1991

É possível democratizar a televisão

por Fábio Konder Comparato

Resumo

A televisão é, de longe, no Brasil de hoje, o principal veículo de comunicação nacional. Estimou-se que, em 1987, 17 milhões e 400 mil lares possuíam televisor, num total de quase 26 milhões de aparelhos. A média de duração de assistência diária a emissões de televisão, segundo levantamento feito pela Unesco naquele mesmo ano, era de duas horas por indivíduo — a mais alta média entre todos os países subdesenvolvidos.

Essa maciça penetração no meio social faz da televisão um formidável instrumento de poder.

Antes de mais nada, é preciso lembrar que a televisão forja os costumes sociais, com uma eficácia e rapidez absolutamente novas na história. A TV tende a ser a principal matriz dos valores sociais, superando nessa função a família, a escola, a Igreja, o partido ou o próprio Estado. Mas, diferentemente destas instituições, a televisão é mero veículo de transmissão de mensagens: não é a televisão, enquanto veículo, que as produz. A verdade, como frisou McLuhan, é que o veículo tende a incorporar a mensagem e a se identificar com ela. O povo adota os comportamentos e os valores sociais difundidos pela televisão, e os estabiliza em costumes; não pelo conteúdo das mensagens, mas simplesmente pelo fato de que elas lhe são transmitidas pela televisão.

Nada mais é preciso acrescentar para perceber a extraordinária importância da televisão como instrumento político. Não se trata, apenas, de sua influência óbvia nas campanhas eleitorais, como acabamos de ver em nosso país, tanto no último pleito presidencial (a criminosa manipulação do derradeiro debate do segundo turno) quanto nas eleições para as Casas Legislativas, onde quase todos os candidatos mais votados foram protagonistas de programas de televisão. Não se trata tampouco, apenas, da capacidade de alguns governantes de lograr ampla adesão popular às suas políticas, pela exploração de um talento pessoal televisivo. O fundamental é a possibilidade de inculcar, na massa do povo, opiniões, preconceitos e convicções, que modelam a mentalidade popular e acabam se transformando em costumes estáveis, os quais, por sua vez, passam a influenciar, decisivamente, o funcionamento das instituições políticas.

Por tudo isso, a superação da via de mão única nas relações de comunicação — dos Poderes Públicos, ou dos controladores de emissoras de televisão, em relação ao povo, mas não deste em relação àqueles — deve desembocar no verdadeiro teste da vida democrática, que é o controle popular da ação dos governantes. Seria, assim, indispensável que os nossos juristas procurassem ampliar os mecanismos de controle recíproco dos poderes republicanos e, também, instituir os instrumentos de controle popular, pela via dos meios de comunicação social. É, por exemplo, o direito de qualquer parlamentar, ou partido político, de interpelar o presidente da República, ou governador de estado, pela televisão, exigindo resposta pela mesma via; ou de entidades representativas da sociedade civil poderem fazer o mesmo em relação ao segundo escalão administrativo (ministros de Estado, secretários de estado). No plano municipal, esse controle popular poderia ser exercido pelo rádio.

Tudo isso mostra que a democracia é a mais fecunda das ideias políticas, e que estamos ainda longe de esgotar as suas virtualidades.


Se fôssemos tentar traçar um roteiro do boom da produção em vídeo na década de 80, no Brasil, o ponto de partida necessariamente teria de ser a tecnologia. A imensa produção brasileira em vídeo desta década está intimamente relacionada ao acesso à tecnologia — equipamentos portáteis mais leves e mais baratos — por parte de cada realizador.

Simultaneamente às inovações tecnológicas, o crescimento da produção de vídeo acontece em meio ao processo de abertura democrática e a uma profunda crise econômica, social e política. O ano de 1984 é significativo para se entender este momento. No campo do vídeo, estão em gestação vários grupos e projetos, no âmbito político, está em curso, por todo o país, a campanha por eleições diretas para presidente.

O clima político incide diretamente na tônica das produções em vídeo. Uma avalanche de programas são realizados enfocando as múltiplas situações da realidade social e política. Utilizando formas diversas, os realizadores vinculados aos movimentos populares voltam-se para a documentação da realidade social, fazendo do vídeo um instrumento de intervenção e de denúncia ao narrarem outra versão dos fatos, distinta das veiculadas pelos meios massivos.

Portanto, foram vários os condicionantes sociais que estimularam direta ou indiretamente a apropriação do vídeo pelos diversos setores da sociedade.

Esta nova fase da imagem em movimento, via vídeo, nas mãos dos grupos populares, teve seu início a partir de 1982, contando inicialmente com o apoio de alguns setores da Igreja, de centros de educação popular e de direitos humanos. De modo geral, os realizadores assumem uma trajetória comum: buscar uma linguagem adequada às condições precárias de produção que seja capaz de exprimir a condição crítica da experiência cotidiana de milhares de brasileiros.

É possível dizer, numa breve retrospectiva, que a atuação dos movimentos sociais, desde os anos 70, é marcada por uma busca constante de formas criativas para a discussão e divulgação de suas reivindicações. Nesse período, surgiram em todo o país usos alternativos de veículos de comunicação jornais, revistas, programas de rádio, audiovisuais, teatro, vídeos. Esses usos alternativos tinham em comum não apenas uma maior participação popular na criação de mensagens e na gestão dos meios de comunicação, mas, principalmente, objetivos mais amplos de mudanças sociais.

No âmbito dos meios de comunicação de massa, os movimentos sociais despendem grandes esforços para conquistar a difusão de suas reivindicações por meio da imprensa, do rádio e da televisão. Fazem da cobertura jornalística um instrumento para sensibilizar o poder público e para ampliar o reconhecimento de suas reivindicações por parte da sociedade. Mas estão sempre à mercê da opinião e da censura dos proprietários desses meios.

Deste modo, os movimentos sociais se defrontam diretamente com as consequências da política governamental que vem, há mais de duas décadas, concentrando o meio de comunicação televisão nas mãos de poucos grupos privados. Esta realidade tem impulsionado a necessidade de elaborar e implementar estratégias de comunicação mais avançadas, visando à democratização da informação nos chamados veículos de massa e à utilização dos mais diversificados meios que potencializem os processos de comunicação e a circulação de mensagens.

Neste contexto, o vídeo tem se tornado um meio da maior importância nas mãos destes movimentos: ao mesmo tempo em que potencializa as atividades de registro e de memória, viabiliza a produção e distribuição de mensagens. É no universo dos excluídos que o vídeo popular está inserido. Estou falando de vídeos de boias-frias, prostitutas, seringueiros, sem-teto, sem-terra, sem-tela…

O vídeo popular traz uma abordagem distinta da praticada na TV. Nesses programas as histórias de vida, a experiência e o conhecimento dos entrevistados tecem os vídeos, por segundos, a fala de cada narrador toma a cena e se transforma em tema principal. A opção por essa abordagem busca abrir microfone e câmera para que os protagonistas (sujeitos sociais) dêem sua visão acerca dos fatos ou temas trabalhados.

Qual o sentido dessa “outra” relação entre videastas e protagonistas? Que significado social e político é possível atribuir-lhe?

A prática com a imagem eletrônica envolve, ao mesmo tempo, realizadores, protagonistas e receptores. Sabemos que o modelo de TV brasileiro, que é monopólio de puro comércio e consumo, não trabalha com as diversas formas da narrativa. Há uma indiscutível seleção dos que têm poder de fala e conhecimento na tela. São as autoridades, personalidades governamentais, empresariais, políticas e intelectuais. Sabemos também que a nossa formação enquanto realizadores de vídeo está profundamente marcada pela nossa condição de espectadores de TV.

Nesse sentido é que considero como traço de maior importância e originalidade o aspecto de anti-reportagem e antinotícia do vídeo popular. Pois, ao focalizar em primeiro plano e trazer para o centro da tela a expressão das minorias raciais e sexuais, dos trabalhadores e dos “vencidos”, deixando fora do quadro o repórter que explica os fatos e o âncora que define os acontecimentos, o vídeo popular traz também uma outra concepção de notícia, de reportagem e especialmente da forma de abordagem, apresentando-se como oposto do modelo televisivo.

Hoje, contamos com uma expressiva produção de vídeos originários dos grupos populares e sindicatos. O volume dessas produções já alcança um número significativo de programas.

Com o objetivo de ampliar a circulação desses programas em vídeo, em 1987, a ABVP – Associação Brasileira de Vídeo Popular — inicia a implantação de um sistema de distribuição. Trata-se de uma iniciativa pioneira que reúne grupos de realizadores e grupos de exibidores para buscarem, em comum, canais de distribuição e difusão. Atualmente, esse programa de distribuição reúne trezentos títulos.

Assim, de um uso inicialmente restrito ao âmbito grupal, as produções de vídeo popular começam a ser levadas às praças públicas, sindicatos, associações de bairro, escolas e centros culturais. A ABVP tem trabalhado no sentido de consolidar uma rede nacional de distribuição a fim de ampliar o acesso a essas produções.

Este breve relato acerca do vídeo popular me permite dizer que há vida fora da TV, que a produção de vídeo nesse país já se constitui em uma alternativa de televisão. Mas essas produções irão continuar eternamente fora das ondas do ar, fora da televisão?

PAÍS DE CORONÉIS DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Entre as várias batalhas que ainda teremos de enfrentar para vivermos em um país democrático, em uma democracia de fato, a batalha por uma legislação que regule a posse e o uso dos meios de comunicação certamente estará entre as mais difíceis, mais duras.

No Brasil, o direito à informação e à expressão da pluralidade de posições que caracteriza uma sociedade democrática não está sendo assegurado, nem o será facilmente.

Debates acerca da redemocratização do país têm enfocado com maior ênfase a complexa relação entre democracia e meios de comunicação. Essas discussões, centradas até recentemente na luta pela liberdade de expressão, foram substancialmente ampliadas no conjunto da sociedade durante a última eleição presidencial. Hoje, reivindicamos plenos direitos no exercício da comunicação.

Observa-se que, ao lado dos obstáculos políticos, existem obstáculos econômicos à liberdade de expressão. As informações, especialmente de interesse social e político, invariavelmente estão vinculadas à opinião/posição dos proprietários dos veículos de comunicação de massa. A ênfase dada a determinadas manchetes, o lugar reservado para alguns assuntos e o seu próprio conteúdo revelam mecanismos de manipulação psicológica e ideológica não suscetíveis ao controle democrático.

Os grupos sociais e entidades dos mais diversos tipos começam a buscar o aprofundamento de discussões e a elaboração de propostas que venham impedir a política de privilégio na concessão de canais de comunicação aos amigos do rei.

A nova Constituição Federal, promulgada em 1989, não trouxe avanços para reduzir o poder dos oligopólios na comunicação e redefinir a liberdade de expressão para os diversos setores da sociedade. A concessão de canais ainda não foi regulamentada pelo Congresso Nacional, o que acaba permitindo que o presidente da República continue com o poder de aprovar concessões. Em consequência desta situação, os avanços tecnológicos e as novas modalidades na área de radiodifusão, como canais em UHF, VHF, TV por assinatura, acabam contribuindo para aumentar ainda mais a concentração de poder nas mãos de grandes grupos econômicos. Ao contrário do que vem sendo propagado, essas novas modalidades de transmissão não implicam automaticamente um questionamento do sistema de televisão brasileiro, que é ainda um verdadeiro cartel de donos das ondas do ar.

Hoje não existe nenhum grupo social com força de intervenção no sistema da mídia eletrônica. Esse espaço de intervenção é lugar exclusivo do IBOPE, do Ministério da Justiça e das senhoras de Santana.

Paradoxalmente, a democratização da mídia eletrônica, enquanto temática política, não tem ocupado espaço relevante na agenda das discussões dos partidos, sindicatos, movimentos sociais e associações em geral. Também os intelectuais não têm dado a devida importância a esse tema; infelizmente o desprezo e o preconceito intelectual com relação à televisão têm nos limitado a escassas reflexões teóricas.

O direito à informação e à opinião no nosso país é questão de direitos humanos. Cabe à sociedade enfrentar essa discussão, essa luta. Contudo, a possibilidade de que a televisão seja feita por todos aqueles que estão excluídos do direito de produzir e difundir informações exige mobilização de uma grande vontade coletiva. Essa batalha precisa agregar uma grande força social contra a força dos cartéis, precisa contar com os movimentos sociais, os sindicatos, os partidos, a OAB, a CNBB…

No terreno da mídia eletrônica, reivindicar plenos direitos no exercício da comunicação implica enfrentar uma das questões essenciais para a consolidação de uma sociedade plural, com espaço para diferenças, diversidades e conflitos.

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