2005

Drummond e o mundo [Drummond]

por José Miguel Wisnik

Resumo

A frequência da palavra “mundo” na poesia de Drummond revela, na época das “concepções do mundo”, como disse Heidegger, uma consciência aguda do lugar da poesia em nosso tempo: o mundo exclui a poesia, no entanto a poesia insiste em incluir o mundo. Consciência também, crítica e compassiva, politicamente alerta e auto-irônica, do lugar solitário do indivíduo na massa urbana. No seu inaugural e polifônico “Poema de sete faces” ele já dizia: “Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução…”. Consciência, enfim, a topar sempre com uma “pedra no meio do caminho” nas mais diversas situações de sua experiência, na sua luta constante com as palavras que “rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” (“A procura da poesia”). Mundo é o índice de uma palavra total ausente, no verso, na vida cotidiana, nos confrontos com o poder soberano, nas contradições que esse gauche não cessa de flagrar em si mesmo, atravessado por feixes de mundos, buscando abraçar a humanidade e sentindo-se ultrapassado pelos acontecimentos. É o pensamento que discorda (como na sua visão da “Máquina do mundo” que remete a outros dois grandes poemas totalizantes, de Dante e Camões) e o sentimento que une (como na epifania da dor universal do seu “Relógio do Rosário”: “Descubro o choro pânico do mundo / que se entrelaça no meu próprio choro”). É nesse ponto negro, sem refúgio e com lucidez pungente, é no gume insolúvel entre totalidade e limite que a poesia de Drummond ilumina o nosso mundo.


A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som dos meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

 no rosto do mistério, nos abismos.

[…]

Carlos Drummond de Andrade,

Poesia completa,

Rio de Janeiro,

Nova Aguilar, 2003

__________

[…] sejamos como se fôramos

num mundo que fosse: o Mundo.

Cantiga de enganar

Começando pela superfície estatística, e mesmo que sob o risco do ridículo: talvez nenhum poeta, no Brasil ou no mundo, diga tanto a palavra “mundo”, em seus poemas, como Carlos Drummond de Andrade (que tem ainda, por obra do acaso, um duro mundo inscrito no nome). E não se trata somente daqueles bordões que se tornaram tão conhecidos e tão representativos — o “mundo, mundo, vasto mundo”, o “sentimento do mundo”, a “máquina do mundo”, os ombros que “suportam o mundo”, o “não serei o poeta de um mundo caduco”, o coração ora maior ora menor que o mundo. A sua poesia é atravessada por feixes de “mundos”, inumeráveis, que acusam a alternância, tão reconhecível nele, entre a insistência implacável da totalidade, que parece interpelar o sujeito a cada passo, e a dolorosa irrelevância de que se reveste essa mesma busca, reduzida espasmodicamente a um cálculo ínfimo, uma pedra inexpelível.

Os exemplos, que comparecem já em alguns pontos cruciais de Alguma poesia (1930), multiplicam-se até o verdadeiro enxame de ocorrências em Sentimento do mundo (1940 ) e A rosa do povo (1945), estendendo-se num ciclo cujos rastros são nítidos e persistentes até pelo menos Claro enigma (1951), dispersando-se, ainda com marcas, em Lição de coisas (1962), sem deixar nunca de retornar. Se pinçarmos alguns deles, entre muitos, ao longo desse tempo, veremos que compõem entre si uma espécie de litania latente, desencantada, convulsiva e insistente, mesmo que nada monotemática. Na poesia de Drummond, o mundo é uma entidade que “baixa” nas mais diversas e desniveladas situações — seja quando o sujeito escreve num domingo solitário, quando descreve a primeira experiência sexual, quando especula sobre o céu e a terra, quando vislumbra a luz indecisa de um farol, perdida na noite, quando está isolado, quando se sente abraçando a humanidade, quando é ultrapassado pelos acontecimentos e quando os abarca em si mesmo: “[…] o mundo parou de repente” (“Poema que aconteceu”); “Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado” (“O sobrevivente”); “A rede virou, o mundo afundou” (Iniciação amorosa”); “É preciso ter mãos pálidas/ e anunciar o FIM DO MUNDO” (“Poema da necessidade”); “e só uma estrela / guardará o reflexo/ do mundo esvaído” (“Canção de berço”); “Por que fiz o mundo? Deus se pergunta/ e se responde: Não sei” (“Tristeza no céu”); “Vem, farol tímido,/ dizer-nos que o mundo/ de fato é restrito,/ cabe num olhar” (“Rua do olhar”); “O mundo te chama:/ Carlos! Não respondes?” (“Carrego comigo”); “Irredutível ao canto,/ superior à poesia,/ rola, mundo, rola, mundo […]” (“Rola mundo”); “mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,/ a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,/ o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e clara ciência […]” (“Como um presente”); “Estou solto no mundo largo” (“Idade madura”); “Meus olhos são pequenos para ver/ o mundo que se esvai em sujo e sangue […]” (“Visão 1944”); “neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido” (“Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”); “Bela/ a passagem do corpo, sua fusão/ no corpo geral do mundo” (“Canto esponjoso”); “Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti” (“Legado”); “Certa palavra dorme na sombra/ de um livro raro./ Como desencantá-la?/ É a senha da vida/ e a senha do mundo./ Vou procurá-la.// Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo” (“A palavra mágica”).[1]

Para aferir o quanto esses “mundos” drummondianos são o índice ostensivo de uma escritura que não pode dispensá-los, é interessante constatar, por contraste, que a mesma palavra é praticamente ausente em João Cabral de Melo Neto: de Pedra do sono (1940-1941) a A educação pela pedra (1962-1965), por exemplo, a palavra “mundo” aparece duas solitárias vezes.[2] Uma vez, sintomaticamente, no poema “A Carlos Drummond de Andrade” (como quase não poderia deixar de ser), numa frase que toca precisamente o nosso ponto: “Não há guarda-chuva/ contra o mundo/ cada dia devorado nos jornais/ sob as espécies de papel e tinta”. E, vinte anos depois, não no corpo mas no título do poema “Sobre o sentar-/estar-nomundo”, onde a atitude filosofante, sugerida pela expressão (sob cuja rubrica, aliás — “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” —, Drummond reuniu, em antologia pessoal, parte fundamental de sua poesia),[3] é enquadrada ironicamente na atitude de quem se senta em “tábua-de-latrina,/ assento além de anatômico, ecumênico,/ exemplo único de concepção universal,/ onde cabe qualquer homem e a contento”.

A poesia de João Cabral não postula o “mundo”. Depois de um início subjetivista, onírico e nebuloso (Pedra do sono), ela conquista um estado de extroversão continuada, pelo menos a partir de O engenheiro, focalizando objetos que se bastam na sua presença. Levado por uma imaginação material da vontade, que experimenta a resistência das coisas, no domínio de uma consciência diurna e penetrante, o olhar poético mantém a necessária distância dos objetos — nem tão próximos a ponto de o sujeito se confundir com eles, nem tão distantes a ponto de ser evocados na ausência —, o que lhe permite reduzir o mundo ao alvo nítido da atenção. Reduzido fenomenologicamente à tela da atenção, e coincidindo com ela a cada vez, o “mundo” não é invocado nem chamado pelo nome. Podemos convir, no caso de Cabral, que isso não se coloca justamente porque “mundo” é aquilo que extrapola a tela da atenção, que suscita a atenção sem caber nela, que supõe uma atenção total que desborda as fronteiras do sensível e do inteligível, e que acabaria por emaranhá-los. A redução fenomenológica operada pela poesia cabralina, com sua potência própria, visa, entre outras coisas, a não se deixar emaranhar no emaranhado (do mundo).

Na poesia de Drummond, ao contrário, a atenção do sujeito é continuamente interpelada por aquilo que lhe escapa, que lhe extrapola os limites, que empenha o todo e põe o sujeito em causa. Por isso mesmo, desenvolve-se nela uma consciência aguda e reflexiva do limite, inseparável do seu empuxe totalizador. A apreensão da totalidade do mundo e seu limite se negam e se exigem. Enquanto a poesia de João Cabral trabalha por uma restrição programática da sua área de manobra, projetando uma totalidade reduzida e sem resto, dentro da qual operam os seus enigmas próprios, iluminados por uma luz perquiridora fora da qual é como se houvesse um vazio, os objetos em Drummond são como pontos negros que remetem continuamente a algo que escapa e desliza, movidos pelo compromisso inarredável da totalidade que acusa continuamente a sua própria impossibilidade de cumprir-se, fortalecendo-se, no entanto, disso mesmo.

Não é difícil pensar no contexto histórico dessa posição rigorosamente saturnina. Sem apostar numa explicação causal para os fatos poéticos (já que poesia é máquina que produz anti-história, que transfigura e contradiz o tempo),[4] é indispensável notar, em primeiro lugar, que a poesia de Drummond inaugura, no Brasil, uma reflexão sobre o (não) lugar do indivíduo solitário na massa urbana, que se identifica com ela e dela se desidentifica, que pertence compulsoriamente ao conjunto do qual se exclui, pois insiste em pertencer à multidão como seu índice reflexivo — além de se saber pertencente a ela como seu reflexo. Em segundo lugar, é uma poesia que se desenvolve no arco da montante e da precipitação da Segunda Guerra Mundial, vivida intensamente e a distância: o estado do mundo é a conflagração e a conflagração mundializada inclui e não inclui o sujeito, cujo “sentimento” remói um conflito universal próximo e longínquo, que clama com urgência dos confins da Europa e se insinua no cotidiano do Estado Novo (em que “o espião janta conosco”). E, ainda mais, a poesia de Drummond é a poesia de um tempo em que pensar o mundo é pensar expressamente, e cada vez mais, o (não) lugar da poesia no mundo: o mundo exclui a poesia, e a poesia insiste ainda em incluir o mundo.

Esse debate interno à obra, muitas vezes espasmódico, adquiriu novos contornos no seguimento do pós-guerra, quando a onipresença universal da mercadoria, da publicidade e da “comunicação de massas” (ver, por exemplo,“Ao Deus Kom Unik Assão” e “Diamundo”, em As impurezas do branco, 1973)[5]se reflete num retiro estratégico para a memória e num esgarçamento da invocação poética ao “mundo” (Boitempo, 1968-1973-1979),  invocação  que perde força diante do poder avassalador do mundo propriamente dito. Acusando em parte o golpe do seu isolamento crescente, o lugar de linguagem da poesia no mundo contemporâneo — esse lugar raríssimo, não sobredeterminado por um sentido prévio e situado no avesso da persuasão de massa onipresente — rumina ainda assim a sua matéria nos livros finais de Drummond, desiguais e menos definidos que os livros marcantes do período em que nomearam a crista e o arco da história (1930-1962), mas contendo poemas e problemas que os estudos críticos parecem ter abordado pouco.

O nó de inclusões e exclusões cruzadas envolve, recapitulando, o sentimento de potência impotente do indivíduo na metrópole, a urgência da luta ideológica antifascista (e o surdo contracanto dogmático do comunismo), entranhados nas exigências de um lirismo que vive o sentimento do tempo mas repelindo energicamente, desde dentro, o apelo panfletário. Esse nó implica uma posição crítica que tira sua força exatamente de estar e não estar na multidão, de se engajar sem se encaixar na militância, e de fazer uma poesia participante e paradoxalmente autônoma, sem que isso signifique indefinição — ao contrário, é isso que lhe dá uma definição particular e dificílima.[6]

Várias dimensões de mundos impõem-se aí, desde logo. A primeira é a metrópole, isto é, a cidade-mundo moderna, em que a dimensão da pessoa é ao mesmo tempo potencializada e ultrapassada pela onipresença dos meios técnicos e pela mercantilização — a cidade que oferece ao indivíduo (em contraste com as limitações da “vida besta” da roça) o extraordinário campo de provas de sua liberação, ao mesmo tempo em que nulifica sua expressão individual na escala de massa e na universalização das trocas. A segunda é a Guerra Mundial que faz da cidade-mundo o teatro abalado pelo espectro totalitário, com seu inominável custo humano, girando a ameaça fascista no entrechoque crucial com as promessas, por sua vez conflitantes, das democracias liberais e do socialismo — promessas que precisam ser desentranhadas, na tangente, às cegas e a cada passo, da mais aguda negatividade. A terceira — ou quarta — dimensão dos mundos é a própria poesia moderna (a herdeira deslocada da Máquina do Mundo que se lê em Camões e na cosmologia simbólica de Dante), cuja vocação para a interpelação existencial e metafísica, “tentativa de intepretação do estar-no-mundo”, ocupa renitentemente o lugar de uma indagação sobre o sentido da totalidade ali mesmo onde o sentido falta. A época moderna é, na expressão de Heidegger, a “época das ‘concepções do mundo’” — aquela em que o mundo não é dado como o ser que antecede o homem, mas que se concebe como imagem inseparável da subjetividade.[7] Só no mundo moderno, por rebarbativo que isso possa parecer, o mundo é concebido como “concepção de mundo”. Carlos Drummond de Andrade não resistiu, como se pode imaginar, a trazer a alegoria da Máquina do Mundo, o modelo cosmológico ptolomaico, pré-copernicano, pré-moderno, quintessenciado pela sua transfiguração poética no final de Os Lusíadas e ressonante d’A Divina Comédia, para o embate do contemporâneo, com toda a mais-que-ironia que isso implica, como tentaremos avaliar.

O que importa para a poesia é que essas dimensões não estão separadas e que são inseparáveis, nela, da sua dimensão de linguagem. Drummond deu um novo peso problemático aos temas modernistas da metrópole (percebidos por ele, desde Belo Horizonte, como um processo de irradiação crescente que faz potencialmente de cada cidade, mesmo periférica, uma cidade de cidades), e imprimiu um “sentimento do mundo” ostensivamente mais fundo e abrangente à questão urbano-industrial, mesmo falando de um lugar em princípio mais provinciano. Convocado ao engajamento, sob pressão da História, partiu para a militância poética com as armas da “poésie pure”, aprendidas em Mallarmé e Valéry, dando um curto-circuito na poesia participante. A sua poesia luta com palavras e luta com as palavras aquilo que chamou de “a luta mais vã” (“O lutador”, José), pois o questionamento da palavra pela palavra, aparentemente inócuo e absenteísta, toca a raiz do real, no (des)encontro trombado da Coisa com as coisas.

Ante o capital, que acirra a cidade-mundo, na cena mundial assaltada pelo fascismo e rebatida pelo socialismo remoto, o autonomeado poeta sustenta até onde pôde uma singular luta de poder frente à soberania totalizadora do mundo, retirando-se dele para incluí-lo, como o banido que encara surdamente, através do “reino das palavras”, o soberano. O poder soberano pode ser vislumbrado, e a certa altura sintetizado, naquilo que ele chamou, de passagem, de “a Grande Máquina” (“o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras” — “Elegia 1938”), e seu contrapeso perdido é “A Máquina do Mundo” (Claro enigma, 1951) — que comparece aqui como a secreta e numinosa reserva simbólica, metafísica e poética — a acenar sibilinamente, como veremos, com um sentido total perdido e já irrecuperável, não só no presente mas na origem. A poesia de Drummond pode ser lida através das relações entre a Grande Máquina e a Máquina do Mundo, ou, em outros termos, entre a Máquina Mundana e a Máquina Poética disputando-se complexamente o Mundo, num jogo de inclusões e exclusões recíprocas que dissipa todo dualismo fácil, a começar pela autoconsciência irônica que assinala com seu grão corrosivo o despropositado desnível das forças envolvidas. Mas a ironia é mais funda: as Máquinas se contrapõem e se espelham, e maquinações surdas do ser do mundo contemporâneo, sentidas no crepúsculo de Minas, trabalham no sentido de confundi-las, como tentarei mostrar. Por ora, trata-se de dizer que o banido/soberano é Carlos, o gauche, e que o embate que se trava na poesia de Drummond, seu pensamento da história, não segue o esquema simples e convencional de forças opostas e inimigas que se disputam em lados contrários de um mesmo terreno. Tendo vivido uma época da mais intensa polarização ideológica, sem fugir à intervenção política — engajando-se na luta antifascista e, menos escancaradamente, embora ainda incisivamente, na luta entre socialismo e capitalismo, assumindo partido num “tempo de homens partidos”, para abandonar, depois, a militância partidária em nome do “claro enigma” —, o embate que ela desnuda revela-se e revira pela borda: a Grande Máquina do poder soberano que (im)põe a lei e se põe fora dela (o soberano está fora da ordem que ele mesmo conserva a todo custo) e o herdeiro esquivo da Máquina do Mundo feita de palavras, o indaptado ao mundo que constrói um mundo à parte no qual o mundo se desvela ao avesso. Não só um lado contra o outro em confronto horizontal dentro do mesmo grande conjunto do mundo, mas

o embate vertical, e de certo modo especular, daquelas forças que estão ao mesmo tempo dentro e fora dos conjuntos do mundo: o soberano fora-da-lei, isto é, o poder da Grande Máquina, e o fora-da-lei soberano, que joga com o “reino das palavras”.[8]

Procura da poesia

A famosa frase da primeira estrofe do primeiro poema do primeiro livro de Drummond — “Vai, Carlos! ser gauche na vida” — marca uma sintomática iniciação em que o sujeito, lançado ao mundo pelo “anjo torto”, adentra de maneira esquiva e excrescente, fazendo parte sem pertencer inteiramente ao conjunto que o inclui, dentro do qual ele falta ou sobra. Podemos dizer que esse nascimento poético, pela sua própria posição no conjunto da obra, figura uma entrada em campo — triunfal e trôpega — e configura desde o primeiro instante uma espécie de inclusão excludente do sujeito no mundo — um estigma autoassumido e forte o suficiente para permanecer como marca indelével do seu percurso.

No outro lado da mesma questão temos o seu mais famoso poema sobre a poesia, em A rosa do povo, “Procura da poesia”. Aqui, a maneira como o mundo entra na poesia também não é direta e cabal — à primeira vista, o mundo não dá poesia. A poesia se faz de algo imponderável que não é a fala sobre o mundo. Podemos dizer que o mundo só entra na poesia através de uma tortuosa exclusão includente. Ou seja, nem o poeta entra no mundo nem o mundo entra na poesia sem que sejam afetados pelo efeito de um pertinência desviada, que só se dá quando se revira.

Vale a pena relembrar — sempre — o poema inteiro:

Não faças versos sobre acontecimentos

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

Esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

 

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma

 

O canto não é a natureza nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

 

Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo,

é algo imprestável.

 

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

 

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê -los.

Tem paciência, se obscuros.

Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

Com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema.

Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutral

e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

 

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Em primeira instância, é como se o mundo não fizesse parte do domínio reservadamente enigmático do poético, como se o mundo não entrasse na poesia: “Não faças versos sobre acontecimentos”, “Não faças poesia com o corpo”, “Nem me reveles teus sentimentos”, “Não cantes tua cidade”, “O canto não é a natureza nem os homens em sociedade”, “(não tires poesia das coisas)”, “Não dramatizes, não invoques,/ não indagues”, “Não  recomponhas  tua  sepultada e merencória infância”.

A acreditar literalmente nos imperativos negativos que pontuam essa primeira parte do texto, e sem atentar para as glosas poéticas e já inteiramente mergulhadas no “reino das palavras”, pelas quais passa cada um, a matéria do mundo e suas impressões sobre o sujeito não dão poesia — esta e aquela são linhas intangíveis: a poesia está fora dos acontecimentos; o corpo é opaco e adverso à “efusão lírica”; os sentimentos tentam ir mais longe do que podem com o benefício inerente do equívoco; a cidade, com suas máquinas e casas, seus movimentos e segredos, seu ruído e silêncio, bem como o marulho do mar, não alcança o canto, que não é natureza nem cultura, nem vida orgânica nem política; a poesia se dá na supressão de sujeito e objeto; inútil deblaterar sobre posses ilusórias; a infância desapareceu no tempo, como os “esqueletos de família”. Mas a operação, aqui, já é dúplice: acontecimentos pessoais ou políticos, sensações, sentimentos, a vida natural e social, os dramas concretos e as ilusões, o imaginário e a memória, em suma — teus hábitos e tudo que te é familiar, inseparáveis do que te é estranho e te ultrapassa —, são negados para se recomporem, todos, pelo crivo da negação, enquanto enigma:

Penetra surdamente no reino das palavras

[…]

Cada uma tem mil faces secretas sob

a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Como é sabido, os temas aparentemente recusados em “Procura da poesia” correspondem justamente, por ironia e provocação, aos temas preferenciais da poesia drummondiana. E eles são tramados, aqui, com motivos inconfundíveis da sua poesia: a urgência dos acontecimentos assombra o próprio livro A rosa do povo; uma erótica do “amar-amaro” se deixa adivinhar tão claramente na denegação de “tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro”; a “tua cidade”, a ser supostamente evitada, se reconhece nas confidências do itabirano, nas pontuações de Belo Horizonte e Rio de Janeiro que se destilam nítidas ao longo da obra toda; “chuva e noite, fadiga e esperança”, que “nada significam”, estão tão próximas, por exemplo, do clima de “Elegia 1938”; o “não dramatizes, não invoques, não indagues” descreve a contrapelo a estrutura obsessiva de “José” (“e agora, José?”), cujo “terno de vidro” ressoa em “teu iate de marfim, teu sapato de diamante”, sem falar na família (“Retrato de família”, “Os bens e o sangue”, “Viagem na família”, “A mesa”, “A Luís Maurício, infante”) e na “merencória infância” (“No país dos Andrades, onde o chão/ é forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,/ indago um objeto desaparecido há trinta anos,/ que não sei se furtaram, mas só acho formigas”).

Se os temas genericamente denegados na primeira parte de “Procura da poesia” são expressamente os temas recorrentes da poética pessoal drummondiana, reunidos numa quase suma e tecidos com seus motivos caracteristicamente reconhecíveis, esse movimento cruzado comparece ainda no texto de maneira mais rente: se o que se supõe ser poesia não o é, como afirma o enunciado do poema, o alegado universo da não-poesia, que ele vai circunstanciando, já é ao mesmo tempo poesia, por um toque quase imperceptível e sibilino de sons e sentidos. Veja-se, por exemplo, que o “rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma”, dito aqui ser “música ouvida de passagem” que não alcança a dimensão do canto, é pura música da poesia, rumor/mar/rua da onda urbana reboando na linha da praia e na espuma sonora da frase. A poesia, transportada pela sua própria negação, se dá no lugar onde ela se diz não estar, estando.

Retomando: o poeta só está no mundo pelo efeito de uma inclusão excludente, pela qual ele falta e sobra, ante a ordem das coisas, e o mundo só está na poesia, em revanche, pelo efeito de uma exclusão includente, segundo a qual os seus conteúdos só entram depois de negados pela imersão na ordem das palavras, onde gozam de uma enigmática autonomia, a verificar. Mas isso se dá antes de mais nada através de um nó provocativo disfarçado, em que se diz que a poesia não está onde se supõe estar, ao mesmo tempo em que já está onde se diz expressamente não estar.

Esse espelhamento negativo sugere, sendo assim, que a presença de uma segunda pessoa, um tu ao qual o eu se dirige (não cantes, não te aborreças, não recomponhas), configura um diálogo interior tendo a consciência crítica como alter ego. A poética aí implicada não se apresenta, de fato, somente como a pedagogia magistral que parece ser (onde um poeta maior diz a um candidato a poeta: “não faça isso, não faça aquilo, faça aquilo outro”) mas como a implacável autoanálise de alguém que enfrenta, no seu próprio território, exigências que se ferroam a si mesmas.

E voltando ao ponto: a matéria decisiva dessa poesia não são de fato os seus assuntos, cujo conjunto dos conjuntos constituiria imaginariamente o mundo. Pois a reflexão poética supõe na verdade uma transposição dos limites do “mundo”, se compreendido este como a matéria assuntiva, genérica, que se confirma a si mesma por suas expressões previamente fixadas — acontecimentos, corpo, eu, sentimentos, natureza, sociedade, interligados pela ilusão de um sentido coeso. A projeção imaginária que entendemos por “mundo” não coincide com o algo inominável que na falta de nome se chama mundo (os acontecimentos e o corpo estão fora do alcance das palavras; o eu e seus sentimentos são ilusórios; a cidade e a sociedade são ficções cruéis que adentram a carne). O mundo não cabe no mundo, o real não cabe no concebível. A própria palavra mundo, aliás, constitui-se num signo-chave não porque designe o todo, mas justamente porque é o índice que gravita na periferia de uma palavra total ausente: embora nomeie a totalidade, nomeia aqui a sua falta e a sua impossibilidade, vivendo seu retorno insistente dessa gesticulação. “Mundo” é o conjunto total dos conjuntos do mundo e ao mesmo tempo aquilo que está fora desse conjunto, porque o que o define, na época “das concepções de mundo”, é o limite da totalização que o esgota mas também a sua abertura inesgotável. Assim, o mundo — cosmos, natureza, história — está simultaneamente dentro e fora do mundo. (Essa metafísica tem expressão político-social nas figuras ambivalentes daqueles que estão dentro e fora da ordem: o poder soberano e, aqui ainda, o poeta, como caberá discutir). Numa redução vertiginosa, é como se todas as palavras em Drummond fossem de algum modo refrações ou reverberações da palavra mundo, apontando para a totalidade impossível que rebate ironicamente na famigerada rima inútil: Raimundo (“Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”). Aqui, a subjetividade “Raimundo” contém o significante da totalidade, mas isso resulta em pífia e derrisória autoparódia.

Cabe então à poesia, que joga com esse não caber em si, do mundo, zerar o mundo, calá-lo — ele já fala demais. Assuntos não dão poesia. O que dá poesia é o mergulho no silêncio da linguagem. Como em muitos dos poemas estratégicos de Drummond, a afirmação, em “Procura da poesia”, é extraída arduamente do esgotamento da negação: negando uma por uma as fórmulas aparentes com que se recobre a experiência crucial, a destinação da poesia é mergulhar no “reino das palavras”, nas quais se esbate a interrogação de “mil faces secretas” em cada face única, perguntando por uma chave que não está em lugar nenhum, se não estiver em quem a busca. E como estaria?

Aqui cabem dois comentários.

Em primeiro lugar, não se trata, como pode parecer à leitura simplista, de fugir do mundo e se refugiar nas palavras, na torre de marfim da “poesia pura”, numa posição precipuamente formalista-estetizante. Como já foi dito, A rosa do povo é um dos mais densos exemplos de poesia engajada, ao mesmo tempo que antipanfletária, e, além disso, ciosa de sua autonomia, pagando o preço desse desconcerto assumido. Mas a “penetração no reino das palavras” pressupõe uma “conexão real e vital entre experiência e poesia”.[9] Chamado a dar um depoimento sobre “Poesia social”, na Folha carioca, em 24 de abril de 1944 (enquanto preparava A rosa do povo, portanto), Drummond extrai sua intervenção de uma referência a Rilke, conscientemente irônico de não ser este, nem de longe, o exemplo do poeta social, conforme sinaliza sua observação em tempo de guerra:

Confesso com humildade que não sou leitor apaixonado do poeta tcheco R. M. Rilke, hoje reivindicado tanto pelos metafísicos como pelos nazistas, mas gosto dele quando diz que a poesia não é sentimento, mas experiência, e que para escrever um só verso é preciso ter visto muitas cidades, homens e coisas, conhecer os animais, sentir como voam os pássaros e saber que movimento fazem as flores ao se abrirem pela manhã; é preciso ter lembrança de mulheres sofrendo na hora do parto, de pessoas morrendo, de crianças doentes, de diferentes noites de amor; e depois é preciso esquecer tudo isso, esperar que tudo isso se incorpore ao nosso sangue, ao nosso olhar; que tudo isso fique fazendo parte de nós.[10]

O que está dito, antes de mais nada, e quase que para além das imagens usadas, é que o sentido da realidade, para o poeta, depende de ele expor-se ao “mais pungente experimento” (para usar ainda uma expressão de Rilke) da vida a nu. A experiência poética supõe as experiências humanas crucialmente básicas, vividas ou intuídas, delicadas e violentas, singulares e universais, a se imprimirem na “vida das […] retinas tão fatigadas” e a se transformarem silenciosamente em quem as vive. Como aquelas enumeradas no poema de Drummond, elas só transparecem na poesia ao desaparecerem como tais. Porque não se trata de “sentimentos” de primeiro grau, desabafos, suspiros, confissões, testemunhos prontos, intenções, emanações afetivas do eu, acusações heroicas, mas de experiência decantada que se constitui em “sentimento do mundo” — trauma remoído e sublimação — que ganha atualidade imprevisível na linguagem.

Um adendo a esse primeiro comentário: diz Fernando Pessoa, em algum lugar da sua prosa, que pensar é discordar — ao pensar, discordo de mim mesmo; e sentir é compreender — ao sentir, sou o outro. Entenda-se: o pensamento é negador, e a razão negante, crítica, se problematiza continuamente; pensar é introduzir a autodiscordância inerente ao pensamento, que o move. Sentir é compreender o outro, no sentido de contê-lo e ser contido por ele num conjunto afetivo que transcende a diferença que separa o eu e o outro. O sentimento, na sua dimensão simpática, introduz nas agruras do pensamento “qualquer coisa assim como um perdão”.[11] Drummond, poeta reflexivo e dissonante, discorda fundamente de si e do mundo, ao mesmo tempo em que sua poesia abre a margem da compreensão que a faz tentar abarcar/abraçar o outro — na direção de um imponderável perdão metafísico por existir.

Em Pessoa trava-se, a propósito, um balanço indecidível e só superável, em termos, quando modula o pensar (excludente) e o sentir (includente): se no pensamento eu sou o outro de mim, no sentimento o outro é eu. E se “o que em mim sente ’stá pensando”, então eu sou o eu de um outro, um não-eu e ao mesmo tempo sou o outro de mim que é eu, sendo que as duas frases se equivalem e diferem, conforme investidas pela (a)pessoalidade, onde o eu se põe e desloca. Em Pessoa essa vertigem transpessoal dá lugar a um “drama em gente”; em Drummond o jogo entre o pensar e o sentir dá lugar a um “sentimento do mundo”, corroído pela negação e só recuperado por aquele fio que resiste, em última instância, como a vibração da dor universal.

Um exemplo entre muitos, mas eloquente, a propósito, é o de “Consolo na praia”: exame corrosivo da desilusão da vida apontando, como muitas vezes, para o insofismável suicídio (“Tudo somado, devias/ precipitar-te, de vez, nas águas”) — suicídio suspenso, no extremo e no limite, pela voz de um acalanto sutil (“Estás nu na areia, no vento…/ Dorme, meu filho”), que reconecta com a primeira frase do poema (“Vamos, não chores…”) e o compreende todo na forma de uma consolação frágil que abraça e embala o que é puro abandono, na beirada do sentimento oceânico e da aniquilação, no “cais absoluto”. Um outro poema, que também namora com o suicídio (“Noturno à janela do apartamento”, Sentimento do mundo), serve à perfeição como interpretação deste: “A soma da vida é nula./ Mas a vida tem tal poder:/ na escuridão absoluta,/ como líquido, circula”.

Um segundo comentário diz respeito ao “reino das palavras”, o enigmático lugar a que se alude como cabendo ao sem-lugar da poesia. Aqui, vale recorrer a Paul Valéry, reconhecido como a referência marcante do pensamento poético em Drummond. Diz Valéry, numa passagem bem conhecida de “Poésie et pensée abstraite”: “[…] uma palavra qualquer, perfeitamente clara quando você a escuta ou emprega na linguagem corrente, e que não dá lugar a nenhuma dificuldade quando engajada no trem rápido de uma frase ordinária, torna-se magicamente embaraçante, introduz uma resistência estranha, desmonta todos os esforços de definição tão logo retirada de circulação para ser examinada à parte, quando se procura nela um sentido após tê-la tirado de sua função momentânea […]”.[12]

Valéry utiliza uma metáfora para essa vocação movediça da palavra, desengatada da ordem imediata da praticidade: como uma pequena prancha jogada sobre um fosso, a palavra só resiste quando passamos sobre ela rapidamente. Mas se experimentamos a sua resistência, se paramos sobre ela e tentamos isolar seu sentido, o mais claro dos discursos se decompõe em enigmas, em abismo, e em “tormento do pensamento”. A trama de palavras com que se tece o mundo, só aparentemente firme pelo automatismo dos seus encaixes, vacila quando uma entre elas desvela sua nudez “embaraçante”.

Se repetida insistentemente, a palavra revira em som e entra numa pendulação enigmática com o sentido, que se apresenta e se afasta, abrindo-se entre eles o abismo em que caímos quando experimentamos sua resistência, frágil e poderosa, em outra velocidade e peso.

O que não deixa de ser uma explicação para o “estado de dicionário” em que pairam os poemas ainda não escritos, no surdo “reino das palavras”: mais do que o lugar em que as palavras encontram seu significado, o “dicionário” é o “estado” em que elas não se seguram em nada senão nelas mesmas, como enigmas. Valéry usa ainda outra metáfora: quando pegamos uma palavra qualquer “pelas asas”, isolando-a do encadeamento discursivo, a palavra, que parecia um meio dócil e unívoco, transforma-se agora num fim sem fim e se debate e palpita em seu núcleo incontível e perturbador, seja ela “acontecimento”, “criação”, “morte”, “corpo”, “bile”, “cidade”, “rumor”, “natureza”, “coisa”, “mundo”.[13] Onde fica, então, o “reino das palavras”? Fica nelas mesmas, quando desconectadas provisoriamente do mundo, isto é, quando desligadas da cadeia incessante das falas comprometidas com a ordem das coisas, para que o mundo se debata nelas, e compareça não como replicação mas como resíduo, vestígio da experiência avassaladora — no limite, Coisa e pedra absoluta no meio do caminho.

Por isso mesmo, também, os poemas, “que esperam ser escritos”, tal como aludidos na parte final de “Procura da poesia”, parecem gravitar num mundo à parte, resplandecendo paralisados, em calma e intata frescura, na sua virtualidade. E assim, quando escritos, descobrem-se como se estivessem sempre latentes, já, na massa obscura da língua, de onde devem ser desentranhados ou convencidos a se mostrarem, pelo poeta, através de algo como uma sóbria negociação mineira (“convive”, “tem paciência”, “calma”, “espera”, “não forces”, “não colhas”, “não adules”, “aceita-o”, “chega mais perto”). Há nisso tudo uma dupla ironia e uma dupla relativização, cáustica e melancólica, do esforço empenhado na poesia: quando ficam prontos, parece que os poemas — inúteis — já existiam, e, uma vez existindo, se refugiam — incapturáveis — na noite, no sono, e se desfazem no esquecimento inerente ao destino das palavras, que “rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”.

Poesia e mundo se relacionam por escaramuças, na poesia de Carlos Drummond de Andrade — reciprocamente excludentes e includentes, se contendo e se negando, se espelhando e se enganando. Visto a partir da poesia, o mundo pertence e não se pertence a si próprio, e o poeta gauche, excrescente e singular, tem o coração-continente insoluvelmente maior e menor que o todo.

POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto

Desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

 

O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos não perguntam nada.

 

O homem atrás do bigode é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

 

Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

 

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo mais vasto é meu coração.

 

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

O “Poema de sete faces” pode ser chamado de polifônico no sentido que Mário de Andrade deu a essa palavra no “Prefácio interessantíssimo” à Pauliceia desvairada, quando teorizou a poesia moderna: a ruptura da linearidade discursiva, que dá a cada uma das sete estrofes uma unidade autônoma e sem nexo aparente com a estrofe que a precede, produz um efeito de acumulação dissonante em que todas as estrofes ressoam como vozes independentes que se sobrepõem, à maneira — podemos dizer aproximativamente — da polifonia musical. Essa simultaneidade estilhaçada, que já foi associada ao cubismo (numa comparação também sugestiva mas de certo modo insuficiente, como a musical), é ao mesmo tempo veloz, não porque fale de velocidade, de automóvel, telegrama ou aeroplano, mas porque instaura um regime semiótico em que o chão se desloca a cada vez que parece se estabilizar.[14]

A primeira estrofe, já comentada, evoca a cena do ambivalente batismo em que um “anjo torto” lança o sujeito no mundo marcando-o com o signo do desajuste. A segunda projeta de imediato, sem preparação, uma cena urbana, indefinida e oscilante entre a cidade pequena e a cidade grande, em que assistimos a uma cadeia desencontrada de desejos: o desejo das casas (de espiar os homens), o desejo dos homens (de correr atrás das mulheres), o desejo das mulheres (não se sabe de quê). Essa corrente de desejos tem algo daquela outra, desencontradamente embaralhada, que encontramos no famoso poema “Quadrilha”, do mesmo livro (“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém” etc.). Mas também tem algo de “Cidadezinha qualquer” (“Devagar…as janelas olham.// Eta vida besta, meu Deus.”). A cena está, talvez, no ponto de passagem entre o controle estreito dos papéis individuais exercido pelo olhar vigilante da vida provinciana, com sua proverbial lentidão niveladora (“Um homem vai devagar./ Um cachorro vai devagar./ Um burro vai devagar.”), suas relações enquadradas (“Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar”), como se vê em “Cidadezinha qualquer”, por um lado, e a voragem dos desejos sem controle que afetam o mundo e se dispersam na cidade-mundo.

Na terceira estrofe, um novo estilhaço metonímico, agora caracteristicamente citadino: o bonde carregado de pernas, supostamente femininas (objetos parciais em série cromática e caótica), leva o sujeito a se dividir entre a pergunta comovida pelo sentido de tudo (no coração) e a fixação dos objetos passantes impressos nas retinas, cujo apelo libidinal passa por impassível (“os meus olhos não perguntam nada”).

A divisão se desloca, na quarta estrofe, para um ele (o “homem sério, simples e forte”), descrito como reservado, recolhido e metonimicamente postado “atrás dos óculos e do bigode” — num lugar indeciso entre o que entremostra e o que esconde, entre o corpo e a face construída, entre a primeira pessoa, que fala no poema, e essa terceira, que aparece simultânea e possivelmente como a mesma, à maneira do quadro cubista que figurasse um rosto ao mesmo tempo por vários lados.

Esses signos concretos do processo generalizado de fragmentação — pulsionalizada —, que afeta coisas e pessoas, não fariam esperar a invocação bíblica que assoma na quinta estrofe, evocando a cena emblemática do abandono do filho divinizado e demasiado humano pelo Pai ausente. A frase inicial ecoa as últimas palavras de Cristo na cruz (“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste”, Mateus 27:46), e sugere alguém abandonado às forças do acaso em meio à horizontalidade e à entropia, lançando ainda um apelo vertical ao lugar vazio do Criador.[15] Apelo vertical que parece sucumbir à horizontalidade chã que o rodeia, coloquial, irônica, metonímica, fragmentária, descentrada. Será preciso voltar a esse ponto. A estrofe é o próprio índice de um empuxe totalizador deslocado, de uma interrogação frustrada do sentido do todo, que se insinuou na terceira estrofe (“Para que tanta perna, meu Deus”) e que insiste na sexta em registro cômico e paródico, justamente com a invocação tópica da entidade “mundo” (o “mundo mundo vasto mundo”, inócuo na sua vastidão incontível, a ser abraçada e contida pela vastidão do coração ainda maior que o mundo). Tal afirmação de potência, que faz praça de sua desmedida através da abrangência ilimitada do sentimento íntimo, contrasta com a glosa paródica da impotência da poesia, visada aqui através de seus instrumentos mais elementares: a rima de “Raimundo”, pífia e incapaz de solucionar o mundo, mesmo assim repisada compulsoriamente, a carreira de redondilhas que dão à estrofe o tom de uma declamação pueril, depois de um início ribombante de “mundos”, e a rima em ão, interna ou externa ao verso (observe-se que mesmo o terceiro verso da estrofe, subitamente livre e prosaico pela extensão disparatada, pode ser lido também como um disfarçado e quebrado par de redondilhas — “seria uma rima, não/ seria uma solução”).

A sétima estrofe lança uma piscadela final ao leitor, aludindo a um segredo (“eu não devia te dizer”) que, agora revelado (“essa lua/ […] esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo”), resulta em implícito comentário metalinguístico e irônico do poema como um todo: a aparente desarticulação de seus nexos, a polifonia desafinada de suas faces poliédricas, conscientemente construídas, apresentam-se de maneira sonsa e despistadora como produtos da comoção provocada pela lua e pelo álcool (“o lirismo dos clowns e dos bêbados”, dizia Manuel Bandeira em sua “Poética” de Libertinagem, no mesmo ano de Alguma poesia). É algo como um “eu mesmo mentindo devo argumentar” (“eu não devia te dizer”) da canção “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, onde o eu lírico-irônico finge aceitar-se como desafinado perante a escuta inábil do seu ouvinte, dispondo no entanto a sua declaração de amor no limite fino da consonância e da dissonância. No caso do “Poema de sete faces”, a desafinação polifônica, rigorosa, que mimetiza o campo disruptivo, acelerado e traumatizante a que é sujeitada a vida do indivíduo na metrópole, finge também ser coisa de bêbado, sem deixar de sê-lo: é que “lua” e “conhaque” podem ser lidos, aqui, como outros nomes daquilo que Walter Benjamin, tomando a expressão de Proust, chamou de “memória involuntária”, isto é, a disposição espontânea que permite à sensibilidade moderna, traumatizada e insensibilizada pelos choques da grande cidade, comunicar-se ainda com a fonte da poesia.[16]

Do conjunto dessas estrofes em colisão, niveladas pela parataxe, ressalta a posição pseudocanhestra e canhota de um sujeito — o gauche — que funciona acintosamente com o hemisfério trocado, numa lógica diversa da pragmática do mundo produtivo, captando por dentro o circuito nervoso e elétrico que aciona a vida nas grandes cidades, com sua metralhadora de traumas e a decorrente couraça psíquica insensibilizante com que a vida mental se protege do bombardeio de estímulos. Entre a reserva aparentemente insensível do “homem atrás dos óculos e do bigode” e o excesso inesperado de comoção deflagra-se ironicamente o segredo de polichinelo: a enorme reserva de sensibilidade que se esconde por trás da aparente, ainda que tumultuada, insensibilidade. Drummond chamou de “um eu todo retorcido” a essa subjetividade convulsionada pela experiência moderna, e que eu estou descrevendo aqui em termos propositalmente colados aos de Georg Simmel em “A metrópole e a vida mental”[17] (autor que serviu, como se sabe, de fonte e estímulo ao Walter Benjamin intérprete de Baudelaire), para ressaltar a sua exemplaridade nessa direção, mesmo que absolutamente singularizada.

Em parte, esses temas estão na Pauliceia desvairada de Mário de Andrade e na Libertinagem de Bandeira, mas bem em parte: a poesia como libertação dos purismos e das métricas, a “impulsão lírica” (Mário) livremente associativa “dos bêbedos e dos clowns” (Bandeira), associada em ambos à consciência construtiva da linguagem, a divisão interior do sujeito exposto ao turbilhão da cidade (esse item sem dúvida bem mário-andradino). Drummond deu a esse campo aberto, em Alguma poesia, algumas reduções mais precisas, como a análise de algumas das instâncias constitutivas do mundo urbano — “a doce música mecânica” dos linotipos do jornal (“o fato ainda não acabou de acontecer/ e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em notícia”, “Poema do jornal”), a ordem unida e desunida do trânsito, suas manobras de massa, e as alterações profundas e sutis das modalidades de percepção do tempo e do espaço (“Sinal de apito” e “Cota zero” — “Stop. A vida parou/ ou foi o automóvel?”), assim como a carga de sensibilidade e insensibilização envolvidas em tudo isso. Deu lugar ao sentimento antenado de metrópole em plena capital estadual meio provinciana, contíguo e inseparável da experiência da “cidadezinha qualquer” do interior (“no elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador”). Em Alguma poesia o mundo é, de fato, um leque gradual de cidades em meio às quais se entretém o ser Brasil, estando Belo Horizonte num lugar de fronteira entre a província, a província da província, a capital da capital e as capitais das capitais. Ver, por exemplo, o poema composto “Lanterna mágica”, em que desfilam Sabará — “A dois passos da cidade importante/ A cidadezinha está calada, entrevada./ (Atrás daquele morro, com vergonha do trem.)”; Caeté — “A igreja de costas para o trem./ Nuvens que são cabeças de santo./ Casas torcidas/ E a longa voz que sobe/ que sobe do morro/ que sobe…”; Itabira — “Na cidade toda de ferro/ as ferraduras batem como sinos./ Os meninos seguem para a escola./ Os homens olham para o chão./ Os ingleses compram a mina.// Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”; São João Del-Rei — “As ruas cheias de mulas-sem-cabeça/ correndo para o Rio das Mortes/ e a cidade paralítica/ no sol/ espiando a sombra dos emboabas/ no encantamento das alfaias”; Rio de Janeiro — “Mas tantos assassinatos, meu Deus./ E tantos adultérios também./ E tantos, tantíssimos contos-do-vigário…/ (Esse povo quer me passar a perna)”; Bahia — “É preciso fazer um poema sobre a Bahia…// Mas eu nunca fui lá”. Ver também “Europa, França e Bahia”: “Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo./ Os cais bolorentos de livros judeus/ e a água suja do Sena escorrendo sabedoria./ […] Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas./ Tarifas bancos fábricas trustres craques./ […] E a lua de Londres como um remorso./ Hamburgo, embigo do mundo./ Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros dentro de alguns anos./ A Itália explora conscienciosamente vulcões apagados,/ vulcões que nunca estiveram acesos/ a não ser na cabeça de Mussolini./ E a Suíça cândida se oferece/ numa coleção de postais de altitudes altíssimas./ Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa./ […] A Rússia é vermelha e branca./ Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e no túmulo de Lenin em Moscou parece que um coração enorme está batendo, batendo/ mas não bate igual ao da gente…// Chega! […] Minha boca procura a ‘Canção do exílio’./ Como era mesmo a ‘Canção do exilio’? Eu tão esquecido de minha terra…/ Ai terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá!”.

Cada legenda dessas sobre cada cidade na “Lanterna mágica” do mundo mereceria um comentário à parte. Alguns desses postais têm algo da poesia de Oswald de Andrade (especialmente os de “Lanterna mágica”), muito da influência mário-andradina (especialmente “Europa, França e Bahia”) e contêm flashs interpretativos da história do mundo entreguerras, e um sentimento enviesado do (não) lugar do Brasil no mundo. Drummond imprimiu ao ambiente da poesia modernista, em Alguma poesia, uma ancoragem ambivalente, ao mesmo tempo mais afundada na experiência provinciana e muito mais cosmopolita.

Mas, entre todas essas implicações, uma delas, nem tão evidente, se liga imediatamente ao nosso alvo: a fragmentação da cidade moderna convive e colide com a interpelação deslocada ao divino, na quinta estrofe (“Meu Deus, por que me abandonaste”). Essa interpelação soa como um clamor vão pelo sentido da totalidade em meio a um tiroteio metonímico, isto é, ali mesmo onde a totalidade é dificilmente postulável, e onde, das estrofes ao poema como um todo, os todos só se apresentam por partes e estilhaços. Octavio Paz chamou a atenção para esse lugar simbólico e seu papel na configuração da poesia moderna: o de um Cristo que se descola do Pai (e de um Pai que se esvazia da divindade) ao descobrir-se angustiosamente um não-Deus (“se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco”). Esse Cristo como o Grande Órfão, o abandonado, corresponde, na expressão de Nerval, “aux enfants du limon”, isto é, Los hijos del limo,[18] nome do livro de Octavio Paz, traduzido em português por Os filhos do barro (ganharia, me parece, em ser traduzido como Os filhos da lama).

Segundo Paz, a aparição poética desse tema vertiginoso — que fica entre a irreligião e a religião —, o da morte de Deus, tema que soaria improcedente a um ateu estrito, teria ocorrido pela primeira vez no poema de Jean-Paul Richter, “Sonho”, tendo como título completo “Discurso de Cristo morto no alto do edifício do mundo: não há Deus” (cuja primeira versão é de 1789 e a última de 1796, incluída no romance Siebenkas). Nele, o tema da morte “do Deus cristão, pai universal e criador do mundo” se entrelaça com o da “inexistência de uma ordem divina ou natural que regule o movimento dos universos”, escandalizando ao mesmo tempo deístas e materialistas (que postulavam de todo modo, no século XVIII, “a existência de uma ordem universal”, uma “necessidade inteligente” e um “mecanismo racional” comandando o mundo). O “Sonho” de Jean-Paul será retomado e adaptado por Nerval num conjunto de cinco sonetos sob o título “Cristo no Monte das Oliveiras”, tomando a dimensão de um mito moderno e prefigurando “o tema do eterno retorno que, aliado ao da morte de Deus, reaparece mais tarde em Nietzsche com uma intensidade e lucidez sem paralelo”.[19] E virá a ser “sonhado, pensado e padecido por muitos poetas, filósofos e novelistas do século XIX e XX: […] Dostoievski, Mallarmé, Joyce, Valéry…”.[20]

O filho da lama é, assim, um órfão sacrificial que permanence como vítima num altar onde, por suprema derrisão, falta Deus (“Le dieu manque a l’autel, où je suis la victime”, no poema de Nerval). O tema recorre na poesia que vai do romantismo à vanguarda, em alguns poetas tocados pelo transe em que o humano se diviniza da sua humanidade abandonada, pondo-o em abismo (no sentido mesmo de uma “mise-en-abîme” radical) com a divindade, como em Fernando Pessoa: “Deus é o Homem de outro Deus Maior:/ Adam Supremo, também teve Queda;/ Também, como foi nosso Criador,// Foi criado, e a Verdade lhe morreu…/ De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;/ Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu” (“No Túmulo de Christian Rosencreutz”).[21] Nesse poema impressionante, o Mundo é o próprio Corpo de um Deus morto (“vivo e desnudo”?) cujo Espírito cai para além do Abismo inacessível e cuja Verdade insondável, comporta um Eterno Retorno em que Deus e Adão, criador e criatura, trocam infinitamente de papéis.

Giorgio Agamben coloca, pode-se dizer, a mesma questão, em termos heideggerianos (evidentemente longe do nível que ela atinge em Pessoa): toda a história do Ocidente pode ser pensada como “tempo do abandono”, do “abandono do ente pelo ser, ou seja, nada menos que o problema da unidade-diferença entre o ser e o ente na idade da consumação da metafísica”, quando “o ser não é […] outro senão o ser abandonado e remetido a si mesmo do ente”.[22] Ainda Heidegger, citado por Agamben: “Abandono do ser: que o ser abandone o ente, que este seja entregue a si mesmo e torne-se objeto da maquinação. Esta não é simplesmente uma ‘queda’, mas é a primeira história do próprio ser”.

Esse comentário serve aqui para identificar o quanto a agilidade veloz e quase humorística do “Poema de sete faces”, com o que ele comporta de análise da experiência urbana e humana, é perturbada internamente por uma indagação de fundo e de largo espectro, por um fragmento de totalidade inexpelível, que grita na quinta estrofe e rebate nas outras, particularmente na do “mundo mundo vasto mundo” que a segue, embora os registros e os tons mudem a cada passo, hilariante e perturbadoramente, escapando em um “mais-de-gozo” mais-que-irônico que jamais garante que as palavras digam propriamente o que estão dizendo, ou, se quisermos, em que dimensão estão dizendo o que dizem.

E no entanto, o nó da questão do filho abandonado por um pai total que nunca o foi, chame-se isso morte de Deus, “abandono do ente pelo ser”, queda na contingência, é ao mesmo tempo um nó filosófico, religioso, poético e político, pois aquele que se descobre como o sacrificado num altar sem Deus, “como o ser abandonado a e por uma lei que não prescreve nada além de si mesma”, ou seja, como pura “vigência sem significado”, põe a nu a “estrutura ontológica da soberania” e seu paradoxo:[23] por que persiste então o sacrifício? Ou, em outras palavras, que forças profundas mantêm a dominação, tão mais entranhada quanto mais desnudada em sua carência de sentido?

Nos traços desencontrados da cidade moderna, com seu burburinho veloz ao rés das coisas, seu movimento libidinal projetado no movimento incessante dos objetos e suas disposições psíquicas hiperativas e insensibilizadas, Drummond injetou uma indagação sobre o destino maior desse abandono, que se insinua aí como uma cifra. É notável que a indagação não faça alarde de si, mas se disfarce quase como uma pura interjeição no caos, mimetizando seu próprio (não) lugar no mundo.

Cifra também no título — “Poema de sete faces” — que nos pergunta, sem interesse pela resposta: “Trouxeste a chave?”. Sem querer saber se sabemos que o número sete é acaso, é conta de mentiroso e é o número dos céus das luminárias moventes da máquina do mundo ptolomaica — um resto de cosmogonia insistente, e o anúncio dessa insistência. No Canto XXII do “Paraíso”, tendo subido ao oitavo céu — o das estrelas fixas, no limiar do Paraíso —, Dante Alighieri vislumbra desde o firmamento a terra toda (“L’aiuola che ci fa tanto feroci/ […] tutta m’apparve da’ colli alle foci” — “O canteiro que tão nos faz ferozes/ […] todo corri, das fontes suas às fozes”), e o globo da terra e seu vil “semblante”, canteiro da nossa ferocidade, é visto justamente, nesse ponto, através da lente das sete esferas planetárias que a separam e a ligam ao Céu: “Col viso ritornai per tutte quante/ se sette spere, e vidi questo globo/ tal, ch’io sorrisi del suo vil sembiante” (“A todas retornei, co’ o olhar pujante,/ as sete esferas e, entre elas, vi este globo/ tal, que sorri pelo seu vil semblante”).[24] Não estou postulando uma referência intencional, aqui, a Dante e a Camões, mas indicando o quanto, no poema inaugural de Drummond em livro, a terra, lançada na contingência e na imanência, se deixa ver ainda assim por uma lente de sete faces, inteiramente sem recuo, em cuja fragmentação pulsa um desígnio de totalidade.

O sempre surpreendente “Poema de sete faces” pode ser visto como uma suma concentrada, em intuição originária, de questões que voltam na poesia toda de Drummond.

Em Alguma poesia um outro poema, nesse caso pouco lembrado, ao contrário do “Poema de sete faces”, é incontornável para o desdobramento do nosso assunto.

O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema — uma linha que seja — de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.

Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.

Paletós abotoam-se por eletricidade.

Amor se faz pelo sem-fio.

Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingir um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

 

Os homens não melhoraram

e matam-se como percevejos.

Os percevejos heroicos renascem.

Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema).

O poema começa dizendo “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade” e termina dizendo “(Desconfio que escrevi um poema)” — dizendo-o entre parênteses, como se sussurrasse outra vez o segredo “incomunicável”. “O sobrevivente” reapresenta a seu modo aquele mesmo jogo de forças que envolve o nó de exclusões e inclusões: ante um mundo que exclui a possibilidade de poesia, a poesia inclui o mundo ou inclui-se teimosamente nele, como um corpo estranho que lhe é íntimo.

O ponto de inflexão é a Primeira Guerra Mundial: “O último trovador morreu em 1914”. Walter Benjamin comenta, no ensaio sobre “O narrador”, que os soldados voltaram mudos da guerra de 1914-19, para estranheza de suas casas, já que, nas guerras anteriores que a Europa conheceu, retornavam convertidos em narradores de sua experiência. “Com a guerra, evidenciou-se um processo que desde então não pôde ser sustado. Não se percebeu, ao final da guerra, que os indivíduos voltavam emudecidos aos seus lares? Não mais ricos e sim mais pobres em experiências que pudessem comunicar?” Tal silenciamento de grandes proporções corresponde ao vertiginoso crescimento, no espaço de uma geração, das máquinas de guerra, que superam em muito a escala humana: “Uma geração que ainda usara o bonde puxado por cavalos para ir à escola, encontrou-se sob céu aberto em uma paisagem em que nada continuava como fora antes, além das nuvens” e, debaixo delas, “num campo magnético de correntes devastadoras e explosões, o pequenino e quebradiço corpo humano”.[25]

O desencadeamento técnico da maquinaria de guerra em escala cósmica, que o futurista Marinetti estetizou como o índice fulgurante das novas possibilidades da arte, aparece aqui como o estrondo silenciador irreparável que a inviabiliza, não fosse a pulsão incorrigível que a faz rebrotar como os próprios percevejos humanos — mesmo que nada heroicamente. Pode-se dizer que Drummond antecipou a questão adorniana da impossibilidade da arte depois de Auschwitz, mas por intuir precocemente o avanço de uma biopolítica em que as máquinas de guerra são uma extensão da máquina das máquinas, as mesmas que, “terrivelmente complicadas”, se ocuparão das “necessidades mais simples”, fumarão charuto, quando acionadas, substituindo-se ao sujeito, abotoarão paletós “por eletricidade”, farão amor virtual “pelo sem fio” e digerirão finalmente para gozo de si mesmas, entranhadas nas vísceras. Acredito que esses versos contundentes soassem em 1930 mais como uma blague chocante do que propriamente como uma profecia, mas o tempo lhes deu uma categórica verossimilhança.

Desenha-se aqui a presença de uma grande máquina do mundo, não, evidentemente, na tradição cosmológica pré-moderna, de que já falamos e falaremos adiante, mas como a invenção astuciosa de um poder que não deixará lugar sem traço da sua intrusão. E não como o olho vigilante do Grande Irmão, figurado externamente, mas como o poder que se torna extensão, desde dentro, dos nossos gestos mais cotidianos. O caldo de cultura disso tudo é o entrematar-se dos percevejos humanos, impuníveis e insacrificáveis,[26] que ressurgem desse entrematar-se num mundo inabitável “cada vez mais habitado”. De paradoxo em paradoxo — percevejos que nascem de morrer, mundo que se habita de sua inabitabilidade — desponta o dilúvio de um choro suspenso, um choro potencial que inundaria o mundo como um segundo dilúvio, porque é do tamanho dele e coincide com ele. É a negatividade banhada no sentimento do mundo que dá lugar, aqui, ao poema inadvertido, nascido no limiar frágil em que ele parecia impossível.

Nesse jogo entre impossível compor e desconfio que escrevi Drummond equaciona o arco afirmativo de sua negatividade, que se sustentará teso até Lição de coisas. Poemas como “Áporo” e “A flor e a náusea”, por exemplo, vivem disso. Como na conhecida frase do Ulisses de Joyce a história é, sim, um pesadelo do qual gostaríamos de sair. Mas, nesses livros de Drummond, se é impossível se abrigar na história, não temos nenhum outro abrigo fora dela.

Sentimento do mundo

Na “Autobiografia para uma revista”, Drummond fez um balanço de sua obra na altura de Sentimento do mundo, publicado em 1940. Diz ele: “Alguma poesia — 1930 — traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo”. Em Brejo das almas “o individualismo será mais exacerbado, mas há também uma consciência crescente de sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do mundo — 1940. Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta. Entendo que a poesia é um negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseja por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos”.[27]

A lucidez dessa entrevista, que toca diretamente, e por um lado mais concreto, em questões da “Procura da poesia”, guarda ainda outra afirmação digna de nota: “sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si” (ele se refere a “No meio do caminho”) “mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais”. A “pedra no meio do caminho”, pedra de escândalo para o leitor convencional de poesia, é reconhecida aqui por seu “autor confesso” (ciente da transgressão de ter introduzido a opacidade do enigma na via central da poesia brasileira) como sendo ela mesma uma pedra de toque da recepção poética, capaz de iluminar, com sua obscuridade, o crivo que separa as “categorias mentais”. Vale aproveitar aqui o ensejo para dizer que Carlos Drummond de Andrade, mesmo sendo o escritor complexo e perturbador que sabemos, é também um desses criadores de versos que “pegam”, que parecem entrar para um certo repertório popular urbano e se agregam à língua como se fossem novas palavras em forma de sintagma (é o caso, além do próprio “no meio do caminho tinha uma pedra”, de “e agora, José?”, “Vai Carlos, ser gauche na vida”, “João amava Teresa que amava Raimundo” etc.).

Independentemente disso, a “Autobiografia” marca um momento de redobrada autocobrança: “(Na solidão de indivíduo/ desaprendi a linguagem/ com que homens se comunicam)”, diz uma passagem de “Mundo grande”. O chamado geral dos intelectuais ao engajamento político, que se deu na década de 30, com a ascenção do nazi-fascismo e a influência da revolução russa, traz junto a imperiosa necessidade de compromisso social e superação do individualismo da parte do gauche negador do mundo. Trata-se de um capítulo desdobrado das discussões epistolares com Mário de Andrade na década de 20, em que Mário buscava afastar o jovem poeta mineiro de certo pendor niilista e blasé, em que se misturavam o “ceticismo finissecular de Anatole France” com um europeísmo desencantado com o Brasil, traço que o poeta da Pauliceia desvairada denominou “moléstia de Nabuco”.[28] Sentimento do mundo e A rosa do povo introduzem a situação nova de um gauche que, sem deixar de sê-lo, se requisita como cidadão do mundo, tendo como alter ego ideal o homem do povo enquanto artista, Charlie Chaplin. O excrescente (que se inclui sem pertencer) e singular (que pertence sem se incluir),[29] compromete-se agora a ser também o incluído incluidor (“O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”), sem perder o nervo problemático — nunca é demais insistir — em que se debatem engajamento e poesia pura, o posicionamento político e as exigências do trabalho poético, a solidariedade e a ironia corrosiva.

Modulam-se aí, surdamente, as dimensões de multidão, massa e povo, que se interpenetram e se excluem. Se a multidão é a massa das diferenças, à qual o indivíduo pertence sem se reduzir (como, de certo modo, na dimensão arlequinal da Pauliceia de Mário), a massa é a multidão uniformizada pelo consumo capitalista ou pela voz de comando autoritária, fascista ou comunista, na qual o indivíduo se inclui sem se pertencer. Já o povo seria a entidade utópica em que a multidão-massa atingiria um limiar de auto-expressão coletiva, capaz não só do grito mas de voz; a ele o indivíduo pertence e nele se inclui, fazendo parte e fazendo-se representar. A contradição da vida na metrópole, que está na base da poesia de Drummond desde o princípio, é que ela suscita ao mesmo tempo a multidão das diferenças e a massa dos consumidores. A contradição do engajamento político, por sua vez, é que ele invoca a entidade povo mas instrumentaliza a massa. A rosa do povo abre portanto, desde o título, um viés utópico, cujos pontos de incongruência não deixam de estar estampados no livro, tendo como vértice problemático o transpasse da massa-multidão em povo. “Tal uma lâmina,/ o povo, meu poema, te atravessa” (“Consideração do poema”): a contundência do gesto indica a consciência da dificuldade envolvida. A complexidade da poesia de Drummond está ligada ao fato de ele não reduzir essas dimensões, mas atravessá-las continuamente num movimento reflexionante cuja malha imagética, sempre surpreendente, vai muito além dos esquemas com que tentamos mapeá-la.

O sentimento do tempo em que tudo isso se desdobra pode ser reconhecido num impactante — e atualíssimo — poema datado, “Elegia 1938”:

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

 

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

 

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis  palmeiras.

 

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

 

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

O final do poema detona uma imagem cuja potência inesperada é calculada na economia do texto como uma bomba. O leitor vai sendo entorpecido por uma sequência de déficits sombrios, cuja curva declinante, quando se aproxima do esperável ponto de extinção, explode subitamente em uma frase que é pura dinamite poética: “Aceitas […]/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. “Tenho palavras em mim buscando canal,/ são roucas e duras,/ irritadas, enérgicas,/ comprimidas há tanto tempo,/ perderam o sentido, apenas querem explodir”, diz uma passagem de “Nosso tempo”, em A rosa do povo. Ou, em “A flor e a náusea”, essa revelação, de passagem, de uma precoce vocação poética de homem-bomba: “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim./ Ao menino de 1918 chamavam anarquista./ Porém meu ódio é o melhor de mim./ Com ele me salvo/ e dou a poucos uma esperança mínima”.

Em “Elegia 1938” temos, novamente, um diálogo que contém um solilóquio, como em “Procura da poesia”. Ou, mais especificamente, em “Consolo na praia”, onde uma primeira pessoa, dirigindo-se a uma segunda na qual se desdobra, faz um implacável balanço de fracassos. É uma forma mental recorrente em Drummond: o processo acusatório através do qual a consciência verruma, no recesso da culpa individual, o rebaixamento da dimensão ativa do sujeito, desnudando de maneira implacável a sua impotência frente ao mundo. Esse processo, que se dá de sujeito para sujeito, ou, do sujeito para o sujeito, é ao mesmo tempo um diagnóstico de alcance geral, porque aquilo que ele flagra, no âmbito torturado da consciência individual, é um círculo vicioso entre a impossibilidade objetiva e a linha de fuga subjetiva, entre os sinais da inviabilidade geral do “mundo caduco” (“onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo”) e as pequenas e grandes fraquezas do indivíduo (“sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer”), entre a “vigência sem significado” (“o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina”) e a tibieza do sujeito assujeitado (“tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva”), que se alimentam reciprocamente. Entre a denúncia moral da fraqueza evasiva com que o sujeito procura, em vão, escape ao pesadelo real da história, que se apresenta nas formas mais cotidianas, e a constatação efetiva de que o pesadelo real da história não apresenta saídas ao sujeito, gira uma energia reprimida, sem passagem nem para dentro nem para fora: é ela que explode na frase final. Nesta se combinam a impotência do conteúdo, acumulada ao longo da enumeração de grandes e pequenas derrotas (“não podes, sozinho”), com a potência, o desplante e a eclosão da imagem (“dinamitar a ilha de Manhattan”). A imagem realiza, com a força da palavra, aquilo que a análise dá como impossível, e condensa o choque imensamente disparatado entre o indivíduo e o símbolo-sede da Grande Máquina que avassala o mundo. Pode-se dizer que toda imagem forte é uma imagem que se revira, que guarda a potência ambivalente do seu contrário. Aqui, o foco de potência e impotência, a oscilação de pode-e-não-pode, que contém o núcleo da estranheza real do verso, é justamente aquilo que veio a atualizar-se no 11 de Setembro, dando ao poema uma inadvertida dimensão profética, embora Carlos Drummond de Andrade não se enquadre no modelo do vate-profeta nem o fundamentalismo islâmico tenha qualquer afinidade com a disposição radicalmente moderna e laica do seu discurso. Mas o impacto traumático do evento liga-se justamente àquilo que está no próprio cerne dessa imagem poética: só o impossível acontece, e de um modo tal que a psique não consegue, ou mal consegue, realizar. E, aqui, incidindo sobre o símbolo da soberania global, cuja queda ganha as proporções da “violência divina”, na acepção de Walter Benjamin — não a violência que põe a ordem, ou a que a conserva, mas a que a (de)põe, fazendo ver, por um instante, a nudez de toda soberania.[30]

É uma consciência desse tipo, envolvendo o flagrante desnível especular entre o poder soberano e o gauche, agora à esquerda, que atravessa o momento de maior contundência engajada na poesia de Drummond, ao final do poema “Nosso tempo”: “O poeta/ declina de toda responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme”. A frase instaura-se como paródia solene do discurso jurídico (“o poeta declina de toda responsabilidade”), resvalando pela paródia do panfleto político (“na marcha do mundo capitalista”), enquanto envereda decididamente pelo domínio do poético (“com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas”), para reverter, a partir deste, a soberania do mundo a seu favor, concluindo com uma gradação decrescente em que o muito grande, no horizonte da promessa, fica ínfimo a seus pés (“promete ajudar a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme”). Essa atilada boutade de protesto, que é meta-irônica sem deixar de ser uma afirmação de combate e de esperança, e que rebate com um posso aquele não podes da “Elegia 1938”, sem deixar de contê-lo, lida com a irônica especularidade opositiva entre o poder do mundo e o da poesia, de que viemos falando, envolvendo o embate vertical e desniveladamente reversível daquelas forças que estão ao mesmo tempo dentro e fora dos conjuntos do mundo: o soberano fora-da-lei (ver, a propósito, o impressionante “Intimação”, com o qual se encerra Lição de coisas) e o fora-da-lei soberano, que joga com o “reino das palavras”. A sequência decrescente pedreira-floresta-verme lembra aqui, a propósito e ao avesso, o poema “Áporo”, em que, ao contrário, um verme aprisionado no subsolo cava até achar escape em flor, antieuclidiana orquídea.

Chegando um pouco mais perto do texto, em um dos seus detalhes, a primeira estrofe do poema, que projeta desde o início um quadro de esgotamento e crise de paradigmas, isto é, de um mundo sem a força da exemplaridade e sem legitimidade, embora vigente no seu funcionamento reprodutivo, introduz uma oposição sutil em que o crivo fino da escolha vocabular atesta mais uma vez o domínio de um poeta-pensador: “trabalhas sem alegria para um mundo caduco”/ “praticas laboriosamente os gestos universais”. A oposição insinuada entre trabalho e labor lembra a distinção de Hannah Arendt, em A condição humana[31] (não como citação e referência, evidentemente, já que o poema é anterior ao livro, mas como um índice do rigor conceitual que investe esta poesia). O trabalho é entendido, por Arendt, como a esfera da produção de um habitat imaterial para a existência, de algo que abrigue a nossa condição mortal e dialogue com ela, sem se consumir no uso imediato — ao contrário, renovando-se com o uso; o labor como a esfera da reprodução da existência, que se consome em seu próprio ciclo e no seu consumir-se. No poema, o trabalho liga-se a uma exemplaridade que guardaria um valor simbólico, agora caducado, enquanto o labor corresponde aos “gestos universais” da sobrevivência e das necessidades orgânicas, o agasalho, a subsistência, o alimento, o sexo. A esfera do trabalho, cuja maior expressão é, para Arendt, a arte, encontra-se mitigada, em dimensão universal, e convertida no labor estéril que se reproduz no limite das carências mínimas, com o agravante da chuva, da guerra, do desemprego e da injusta distribuição.[32]

O núcleo é o mundo da dominação desvelado em seu sem-sentido, e que parece, ainda assim, redobrar o seu poder graças a esse mesmo desvelamento. No centro do poema um sono de morte (com o seu “poder de aniquilamento”) figura como a única escapatória tanto da vida como da morte (“sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer”). O despertar é a prova — o incontornável real — da Grande Máquina, “e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras”. O que dizer dessas “indecifráveis palmeiras”? Elas estão aí, singulares, irredutíveis, incabíveis, soberanas em seu enigma, impassíveis, sobrantes, diferentes de todo o resto e indiferentes às chaves que trouxermos — elas são o mundo em si. A fresta mínima e imensurável entre elas e a Grande Máquina é o enigma maior, que voltará, em Claro enigma, com “A Máquina do Mundo”.

A máquina do mundo

A leitura d’“A máquina do mundo” exige um fôlego espiritual que não pode nos faltar, a essa altura. Em sua leitura do poema, Alfredo Bosi[33] indica os pontos de respiração, que incorporo aqui à transcrição do texto.

(a)                    o encontro no meio do caminho

 

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

 

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

 

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

 

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

 

(b)   a abertura da máquina do mundo e o anúncio de sua fala

 

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável

 

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

 

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

 

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

 

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos

 

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

 

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

 

a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

 

(c)   o discurso do mundo

 

“O que procuraste em ti ou fora de

 

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

 

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

 

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

 

se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste… vê, contempla,

abre teu peito para agassalhá-lo”.

 

(d)   a epifania do universo

 

As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

 

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

 

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

 

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,

 

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que tantos monumentos erguidos à verdade;

 

e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

 

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

 

(e)   a recusa do eu

Mas , como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

 

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa 

que entre os raios do sol inda se filtra;

 

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

 

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

 

passasse a comandar minha vontade

que, já de si solúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

 

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

 

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

 

(f)                    o fechamento do mundo e a volta do eu à condição de caminhante

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

 

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.

O andamento do poema segue um fluxo majestosamente subordinante, hipotático, todo ao avesso, por exemplo, do fluxo descontínuo e paratático do “Poema de sete faces”, seguindo um caminho volteado de frases em ordem indireta no qual se reconhece uma empostação latinizante e uma glosa altiva do estilo camoniano. Ao mesmo tempo, é escandido em estrofes de três versos decassílabos que ressoam as cadências da “terza rima”, tal como se vê n’A Divina Comédia, embora, aqui, não rimadas e incorporadas ao verso branco modernista. Tais alusões estilísticas a Dante e a Camões, incluídas na malha fina da estrutura estrófica e sintática do poema, não são meramente ornamentais. Elas remetem a dois grandes poemas totalizantes em que a ordem universal se abre aos olhos do poeta-personagem — Dante em A Divina Comédia e Camões/Vasco da Gama em Os Lusíadas — através de um périplo que atravessa o mundo como um todo e ao final do qual a verdade máxima se oferece à vista. No primeiro caso, o cosmo tripartite do medievo (Inferno, Purgatório, Paraíso) e a visão mirífica da divindade, no segundo a terra recém-circunavegada pelos portugueses e a divinização de sua história — ambos subsumidos pela cosmologia ptolamaica, cuja reversão pela teoria copernicana, de consequências simbolicamente desestabilizadoras — e perigosas sob Inquisição —, Camões terá evitado incorporar ao seu poema.[34]

Que Drummond faça emergir estilisticamente, no texto, uma linguagem poética associada ao grande impulso de esgotamento simbólico do mundo, pela revelação de seu sentido, não deve ser tomado como pretensão direta de confundir-se com os clássicos pastichando seu estilo, numa recaída ao tradicional depois de todas as escaramuças modernistas, nem de pastichar os clássicos para liquidar sua classicidade, como faria um pós-moderno. Não há dúvida de que o risco e a ambição do lance investido n’“A máquina do mundo” são máximos, mas a primeira questão, aqui, é que, ao contrário das máquinas do mundo pré-modernas, o segredo não se revela, para ironia e derrisão do tom assumido, e, quando parece se revelar, algo do estado do mundo impede o poeta de tomar para si a revelação, numa espécie de mais-que-ironia potencializada. A escolha estilística implica pois um descompasso que vai rente ao texto e é inseparável da suntuosa cadeia verbal que nele se desdobra.

Nas quatro primeiras estrofes dá-se um encontro, em meio à estrada crepuscular de Minas, numa atmosfera fusional em que “um sino rouco” se confunde com os passos do poeta, em solo pétreo, e as aves escuras com a “escuridão maior” que vem de fora (“dos montes”) e de dentro (“de meu próprio ser desenganado”). É nessa boca da noite, sorvedouro lento das formas e dos sons, assim como dos limites que distinguem o externo e o interno, que a “máquina do mundo” resolve entreabrir-se numa aparição inexplicada — ou só explicável por aparecer caprichosamente para quem desistiu de desvendar o seu segredo, depois de muito procurá-lo. O encontro se dá “nel mezzo del cammin” (Bosi o sugere), de um caminho pedregoso: no meio do caminho tinha a Coisa. “Uma antecipação do núcleo temático de ‘A máquina do mundo’ encontra-se no texto  em prosa ‘O enigma’, de Novos poemas, cuja situação lhe é simétrica: ‘As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma escura lhes barra o caminho’. Até as pedras, aqui antropomorfizadas, se conjuram em um ‘esforço de compreender’ a Coisa, mas esta é ‘interceptante’. ‘Barra o caminho e medita, obscura’”.[35]

Assim, o poeta da opacidade do enigma, da pedra no meio do caminho, e do caminho barrado das pedras, depara-se, a contragosto (“para quem de a romper já se esquivava/ e só de o ter pensado se carpia”), com a iminência da revelação, espantosa pela serena gratuidade com que parece oferecer-se agora, depois de ter-se mostrado impenetrável ao longo de uma existência de procura.

A segunda parte repisa esse conteúdo: a máquina abre-se “majestosa e circunspecta”, nem estridente nem ofuscante, sem magnificar minimamente o assombro, e sem minimizar, também, o poder do arbítrio com que chama, para “o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas”, justamente aquelas pupilas já “gastas na inspeção/ contínua e dolorosa do deserto” e a “mente exausta de mentar/ toda uma realidade que transcende/ a própria imagem sua debuxada/ no rosto do mistério, nos abismos”. O poeta está no ponto exato da posição saturnina, isto é, no gume insolúvel entre a totalidade e o limite, ao qual ele insiste em permanecer fiel, diante de uma promessa que, tendo desconhecido todos os imensos esforços investidos por aquele que usou e perdeu “quantos sentidos e intuições restavam”, quer apresentar-se agora, subitamente, como se não tivesse custo.

Curiosamente, esse anúncio da máquina do mundo na estrada pedregosa de Minas se faz na forma de uma espécie de recado do morro silencioso: “assim me disse, embora voz alguma/ ou sopro ou eco ou simples percussão/ atestasse que alguém, sobre a montanha,// a outro alguém, noturno e miserável,/ em colóquio se estava dirigindo”. N’“O recado do morro”, a novela de Guimarães Rosa, também, logo depois que se alude ao poder do morro da Garça de avisar coisas, e de seus descarregamentos subterrâneos, se diz: “[…] em seu pousado, o da Garça não respondia, cocuruto. Nem ele, nem outro, aqui à esquerda, próximo, superno, morro em mama erguida e corcova de zebu” (p. 22). “[…] os morros continuavam tranquilos, que é a maneira de como entre si eles conversam, se conversa alguma se transmitem” (p. 21).[36] A metafísica mineira trabalha no silêncio: mineiro com mineiro, ninguém está falando nada entre eles, só o tudo — como se fosse por si só.

Mas, em seguida, é a máquina que fala, fazendo a publicidade ostensiva de sua máxima oferta — a daquele bem inapreçável e arredio ao grau absoluto, aparentemente o mais buscado entre todos por esse saturnino renitente, isto é, o conhecimento oculto (“essa ciência formidável, mas hermética”) e, com todas as letras, “essa total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular”, vale dizer, a chave do mundo tornado transparente em sua totalidade.

E é nada menos do que isso que se apresenta, na sequência, independente das reservas manifestas do sujeito poético, que, negando-a, acaba por afirmar em ato a visão do todo, num conjunto espantoso de sete estrofes de faces infinitas — a epifania do universo. Delas, só posso tentar dizer que fazem o movimento de uma fita de Moebius, ao descer das “mais soberbas pontes e edifícios” através dos poderes da técnica e da ciência dominando faustianamente tanto “os recursos da terra” quanto as propriedades anímicas de todo o ser terrestre, as humanas paixões, impulsos e tormentos, a cadeia animal e vegetal, e indo culminar ao fundo “no sono rancoroso dos minérios” (“por essa única fenda, entreaberta em um átimo”, diz Bosi, “é possível divisar as Minas, Itabira e suas pedras, o subsolo de orgulho,  a  dor  da  memória”),[37]  para  retornar  em  seguida,  revirada sobre o todo, dando “volta ao mundo” e tornando “a se engolfar/ na estranha ordem geométrica de tudo”, repercorrendo-a agora sob as espécies do “absurdo original e seus enigmas”, da “memória dos deuses” e do “solene/ sentimento de morte, que floresce/ no caule da existência mais gloriosa”.

Nesse movimento de torsão sobre si mesmo, entrevisto aqui no vertiginoso relance em que o todo se apresenta “afinal submetido à vista humana”, o mundo se dá, no primeiro momento, através da escalada do labor teórico e tecnológico que domina toda a escala da existência até o fundo insconsciente da terra (que é sono, rancor e minério), ponto de viragem a partir do qual retorna sobre a “estranha ordem geométrica de tudo”, expressando-se não mais em termos do poder da ciência e da técnica dominantes, que supõem o capital, mas investido das forças irredutíveis do enigma, do mito e da morte. É como se tivéssemos, aqui, dois vieses do mesmo mundo, cujo ponto de colagem e deslocamento permanece como o enigma dos enigmas: o mundo da dominação e o mundo indominável.

Esse é o aleph drummondiano. Entre parênteses: a Máquina do Mundo é um dispositivo poético totalizador através do qual se dá a ver, num único ponto do universo, a totalidade dos pontos, quando, uma vez ultrapassada arduamente a opacidade do mundo, as partes transparecem, cada uma, num ponto mirífico do todo. Na Ilha dos Amores, ao final d’Os Lusíadas, um globo pairando no ar e atravessado de luz, do qual se veem o centro, a superfície e a quintessência, os círculos do Empíreo, o primeiro Mobile, o céu zodiacal e os sete céus planetários, tendo no centro a Terra e os elementos (Canto X, 8091), dá a ver em seu núcleo, com luxuriante riqueza de detalhe, toda a costa da África bordejada a partir da Europa cristã, ramificando-se em confins das Arábias, Ásias e ainda dos extremos da inomeada América (Canto X, 92-143), no passado e no futuro, magnificando em êxtase a história portuguesa.[38]  Bem pensada, a máquina do mundo camoniana é um estonteante aleph da empreitada lusitana (que gira e roda, toda, num só ponto luminoso). No seu conto famoso, “El aleph”, Jorge Luís Borges, leitor de Dante e Camões, parodiou o dispositivo, despido agora de seus paramentos teológico-políticos e lançado ao caos da contingência, preservando no entanto o princípio do ponto numinoso, agora casual, em que o universo todo implode simultâneo em luz visível. O conto é um alucinante comentário metairônico sobre a ambição totalizante da literatura, onde o protagonista, Borges, às voltas com a memória obsessiva de uma certa Beatriz de Viterbo, convive com um escritor, Carlos Argentino Daneri, que pretende copiar, num fastidioso e interminável poema pan-descritivo, aquilo que vê no aleph do seu sótão, prestes a ser demolido.[39]

O conto de Borges é de 1949, o poema de Drummond, de 1951. De certo modo, ambos vislumbram, cada um a seu modo, em sua “máquina de produzir anti-história”, o mundo do pós-guerra, remundializado sob nova ordem, em que as potências disputam o domínio global em toda escala. Retomando: o aleph drummondiano está no ponto onde se cruzam a Grande Máquina e a Máquina do Mundo[40] como dispositivo simbólico totalizador, com a interrogação sobre a margem virtual que permanece sobrante, no encontro das duas. A suspeita que paira aqui, para o mineiro metafísico hiperdesconfiado, é que a Grande Máquina e a Máquina do Mundo não se distinguem o suficiente para que uma não englobe a outra. E que o modo ostensivo da aparição, caprichoso e publicitário, impondo-se afinal independente da vontade do sujeito, sob a forma do arbítrio e do poder soberano, configura-a como o seu Outro, frente ao qual, independente de todo anseio “de ver desvanecida a treva espessa”, ele baixa os olhos, num movimento paradoxalmente altivo, “incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita ao (seu) engenho”.

Vai daí que, sob a noite total, “a máquina do mundo, repelida,/ se foi miudamente recompondo,/ enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas”. É significativo, nessa passagem final, que a máquina não vá se decompondo na escuridão, mas se recompondo: a máquina do mundo  é o mundo,  e só se destaca dele num instantâneo fulgor da intuição, que a máquina poética guarda em palavras.

Relógio do rosário

Claro enigma termina com “A Máquina do Mundo” e com “Relógio do Rosário”: os dois poemas formam um par complementar, e a rigor indissolúvel. Estamos novamente no crepúsculo de Minas, que agora se adensa na treva momentânea e profunda que se desprende do som do Relógio da Matriz do Rosário, equivalente daquele “sino rouco” que se fundia aos passos do caminhante da estrada pedregosa, emergindo da “memória involuntária”. Ali onde se entreabria a máquina, aqui se abre a epifania da dor universal, o “choro pânico do mundo”, a dor fusional do indivíduo com o vasto coro, “dor de tudo e de todos, dor sem nome”, do rei e da roca, que transpassa os seres e as esferas, mais real que o amor. A máquina é uma projeção da visão, a dor um mergulho no som; uma regida pelo pensamento, que discorda, a outra, o próprio sentimento do mundo, com o qual se une.

Era tão claro o dia, mas a treva,

do som baixando, em seu baixar me leva

 

pelo âmago de tudo, e no mais fundo decifro o choro pânico do mundo,

 

que se entrelaça no meu próprio choro, e compomos os dois um vasto coro.

 

Oh dor individual afrodisíaco selo gravado em plano dionisíaco,

 

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,

  em qualquer um mostrando o ser deserto,

 

dor primeira e geral, esparramada, nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,

em mil pequena dor, qual mais raivosa,

 

prelibando o momento bom de doer,

a invocá-lo, se custa a aparecer,

 

dor de tudo e de todos, dor sem nome, ativa mesmo se a memória some,

 

                         dor do rei e da roca, dor da cousa

indistinta e universa, onde repousa

 

tão habitual e rica de pungência

como um fruto maduro, uma vivência,

 

dor dos bichos, oclusa nos focinhos, nas caudas titilantes, nos arminhos,

 

dor do espaço e do caos e das esferas, do tempo que há de vir, das velhas eras!

 

Não é pois todo amor alvo divino,

 e mais aguda seta que o destino?

 

Não é motor de tudo e nossa única fonte de luz, na luz de sua túnica?

 

O amor elide a face… Ele murmura algo que foge, e é brisa e fala impura.

 

O amor não nos explica. E nada basta, nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência

ao contato furioso da existência.

 

Nem existir é mais que um exercício de pesquisar de vida um vago indício,

 

a provar a nós mesmos que, vivendo, estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,

foi-se, no som, a sombra. O columbário

 

já cinza se concentra, pó de tumbas, já se permite azul, risco de pombas.

Quando se dissipa o som, e a treva interna que vem dele, fica o ouro sobre azul da praça, novamente iluminada pelo dia, a rima imperfeita de “tumbas” com “pombas”, alusão à recorrência dessa rima em “Le Cimetière marin” de Paul Valéry[41], e a palavra “columbário”, que as condensa (pois significa nicho sepulcral em que se guardam  cinzas  funerárias  e,  ao  mesmo  tempo,  pombal).[42]  Pega pelas asas, em “estado de dicionário”, a palavra se debate e pulsa, em morte e vida.[43]

NOTAS

[1]Para todas as citações da obra de Drummond, neste ensaio, ver Carlos Drummond de Andrade, Poesia completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2003.

[2] Uma terceira ocorrência da palavra “mundo” se dá num poema claramente atípico, “Os três mal-amados”, poema dramático trabalhando com o procedimento da enumeração caótica. Ver João Cabral de Melo Neto, Poesias completas (1940-1965), Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. Na obra subsequente do autor prevalece a mesma tendência: palavra “mundo” apenas no poema dramático “Auto do Frade”. Ver João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra e depois, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.

[3] Trata-se da Antologia poética, organizada pelo autor (Rio de Janeiro, Record, 2001).

[4] Cf. Octavio Paz, Los hijos del limo — Del romanticismo a la vanguardia. Barcelona, Seix Barral, 1974, p. 9.

[5] O tema insinua-se em “Eterno” (Fazendeiro do ar, 1954), define-se em “Os materiais da vida” (Vida passada a limpo, 1958), estende-se a “Vi nascer um Deus” (Lição de coisas, 1962), ganha contundência redobrada em “Ao Deus Kom Unik Assão”, “Diamundo” (já citados, de 1973), “Receituário sortido”, “Jornal de serviço” (Discurso de primavera, 1977) e “Eu, etiqueta” (Corpo, 1984), este último sobre a onipresença da logomarca. Em “Diamundo” e “Jornal de serviço”, com o subtítulo “24 H de informação na vida do jornaledor”, Drummond trabalha com colagens exaustivas de fragmentos de jornal e de informações de agências de notícias, como se a referência e a interpelação ao “mundo” se subtituíssem por uma transcrição caótica e despessoalizada de fragmentos de mundo em espécie.

[6] Para uma discussão do caráter de classe — no caso, do lugar ideológico da classe média — implicado nessa posição, e do contexto da luta ideológica e partidária, ver Vagner Camilo. Drummond — da Rosa do Povo à Rosa das Trevas, São Paulo, Ateliê Editorial, em especial o capítulo 2, “As razões do pessimismo: sectarismo ideológico no contexto da Guerra Fria”.

[7] Martin Heidgger, “L’époque des ‘conceptions du monde’”. Chemins qui ne mènent nulle part, Gallimard, 1994.

[8] Estou utilizando aqui algumas formulações de Giorgio Agamben em Homo sacer — o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte, UFMG, 2002), que me parecem ter correspondência com figurações do poder na poesia de Drummond. Entre elas se inclui o nó das relações de exclusão inclusiva e inclusão excludente, logo abaixo, que adapto das suas reflexões sobre “Lógica da soberania” (Parte 1) e “Homo sacer” (Parte 2).

[9] Cf. John Gledson, Influências e impasses Drummond e alguns contemporâneos, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 55.

[10] Citado por John Gledson, cit., p. 55.

[11] Refiro-me ao poema de Fernando Pessoa: “Tenho dó das estrelas/ Luzindo há tanto tempo,/ Há tanto tempo…/ Tenho dó delas.// Não haverá um cansaço/ Das coisas,/ De todas as coisas,/ Como das pernas ou de um braço?// Um cansaço de existir,/ De ser,/ Só de ser,/ O ser triste brilhar ou sorrir…// Não haverá, enfim,/ Para as coisas que são,/ Não a morte, mas sim/ Uma outra espécie de fim,/ Ou uma grande razão —/ Qualquer coisa assim/ Como um perdão?”. Obra poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2001, p. 148.

[12]  Paul Valéry, “Poésie et pensée abstraite”, em Oeuvres, t. i., Bibliothéque de la Pleiade, Gallimard, 1968, p. 1317. “[…] tel mot, qui est parfaitemente clair quand vous l’entendez ou l’employez dans le langage courant, et qui ne donne lieu à aucune difficulté quand il est engagé dans le train rapide d’une phrase ordinaire, devient magiquement embarrasant, introduit une résistance étrange, déjoue tous les efforts de définition aussitôt que vous le retirez de la circulation pour l’examiner à part, et que vous lui cherchez um sens après l’avoir soustrait à sa fonction momentanée […]”. A tradução no corpo do texto é minha.

[13] O poema “Isto é aquilo”, em Lição de coisas, pode ser visto como uma lâmina em que se expõe em processo esse “estado de dicionário” poético.

[14] Para uma leitura finíssima, e rente ao texto, dos muitos matizes do “Poema de sete faces”, ver Alcides Villaça, “Drummond: primeira poesia” em Teresa Revista de Literatura Brasileira, no 3, área de Literatura Brasileira, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (São Paulo, Editora 34, 2002), pp. 16-50. Para uma leitura também minuciosa, que considera a relevância do chiste e a reunião “em viés paródico”, de “três modalidades de poesia: a cômico-satírica, a elegíaca e a idílica”, no “Poema de sete faces”, Davi Arrigucci Jr., Coração partido, São Paulo, Cosac & Naify, 2002, pp. 34-52.

[15] A mesma frase aparece no Velho Testamento, em Salmos 22, sugerindo a interpretação de que Cristo estivesse rezando-a, in extremis. Mas pode-se dizer que ela é re-significada no Novo Testamento, acentuando a distância abissal entre o Pai e o Filho na pungência da Paixão. E ela será re-significada na poesia moderna, qundo aparece ligada ao tema de um Cristo órfão perante a morte de Deus (ver adiante).

[16] Cf. Walter Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”, em Iluminaciones

[17]Georges Simmel, “A metrópole e a vida mental” em O fenômeno urbano, Otávio Velho (org), Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp. 11-25

[18] Ver nota 4.

[19] Octavio Paz, cit, p. 76.

[20] Octavio Paz, cit. p. 75

[21] O poema é citado por Paz. Está em Fernando Pessoa, op. cit. p. 76.

[22] Agamben, cit. pp. 66-7.

[23]  Agamben, cit. p. 67.

[24] A tradução utilizada é de Italo Eugenio Mauro em Dante Alighieri, A Divina Comédia – Paraíso, São Paulo, Editora 34, 1998, pp. 59-160. O modelo cosmológico vigente coloca, entre Terra e Empíreo , o céu cristalino do Primum Mobile, o céu das estrelas fixas e os sete céus planetários: o da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter e de Saturno. Alfredo Bosi faz referência a essa passagem em sua interpretação de “A máquina do mundo”, de Drummond, como se verá adiante. O mesmo modelo vige ainda em Os Lusíadas, quando se descreve a Máquina do Mundo, incluindo os sete céus: “Debaixo deste grande Firmamento,/ Vês o céu de Saturno, Deus antigo,/ Júpiter logo faz o movimento,/ E Marte abaixo, bélico inimigo;/ O claro Olho do céu, no quarto assento,/ E Vênus, que os amores traz consigo,/ Mercúrio de eloquencia soberana;/ Com três rostos, debaixo vai Diana”(estrofe 89 do Canto X)

[25] Walter Benjamin, “O narrador – Observações acerca da obra de Nicolau Lescov”, Em Wanter Benjamin, Marx Horkheimer, Theodor W,. Adorno, Jürgen Habermas, Textos escolhidos, Os pensadores, vol. XLVIII, São Paulo, Abril Cultural, 1975, pp. 63-4.

[26] Na sua análise da Lógica da Soberania, Giorgio Agamben recupera uma figura intrigante do direito romano, o “homo sacer”, que se define como suscetível de ser morto impunimente e vedado à morte sacrificial, isto é, um ser de excessão impunível e insacrificável, for a tanto da ordem juridica quanto da religiosa. Na sua interpretação, a biopolítica contemporânea, em sua), generalizaria a condicão do homo sacer , desvelando uma lógica em que para o soberano todos são homines sacri, e para o homo sacer, todos são soberanos. Ver Agamben, cit. p. 121.

[27] Carlos Drummond de Andrade, “Autobiografia para uma revista”, em Obra Completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1968, pp. 546-7.

[28] Cf. Silviano Santiago. “Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade”, em Carlos Drummond de Andrade, Poesia completa, cit., pp XIII e XV. Segundo Silviano, “coube a Drummond transformar o equívoco cosmopolita, gerado pela macaqueação do colono nos trópicos, em certeza inabalável, verdadeiro motor do seu fazer poético. A fatalidade da formação intelectual provinciana tocirna-se a garantia da uma poesia cosmopolita” (p. XVI), extraindo-se do veneno o antídoto.

[29] Ver Agamben, cit., p. 31.

[30] Ver Agamben, cit., p. 71.

[31] Hanna Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro/São Paulo, Forense Universitária, 2001 (1ª ed. Chicago University Press, 1958). Em especial os capítulos III, “Labor”, e IV. “Trabalho”.

[32] Outro poema faz também, por si e por este, o diagnostico do “Nosso tempo”: “Escuta o horrível emprego do dia/ em  todos os países de fala humana,/ a falsificação das palavras pingandodos jornais,/ o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,/ os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,/ a cosntelação de formigas e usurários,/a má poesia, o mau romance,/ os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,/ o homem feio, de mortal feiúra,/ passeando de bote,/ num sinistro crepúsculo de sábado”(“Nosso tempo”).

[33] Alfredo Bosi, “’A Máquina do Mundo’ entre símbolo e alegoria”, Céu, inferno, São Paulo, Duas Cidades, 2003, pp. 99-121.

[34] Cf. João Adolfo Hansen, “A Máquina do Mundo”, aqui, pp. 157.

[35] Alfreso Bosi, cit., p. 111. Silviano Santiago tratou pioneiramente desse núcleo problemático em “Camões e Drummond: a máquina do mundo”, Hispania (3), set. 1966, v. XLIX.

[36] João Guimarães Rosa, “O recado do morro, em Ficção complete, v. I, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994. Pp. 624-5.

[37] Alfredo Bosi, cit., p. 114.

[38] Ver Hansen, cit.

[39] Lembro-me aqui de uma conferência de Emir Rodriguez Monegal, no final da década de 70, na Unicamp, em que ele estabelecia a relação entre El Aleph e A Divina Comédia. Para uma ampla reflexão poética e cosmológica sobre o tema da máquina do mundo, ver Haroldo de Campos, A máquina do mundo repensada, São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.

[40] Alfredo Bosi estableceu a relação entre os dois poemas, “Elegia 1938” e “A máquina do mundo”, e suas respectivas máquinas. Ver op. cit., p. 110.

[41] “Ce toit tranquille, où marchent des colombes,/ Entre les pins palpite, entre les tombes;” e “Le blanc troupeau des mes tranquilles tombes,/ Éloignes-en les prudentes colombes”. “Le Cimitière marin”em Paul Válery, cit., pp. 147-51.

[42] Ver Vagner Camilo, cit., cap. 9, “Ouro sobre azul: revelação final”, pp. 299-312.

[43] Agradeço a João Camillo Penna o acompanhamento valioso e as muitas sugestões; a Marina Wisnik o auxílio na pesquisa dos “mundos”; e a Mariana Diniz a dedicada transcrição da conferência, que, embora não aproveitada literalmente, guiou a redação deste texto.

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