1994

Duchamp: crítica da razão visual

por Jacques Leenhardt

Resumo

Quando Marcel Duchamp envia (sob o falso nome de Robert Mutt) o ready-made Fountain (Fonte) para a exposição da Sociedade dos Artistas Independentes em 1917, talvez não soubesse que estava realizando um dos gestos mais significativos para a cultura do século XX.

Com o ready-made (objeto produzido industrialmente, proposto por um artista “como” objeto de arte) a obra de arte se encontrava separada da mão manufatureira do artista.

No século XIX, o desenvolvimento da imprensa e da edição teve efeitos revolucionários sobre os escritores e a própria criação literária. No campo das artes visuais, as invenções técnicas relativas à imagem como a fotografia, a reprodução em cores e a “cromolitografia”, provocaram mais impacto no modo de percepção e apreensão da obra do que no modo de produção. Até então as imagens só apareciam nos quadros sociais e institucionais bem estruturados: a igreja, o palácio principesco e, depois do século XVIII, aos poucos, o interior burguês. O século XIX inaugura um novo espaço de exibição da arte: o museu. A especificidade da experiência estética permitida pelo museu modificou então o olhar do público sobre as obras, e em seguida as próprias obras.

Desde que os tesouros da pintura e da arte universal tornavam-se disponíveis sob a forma de sua imagem, nos livros, nos cartões-postais ou nos cartazes, surgiu uma nova história da percepção da arte. A crise da imagem que daí resultou foi o resultado de uma análise crítica das suas características formais tanto quanta ideológicas.

Se os artistas de alguma maneira perderam a arte, eles ganharam coletivamente uma posição-chave dentro do sistema pós-moderno de poder, devido à importância que a imagem tomou na organização desse mundo.

A segunda história que devemos observar para compreender a intervenção de Duchamp e do ready-made, é a do juízo estético. Desde meados do século XIX, os artistas recusados pelos salões oficiais criam seus próprios salões: primeiramente o Salão dos Recusados e, em seguida, o Salão dos Independentes. Fazendo isto, eles se colocavam sob a autoridade do juízo do público em preferência ao dos especialistas.

Para Duchamp, “são os olhadores que fazem o quadro”. Todo objeto pode chamar nossa atenção, nossa sensibilidade, desde que nosso espírito esteja preparado. A reprodução, quer dizer a imagem, precede a obra, o que nos remete ao ready-made. Na confrontação com o objeto industrial, múltiplo e idêntico, Duchamp vê a situação paradigmática do olhador. Este já conhece a imagem industrial. Então, perversamente, se assim podemos dizer, Duchamp sugere a questão em meias-palavras: saberá ele verdadeiramente olhar um quadro?

Duchamp imagina que essa nova situação permite uma vez mais relançar a arte. Isto definido desde então como experiência estética, será feito pelo espectador ao qual o artista não faz senão lançar o desafio: faça sua própria obra, quer dizer, veja sua obra.


O título deste ciclo se baseia numa antiga antinomia do pensamento ocidental, a do discurso, ou pensamento, considerado lógico, e a arte, considerada sensível. Seguindo esta tradição filosófica, somos levados a pensar que sensibilidade e pensamento são antinômicos, contraditórios, ou pelo menos que pertencem a universos distintos.Platão havia resolvido expulsar de sua cidade ideal pintores e poetas, porque considerava que estes artistas, mestres das técnicas da semelhança, e da aparência, só podiam perverter os espíritos, enquanto ele, Platão, desejava educá-los nas regras da racionalidade. As artes miméticas, aquelas que brincam com a capacidade de representação de se fazer passar pela mesma coisa, eram a seus olhos tão condenáveis quanto a mentira.Dois mil anos depois de Platão, nossa cultura ainda não saiu desse dilema. O discurso, o logos, sempre se opõe na nossa consciência ao mundo da imagem, como o bem se opõe ao mal, e o desenvolvimento da televisão nada ajudou para melhorar a situação.

Gostaria de retomar esta questão baseando-me num dos artistas mais singulares deste século: Marcel Duchamp (1887-1968).

Quando em 1913 Marcel Duchamp expõe no Armony Show, em Nova York, o Nu descendant l’escalier [Nu descendo a escada], ele é um pintor entre outros, sem dúvida dotado de talento, mas ainda sob influência do impressionismo e em seguida do cubismo. Nu descendant l’escalier é, sob este ponto de vista, um sucesso pictórico, exploração inteligente das últimas inovações estéticas do vanguardismo cubista. O quadro, aclamado pela crítica, é exposto sucessivamente, nos anos seguintes, por vezes no contexto do “pós-impressionismo” (Portland, 1913). Em consequência desse sucesso, Duchamp é convidado a expor em 1917 na Sociedade dos Artistas Independentes, mas ele se recusa. Ou melhor, apresenta-se mascarado, tendo enviado secretamente para a exposição uma obra assinada por um certo Robert Mutt, intitulada Fountain [Fonte] É o primeiro ready-made proposto para uma exposição. Ele será recusado, mas apesar disso começará uma carreira “artística” inigualável.[1]

Figura 1 - Fonte; ready-made (1917). Filadélfia, Philadelphia Museum of Art
Figura 1 – Fonte; ready-made (1917). Filadélfia, Philadelphia Museum of Art

Oitenta anos se passaram. Toda pessoa um pouco informada sobre arte sabe que o ready-made é um objeto produzido industrialmente, proposto por um artista “como” objeto de arte. O artista não afirma tê-lo feito, ele simplesmente o escolheu e assinou. Conhecemos também a posteridade extremamente rica que teve este gesto, um gesto antiartístico que rompe com a tradição artística que fazia do “ofício”, da competência e da atividade técnica uma das características essenciais do artista. Sendo assim, esta tradição inscrevia o artista na sua genealogia, quer dizer, na grande família que vai do artesão medieval ao artista moderno. Com o ready-made entretanto, essa linguagem fora brutalmente interrompida, e a obra de arte se encontrava desde então separada da mão manufatureira do artista. O objeto industrial, a produção em série e a própria máquina vieram ocupar, de uma maneira brutal, o lugar da obra amorosamente trabalhada, e do artista criador.

Exposto no museu, apresentado “como” uma obra de arte, o ready-made oferecia a seus espectadores um novo mistério, não mais aquele de uma alma rica expressando-se na matéria dominada pelo gesto de sua mão, mas um mistério resultante da presença, dentro de um espaço escolhido da galeria ou do museu, de um objeto que todo mundo conhece, e que talvez já tenha utilizado: um objeto industrial.

Acreditávamos na época, e alguns ainda acreditam, que se tratava de uma piada, bem ao gosto das provocações que o grupo Dadá tanto estimava. Ninguém poderá dizer se a ironia não desempenhou um papel neste gesto profanador de Duchamp. Isto é até bem provável. Mas devemos constatar ao menos que esta farsa — se é que se trata de uma — entrou desde então na nossa cultura como um dos gestos mais significativos deste século. E não estarei ofendendo Duchamp se pensar que ele próprio não fora logo consciente disso.

Resta-nos então interrogarmo-nos sobre este mistério do objeto industrial intervindo no âmago da cultura. Para ajudar-nos a compreender este evento, gostaria de pincelar rapidamente o quadro histórico no qual se situa esse gesto provocador, seguindo duas histórias, relativamente independentes, que desembocarão no ready-made. Para que o objeto industrial possa ser apresentado como um “objeto de arte” denominado como ready-made, duas transformações históricas devem ter desenvolvido seus efeitos a longo prazo: a industrialização do cotidiano e a emergência de um juízo estético baseado na opinião de uma nova esfera social, diferente daquela que constitui o mundo dos especialistas. Somente o encontro dessas duas “condições” permite compreender que o ready-made tenha se imposto como um gesto artístico significativo, e que, depois de ter sido rejeitado, tenha finalmente entrado em todos os museus de arte moderna do mundo.

Retomemos esta história, primeiramente sob seus aspectos técnicos. O século XIX não vê somente se desenvolver a industrialização de objetos manufaturados. Não assistimos apenas, na Europa, ao fim do artesanato e, consequentemente, das corporações e das confrarias que durante séculos haviam assegurado a transmissão de um savoir-faire. O século XIX é também um período de transformações fundamentais no modo de produção de bens ditos intelectuais e artísticos. suficiente mencionar o desenvolvimento da imprensa e da edição, graças às impressoras a vapor e em seguida às rotativas, para lembrar os efeitos que elas tiveram sobre os escritores e a própria criação literária. A atividade artística submetida desde então à produção de massa não apenas sofre a pressão da lógica dessa produção, como tenta fazer disso um novo instrumento de seu próprio desenvolvimento. Um escritor como Zola reivindicará assim, para ele e seus confrades, o que ele chama “mercado democrático”, gerado tanto pela grande difusão, permitida pela industrialização da edição, como pela opinião da multidão de leitores que o seguem, um número que antes dele somente Balzac havia atraído para a sua literatura.

No domínio das artes visuais, a situação é ainda mais revolucionária. Neste caso, não se tratava apenas de uma evolução quantitativa, permitida pelo progresso técnico, mas de uma revolução, provocada pelas invenções técnicas relativas à imagem: invenção da fotografia, invenção da reprodução em cores, também chamada de “cromolitografia”. Em 1° de maio de 1873, aparece de fato o primeiro fascículo do Musée des deux mondes de Bachelier-Deflorence que introduzia a cromolitografia na imprensa periódica.

Desde essa época temos percebido os efeitos que essas invenções tinham e teriam sobre as artes visuais. A fotografia, em particular, sempre apareceu como uma concorrente direta de uma pintura então figurativa e de tendência realista. Algumas décadas mais tarde, Walter Benjamin analisará as consequências da “reprodutibilidade técnica das obras de arte, sobre a percepção que delas podemos ter. Enfim, André Malraux irá tirar as consequências desse fenômeno anunciando o advento do que ele chama de museu imaginário,[2] espaço mental no qual as obras de todas as épocas e de todas as culturas podem coexistir, porque elas primeiramente, pela sua reprodução fotográfica multiplicadas nos livros, têm sido arrancadas dos contextos culturais nos quais elas produziam originariamente seu próprio sentido.

Na realidade, a revolução que trazem essas invenções técnicas diz respeito mais ao modo de percepção e apreensão da obra do que a seu modo de produção. As alterações que trazem estas novidades técnicas, bem além das transformações industriais que elas suscitam, terão efeitos profundos sobre os processos de conhecimento e sobre as categorias de percepção. Benjamin havia sublinhado, sem dúvida com justa medida, que o contato com uma obra de arte reproduzida tirava desta o que fazia o mistério da presença da coisa ou da pessoa representada, presente na imagem pintada e entretanto ausente. Ele chamava esse mistério doravante banido a “aura” da obra de arte. De fato, a multiplicação das reproduções, e em consequência o fato de que o espectador entrava em contato não com uma obra mas com sua imagem, engendrava efeitos bem além da questão do mistério da “aura”.

A reprodutibilidade tinha também por consequência atirar os produtos da atividade pictórica tradicional num universo desde então repleto de imagens. A pintura, que durante séculos havia tido o privilégio de ser quase a única a representar visualmente o mundo e os símbolos que o homem se dava, se encontrou subitamente misturada à tropa de milhares de imagens que a imprensa, as revistas e as reproduções, que abundam graças a essas novas técnicas, despejam diante dos olhos dos espectadores. Inscrita na serialidade icônica, a imagem pintada, a imagem tradicional perdia por este fato não somente sua “aura”, mas também aquilo que poderíamos chamar sua irresponsabilidade. Chamo de irresponsabilidade da obra de arte pintada o fato de ela aparecer inevitavelmente como parte integrante das instituições do poder simbólico. A questão de sua autonomia não podia nem mesmo se colocar. Daí a sua condição.

Em compensação, o fato de que desde então a imagem pintada tenha entrado na arena da imagens públicas forçava produtores e artistas a colocarem a questão da responsabilidade pública das suas imagens. A imagem pintada iria se confrontar num terreno, o da imagem pública, que começava a se constituir, mas que hoje em dia adquiriu a importância que conhecemos.

A irresponsabilidade da imagem havia por muito tempo sido preservada pela sua raridade e por seu caráter institucional. Poucos atores do jogo social tinham acesso à sua produção, e a sua consumação era regulada pelo dispositivo de sua exibição. Em efeito, as imagens só aparecem nos quadros sociais e institucionais bem estruturados: a igreja, o palácio principesco e, depois do século XVII, aos poucos, o interior burguês. Esses espaços, fortemente submetidos às regras sociais de comportamento e da interpretação, constituem, como fará mais tarde o museu, uma forma de código interpretativo para as imagens que nele aparecem. Mesmo se hoje em dia, quando somos habituados ao que chamarei de percepção museográfica da arte, podemos analisar uma pintura de Michelangelo, Rubens ou Velásquez como um “quadro”, quer dizer, analisar de modo autônomo a organização das superfícies coloridas num espaço dado, o fato de que essas obras tenham aparecido aos olhos de seus espectadores dentro das igrejas ou nos castelos impedia em grande medida que uma tal leitura formal fosse feita. O quadro era primeiramente a imagem de um santo ou de um rei, de uma cidade ou de uma paisagem na qual o espectador reconhecia as marcas de uma estrutura social ou de um evento marcante. A possibilidade de ler essas obras estava intimamente ligada ao quadro institucional no qual elas eram mostradas.

Iriam se produzir simultaneamente duas evoluções que veriam o desenvolvimento do museu e a crescente autonomia da arte. O século XIX inaugura, com efeito, um novo espaço de exibição da arte: o museu. As obras serão extraídas de seu contexto cultural de origem para serem mostradas num contexto mais neutro, ao menos em aparência. Essa transferência modificará fundamentalmente as condições de percepção e de compreensão dessas obras. A famosa frase de Maurice Denis constitui, nesse sentido, o ponto final dessa evolução e uma virada simbólica essencial. Esse pintor tinha o costume de dizer a seus alunos: “é preciso lembrar que um quadro, antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou uma anedota qualquer, é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores reunidas numa certa ordem”. Esse aforismo várias vezes repetido caracteriza um novo ponto de vista, impensável nos séculos precedentes, segundo o qual um quadro deve ser considerado pelo pintor tanto quanto pelo visitante do museu. Desde então, a obra de arte será concebida e apreciada fora de toda referência narrativa, simbólica, religiosa ou mesmo descritiva. Uma pintura nunca é somente cor sobre tela.

Com o museu criava-se então uma nova modalidade cultural de relação com a obra de arte, que convidava a uma percepção e a uma fruição das obras, especialmente as do passado, independente de toda referência a sua funcionalidade inicial. A especificidade da experiência estética permitida pelo museu modificou então o olhar do público sobre as obras, e em seguida as próprias obras, como nos mostra a frase de Maurice Denis.

A outra evolução própria ao século XIX é, como temos visto, o desenvolvimento dos meios de reprodução técnica das obras de arte. Segue-se a isto, ainda aqui, que a arte também aparece fora dos espaços sagrados que haviam construído historicamente seu modo de aproximação, igreja ou museu. Desde que os tesouros da pintura e da arte universal tornavam-se disponíveis sob a forma de sua imagem, nos livros, nos cartões-postais ou nos cartazes que podíamos pregar nas nossas paredes, era verdadeiramente uma nova história da percepção da arte que se abria e, em consequência, uma nova história da arte que começava. Durante décadas ela iria coabitar com a modalidade museográfica de relação com a obra.

Portanto, a partir do momento que a imagem escapava ao controle somente dos artistas para entrar no campo profissional dos fotógrafos da imprensa, dos jornalistas e logo dos publicitários, o artista que, como eu havia lembrado, acabava de se emancipar dos seus patrocinadores tradicionais, via não só seu poder como a própria imagem lhe escapar. Desde então, ele devia reafirmar seu poder estético como regra ética, cujo campo de aplicação não poderia ser outro que o da instrumentação visual, quer dizer, as modalidades técnicas de manipulação da imagem. Era-lhe necessário denunciar a aparência inocente da imagem, combater a crença no caráter inofensivo desta. A crise da imagem que daí resultou fora o resultado de uma análise crítica das suas características formais tanto quanta ideológicas. Assim sendo, Duchamp dava lugar a uma análise das condições sociais e epistemológicas da prática visual.

Sabemos que Duchamp inventou o ready-made. Esquecemos, porém, que ele também inventou a imagem ready-made, quer dizer, a apresentação de uma imagem impressa como uma obra de arte. É o caso desta paisagem sentimental de inverno pintada por Sophie Niederhausern e reproduzida em cromolitografia, que ele apresenta quase sem retoques sob o título de Farmácia (1914).

Figura 2 - Farmácia (1914).
Figura 2 – Farmácia (1914).

É o caso ainda, com algumas variantes, da retomada de uma publicidade de pintura sob o título Apolinère enameled (1916-7), ou daquela da Monalisa de Leonardo da Vinci sob o título provocativo de L. H. O. O. Q. (1919).

Figura 3 - Apolinère enameled (1916-7). Filadélfia, Philadelphia Museum of Art
Figura 3 – Apolinère enameled (1916-7). Filadélfia, Philadelphia Museum of Art

Duchamp havia compreendido que o artista não se encontrava somente diante das imagens da história da arte, mas confrontado com todas as imagens produzidas pelos meios modernos de produção e de reprodução. Pouco a pouco, através da caricatura e, em seguida, da manipulação fotográfica que desembocará na montagem e por fim na imagem de síntese, a imagem deixa de ser um objeto produzido somente pelos artistas para tornar-se uma verdadeira linguagem. Uma nova consciência da imagem como linguagem podia nascer. Poder-se-ia doravante desenvolver sobre a imagem um trabalho de manipulação concernente a sua estrutura e seus efeitos. A partir daí, a imagem entrava na órbita da reflexão metapictural. Não era mais possível desenhar ou pintar imagens sem pensar no fato de que a imagem em geral tinha se tornado, ao escapar do único e bem limitado mundo da arte, uma estratégia pública, uma estratégia dirigida ao público, aos públicos e, finalmente, a essa entidade indefinida que iremos chamar o grande público.

A consciência ética do artista não poderia fugir desde então ao dever de conduzir uma reflexão metapictural, sobre a qual o trabalho de Duchamp lançava as primeiras bases. Um século mais tarde, a situação pressentida por ele só piorou, e creio que devemos ver nesta evolução radical do mundo da imagem a razão do extremo sucesso de Duchamp. De fato, os artistas nunca mais voltariam ao estado de inocência perdido no começo deste século.

Uma tal constatação, entretanto, confere às artes plásticas uma eminente posição no dispositivo contemporâneo do pensamento. Se os artistas de alguma maneira tinham perdido a arte, se eles sentiam que não lhes era mais permitido pintar, como se essa atividade implicasse somente o direito de cada um de se expressar, em compensação eles tinham ganho coletivamente uma posição-chave dentro do sistema pós-moderno de poder, devido à importância que a imagem tomou na organização desse mundo. A necessidade de desenvolver uma atitude crítica com respeito à imagem envolverá a arte, mas também as disciplinas paralelas, que irão se desenvolver ao redor desta transformação do mundo visual: a análise dos meios e técnicas do mundo da imagem graças à qual começaremos a compreender como a imagem “pensa”, graças à qual também se encobrirá a distância tradicional entre ler e olhar desde que uma teoria geral dos signos vira o dia com Ferdinand de Saussure. O advento da semiótica será o sintoma essencial de uma nova atenção crítica para a linguagem da imagem.

A segunda história que devemos ter presente para compreender a intervenção de Duchamp e do ready-made, é a do juízo estético. Desde o fim do século XVIII, em seguida à ruptura social, política e epistemológica que representa a Revolução Francesa, Kant havia percebido que os antigos sistemas de regras que regiam o juízo estético tinham perdido as bases sociais de sua legitimidade. O aumento do individualismo, o anacronismo cada vez mais flagrante das instituições ditando regras em matéria do belo, colocavam aos filósofos da arte questões insolúveis. Cada um reivindicava o direito de decidir se uma obra era “bela” ou não. Apesar das academias, cujo juízo em breve iria levar o nome infame de academicismo, os sistemas rígidos de regras, durante muito tempo aceitos por uma boa sociedade extremamente limitada, eram cada vez mais objeto de contestação. A novidade, sempre uma ruptura em relação a essas regras, atraía cada vez mais os artistas solicitados por uma clientela burguesa desprovida de critérios antigos ou desejosa de afirmar os seus próprios. Esta novidade moderna iria inclusive tornar-se, no século XIX, a própria marca da arte. Entenda-se de uma nova arte, pois desde então o antigo e o moderno haviam entrado em conflito aberto, conflito este em que as vanguardas se tornarão uma brilhante manifestação.

Portanto Kant, na sua Crítica da faculdade de julgar, irá operar uma modificação radical de ponto de vista. Abandonando a atitude que consiste em decidir que uma obra é bela em função da sua conformidade a critérios e regras, ele afirmará que o juízo estético, na incapacidade em que se encontra de aplicar critérios cujo fundamento não pode ser estabelecido, pode e deve decidir se tal obra é de arte antes de se pronunciar sobre a sua “beleza”. Isto é mais do que uma nuance. Podemos admitir que as pessoas amem ou não amem tal ou tal obra, e nisto nunca haverá acordo, precisamente porque não há mais critérios. Em compensação, Kant acreditava poder afirmar que ao discutir a propósito de uma obra, as pessoas em desacordo ao menos estariam de acordo em dizer sobre o que elas discutem, o objeto de seu desacordo pertence à categoria da arte. De outro modo elas não discutiriam.

Esta maneira de colocar o problema do julgamento do gosto tem uma consequência que deve nos interessar em primeiro lugar: é a discussão entre indivíduos que determina se um dado objeto pertence à arte. Isto significa que não é mais da disputa entre os especialistas, acadêmicos e outros conhecedores das regras, mas do próprio âmago do público que irá surgir o juízo e a legitimação da arte. Desde então a arte é o que o público reconhece como arte. Assim, no juízo estético, sensibilidade e razão colaboram por necessidade.

Percebemos imediatamente as consequências desta modificação. Desde meados do século XIX, como sublinha Thierry de Duve, os artistas recusados pelos salões oficiais criam seus próprios salões: primeiramente o Salão dos Recusados e, em seguida, o Salão dos Independentes. Como é que eles próprios apresentavam seus salões? Com uma sentença em forma de manifesto: “Nem recompensa, nem júri”. Fazendo isto, eles se colocavam sob a autoridade do juízo do público em preferência ao dos especialistas. Sem dúvida, esses artistas não ignoravam que o público não estava preparado para reconhecê-los imediatamente. Mas eles haviam, antes de mais nada, aceitado a ideia de um tempo durante o qual eles teriam de convencê-los, quer dizer, formar o olhar e o pensar desse público. Entretanto, porque esse público pertencia basicamente à mesma realidade social e cotidiana que eles, porque ele, o público, não tinha a priori nada a ver com os mantenedores das antigas regras e como sua implicação do mundo atual devia rendê-lo sensível ao que os próprios artistas ressentiam, eles preferiam apostar nesse público. Duchamp diz claramente a Sweeny: “O perigo é o de agradar a um público imediato que se aproxima de você, te adota e te aceita, faz de você um sucesso e te dá tudo. Ao invés disso, você tem que esperar cinquenta ou cem anos para o seu verdadeiro público. Esse é o único público que me interessa”.[3] Não saberíamos expressar melhor a ideia do público que espera Duchamp, é o que depois de um longo período, não de latência mas de um trabalho efetuado pela arte sobre o visual, entrará plenamente em sua obra. Os amadores dos últimos vanguardismos — autênticos ou não — não o interessam, tem-se que apostar num público futuro.

Apostar. Tal era a palavra-chave para os artistas que não queriam doravante reconhecer que o juízo do público fora-lhe tardio. Desde que o juízo estético será emitido por todos, e não somente por alguns felizardos, esse julgamento sem critério se apresentará como uma expectativa de sentido, uma promessa de sentido, o que Duchamp chamava “a forma impossível do possível”. Temos de admitir que esta irrupção do que por analogia poderemos chamar a democracia no juízo artístico semeou, e ainda semeia, uma inenarrável confusão no mundo da arte. É, como temos visto, o fim dos critérios. O que virão a ser os especialistas do juízo estético, os críticos? Como irão trabalhar os diretores de museu? Eles seriam sensatos em esperar que o público, que a história, tenha emitido o seu oráculo. Mas quem aceitará admitir não saber? A situação, nossa atual situação, visto que vivemos sempre na expectativa de um sentido que vem lentamente à tona, é inteiramente marcada por seus dilemas. O artista disso não poderia escapar, razão pela qual Duchamp tenha querido assumir — e nisso também mostrou-se precursor — ao mesmo tempo a tarefa de artista e de crítico, quer dizer, ao mesmo tempo a missão da arte e do pensamento. E não pode ser de outra forma ao termo de uma história que coloca doravante a arte diante de seu juiz, o público, e em face de sua responsabilidade em relação a uma sociedade da imagem. Desde então, a arte deve trilhar seu caminho na nossa cultura fornecendo ao mesmo tempo objetos e pistas para reflexão a partir das quais a discussão poderá tomar seu impulso. Em ausência de uma jurisprudência, a arte só pode propor, como ainda dizia Duchamp, a “figuração de um possível”, expressão na qual devemos entender a noção de possível como “um corrosivo químico (tipo vitríolo) queimando toda estética ou calística”.[4] Duchamp é muito claro sobre isto: a arte só poderá ser, na época de sua integração dentro do fluxo das imagens infinitamente multiplicadas pela produção industrial, um empreendimento crítico a respeito daquilo que se estabelecerá sempre e espontaneamente como figura normativa do “belo”.

Seria muito demorado mostrar como Duchamp seguia este preceito na sua vida e no desenvolvimento de sua obra. Seriam necessárias algumas poucas imagens, pois precisamente Duchamp é um dos poucos artistas deste século a ter, numa grande medida, voluntariamente renunciado a produzir obras. Ele produziu UMA obra, mas seu trabalho é calcado fundamentalmente na renúncia a ser um produtor. Isso não é apenas um fino paradoxo, mas também a constatação de que aquele que fez entrar o objeto industrial na arte sob o nome de ready-made fosse também aquele que renunciasse a produzir “objetos de arte”. Isto é tão essencial ao pensamento de Duchamp que ele não perdia nenhuma oportunidade de brincar com esta noção, por exemplo falando de objet d’ard [objeto-dardo] (1951).

O objeto espicaça a curiosidade, interroga, perturba, e particularmente o objeto industrial. Não é ele todo repleto de sentido, ele que é o resultado da principal atividade humana? E entretanto, parece que negamos conceder-lhe, reservando a uma categoria de pessoas muito especializadas, os artistas, a tarefa de produzir o sentido. Portanto Duchamp pretende que o sentido é produzido pelos espectadores, ou como ele o diz, “são os olhadores que fazem o quadro”. Desde então, e vemos bem o proveito que o surrealismo tirou dessa ideia na promoção que fez de uma poesia do objet trouvé [objeto achado], de uma poética do mercado das pulgas todo objeto pode tornar-se um objeto de arte. Todo objeto pode chamar nossa atenção, nossa sensibilidade, desde que nosso espírito esteja preparado.

Desde então, a arte não é somente um assunto para o olho, uma sedução exercida pela imagem sobre nossa imaginação, um artifício delicioso no qual nos é agradável acreditar, mesmo não crendo; o espírito é chamado a colaborar com a imaginação e a arte inteira é engajada numa pesquisa que lhe restitui plenamente seu estatuto de pensamento.

Duchamp tira as últimas consequências da invasão do nosso mundo mental pela informação, e no caso das artes visuais, pela invasão da nossa sensibilidade pelas torrentes infinitas de imagens reproduzidas tecnicamente. Vivemos num mundo onde antes de termos provado a sombra da capela Sistina, antes de termos medido a dimensão colossal da Ronda noturna de Rembrandt, de termos percebido a transparência das camadas da Monalisa ou a materialidade do Angelus de Millet, antes de termos tido a experiência estética dessas obras, nós já havíamos recebido a imagem. Nós conhecemos esses quadros antes de tê-los visto. Stendhal, que bem antes de Benjamin havia pressentido os efeitos da primeira revolução técnica da livraria, já se espantava ironicamente com o fato de que os turistas — noção que ele fora um dos primeiros a utilizar — só viajariam e abririam os olhos depois de ter consultado seu guia. Isso já em 1830! Hoje em dia, mesmo sem guia, nós não podemos mais abordar a obra de um artista sem ter previamente várias imagens de seu trabalho. A reprodução, quer dizer a imagem, precede a obra, o que nos remete ao ready-made. Na confrontação com o objeto industrial, múltiplo e idêntico, Du-champ vê a situação paradigmática do olhador. Este já conhece a imagem industrial. Então, perversamente, se assim podemos dizer, Duchamp sugere a questão em meias-palavras: saberá ele verdadeiramente olhar um quadro?

Mas antes de se obscurecer num sério e grave pessimismo, Duchamp prefere imaginar que essa nova situação permite uma vez mais relançar a arte. Isto definido desde então como experiência estética, será feito pelo espectador ao qual o artista não faz senão lançar o desafio: faça sua própria obra, quer dizer, veja sua obra. Imagine a partir daquilo que lhe foi dado, isto seria um objeto produzido industrialmente. Tudo sendo dado, a arte viverá da atividade dos olhadores.

Etant donnés, sendo dados: noção fundamental para Duchamp. Título da obra que ele trabalhou 22 anos e que guardou escondida até sua morte: Etant donnés 1) le gaz d’éclairage, 2) la chute d’eau (1946-67) [Sendo dados 1) o gás de iluminação, 2) a queda d’água], essa obra tão escondida e misteriosa de que somente esse ano viemos tomar conhecimento, 25 anos depois de sua morte, e que teve provavelmente como modelo a escultora brasileira Maria Martins em Nova York nos anos 40. O que é dado são essas imagens irreais, fabricadas pela indústria da imagem: la femme offerte [a mulher oferecida], a paisagem na sua banal armadura combinada com suas pequenas nuvens brancas sobre o céu azul, sua queda d’água e seu laguinho. Tudo é dado, mas ao mesmo tempo tudo é inatingível. O hiperrealismo desse corpo de mulher ao abandono é o chamariz de uma presa hipotética, e o espectador, colocado em situação de voyeur como num peep show, não terá outros recursos que aqueles de sua imaginação. Ele terá necessidade de colocar em funcionamento todos os recursos de sua imaginação, Duchamp o forçou.

Figure 4 - Étant donnés 1 - O gás da iluminacão (1946-66). Filadélfia, Philadelphia Museum of Art.
Figure 4 – Étant donnés 1 – O gás da iluminacão (1946-66). Filadélfia, Philadelphia Museum of Art.
Figure 5 - Étant donnés 2. A cascata. Filadélfia, Philadelphia Museum of Art.
Figure 5 – Étant donnés 2. A cascata. Filadélfia, Philadelphia Museum of Art.

Pois Etant donnés não é apenas um ready-made, mesmo sendo composto de imagens convencionais. Podemos dizer, ao contrário, que ele está além do ready-made, uma re-simbolização da imagem banal e ready-made. A posição na qual se encontra colocado o espectador, obrigado a olhar como um voyeur atrás de um buraco de fechadura, que opera nela mesma o distanciamento. Ninguém pode tomar essa obra por outra coisa que não uma máquina óptica, um teatro, uma encenação. Por esse dispositivo, Duchamp acentua a ideia de que a visão não tira o seu sentido daquilo que é mostrado, mas daquele que olha. O “olhador” faz a obra, no segredo que lhe é imposto pelo dispositivo. Se ainda assim haverá arte amanhã, todas as imagens sendo dadas, isto se dará no segredo de uma relação nova e individual, a qual se arrancará das imagens infinitamente socializadas de que nosso mundo industrial nos impregna.

A nova honradez da arte e dos artistas, tal como ela é ilustrada pela obra de Duchamp, se dá à custa de uma perda parcial do poder demiurgi-co do artista, tal como ele havia sido celebrado na segunda metade do século XIX. A arte não é mais a expressão imediata de um pensamento, ela não pode mais ser, na medida em que toda relação de um espectador com uma obra é ela própria mediatizada a priori pelo fluxo de imagens que sempre precedem, e em consequência aniquilam, o choque que o encontro com a alteridade singular de uma obra deveria provocar. Mas ao mesmo tempo que isto se apaga, o artista deve chamar o espectador a ultrapassar sua espontânea submissão à imagem, propondo-lhe um enigma, em vez de uma visão de mundo toda pronta. Ele o obriga então a exercer sua própria reflexão, mobilizando a capacidade de olhar do espectador, doravante obrigado a pensar também com os olhos.

Tradução de Renata Bernardes Proença

NOTAS

  1. Sobre este ponto, como sobre outros, faremos referência à excelente obra de Thierry de Duve, Réssonances du ready-made. Duchamp entre avant-garde et tradition, Paris, Jacqueline Chambom, 1989.
  2. A. Malraux, Le musée imaginaire, Paris, 1974.
  3. Duchamp, 15/1/1956, em Jennifer Gough-Cooper e Jacques Caumont, Ephemerides on and about Marcel Duchamp and Rrose Sélavy, Catálogo da exposição, Veneza, Palazzo Grassi, 1993.
  4. Duchamp, nota escrita em 1913, em Duchamp du signe, textos reunidos e apresentados por Michel Sanouillet, Flammarion, Champs, 1944.

 

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