo, Sartre deixa de falar em um “método universal e analítico” e passa a falar de “princípios universais” (o antirracismo, por exemplo, ou a ideia de uma igualdade básica entre seres humanos). Claramente, quando se fala em princípios universais, está também em jogo a questão de sua aplicação, isto é, de sua vigência na prática. Mas entre “aplicar” um método científico e “aplicar” um princípio ético há uma diferença abissal, ocultada pela coincidência vocabular. É a diferença entre ciência e ação concreta, entre teoria e prática. O iluminista “erra” moralmente, mas não cientificamente, quando desconsidera os seus atos particulares, infantis, inconscientes de racismo. Por outro lado, a ausência de autoanálise não desmente suas conclusões anti-racistas “abstratas”. O iluminista pode ser acusado de uma cegueira a seu próprio respeito, mas não de um equívoco em seu pensamento. Questões de ordem teórica, em suma, se confundem com as de vigência na prática concreta.

Aqui encontramos um caso bem claro do “ódio ao abstrato” que Julien Benda condenava, e que identificaremos melhor quando examinarmos, mais adiante, A traição dos clérigos. Continuemos, entretanto, com o texto de Sartre, notando outro passo que ele dá na sua crítica ao universal:

O intelectual é, portanto, um técnico do universal que se apercebe que, em seu próprio domínio, a universalidade ainda não está pronta, está perpetuamente a fazer. Um dos grandes perigos que o intelectual deve evitar, se quiser avançar em seu empreendimento, é universalizar depressa demais. Já vi intelectuais que, apressados em passar para o universal, condenavam, durante a Guerra da Argélia, os atentados terroristas argelinos equiparando-os à repressão francesa. É o tipo mesmo da falsa universalidade burguesa. Seria preciso compreender, ao contrário, que a insurreição da Argélia, insurreição de pobres, sem armas, acossados por um regime policial, não podia deixar de escolher a resistência armada e a bomba.[13]

Aos olhos de hoje, suficientemente confrontados com todo tipo de terrorismo, de crime, de tortura e assassinato feito em nome de causas justas, como a emancipação dos povos do Terceiro Mundo, torna-se evidentemente muito difícil concordar com tão audaciosas declarações. Poderíamos, de todo modo, utilizar neste caso o próprio sistema argumentativo do autor e perguntar se não seria Sartre quem está universalizando “depressa demais” o argumento da resistência armada. É justificável, para o argelino pobre, recorrer a qualquer atentado? Contra quem? Em que situação? Bombardear uma creche se justifica tanto quanto bombardear uma chefatura de polícia?

Sartre não deixou de responder a essas questões quando utilizou raciocínio semelhante ao do texto citado para defender o ataque terrorista do Setembro Negro à equipe olímpica israelense, nos Jogos de Munique em 1972. Eis a argumentação de Sartre, no jornal maoísta La Cause du Peuple, tal como transcrita por Bernard-Henri Lévy, em O século de Sartre:

Acho perfeitamente escandaloso que o atentado de Munique seja julgado pela imprensa francesa, e por uma parte da opinião pública, como um escândalo intolerável. Vivendo Israel e os palestinos em estado de guerra, não dispondo os palestinos nessa guerra senão da arma do terrorismo, só podendo esse povo abandonado, traído, exilado mostrar sua coragem e a força do seu ódio, organizando atentados mortais, tais atentados são legítimos, e os franceses que aprovaram o terrorismo da FLN da Argélia, contra os próprios franceses, só podem aprovar, por sua vez, a ação terrorista dos palestinos. O terrorismo é uma arma terrível. Mas os oprimidos pobres não têm outra.[14]

Vemo-nos diante de uma fala intelectual que configura apenas uma chancela à violência, ainda que não à violência do Estado. Pelo menos, não de imediato: uma vez instituído o regime vitorioso, o intelectual radical conhecerá rapidamente o destino de se tornar um “cão de guarda”; ou, então, um desiludido. Tendo dito o que disse, em qualquer das situações terá traído a si mesmo.

Passemos agora aos anos 1930, um período em que, com a ascensão do nazismo e do stalinismo, a independência de julgamento do intelectual sofria pressões políticas ainda maiores do que as conhecidas por Sartre durante a guerra fria. Nosso exemplo virá de André Gide, que exercia, na França daquela época, um papel de liderança moral e intelectual talvez semelhante ao que Sartre teria depois — a ponto de André Malraux atribuir-lhe o título de “o contemporâneo capital”. A frase, de certo mau gosto, tem contudo razão de ser. Desde os primeiros textos de ficção, voltados para a descoberta da liberdade individual e do prazer sensorial, nos quadros do esteticismo de fins do século XIX, até as últimas páginas de autoanálise e inquirição espiritual nos seus extensos diários (Gide morreu com mais de oitenta anos, em 1951) é impressionante, com efeito, a quantidade de temas fundamentais para o século XX cuja discussão Gide soube lançar: por exemplo, a ideia do “ato gratuito” em Les caves du Vatican (1914); a abordagem extremamente corajosa do homossexualismo, em Corydon (ensaio escrito em 1911) e em Si le grain ne meurt (livro de memórias, terminado em 1919); a técnica metalinguística da mise en abîme” — o romance dentro de um romance dentro de um romance —, em Les faux-monnayeurs (1925); e a pioneira denúncia do colonialismo, com o relato de suas viagens ao Congo e ao Chade, ainda na década de 1920.

Nos anos 1930, Gide aproximou-se do Partido Comunista, servindo como uma das principais figuras de grande escritor “burguês”, ao lado de Romain Rolland, nos grandes eventos antifascistas que se organizavam naquele período.

Comecemos citando algumas declarações de Gide em um encontro desse tipo; não são propriamente um exemplo de verborragia política, mas sim a angustiada defesa do “silêncio” de um intelectual. Trata-se da transcrição de um diálogo entre Gide e o romancista católico François Mauriac, seu amigo, em uma espécie de entrevista pública, de “julgamento coletivo” da opção política de Gide, em janeiro de 1935.

MAURIAC: Queria chamar a atenção para o seguinte fato. Gide acaba de dizer que, desde que aderiu ao comunismo, ele não pode mais escrever. Isso quer dizer que você está renegando a si mesmo… Gostaria de ouvir uma explicação sua.

GIDE: Você me pergunta, Mauriac, o que me impede no momento de escrever. Vou lhe dizer sem rodeios, de uma forma paradoxal. O que me impede de escrever é o medo de entrar para o Index. Não se trata de um Index exterior; não, é o medo de não estar dentro das normas. Uma vez que reconheço que é bom — por razões que eu identifiquei — que exista uma regra, uma norma, o medo de ficar empunhando lanças sozinho, quando não há razão nenhuma para fazer isso, pode incomodar muito o escritor. Sempre me declarei inimigo de todas as ortodoxias. A do marxismo me parece tão perigosa quanto qualquer outra; perigosa, ao menos, para a obra de arte. E se me provam que a ortodoxia marxista é útil, indispensável, provisoriamente pelo menos, para assegurar a formação e a instauração de uma nova ordem social, considero que isso vale a pena; sim, que vale a pena, para obter isso, consentir com o sacrifício de algumas “obras de arte”… Malraux disse com exatidão, outro dia, que um artista, em nossa sociedade, nada contra a corrente em vez de se sentir levado pela corrente. Sempre escrevi, até agora, sem procurar de modo nenhum a aprovação do público; mas, se agora, tenho necessidade, para escrever, de ter a aprovação de um partido, prefiro não escrever mais, aprovando o que diz o partido.[15]

Trata-se de documento impressionante por vários motivos, entre eles o de ser representativo de uma terrível disposição à ascese e ao sacrifício, momento típico, aliás, das oscilações gideanas entre o prazer estético e o puritanismo cristão. Merece destaque, sobretudo, a honestidade do autor. Gide não finge ser livre num momento em que renuncia à sua liberdade; admite claramente a submissão à linha do partido, renuncia ao papel de escritor para ser uma espécie de porta-voz, de símbolo, dos ideais revolucionários — o que, neste caso, como em muitos outros, acaba se revelando um tanto contraditório, pois o prestígio, a autoridade, o relevo do intelectual foram conquistados em torno de valores (estéticos, científicos, filosóficos, literários) que esse mesmo intelectual tende a renegar. O intelectual oferece em holocausto ao partido tudo o que o fazia interessante, digno de ser ouvido… e, ainda assim, espera continuar a ser interessante e a ser ouvido.

Felizmente, entretanto, esse momento ultradisciplinado durou pouco na vida de Gide. Em junho de 1936 ele viajaria para a União Soviética como convidado de honra do regime. Tratava-se justamente de um dos períodos mais agudos do terror stalinista, com o início dos processos de Moscou: no mesmo dia em que Gide voltava para Paris, diz Michel Winock em O século dos intelectuais,[16] o Pravda anunciava que Kamenev, Zinoviev e outros bolcheviques de primeira hora tinham sido condenados à morte — como se sabe, depois de forçados a admitir culpas e traições inexistentes. Em novembro do mesmo ano Gide publica seu Retorno da URSS, em que, para impacto geral, surgem frases como as seguintes:

O espírito que é considerado hoje contrarrevolucionário na URSS é aquele velho espírito revolucionário, aquele fermento que fez inicialmente estourarem as comportas semi-apodrecidas do mundo czarista. Seria bom poder pensar que um transbordante amor pelos homens, ou pelo menos uma imperiosa necessidade de justiça, toma conta dos corações. Mas uma vez que a revolução se realizou, triunfou, estabilizou-se, não se pensa mais nisso, e aqueles sentimentos, que primeiramente animavam os revolucionários, se tornam incômodos e atrapalham, como algo que não serve mais. […] Agora, os ainda animados por aquele fermento revolucionário são os que incomodam, os que são estigmatizados e eliminados. Então não seria melhor, em vez de jogar com as palavras, reconhecer que o espírito revolucionário (e mesmo, simplesmente, o espírito crítico) não convém mais, não é mais necessário? O que se quer e se exige é a aprovação de tudo o que se faz na URSS; o que se procura obter é que essa aprovação não seja resignada, mas sincera, até entusiasta. O mais espantoso é que se consegue isso. Paralelamente, o menor protesto, a menor crítica está sujeita aos piores castigos, e de resto é abafada imediatamente. E eu duvido que em algum outro país atualmente, mesmo na Alemanha de Hitler, o espírito esteja menos livre, mais curvado, mais temeroso (aterrorizado), mais reduzido à condição de vassalo, do que na URSS.[17]

O contraste com a atitude de Sartre, celebrando a pretensa liberdade de crítica na União Soviética, não poderia ser maior. Sem dúvida, uma comparação com a Alemanha de Hitler estava longe de ser desejável naquele momento, do ponto de vista de uma necessária “frente ampla” antifascista. Haveria incontáveis razões táticas para silenciar naquela conjuntura internacional — bem mais graves, aliás, do que as que fundamentaram as declarações de Sartre em 1954. Contudo, quando analisamos retrospectivamente tudo o que viria a acontecer com a política soviética, tanto nos poucos anos que se passaram entre a publicação do livro e o pacto germano-soviético, em 1939, quanto agora, depois de encerrada sem glórias a experiência do “socialismo real”, o raciocínio tático perde sentido. Por que seria indicado preservar de críticas um regime que, afinal, entraria em colapso devido a seus próprios erros? O que importa ressaltar aqui, todavia, é que Gide, enquanto intelectual, não se prendia a considerações táticas; seu compromisso era de outra natureza.

Como era de esperar, o livro de Gide recebeu inúmeras críticas, a começar pelas do Pravda… A resposta de Gide veio no ano seguinte, com um livro ainda mais duro e fundamentado, Retouches à mon “Retour de l’URSS”, do qual um trecho exemplar merece destaque:

Se tiram partido dos meus escritos, eis algo que não posso impedir; e, mesmo que pudesse, não desejaria. Mas escrever o que quer que seja em função do partido que se poderá tirar do que foi escrito, não; que outros tenham essa preocupação. Tinha avisado disso os meus novos amigos comunistas, desde o começo de nossas relações: não serei nunca um recruta ordeiro, dos que não dão trabalho. Os intelectuais [Gide usa o termo grifado] que se encaminham para o comunismo devem ser considerados pelo partido elementos instáveis, dos quais é possível se servir, mas dos quais é preciso desconfiar: li isso em algum lugar. Como é verdade! […] Não há partido que seja dono da verdade, nem dono de mim; nem que me impeça de preferir, ao Partido, a verdade. Tão logo a mentira intervém, não me acomodo; meu papel é denunciá-la. É à verdade que me apego. Se o Partido a abandona, eu abandono o Partido na mesma hora. Sei muito bem (e vocês me disseram bastante isso) que do ponto de vista marxista a Verdade não existe; pelo menos não existe em absoluto; que só existe verdade relativa; mas precisamente é de uma verdade relativa que se trata aqui: a verdade que vocês estão escondendo. E creio que, em questões tão graves, já se engana a si mesmo quem tenta enganar os outros. Aqueles a quem vocês estão enganando são aqueles mesmos a quem pretendem servir: o povo. Serve-o mal quem o cega.[18]

Difícil traduzir o corte preciso e seco da retórica presente neste trecho; acima da técnica literária, contudo, Gide põe em ação uma sinceridade que conquistou com sacrifício, vencendo muitos preconceitos, equilibrando-se entre a glória e a solidão. Do ponto de vista pessoal e psicológico, não há como saber se Gide pagou um preço mais alto por dizer a verdade do que Sartre, quando mentiu; de todo modo, não se pede a um intelectual que seja herói ou mártir: apenas que não compactue com os carrascos.

Encerremos esta leitura de Gide com uma passagem curiosa, que permite a comparação com uma frase de Sartre citada acima. Como vimos, Sartre declarava que os russos não sentiam grande vontade de viajar, por terem muito ainda o que fazer em seu país. Nas primeiras páginas de seu Retour de l’URSS, ainda entregue a uma calorosa simpatia pelo ambiente, Gide relata o desinteresse da população pelas línguas estrangeiras. Haveria entre os russos, diz, um “complexo de superioridade”, de que seria exemplo o caso que segue.

Todo estudante tem de aprender uma língua estrangeira. O francês é deixado de lado completamente. É o inglês, e o alemão sobretudo, o que se espera que eles conheçam. Espanto-me de ouvi-los falar tão mal esta língua; qualquer aluno nosso de segundo ano sabe mais que eles.

De um deles, a quem interrogamos, recebemos esta explicação (em russo, e Jef Last traduziu): Há alguns anos a Alemanha e os Estados Unidos podiam, em alguns pontos, nos instruir. Mas agora não temos mais nada a aprender dos estrangeiros. Então, para que aprender a língua deles?[19]

Convicto de que os russos estavam muito ocupados para querer viajar ao exterior, Sartre não teria dificuldades, provavelmente, em adotar o argumento.

2

Voltemos mais alguns anos no tempo, para 1927, quando Julien Benda publica A traição dos clérigos. Ele já estava com sessenta anos,destacando-se no debate político francês como representante de uma tendência de centro-esquerda republicana, profundamente antifascista — e, no seu caso, bastante germanófoba —, que ao longo de décadas se empenhara na defesa dos princípios da Revolução Francesa contra insistentes tentativas de restauração monárquica, ultranacionalista, antissemita e ultracatólica. O confronto entre republicanos “radicais” — isto é, de esquerda mas não-socialistas — e a direita religiosa foi marcante durante as décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial, e conheceu especial agudeza nos debates em torno do ensino laico, universal e gratuito. A legião de “hussardos negros da República” — assim foram chamados os professores do primário e do secundário, nomeados pelo governo central para os postos de ensino de todo o país — foi o substituto republicano do velho sistema educacional ligado à Igreja católica, e o tema da “direção das consciências” assumiu conotações políticas de extrema gravidade naquele período. É nesse contexto que se consolida uma organizadíssima estrutura de Estado, voltada para a formação de professores; no vértice dessa estrutura, encontramos a célebre École Normale Supérieure instituição em que estudaram os mais típicos representantes do mandarinato francês.

É provavelmente esse modelo de formação profissional — fundamentado em uma estrutura impessoal, em uma tradição sólida de linguagem e métodos de estudo, e em uma seleção rigorosa das vocações e talentos individuais — que está “no inconsciente”, por assim dizer, da escolha vocabular de Benda, quando este prefere falar de “clérigos” em vez de “intelectuais”. Se os dois termos são, na prática, intercambiáveis (pois Benda pode dar o título de “clérigo” a qualquer poeta, pintor, dramaturgo, filósofo ou cientista), o emprego de um termo mais arcaico que o de “intelectual” serve para acentuar a continuidade, desde a Idade Média, de uma categoria de homens claramente identificáveis. São aqueles “cuja atividade, por essência, não busca atingir fins práticos, mas que, encontrando sua alegria no exercício da arte, da ciência ou da especulação metafísica, numa palavra: na posse de um bem não temporal, dizem de algum modo: ‘meu reino não é deste mundo’”.[20] A traição dos clérigos começa citando Tolstoi, que em um de seus escritos lembrava sua experiência como oficial do exército russo. O autor de Guerra e paz acompanhava um pelotão em marcha, quando viu um de seus colegas espancar brutalmente um soldado que se distanciava do grupo. Tolstoi perguntou para o oficial se ele não se envergonhava de tratar assim um semelhante: “O senhor nunca leu o Evangelho?”. Ao que o oficial respondeu: “E o senhor? Nunca leu o regulamento militar?”. Essa resposta, diz Benda, é a que o poder temporal, o poder terreno, sempre dirigirá ao poder espiritual, às pessoas que representam os imperativos “que não são deste mundo”.

Não se pense, contudo, que Benda atribua aos clérigos o desinteresse absoluto pela política, uma entrega total à contemplação pura. Em sua concepção, os clérigos se dividem em dois grupos distintos: os de um primeiro tipo, como Leonardo da Vinci, Malebranche ou Goethe, foram exemplo “de uma adesão à atividade puramente desinteressada do espírito, e criaram a crença no valor supremo dessa forma de existência”. Em outra categoria estão “os moralistas propriamente ditos, debruçados sobre o conflito dos egoísmos humanos”; são os que, como Erasmo, Kant ou Renan, preconizavam, “sob os nomes de humanidade e justiça, a adoção de um princípio abstrato, superior”, e diretamente oposto ao imediatismo das lutas de poder. Mesmo polemistas como Voltaire, e mesmo escritores fortemente interessados em disputas partidárias, como Lamartine e Chateaubriand, envolveram-se nisso, diz Benda, “com uma generalidade de sentimento, com um apego às visões abstratas, um desdém do imediato”[21] que os tornavam imunes ao domínio das paixões políticas.

Parece-nos estranho falar da isenção e do desinteresse de autores que estavam longe de negligenciar a companhia de príncipes e a opulência material, para nada falar do exercício direto do poder político. Chateaubriand foi ministro de Estado, Lamartine candidatou-se à Presidência da República, Leonardo inventou maquinismos de guerra na corte de Francisco I, Goethe foi conselheiro no ducado de Weimar, e Voltaire não só obteve honrarias nas cortes europeias como se destacou como um dos mais bem-sucedidos especuladores financeiros de seu tempo. Mas um frequente mal-entendido em torno das teses de Benda é julgar que a “traição” do clérigo deva ser constatada a partir do seu cotidiano biográfico. É na obra escrita, e de modo geral nas intervenções intelectuais públicas de cada autor, que se avalia seu grau de subordinação ou de desapego em frente às paixões políticas. Ocorre que as dificuldades conceituais de A traição dos clérigos surgem na medida em que Benda não dispensa a análise biográfica e psicológica como pressuposto de seu raciocínio, como ponto de partida em sua conceituação. De fato, “clérigo”, em sua definição, é uma pessoa de carne e osso, com tais e tais interesses e vocações; impossível dissociar o conceito de uma dimensão psicológica. Todavia, a “traição” se dá numa dimensão extrapsicológica, sendo relativa às ideias que alguém profere ou publica, e não ao plano de sua existência individual.

Outra dificuldade em acompanhar o pensamento de Benda está no aspecto algo vetusto de seu vocabulário. Não só o termo “clérigo” encontra pouca ressonância se comparado ao corriqueiro “intelectual”, como também o termo “paixão política” parece-nos excessivamente corpóreo, e algo anacrônico pelo que sugere de uma “teoria geral das emoções humanas” no conturbado mundo das relações de poder no século XX. Mas quando Benda observa que as “paixões políticas” ganharam uma “coerência”, uma “homogeneidade”, uma “precisão”, uma “continuidade”, uma “condensação” e uma “preponderância” jamais vistas anteriormente, vai aos poucos ficando claro de que fenômeno se trata.[22]Os adeptos de um mesmo ódio político, diz Benda, “formam hoje uma massa passional compacta, da qual cada elemento se sente ligado aos demais”. Todos adquirem um vocabulário igual e sistemático, eliminando-se com isso as variantes individuais do sentimento e das opiniões. As paixões políticas deixam de se manifestar ocasionalmente, passando a ser alimentadas todos os dias pelos jornais.

Simultaneamente, seu espectro se reduz, limitando-se a “um pequeno número de ódios muito simples”, sejam eles nacionais, de credo, ou de classe. Todo esse processo é perfeitamente familiar a quem viveu a história política do século XX. Falta ao livro de Benda, sobretudo, a terminologia a que estamos acostumados: se pensarmos em conceitos como “ideologias”, “sociedade de massa”, e “totalitarismo”, boa parte da estranheza de sua análise se dissipa.

Em uma palavra, a traição dos intelectuais ocorre quando eles se transformam em ideólogos. Para Benda, é o momento em que os clérigos passam a dizer: “Não somos de modo algum os servidores do espiritual; somos os servidores do temporal, de um partido político, de uma nação. Só que, em vez de servi-los com a espada, nós os servimos por meio da escrita. Somos a milícia espiritual do temporal”.[23]

Benda visava sobretudo aos escritores e filósofos de direita, aos ultranacionalistas de diversos países, tanto Kipling, na Inglaterra, quanto d’Annunzio, na Itália, e Barrès, na França. É principalmente uma frase escandalosa de Maurice Barrès que, para Benda, traduz todo o sistema da “traição dos intelectuais”. O célebre esteta conservador, ídolo de uma geração inteira de escritores, declarou certa vez que “à pátria, mesmo se estiver errada, temos de lhe dar razão”. “Right or wrong, my country”: o conhecido lema dos países anglo-saxões recebe, das mãos de Barrès, uma formulação um pouco mais alambicada, embora inequívoca.

Benda critica todas as variantes desse tipo de raciocínio. Em especial, a ideia de que exista uma “verdade particular”, própria a cada época e a cada país, ou, se quisermos, a cada pessoa. Eis outro ponto em que as ideias de Benda parecem inapelavelmente antiquadas. Com efeito, nada mais comum hoje em dia do que ouvirmos frases como “cada um tem a sua verdade”, ou “esta é a minha verdade, pode não ser a sua”… Contra os adeptos de uma “filosofia nacional”, de um pensamento submetido aos valores da conveniência política, Benda contrasta dois trechos sobre o mesmo assunto. Inicialmente, um texto de Maurice Barrès, e, em seguida, uma passagem clássica, proveniente do século XVII francês: a Logique de Port-Royal.

Não é apenas a moral universal que os clérigos modernos lançaram ao desprezo, mas também a verdade universal. Aqui os clérigos se mostraram verdadeiramente geniais no seu empenho de servir às paixões laicas. Evidentemente a verdade é um grande empecilho para aqueles que pretendem se colocar no distinto [no particular]: ela os condena, a partir do momento em que a adotam, a se colocarem no universal. Que alegria para eles convencer-se de que esse universal não passa de um fantasma, que só existem verdades particulares, verdades lorenas, verdades provençais, verdades bretãs, cujo acordo, levado a cabo pelos séculos, constitui aquilo que é benéfico, respeitável, verdadeiro na França (o vizinho fala do que é verdadeiro na Alemanha).[24]

A frase destacada provém de L’appel au soldat, de Barrès. Benda prossegue:

Compare-se com o ensinamento tradicional francês, de que Barrès se diz herdeiro: Qualquer que seja o vosso país de origem, só devereis acreditar naquilo em que acreditaríeis se fôsseis de outro país (Logique de Port-Royal, III, XX). Não se pense que o dogma das verdades nacionais vise somente à verdade moral. Vimos recentemente pensadores franceses se indignarem com o fato de que as doutrinas de Einstein fossem adotadas sem precaução por nossos compatriotas.

Não apenas a ideia de verdade, mas também a de justiça passa a ser submetida às conveniências do nacionalismo, e às seduções de um “Estado forte”, a que os intelectuais a rigor deveriam repudiar. Contrastando as teorias de Barrès com o ensinamento de Sócrates, Benda observa:

Homens de pensamento pregando que a toga se curvasse diante da espada — eis algo que é novo em sua corporação […] Eu não poderia fazer sentir de modo melhor qual é esta novidade na atitude do clérigo do que lembrando a célebre réplica de Sócrates ao realista do Górgias: Exaltas na pessoa dos Temístocles, dos Cimon, dos Péricles, homens que alimentaram bem os seus cidadãos oferecendo-lhes tudo o que eles desejavam, sem se preocupar de ensiná-los o que é bom e honesto em termos de alimentação. Eles engrandeceram o Estado, exclamam os atenienses; mas eles não veem que esse engrandecimento é apenas inflamação, um tumor cheio de corrupção. Eis tudo o que fizeram esses antigos políticos para encher a cidade de portos, de arsenais, de muralhas, de impostos e outras tolices semelhantes, sem acrescentar-lhes a temperança e a justiça. Podemos dizer que até nossos dias, pelo menos em teoria (mas é de teorias que tratamos aqui), a supremacia do espiritual proclamada nessas linhas foi adotada por todos que, explicitamente ou não, propuseram ao mundo uma escala de valores; pela Igreja, pela Renascença, pelo século XVIII. Hoje, adivinha-se o riso de um Barrès ou de algum moralista italiano […] diante desse desdém da força em proveito da justiça e a severidade deles com relação ao modo com que aquele filho de Atenas julga os que fizeram sua cidade poderosa do ponto de vista temporal. Para Sócrates, perfeito modelo quanto a isso do clérigo fiel à sua essência, os portos, os arsenais, as muralhas são “tolices”; a justiça e a temperança é que são as coisas sérias. Para os que hoje em dia ocupam seu lugar, a justiça é que é uma tolice — uma “nuvem” —, as coisas sérias são os arsenais e as muralhas. O clérigo se fez hoje ministro da Guerra. Mais do que isso, um moralista moderno, e dos mais reverenciados, claramente aprovou os juízos que, bons guardiães dos interesses da terra, condenaram Sócrates; coisa que nunca se vira entre os educadores da alma humana desde a noite em que Críton baixou as pálpebras de seu mestre.[25]

Benda não nega que o nacionalismo se justifique na prática política. Diante das investidas da Alemanha, um patriota francês poderia até mesmo chegar ao “fanatismo”. Mas — e nesta citação se resume a tese de todo o seu livro  —  “os clérigos que praticaram esse fanatismo traíram sua função, que é precisamente a de ressaltar, em face dos povos e da injustiça à qual os condenam as religiões terrenas, uma corporação cujo único culto é o da justiça e da verdade”.[26] Não apenas encontramos aqui a palavra “traição”, como também duas ideias abstratas às quais o dever de fidelidade se impõe de forma decisiva: justiça e verdade. Ainda que, como diz Benda, se refiram a realidades que “não são deste mundo”, esses termos surgem em um contexto histórico muito preciso, o do Caso Dreyfus; é o que veremos na próxima seção.

3

Voltamos portanto um pouco mais no tempo, para a última década do século XIX. Em um ciclo sobre o papel dos intelectuais, vale lembrar com certo detalhe um dos episódios mais dramáticos e apaixonantes da história francesa, que marcou o surgimento do próprio termo “intelectual” como substantivo de uso corrente no vocabulário político. Rememorar o Caso Dreyfus, nos dias que correm, constitui de resto uma experiência reanimadora para quem é de esquerda: trata-se de um dos poucos acontecimentos históricos em que, do ponto de vista da liberdade humana, da luta contra o preconceito, contra o obscurantismo e contra a injustiça, se pode registrar um final inequivocamente feliz: as forças reacionárias são derrotadas, graças à lucidez, à persistência e ao heroísmo de alguns intelectuais, de alguns políticos, de alguns militares, enfrentando um clima esmagador de antissemitismo, de ideologia da “segurança nacional” — o termo é utilizado pelo direitista Maurras —, de militarismo, e de ódio à verdade e à razão. Foram tantos os exemplos de desonestidade e violência moral protagonizados pela direita francesa naqueles anos, e tantas as dificuldades que tiveram de ser vencidas ao longo do processo, que um livro como O Caso Dreyfus, de Jean-Denis Bredin,[27] se lê com o coração batendo, como o mais vibrante dos romances.

Tudo começa em setembro de 1894. França e Alemanha viviam um estado de permanente tensão, mantendo seus serviços de espionagem em plena atividade. A embaixada alemã em Paris era um alvo fácil do setor de inteligência do Exército francês. Maximilien von Schwartzkoppen, o belo, boêmio e elegantíssimo adido militar alemão, tinha o hábito de jogar documentos — importantes ou não — na cesta do lixo do seu gabinete, sem se dar ao cuidado de incinerá-los pessoalmente. Os franceses tinham uma colaboradora muito útil nesse caso — a faxineira, que recolhia todo o conteúdo da cesta de lixo e encaminhava-o à Seção de Estatística do Exército. Esse fluxo da cesta de lixo para o setor de informações era chamado “a via normal” — e por meio dessa via logo se acompanhou o intenso caso de amor entre o coronel Von Schwartzkoppen e o major Alessandro Panizzardi, adido militar italiano, que se tratavam respectivamente por “Maximilienne” e “Alexandrine”. No meio dessa correspondência sentimental, surge um documento importante. Trata-se de uma carta manuscrita, que ficará conhecida como o “borderô”, prometendo informações sobre peças de artilharia do Exército francês. Evidência de que algum oficial transmitia segredos militares para a Alemanha.

As investigações começam. Levantam-se os nomes de vários oficiais do Estado-Maior que possivelmente teriam acesso às informações, entre os quais um oficial judeu, nascido na Alsácia, o capitão Alfred Dreyfus. Ele é chamado a comparecer com urgência ao Ministério, em trajes civis. Um general, Du Paty de Clam, manda que ele se sente, pegue papel e pena, e escreva as palavras que vai ditar. Dita-lhe o texto do documento secreto, o “borderô”; pega o papel, compara com o original do documento… e a semelhança é patente. Dreyfus é preso na hora, submetido a julgamento em dezembro, condenado à degradação pública e ao banimento perpétuo na ilha do Diabo, perto da Guiana Francesa, onde não havia ninguém, exceto os carcereiros e as aranhas-caranguejeiras. No seu embarque para o degredo, a população grita contra o “traidor judeu”. Nesse meio tempo, a imprensa antissemita se encarregara de atiçar os ânimos e exigir a condenação rápida do acusado. Antes mesmo que o tribunal militar se pronunciasse, o ministro da Guerra, general Mercier, declarara aos jornais estar convencido da culpabilidade de Dreyfus. Imagine-se qual o grau de independência daquela corte, depois de um pronunciamento desse gênero, proveniente da mais alta autoridade da corporação.

As irregularidades do processo se agravariam mais e mais. Os grafologistas que compararam a letra de Dreyfus com o “borderô” emitiram opiniões contraditórias. Um deles, entretanto, assumiria papel preponderante no processo. Trata-se de Alphonse Bertillon, antropólogo de inspiração lombrosiana, e antissemita convicto, que desenvolve a tese bizarra da “autofalsificação”. Se entre o original e a cópia escrita por Dreyfus havia certas diferenças de caligrafia, isto se devia ao fato de que o réu, com astúcia judaica, introduzira ele próprio sutis mudanças de traço; essas mudanças não eram capazes de confundir o olhar treinado, sustentava Bertillon, uma vez que se assemelhavam nitidamente a características das letras de outros familiares de Dreyfus… Um complicado sistema de “empréstimos” genealógico-caligráficos seria demonstrado por Bertillon, que cairia ao longo dos anos em descrédito absoluto; naquele momento, em todo caso, havia necessidade de provas contra Dreyfus, e provas foram aparecendo.

Até mesmo uma “prova secreta”: por incrível que pareça, a acusação entregara aos juízes do processo um dossiê ao qual nem a defesa, nem o acusado, puderam ter acesso. Numa prática que se revelaria constante ao longo dos vários anos que durou o caso, esse dossiê continha documentos forjados pelo próprio serviço de inteligência do Exército para reforçar a tese da culpa de Dreyfus. A essa altura, entretanto, a grande maioria da opinião pública ainda estava convencida de que Dreyfus era o traidor. Um dos primeiros a duvidar disso foi seu carcereiro, o comandante Forzinetti, que se impressionou com o desespero do réu. Logo viria um oficial do setor de informações, o tenente-coronel Picquart, que descobriria novos documentos provenientes da embaixada alemã. Esses documentos apontavam a culpabilidade de outro oficial, dessa vez de origem nobre, o conde Walsin-Esterházy. Tratava-se de um constante frequentador da embaixada alemã, coberto de dívidas, autor de cartas extremamente comprometedoras; sua caligrafia será logo reconhecida como a do autêntico autor do “borderô”.

Estamos em finais de 1896, e o “Caso Dreyfus” apenas começa a surgir como um erro judiciário clamoroso. Teria sido, talvez, o momento de admitir a injustiça e de processar Esterházy, o verdadeiro culpado. Mas o Exército se encaminha na direção oposta. Começa afastando o coronel Picquart das investigações; envia-o a missões sem sentido no deserto africano. Enquanto isso, o comandante Henry, oficial dos serviços de espionagem, produz falsificações grosseiras para incriminar não apenas Dreyfus, mas também Picquart; pior que isso, entra em contato com o próprio Esterházy para acertar os detalhes da trama. Durante todo o ano de 1897, o Exército não fará senão tentar abafar o caso. As iniciativas para investigar Esterházy sofrerão todo tipo de percalços e boicotes. Em dezembro de 1897, o ministro da Guerra, Billot afirma, em plena Câmara dos Deputados, que “na minha alma e na minha consciência, considero o julgamento bem pronunciado e Dreyfus culpado”. O chefe do conselho de ministros (e por conseguinte chefe de governo, no sistema parlamentarista), Méline, acusa os “dreyfusards” de levantarem suspeita contra a honra do Exército: “Não existe Caso Dreyfus, não existe nesse momento, não pode haver, aqui, um Caso Dreyfus”. Os socialistas votam favoravelmente a uma moção favorável ao ministro da Guerra; até o ano seguinte, aliás, as principais lideranças de esquerda, como Jean Jaurès, ainda insistiriam na tese de que a polêmica sobre a inocência ou não de Dreyfus — cuja família era de industriais bem-sucedidos na Alsácia — era apenas uma disputa burguesa: “São duas facções da classe privilegiada que se chocam nesse processo: os grupos oportunistas, protestantes e judeus de um lado, os grupos clericais e militares de outro, estão em combate”.[28]

Em 11 de janeiro de 1898, contra todas as evidências, Esterházy é formalmente inocentado de qualquer acusação pelo Conselho de Guerra. A multidão e a imprensa antissemita comemoram a decisão. Dreyfus continuará preso, e a honra militar está salva. O assunto parecia encerrado, quando um dos defensores de Dreyfus na imprensa toma uma atitude arriscada e radical. Trata-se, como se sabe, de Émile Zola, que publica seu panfleto “J’accuse…!” nas páginas do jornal L’Aurore em 13 de janeiro de 1898. Duzentas mil cópias serão vendidas em poucas horas. Com um texto carregado de denúncias violentíssimas, apontando pessoalmente, um a um, os nomes das autoridades militares responsáveis pela farsa judicial, Zola seguia uma estratégia das mais audaciosas. Seu objetivo era atrair contra si próprio um processo por difamação e calúnia — que, transcorrendo na justiça civil, e não na militar, pudesse finalmente levar ao esclarecimento do caso. Se o Exército não fazia a revisão do processo de Dreyfus, em um tribunal civil o “processo Zola” faria com que as mentiras do Estado-Maior fossem desmascaradas. O ato foi quase suicida: Zola acusa uma série de generais, como Du Paty de Clam, Mercier, Billot, e até os grafologistas, de arquitetarem um crime contra um inocente, de desenvolverem um inquérito fraudulento, de esconderem provas de um processo, e de inocentarem conscientemente o culpado, Esterházy.

Note-se que ele perderia o processo, tendo de se exilar na Inglaterra. Em 1899 consegue-se a revisão do processo Dreyfus, mais uma vez pela justiça militar; para escândalo mundial, Dreyfus é novamente condenado — a uma pena menor. O ambiente de opinião já permite, entretanto, uma anistia política a Dreyfus, que ele, naturalmente, aceitará, sem que formalmente a acusação tenha sido retirada. Somente em 1906, ainda assim depois de uma manobra parlamentar, Dreyfus seria plenamente reabilitado, recebendo as promoções a que teria direito. Torna-se general; alguns anos depois, Picquart será nomeado ministro da Guerra. Trata-se, como dissemos, de um raro caso de final feliz, depois de doze anos de luta, em que poucas vezes os campos foram tão definidos: altas patentes militares, monarquistas, anti-semitas e direita católica contra intelectuais, republicanos e forças de esquerda.

Não há formulação mais eloquente dos valores em jogo nesse conflito do que a feita pelo próprio Zola, em “J’accuse…!”. Citemos um trecho crucial:

Quantas pessoas, agora, estão tremendo de angústia, ao saber que, diante de uma guerra possível com a Alemanha, nessas mãos está confiada a defesa nacional! Em que ninho de baixas intrigas, de fofocagem e desmando se transformou esse refúgio sagrado em que se decide o destino da pátria! Espantamo-nos diante da luz terrível que se projeta com esse Caso Dreyfus, o sacrifício humano de um infeliz, de um “judeu sujo”! Ah, tudo o que se agitou nesse caso de demência e de burrice, de imaginações delirantes, de práticas de baixa polícia, de costumes de inquisição e tirania, o bel-prazer de alguns fardados metendo as botas sobre a nação, enfiando-lhe de volta pela garganta seu grito de verdade e de justiça, sob o pretexto mentiroso e sacrílego da Razão de Estado![29]

Justamente, a direita e seus luminares no mundo literário — especialmente Maurice Barrès, mas também grande parte da Academia Francesa, os grandes críticos acadêmicos, como Ferdinand Brunetière, Jules Lemaître, e poetas parnasianos como François Coppée, o establishment da literatura conservadora, enfim — consideravam que não interessava saber se Dreyfus era inocente ou não. Mais do que a verdade no caso, e o destino de um indivíduo, estava em jogo a honra do Exército. A pátria francesa e seus defensores não poderiam tolerar que os humilhassem: qualquer admissão de erro judicial seria prejudicial aos interesses nacionais, enfraquecendo o país diante do seu inimigo, a Alemanha, e favorecendo uma parcela “desenraizada” e “apátrida” da população: os judeus e seus seguidores no mundo intelectual.

“Quem é esse senhor Zola?”, perguntava-se Barrès. “Olho para suas raízes [o pai de Zola era italiano]: esse homem não é um francês […] existe uma fronteira entre nós. Que fronteira? Os Alpes…”[30] Quanto à sorte de Dreyfus, trata-se de fato secundário: “A libertação do traidor Dreyfus seria afinal de contas um fato mínimo, mas se Dreyfus é mais do que um traidor, se ele é um símbolo, o caso é outro! Alto lá! O triunfo do campo que defende o Dreyfus-símbolo decididamente levaria ao poder os homens que pretendem transformar a França conforme os seus desígnios próprios. E eu, eu quero conservar a França. Todo o nacionalismo está nessa oposição”.[31] Por sua vez, o crítico literário Brunetière contestará a legitimidade das opiniões de Zola: “A intervenção de um romancista, mesmo famoso, em uma questão de justiça militar, me parece tão fora de propósito quanto o seria a intervenção de um coronel de polícia nas questões da origem do romantismo”.[32]

É a partir desse tipo de observações que podemos entender o papel histórico de Zola e da série de manifestos e abaixo-assinados de intelectuais, apoiando Dreyfus, que começaram a ser divulgados nos dias seguintes à publicação de “J’accuse…!”.[33]

No trecho de seu libelo, que citamos acima, critica-se em primeiro lugar a suposta competência, no que tange à defesa nacional de uma corporação que se entrega a falsificações — e mesmo à cumplicidade com o verdadeiro traidor — para preservar a validade de uma sentença absurda. “Diante de uma guerra possível”, pergunta Zola, como confiar na “demência e na estupidez” do Estado-Maior? Mas não se trata, sobretudo, de uma questão relativa apenas ao interesse nacional. Como admitir que, em nome da razão de Estado, venham a ser sufocados os gritos de verdade e de justiça?

Verdade e justiça: os dois termos voltam com insistência à pena de Zola; já tinham constituído o fecho de sua “Carta à França”, e de sua “Carta à Juventude”, publicadas semanas antes. Na primeira intervenção de Zola no caso, um artigo intitulado “M. Scheurer-Kestner” (em defesa do vice-presidente do Senado, umas das poucas vozes isoladas em favor de Dreyfus), esboçava-se já o mesmo lema.[34] Muito mais tarde, já em fins do século XX, essas duas palavras ainda repercutem sempre que se fala na função dos intelectuais, ou na(s) crise(s) por que passam periodicamente. Num texto curto de Susan Sontag, a questão retorna, sem as certezas de outros tempos:

[…] compreender a verdade nem sempre facilita a luta pela justiça E, a fim de fazer justiça, pode parecer correto suprimir a verdade. Esperamos não ter de optar. Mas quando é necessária uma escolha (entre verdade e justiça) — como, infelizmente, às vezes acontece —, parece-me que um intelectual deveria optar pela verdade. Em geral, não é isso o que têm feito os intelectuais, os mais bem-intencionados entre eles. Invariavelmente, quando os intelectuais subscrevem uma causa, é a verdade, em toda a sua complexidade, que leva a pior.[35]

O dilema assinalado por Sontag não é de fácil resolução, e provavelmente marca como nenhum outro, a meu ver, a “crise dos intelectuais” e seu posterior mutismo. Seria necessário, por certo, investigar concretamente os casos em que uma “opção” real entre verdade e justiça estaria colocada para o intelectual. Minha desconfiança — meu otimismo — é que não são tão comuns quanto Sontag sugere. Talvez essa necessidade de “optar” tenha surgido, na verdade, ao longo de um período em que a ideia de justiça — entendida, aqui, como justiça social, luta pela igualdade entre os homens — se associou erroneamente aos interesses de alguma “razão de Estado”, em seu sentido amplo: seja um determinado partido político ou movimento social, seja a estratégia deste ou daquele país equivocadamente identificado com o socialismo ou o progresso da humanidade. No declínio das ilusões a respeito da União Soviética, da China ou de Cuba, a rendição dos intelectuais à razão de Estado entra em crise, as versões mais caricatas do “engajamento” caem em descrédito, e a orfandade dos intelectuais que se modelavam pela militância ao estilo de Nizan na década de 1930 ou de Sartre na década de 1950 passa a ser sensível; com isso, talvez, a exigência de atender simultaneamente à verdade e à justiça vá novamente deixando de ser tão problemática. Ao preço, naturalmente, de uma perda de “realismo político”, das vantagens que pode haver para o intelectual em estar associado a alguma fonte de poder concreto: guerrilha, exército ou polícia.

A crise dos intelectuais, no sentido que contemporaneamente se empresta ao tema, confunde-se assim com a crise das utopias, com o desamparo da esquerda diante das impossibilidades de ver espelhados os seus ideais no mundo concreto. Mas podemos entender essa situação de outra forma: não como uma crise dos intelectuais pura e simplesmente, mas como uma “crise da traição dos intelectuais”, no sentido apontado por Benda. Trata-se de admitir, como queria o autor de La trahison des clercs, que os valores cultivados pelos intelectuais “não são deste mundo”.

Desde que se entenda — e o ponto é decisivo — o que estava realmente em jogo nessa defesa da intransigência espiritual, nessa atitude de “lógicos do absoluto”, para utilizar o termo com que Barrès quis estigmatizar os intelectuais dreyfusistas, aos quais, de resto, o jovem Benda aderira com entusiasmo.

Ainda hoje, quando tomamos contato com as críticas de Benda aos intelectuais que se submetem às paixões políticas, às ideologias, parece-nos que estão sendo visados, sobretudo, os pensadores de esquerda. Mas a terminologia de Benda, a começar pelo próprio termo de “traição”, está marcada pela mobilização anticonservadora que marcou o Caso Dreyfus. Não — lê-se nas entrelinhas —, não é Dreyfus o traidor: traidores são os intelectuais que defendiam os supostos interesses nacionais franceses contra os imperativos de verdade e de justiça.

Podemos agora reler Benda, à luz da fraseologia presente em “J’accuse…!”. O único dever dos clérigos, diz Benda, é cultuar a verdade e a justiça. O fenômeno escandaloso, a “traição”, a seu ver, é o surgimento de uma nova ordem de clérigos, que “declaram não saber o que é a justiça e a verdade, ou outras ‘nuvens metafísicas’; para eles o verdadeiro é determinado pelo útil, e o justo, pelas circunstâncias”.[36] É, como diz Zola, o primado da razão de Estado sobre princípios universais, sobre valores absolutos.

Mas verdade e justiça, aqui, são também palavras muito concretas, numa situação muito concreta: os intelectuais dreyfusistas desmascaravam um Estado-Maior que não parava de mentir, e exigiam que um inocente fosse finalmente libertado. Defendiam princípios universais, mas que são avaliados em uma circunstância específica, em torno de um assunto preciso; não há metafísica em torno disso, e o discurso de Zola não expressava nenhum ponto de vista teológico. A intervenção dos intelectuais no Caso Dreyfus se deu porque eles não estavam comprometidos com a razão de Estado: representavam, naquele momento, a Razão, pura e simples, sem ouvir argumentos em favor de um cálculo político qualquer. Não honra o pensamento de Sartre, nem o pensamento da esquerda em geral, a distorção deliberada a que o pensamento de Benda foi submetido. Citemos um exemplo dessa distorção, tirado de Que é a literatura?. O texto, como vimos, foi escrito em 1947, num período em que Sartre ainda se colocava como opositor da União Soviética. Sartre está defendendo o primado do ponto de vista particular, concreto, na obra de um romancista.

Tome-se o caso do grande escritor negro Richard Wright. Se considerarmos somente a sua condição de homem, ou seja, de um “preto” do Sul dos Estados Unidos, deslocado para o Norte, reconheceremos de imediato que ele só poderia escrever a respeito de negros e brancos vistos pelos olhos dos negros. Seria possível supor, ainda que só um instante, que ele aceitasse passar a vida contemplando a Verdade, a Beleza e o Bem eternos, quando 90% dos negros do Sul estão praticamente privados do direito de voto? Caso se fale aqui em traição dos intelectuais, responderei que não há intelectuais entre os oprimidos. Os intelectuais são necessariamente parasitas das classes ou das raças opressoras.[37]

Mas o autor de A traição dos clérigos não defendia a mera contemplação da Verdade e do Bem eternos. Lembremos o primeiro exemplo de seu livro, o de Tolstoi reprovando, em nome do Evangelho, o oficial que espancava o soldado trânsfuga. O oficial responde a Tolstoi invocando o regulamento militar, que de fato prevaleceria nessa situação real. Mas ao invocar o Evangelho, naquele momento, Tolstoi não estava contemplando nuvens metafísicas: reagia diante de um caso concreto, insurgia-se contra uma opressão real. Do mesmo modo, defendeu-se Dreyfus em nome de um absoluto de verdade e de justiça; mas em uma situação determinada, possível para quem vivia em uma sociedade real — marcada pelo antissemitismo, pelo conflito latente com a Alemanha, pelas ambiguidades do movimento socialista… Trata-se de engajamento também, e não há como ver em Benda um adversário dessa atitude. A traição não está no engajamento, e sim na defesa do regulamento militar.

Que haja limites “de classe”, impedimentos ideológicos à ação de um intelectual burguês, mesmo quando sinceramente empenhado em lutar pela justiça e pela verdade, é um truísmo que Benda não teria dificuldade em admitir. Sua argumentação se aproxima do paradoxo, quando termina qualificando de “sensata” a resposta do oficial à indignação de Tolstoi, uma vez que, afinal, “quem conduz os homens à conquista das coisas não tem o que fazer da justiça e da caridade”.[38] Aceitando que o poder temporal tenha uma lógica própria, em oposição à dos valores clericais, o pensamento de Benda não faz mais do que transfigurar, do ponto de vista teórico, uma prioridade muito datada e concreta do ponto de vista político: a da separação entre Igreja e Estado, típica das lutas sociais na França da Terceira República. Não é menos verdadeiro, entretanto, que os momentos em que a intervenção dos intelectuais no cenário político se fez indispensável, em que realmente valeu a pena que rompessem o silêncio, foram também aqueles em que, superando essa separação rígida de vocações e de atributos, souberam ainda assim manter a pureza “abstrata” de seus princípios, e representar um valor universal.

Sartre criticava, como vimos, as pretensões universalistas dos filósofos do século XVIII que, “quando buscavam o homem, só chegavam ao burguês”. Que essa frase seja contraposta a outra, de Zola, refutando a tese de que sua campanha a favor de Dreyfus servia aos interesses “dos judeus”: “Não os amo nem os odeio. Não tenho, dentre eles, nenhum amigo próximo de meu coração. Eles são, para mim, homens — e isso basta”.[39]

Notas

[1] Não estava ao alcance dos organizadores do ciclo, sem dúvida, imaginar que o tema se tornaria mais oportuno do que nunca em 2005, quando uma crise ética sem precedentes atingiu o PT e o governo Lula. A ideia de um “silêncio dos intelectuais” — que se relacionava, de modo geral, ao estado de perplexidade que se seguiu às grandes e periódicas derrocadas históricas vividas pela esquerda ao longo do século XX — veio a aplicar-se, com maior ou menor grau de exatidão, à atitude de diversos pensadores brasileiros diante da situação do PT, cercando de expectativas catárticas um debate teoricamente destinado a ter alcance mais restrito. Seja como for, a conjuntura parecia feita de encomenda para repetir, com novos personagens, o roteiro clássico das decepções, das defecções, dos remorsos, das omissões e teimosias que sempre regularam as relações entre partidos de esquerda e seus simpatizantes no campo literário e acadêmico. Para uma autocrítica das posições pessoais do autor em relação ao PT, ver “Os intelectuais em tempos de CPI”, Folha de S.Paulo, 24/8/2005.

[2] Vale citar dois livros que relatam de modo apaixonante os vaivéns do engaja- mento e da alienação no cenário intelectual francês: Bernard-Henri Lévy, As aventuras da liberdade, trad. Paulo Neves, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, e Michel Winock, O século dos intelectuais, trad. Eloá Jacobina, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.

[3] Thomas Mann, A montanha mágica, trad. Herbert Caro, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980 [1924]. Sobre os traços de personalidade de Benda, ver Ray Nichols, Treason, tradition and the intellectual — Julien Benda and political discourse, Lawrence, Regents Press of Kansas, 1978; David Schalk, The spectrum of political engagement — Mounier, Benda, Nizan, Brasillach, Sartre, Princeton, Princeton University Press, 1979, cap. 2; e do próprio Benda, La jeunesse d’un clerc, 2a ed., Paris, Gallimard, 1936.

[4] Jean-Paul Sartre, Que é a literatura?, trad. Carlos Felipe Moisés, São Paulo, Ática,1989, pp. 188-94.

[5] Não se trata do jornal atualmente em circulação, mas de um cotidiano fundado em 1941, nos quadros da Resistência francesa, e que deixou de ser publicado em 1964.

[6] Annie Cohen-Solal, Sartre, trad. Milton Persson, Porto Alegre, L&PM, 1985, p. 452.

[7] Ibidem, pp. 453-4.

[8] Para uma análise simpática à perspectiva sartriana, ver Michel-Antoine Burnier, Les existentialistes et la politique, Paris, Gallimard, Coleção “Idées”, 1966, 2a parte.

[9] Ibidem, pp. 423 ss.

[10] Jean-Paul Sartre, Situations IV, citado por Cohen-Solal, op. cit., p. 428.

[11] O relato das relações entre Sartre e os soviéticos é feito num tom próximo do acusatório, mas amplamente documentado, por Denis Bertholet, em sua biografia do filósofo: Sartre, Paris, Perrin, 2005.

[12] Jean-Paul Sartre, Em defesa dos intelectuais, trad. Sergio Goes de Paula, São Paulo, Ática, 1994, pp. 34-5.

[13] Ibidem, p. 35

[14] Bernard-Henri Lévy, O século de Sartre, trad. Jorge Bastos, Rio de Janeiro, Nova

[15] André Gide e François Mauriac, Correspondance (Cahiers André Gide, 2), Paris, Gallimard, 1971, p. 169.

[16] Michel Winock, O século dos intelectuais, op. cit, p. 374.

[17] André Gide, Retour de l’URSS, em Souvenirs et voyages, Paris, Gallimard, Coleção La Pléiade, 2001 [1936], p. 774.

[18] Idem, Retouches à mon “Retour de l’URSS”, em Souvenirs et voyages, op. cit.,pp. 837-8.

[19] Idem, Retour de l’URSS, op. cit., p. 768.

[20] Julien Benda, La trahison des clercs, 2a ed., Paris, Grasset, 1946, pp. 125-6. Parte substancial do livro, incluindo o trecho citado, tem boa tradução de Cristina Prado para o português, em Elide Rugai Bastos e Walquíria Domingues Leão Rêgo (orgs.), Intelectuais e política. A moralidade do compromisso, São Paulo, Olho d’Água, 1999. Por uma questão de homogeneidade, citamos em nossa tradução a partir do texto francês.

[21] Ibidem, p. 126.

[22] Ibidem, pp. 95ss.

[23] Ibidem, p. 153.

[24] Ibidem, p. 173.

[25] Ibidem, pp. 179-81. O “moralista moderno” que aprovou a condenação de Sócrates, informa Benda em nota de rodapé, foi Georges Sorel, inspirador de Mussolini. Cabe observar que esse raciocínio de Sorel parece ter inspirado também, no outro lado do espectro político, as considerações de Paul Nizan em Les chiens de garde, veemente ensaio publicado em 1932, e que pode ser em grande parte entendido como uma resposta ao A traição dos clérigos. Defendendo o ponto de vista dos “homens concretos” (contra uma filosofia limitada ao mundo abstrato das ideias), Nizan escreve: “Eles se preocupam em saber se determinada filosofia é sua aliada ou sua inimiga, ou se ela é contra eles simplesmente porque não se ocupa deles […] A espécie [humana] é assim: convoca tudo para si. Poderemos sempre reencontrar, com este sentido, a velha sentença de Protágoras. É assim que os homens vulgares têm a última palavra sobre a filosofia, que eles inicialmente julgaram pelas consequências que ela tem. É assim que Anitos julga Sócrates, que Lenin julga o empiriocriticismo”, em Les chiens de garde, Paris, Agone, 1998 [1932], p. 28. Anitos foi um dos três acusadores de Sócrates, e aparece no Mênon de Platão advertindo contra os perigos do pensamento socrático.

[26] Ibidem, p. 137. Corrigimos uma óbvia falha tipográfica do original.

[27] Jean-Denis Bredin, O Caso Dreyfus, trad. Maria Alice Araripe de Sampaio Dória e Renata Maria Parreira Cordeiro, São Paulo, Scritta, 1995 [1993].

[28] Citado por Jean-Denis Bredin, op. cit., pp. 267-8.

[29] Émile Zola, J’accuse…!, Paris, Librio, 1998 [1898], p. 74.

[30] Citado por Jean-Denis Bredin, op. cit., p. 286

[31] Citado por Pierre Birnbaum, L’Affaire Dreyfus — La République en péril, Paris, Gallimard, 1994, p. 53.

[32] Citado por Jean-Denis Bredin, op. cit., p. 315.

[33] A primeira petição, em nome dos que, “protestando contra a violação das formas jurídicas no processo de 1894 e sendo contra os mistérios que envolveram o caso Esterházy, persistem em pedir a revisão”, foi publicada no L’Aurore de 14 de janeiro de 1898, tendo como signatários, entre outros, Anatole France, o romancista Octave Mirbeau, o comediógrafo Georges Courteline. Novas listas vão surgindo, com os nomes de Monet, Péguy, Sarah Bernhardt, Émile Durkheim… os “intelectuais”, enfim. Termo inicialmente tomado em sua acepção pejorativa (algo como “cerebrinos”), e assim disseminado por Maurice Barrès, que denuncia no abaixo-assinado “uma lista da elite”: “Todos esses aristocratas pensadores tendem a apregoar que não pensam como a vil multidão. Nós os enxergamos muito bem… Esses intelectuais são restos deploráveis, num esforço da sociedade para criar uma elite […]”. Cf. Bredin, op. cit., pp. 314-5.

[34] Cf. Émile Zola, op. cit., pp. 25, 28, 43, 54 e 63.

[35] Susan Sontag, “Respostas a um questionário”, em Questão de ênfase, trad. Rubens Figueiredo, São Paulo, Companhia das Letras, 2005 [1977].

[36] Julien Benda, op. cit., p. 137.

[37] Jean-Paul Sartre, Que é a literatura?, op. cit., pp. 62-3.

[38] Julien Benda, op. cit., p. 93.

[39] “Le Syndicat”, em Émile Zola, J’accuse…!, op. cit. p. 27.

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