2009

Do comum ou o não lugar do humano

por João Camillo Penna

Resumo

Utopia realizada é utopia destruída, já que sua função não é indicar as vias e os meios de sua efetuação, mas palmilhar o não-lugar, a figura que o constitui. Ao realizar-se, isto é, ao ocupar um lugar, o não-lugar desfaz-se como por encantamento e é absorvido no jogo ideológico das forças contraditórias que o motivaram, e cujas contradições ele pretenderia resolver.

A proposta é reconstituir os contornos da questão a partir de uma volta ao texto fundador, a Utopia (1516) de Thomas More. A hipótese é que na ficção proposta por More, naquilo que denomino a prática utópica, pode-se desentranhar o programa geral das utopias porvir. Como guia de viagem, há o livro Utópicas: jogos de espaços de Louis Marin, concebido precisamente a partir de aulas ministradas em Nanterre, no primeiro semestre de 1968; em pleno furacão, portanto.

Mais do que o conteúdo específico da utopia de More, o que interessa é a tentativa de extrair dela a forma, a constituição de sua figura. Assim, a igualdade como princípio fundante, unitário, extraído de Platão, resume-se na regra distributiva, poder cuja função é anular o poder – escreve Marin – que orienta as utopias por vir (a horizontalidade dos participantes da passeata dos 100 mil, por exemplo). Na leitura de Marin, a utopia, ao contrário do mito e da ideologia, não desloca e multiplica simplesmente as contradições fixas apresentadas na sociedade, mas as põe em movimento, em primeiro lugar expondo-as e radicalizando-as, sem as resolver, construindo uma figura teórico-prática, que não deve e não pode ser realizada. Isto é: a utopia contém em si uma ruptura crítica formalizada em figura, cuja vocação é expor a contradição social que a motiva. Daí a vocação do não-lugar. A tendência de pensar contra os fatos, isto é, à revelia do que existe.

Salvo engano, o humano é precisamente esse não-lugar, surgido no seio do humanismo, mas de certa forma contra ele, e que pressupõe essa improbabilidade topológica, isto é, o lugar do não-lugar, uma exterioridade ao espaço conhecido, o antifato, a existência do que não existe. Entender se essa exterioridade não-subsumível é ou não possível hoje consistiria uma primeira tarefa. Enquanto isso, trata-se de desenhar seu contorno.


Não se lava com boas intenções aquilo que foi escrito com as tinturas da utopia.

Haquira Osabake

A cena inicial da Utopia de Thomas More (1516) ficcionaliza o momento na biografia de seu autor em que se dá a grande virada em sua carreira política, com o estabelecimento de relações diretas com o rei Henrique VIII da Inglaterra, dando início assim a uma longa, bem-sucedida e, finalmente, trágica trajetória na função de conselheiro do rei. More é enviado em missão diplomática a Flandres, em 1515, para solucionar um litígio político e comercial com Castela. A partir dessa primeira embaixada, More galgará sucessivamente aos cargos de conselheiro e secretário do rei (1517), vice-tesoureiro (1521), porta-voz da Câmara dos Comuns (1523), chegando ao ponto mais alto da burocracia real, o cargo de Grão-Chanceler (1529-1532). A ascensão política vertiginosa, coroando a carreira de humanista internacionalmente reconhecido, termina em desgraça, com a sua execução por decapitação em 6 de julho de 1535, consequência do enfrentamento com o rei, por ocasião de seu segundo casamento com Ana Bolena, e a recusa de More em realizar o juramento que reconhecia a legitimidade dos herdeiros nascidos do casamento do rei, parte do Ato de Sucessão, de 1534.

Ironia retrospectiva, sobretudo quando conhecemos o desenlace de sua carreira política na primeira cena da Utopia, a discussão versa precisamente sobre o tema de engajar-se ou não os serviços do pensamento na função de conselheiro do rei. A cena mistura personagens históricos, como o próprio More, seu amigo flamengo, Peter Giles, e um personagem ficcional, Rafael Hitlodeu, marinheiro-filósofo português, “um ancião, um estrangeiro queimado de sol, longas barbas e uma capa displicentemente lançada sobre um dos ombros”,[1] que teria participado das três últimas expedições de Américo Vespúcio às Américas, e teria na última visitado a ilha de Utopia, descrita na segunda parte da obra.[2] Giles surpreende-se que alguém com o conhecimento e a experiência de Hitlodeu não esteja a serviço de um rei qualquer. O personagem de More ecoa na ficção o trânsito por que passava o autor em sua biografia e defende com Giles a posição do aconselhamento, enquanto o personagem central, Hitlodeu, alter ego do autor, opõe-se enfaticamente a ela, com argumentos solidamente embasados. Na verdade, explica ele, o que diferencia estar a serviço do rei (inservire) de ser seu servo (servire) é muito pouco, apenas uma sílaba.[3] O diálogo entre o personagem More e Hitlodeu parece explicitar uma divisão interna do autor, More. Ele encena a si mesmo defendendo a utilidade social da política, e põe na boca de seu personagem algo que definitivamente sobra e não cabe na cena que sua biografia e sua carreira pública desdobrarão. Ele entende a posição de Hitlodeu de aversão ao poder e às riquezas; no entanto, enquanto um verdadeiro “amigo da sabedoria”, um verdadeiro philosophus, ele deveria dedicar-se ao serviço público, “mesmo à custa de certos sacrifícios pessoais”.[4]Hitlodeu contra-argumenta defendendo a liberdade estoica do ócio por oposição ao serviço dos negócios públicos.

O segundo livro da Utopia, que contém a descrição da ilha epônima, teria sido escrito por More ainda em Flandres, a partir de notas compiladas ao longo dos últimos dez anos. Segundo uma hipótese convincente defendida por André Prévost, o projeto original seria que o livro, compreendendo ainda apenas a atual segunda parte, compusesse um díptico com o Elogio da loucura, o Moriae Encomium (1511), de seu amigo Erasmo, cujo título em grego contém um trocadilho com o nome de More. A descrição da ilha seria uma espécie de Livro da Sabedoria, um Sophiae Encomium, em que a própria Sabedoria falasse, como, no livro de Erasmo, a Stultitiasoliloquiava. Mas, como a sabedoria não se encontra em lugar algum, os amigos teriam-se habituado a chamar o livro familiarmente de “Lugar nenhum”, Nusquam, Nusquam nostra, o “nosso lugar nenhum”, que More transferirá para o nome da ilha e título da obra, em grego latinizado cunhado por ele, Utopia, “não lugar”,[5] A melhor forma de comunidade política ou a nova ilha da Utopia (De optimo reipublicae statu deque nova insula utopia).[6] O primeiro livro foi, tudo indica, enxertado no texto e escrito por More já de volta a Londres, e contém a perspectiva simétrica inversa da utopia, um diagnóstico agudo, distópico, crítico sobre a política na época de More.

Nesse segundo livro distópico, Hitlodeu defende o seu argumento sobre a inconciliabilidade entre filosofia e política em duas cenas espelhadas: uma “real”, a conversa sobre política entre cortesões à mesa do então arcebispo da Cornualha, John Martin, que ele teria testemunhado quando de sua visita a Londres; e uma outra, “imaginária”, dividida em duas, supondo que ele estivesse um dia na posição de conselheiro real. Os assuntos discutidos remetem a tópicos polêmicos na época, que versam sobre justiça e política, e a situações históricas verídicas conhecidas: a aplicação ou não da pena de morte para ladrões e a corrupção generalizada dos conselheiros reais e da política. Em cada cena, Hitlodeu defende posições contrárias aos seus interlocutores, argumenta ou imagina fazê-lo, concluindo sempre sobre a inutilidade do projeto reformista, de intervenção da justiça ou da verdade na política. O primeiro tópico também está subdivido em duas partes, já que os ladrões, punidos com a pena capital, formam dois grupos sociais. Em primeiro lugar, os servos de nobres abandonados por seus amos, que viveram na mais profunda ociosidade e luxo enquanto lhes serviram, e que uma vez abandonados por eles são obrigados a recorrer ao roubo para manter o status anterior de ociosidade. Esses mesmos servos formam frequentemente exércitos permanentes de mercenários, que tomam parte em guerras constantes nas quais se envolvem as monarquias, cujo interesse público é nulo, apenas obedecendo ao princípio da ganância imperial soberana e demonstrando a profunda afinidade, conclui Hitlodeu, entre o soldado e o ladrão. Um segundo grupo seria formado pelos membros de famílias de camponeses e pequenos proprietários rurais, que cultivavam terras comuns desde tempos imemoriais em uma economia de subsistência e que perderam o direito de cultivá-las, com as enclosures, ou “cercamentos”, por meio dos quais os senhores ricos, em oligopólíos, – termo que More cunha nesse passo -, se apropriaram dessas terras comuns para a criação de ovelhas com o objetivo da extração de lã.

O segundo tópico, a corrupção generalizada da política dos conselheiros, é abordado em uma primeira cena “imaginária”, na qual o soberano francês preside uma reunião ultrassecreta com seus principais conselheiros em que se discutem projetos de conquista imperial. Os conselhos estapafúrdios e inescrupulosos dados pelos conselheiros são todos no sentido de aumentar, por meio de estratagemas escusos, o patrimônio territorial do reino. Pergunta heurística de Hitlodeu: que rei aceitaria o conselho de modéstia que lhe daria? “…Ficar quieto em seu próprio país”, pois “a França já é grande demais para que um só homem possa governá-la”?[7] A segunda cena “imaginada” versa sobre o programa ganancioso de aumentar o tesouro real. Os conselhos dos conselheiros cobrem praticamente a gama completa das ilegalidades estatais: indo desde variar o câmbio com o fim de artificialmente diminuir os encargos reais e aumentar o seu patrimônio a declarar guerras falsas como pretexto para aumentar impostos, ou desencavar uma antiga lei esquecida que ninguém mais observa, permitindo ao rei coletar multas abundantes pelo seu não cumprimento, ou ainda manipular juízes com o intuito de fazê-los julgar segundo os interesses do rei ou de desacreditá-los, forçando-os a emitir opiniões contraditórias de forma a consolidar a opinião real, contrária a elas. A esse pequeno inventário de realpolitik tirânico, Hitlodeu se imagina respondendo com o princípio de virtude pública, cuja ausência flagrante essa forma de política denota. O rei existe não para promover a sua própria vantagem, mas para suscitar o bem dos súditos; o objetivo do governo é a “criação de uma vida confortável e segura para todos”[8]. A noção de coisa pública como argumento da legitimação soberana, que integra desde sempre a retórica republicana, é dotada aqui de um radicalismo característico, já que sua mera menção em meio aos conselheiros acomodatícios provocaria no mínimo a dispensa do polêmico conselheiro, ou a sua execução, como o próprio More comprovará amargamente em sua vida. As cenas são acompanhadas de relatos de Hitlodeu sobre uma ilha ou civilização remota, exemplar, por ele visitada em uma de suas viagens, e que apresenta uma solução constitucional específica, que equacionaria os problemas que a situação distópica revela.

Esquematizando, a distopia do primeiro livro está organizada em dois tópicos, divididos por sua vez simetricamente em quatro subpartes, compondo uma equação de dois lados: o lado da pobreza indigente – os ladrões, vagabundos e mendigos; e o lado do poder soberano – o mundo dos corruptos conselheiros do rei. Ambos os lados, por sua vez, contêm a sua parte de pobreza e de excesso, de excesso na pobreza e de falta na abundância. Assim, os servos de nobres vivem na irrelevância do ócio, em meio ao luxo excessivo, que os levará ao roubo, uma vez decaídos, para manter-se no ócio; os pobres que são forçados a abandonar suas terras de cultivo não podem exercer o direito mínimo do trabalho. Essa carência pode por sua vez ser suplementada pelo luxo: “a jogatina imoral a que toda essa gente se entrega – dados, cartas, gamão, boliche, malha”.[9] O veredicto moral aqui contido está essencialmente ligado à condenação das “pessoas que vivem sem fazer nada”,[10] o que remete, como veremos detalhadamente adiante, à ética do trabalho. Do lado da porção soberana da equação, um outro veredicto moral condena a “ganância” e a “ciência da guerra”[11] os conselheiros operam estritamente dentro da economia da lisonja vazia que corteja o soberano, visando o aumento de influência. A política é o lugar da opinião, uma curiosa mistura de “presunção, estupidez e obstinação”.[12] A guerra e o dinheiro constituem formas vãs e abusivas da política: a abundância soberana de poder oculta a falta de virtude na gestão da vida de seus súditos, em que está ausente qualquer consideração sobre essas vidas.

O tópico da pena capital para o roubo é o ponto nevrálgico em que se exprime, da perspectiva do ordenamento soberano, o princípio inabalável, de fundo judaico-cristão, do valor sagrado da vida. Como nos episódios “imaginados”, em que as cenas de corte referem-se a episódios conhecidos na época, também no que toca às execuções o motivo remete a um fato: sabemos que no reino de Henrique VIII em torno de 72 mil (ou 12 mil) ladrões ou vagabundos foram enforcados.[13] A pena de morte aplicada aos delitos de furto implica, explica Hitlodeu, a equiparação espúria de uma coisa à vida humana (“… a perda de algo que se possui não poderá jamais equiparar-se à perda de uma vida humana”). Ou adiante: “será que o roubo de algumas moedas justifica que se acabe com a vida do homem que delas se apoderou?” Se o primeiro mandamento do decálogo diz: “Não matarás”, por que escolhemos não o obedecer? O fundo da pena de morte remete a uma oposição entre a lex humana e os divina mandata. O que fazemos basicamente é escolher dentre os mandamentos de Deus aqueles que nos aprazem, obedecendo apenas a esses. Hitlodeu retoma a oposição entre a lei divina e a lei humana no final do livro primeiro: “… grande parte dos [ensinamentos de Jesus] está mais em desacordo com as convenções do mundo de hoje do que qualquer coisa que eu tenha sugerido”.[14] Mais radical do que a crítica distópica e a afirmação utópica que se seguirá é o Evangelho. O que fazem os cortesões é, em vez de conformar a vida e os costumes à lei de Cristo, acomodar a sua doutrina à vida deles.[15] Inversão portanto entre a fidelidade a uma lei transcendente e exterior e a submissão casuística e hipócrita da lei aos interesses imediatos que essa deverá apenas seletivamente autorizar.

Os personagens envolvidos nessas discussões com Hitlodeu: um advogado, um arcebispo, alguns monarcas e seus ministros conselheiros indicam o que subjaz às polêmicas. O humanista More, advogado católico, mártir da Igreja, eventualmente canonizado e transformado em São Thomas Morus, dá-nos a pista desde o início: o encontro com Hitlodeu ocorre logo após More ter assistido à missa na Catedral de Notre Dame, “o edifício sagrado mais belo e mais frequentado de Antuérpia”.[16] O pano de fundo de Utopia situa-se na junção entre o direito, a soberania e o cristianismo. De um lado, a crítica à guerra soberana contida aqui remete à discussão sobre a paz perpétua, programa de intervenção da filosofia na política cosmopolita, desde a Monarchia de Dante ao Projeto de paz perpétua de Kant, fundamentado sobre a ideia escolástica de “bem comum”, que se diferencia do bem dos Estados e que desembocará na noção jurídica de humanidade.[17] De outro lado, a crítica à pena de morte remete à postulação do caráter sagrado da vida humana, ligada ao cristianismo. A afirmação da “imortalidade da vida humana individual”, lembra-nos Hannah Arendt, segue uma direção diametralmente oposta ao postulado da imortalidade clássica, ligada à vida política e ao corpo político.[18] Veja-se, por exemplo, o papel do suicídio na política romana, por oposição à proibição do suicídio no cristianismo. O que o cristianismo faz é rigorosamente substituir a imortalidade do corpo político, afirmada na “vida ativa” clássica, pela imortalidade da vida biológica individual.[19]

Na mesma linha, a crítica à soberania expressa pelo personagem ficcional Hitlodeu sugere algo como uma arte de governo das almas, e está ligada ao que Michel Foucault denominou “poder pastoral”. O que Hitlodeu dirá de forma peremptória: “…o trabalho [dos conselheiros do rei] consiste em cuidar para que [os súditos do rei] estejam bem, e não em atuar em benefício próprio – assim como compete ao pastor alimentar o seu rebanho, esquecendo-se, se necessário, de prover o seu próprio sustento”.[20] Nas cenas do primeiro livro da Utopia, o filósofo-viajante português encarna o papel do “pastor-magistrado”, o anticonselheiro, aquele que cuida ao mesmo tempo da totalidade de seu rebanho e de cada ovelha em separado, omnes et singulatim, todas e cada uma.[21] O poder pastoral é essencialmente benfazejo; através dele o pastor cuida da salvação de seu rebanho, salvação entendida como subsistência, assegurando-lhe comida, boas pastagens.[22] A salvação das ovelhas conduz o pastor a uma série de dilemas éticos e vitais: perder o rebanho para salvar uma ovelha, sacrificar a si próprio para salvar a uma ovelha ou todo o rebanho? O poder pastoral, explica Foucault, é essencialmente oriental, e especificamente hebraico. Moisés – que Hitlodeu convoca em sua diatribe contra a pena de morte – é o pastor do povo hebreu que sabe como administrar as pastagens disponíveis a suas ovelhas. Na Grécia não havia uma representação pastoral do poder: o rei grego governava um território, uma cidade, e é comparado a um timoneiro ou piloto que dirige um barco, e apenas indiretamen­ te governa homens.[23] Embora surgido na tradição hebraica, o poder pastoral será fixado e se expandirá a dimensões impressionantes com o cristianismo, num processo absolutamente único na história da humanidade, de “uma comunidade religiosa constituída como Igreja, isto é, como instituição que pretende ao governo dos homens em sua vida cotidiana, sob o pretexto de levá-los à vida eterna, não somente de uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade”.[24] O que confere uma ironia aguda à figura terrível utilizada por Hitlodeu quando começa a narrar a mudança do estatuto da criação de ovelhas na Inglaterra da época: o que leva as pessoas ao roubo são as ovelhas, “essas plácidas criaturas que antes exigiam tão pouco alimento, mas que agora, aparentemente, desenvolveram um apetite tão feroz que se transformaram em devoradores de homens”.[25] A frase é citada por Marx em nota de rodapé, no capítulo “A expropriação por meio da qual os camponeses foram divorciados de sua terra”, de “Acumulação primitiva” de O capital, em que trata precisa e extensamente da transformação de terra arável em pastagens para ovelhas pelos “cercamentos” ingleses.[26]

A lei soberana satirizada por More deverá ser, portanto, corrigida pela pauta da lei cristã do governo das almas. A correção pastoral é expressa por uma série de prescrições ou deveres que limitam ou redirigem o poder soberano. O rei deve, antes de mais nada, deixar de ser indolente ou soberbo, “…deve viver de seus próprios recursos, em vez de tornar-se um flagelo para os demais. Deve fazer uma administração íntegra que coíbe o crime… Deve hesitar em pôr em vigor qualquer lei já caída em esquecimento… E não deve, jamais, inventar um crime como justificativa para impor uma multa….”[27] As prescrições estão ligadas ao bem governar, ao governar segundo a virtude e para o bem dos súditos, invertendo ponto por ponto os conselhos dos conselheiros e demarcando a perspectiva de uma ética de governar. São essas prescrições da parte distópica do livro que se transformarão em modelo de uma constituição justa na ilha da Utopia.

O eixo central da obra, da noção de bem comum, do poder pastoral e da sacralização da vida, transposto a arcabouço social na constituição utopiana, é fundamentalmente o humano, humanitas, isto é, a postulação de uma comunidade de natureza e destino de todos os homens. Na ilha de Utopia, cada cidadão é consciente de sua solidariedade para com os outros e se sente integralmente responsável por todos.[28] Foi talvez o humanista Budé, amigo de More, quem primeiro assinalou esse eixo da obra em sua carta de apresentação que compõe um de seus parerga. No centro da Utopia, escreve ele, está a lei da comunhão de bens (lex communionis) que fez com que Ananias fosse condenado à morte no episódio bíblico por havê-la infringido.[29] Assim, a correção ética de base cristã imposta por Hitlodeu à soberania é substanciada por essa essência humana, idêntica em todos os homens, igualmente distribuída em cada indivíduo. Que execra tanto o excedente de poder da soberania quanto a sua carência na pobreza indigente, subtraindo de ambos o que excede: o privilégio que sobra entre os poderosos, dando-lhes a prerrogativa de “não fazer nada”, e o direito ao trabalho e à subsistência que falta entre os pobres. É o que determinará na república utopiana que tudo deve ser dividido igualmente, em uma “comunidade de bens”, em que “todas as coisas são comuns”.[30] O motivo se insere no debate clássico: a referência do comunismo, constantemente assinalada por More, é obviamente o Platão da República e das Leis. E a contraposição a esses argumentos, personificada no diálogo pelas intervenções de More e de Giles, retoma as objeções elencadas por Aristóteles ao comunismo defendido por seu mestre, no segundo livro da Política.

A pauta idêntica de direito e dever do humano repousa, portanto na noção de comum. E que corresponde, nesse cristianismo característico filtrado pela combinação das filosofias éticas tardias, estoicismo e hedonismo, à solidariedade e à amizade. “Os utopianos estimam”, declara Hitlodeu, “que é preciso glorificar sob o nome de comum o fato de que o homem é para o homem salvação e consolo, pois ele é essencialmente ‘humano’ – e não há nenhuma virtude mais própria ao homem que essa – diminuir o mais possível a dor dos outros, fazer desaparecer a tristeza, proporcionar alegria de viver, isto é, o prazer.”[31] Humanitas, a humanidade do homem, a substância humana, consiste, em outras palavras, em fazer o bem, em proporcionar prazer, ou diminuir a dor do outro, de todo e qualquer outro, do outro humano, do comum. O que encaminhará o programa comunista da Utopia:

Para vos falar com toda a sinceridade, meu caro More, onde quer que haja propriedade privada, e o dinheiro seja a medida de todas as coisas, é praticamente impossível a uma república ser justa e próspera – a menos que você pense que pode existir justiça onde

o que há de melhor pertence aos piores, ou supõe que possa existir felicidade onde as coisas boas da vida são divididas entre poucos, onde mesmo esses poucos não podem tirar proveito, e onde o resto é completamente miserável. (…) [E]stou perfeitamente convencido de que nunca chegaremos a uma justa distribuição dos bens, ou a uma satisfatória organização dos mortais, enquanto não se abolir por completo a propriedade privada. Enquanto ela continuar existindo, a grande maioria da raça humana, e o que há nela de melhor, continuará vivendo sob o peso de um esforço insano que só lhe traz misérias e ansiedades. Este fardo, admito, pode ser atenuado, mas sustento que não pode ser inteiramente removido.[32]

Seguem-se várias medidas intervencionistas que sem dúvida atenuariam o mal se fossem aplicadas, embora deixando a desejar. Mas qual o governo, qual o rei, qual o estado existente, aceitaria implementá-las? O que está em jogo aqui é uma impropriedade do nome, justiça. O que se nomeia justiça não é justiça. O que os governos existentes praticam sob o nome de justiça é, na verdade, a própria injustiça e desigualdade. O comunismo, isto é, a abolição da propriedade privada, é o único caminho da justiça política, a única forma de garantir a prosperidade de todos e do todo.

A argumentação de Hitlodeu baseia-se em dois princípios: o da igualdade estrita entre as pessoas, contra o regime do privilégio que vige nas sociedades conhecidas; mais do que isso: o privilégio existente inverte a ordem justa dos méritos. Ou seja, os melhores, a grande maioria da raça humana, são confinados à miséria, enquanto os piores premiamos com o luxo e o ócio. Reconhece-se aqui o pano de fundo da equação entre virtudes e qualidades da tipologia dos regimes políticos sistematizada por Aristóteles, que More reescreve inteiramente, invertendo a regra proporcional entre o regime dos poucos, os olígoi, e o dos muitos, a democracia. Os melhores, os áristoi, na terminologia de Aristóteles, são a maioria, os poloi democráticos, confundindo-se, no argumento de Hitlodeu, com a humanidade como um todo, noção impensável no contexto grego. Nós os premiamos com a pobreza, peníaáporoi; enquanto os poucos, os olígoi, na verdade, os piores, premiamos com a riqueza, ploûton, e propriedades. A base dessa inversão é uma petição de princípio que redistribui o valor social segundo a ordem do “interesse da comunidade”, symphéron koinonías, na expressão de Aristóteles, mas a que More acrescenta uma dimensão não valorizada por Aristóteles, pois associada à escravidão: o trabalho.[33] Os melhores, a maioria da raça humana, são melhores precisamente porque, e unicamente porque, trabalham; esses premiamos com a miséria, enquanto os piores, os que não trabalham, são os que tiram proveito da fatia maior das riquezas. Eis o essencial desequilíbrio das proporções entre virtude e bem: a maioria recebe menos (ou mais miséria), a minoria recebe mais (ou mais riqueza e luxo). Duas operações ocorrem aqui: desaparecem da nova equação justa, modificada, o luxo e o ócio, como qualidade sem qualidade, prêmio espúrio do privilégio dos poucos, piores. E atribui-se aos muitos, na verdade a toda a humanidade, a qualidade essencial que em Aristóteles era o patrimônio dos poucos (áristoi), a virtude, atribuída precisamente àquilo que não tem nenhum valor, pois qualidade sem qualidade do escravo, o trabalho. A solução constitucional que corrigiria essa injustiça institucionalizada que chamamos de política seria o comunismo, ou seja, o regime da estrita igualdade e comunidade dos bens, que equaciona mérito, virtude e interesse da comunidade. Não mais simplesmente o regime democrático da maioria, mas o da totalidade, do comum, a que se atribui a qualidade dos melhores, redistribuindo-se equitativamente os bens. Ao final do segundo livro, após descrever o regime da ilha da Utopia, Hitlodeu reitera enfaticamente os mesmos pontos:

Gostaria que alguém aqui ousasse comparar essa equidade (existente na ilha da Utopia) à justiça das outras nações: que eu morra se se encontra nelas um traço que seja de justiça e equidade! Que justiça é esta que a um aristocrata qualquer, a um ourives, a um usurário, em suma, a um desses, indivíduos que não fazem absolutamente nada – ou se fazem qualquer coisa é sem grande utilidade para a comunidade – reserva uma existência suntuosa e brilhante, como prêmio de uma vida ociosa e de negócios supérfluos, enquanto que a mão de obra (mediastimus, o “escravo”), o cocheiro, o artesão, o agricultor – cujo trabalho é tão pesado e árduo que animais de carga mal poderiam suportá-lo, tão necessárío que nenhuma sociedade poderia durar um ano sem ele – recebem alimentação tão parca e levam uma existência tão miserável![34]

Em primeiro lugar. a justiça equivale-se à igualdade; a injustiça, à desigualdade. As duas ordens correspondem a classes perfeitamente bem delineadas ligadas ao trabalho ou à falta dele, e à utilidade para a comunidade: os que não fazem nada, os inúteis e supérfluos à sociedade e os que trabalham, frequentemente pesadamente. Os nomes do privilégio são em suma as classes abastadas do antigo regime: o aristocrata, ou seja, o privilegiado de nascimento; o ourives e o usurário, ou seja, aqueles que auferem ganhos de capital. A que equivalem, inversamente, os trabalhadores: a mão de obra, o trabalhador; o cocheiro, o artesão, o agricultor. A injustiça que denominamos justiça consiste basicamente em premiar o ócio com o luxo e o trabalho com a miséria. Dessa forma, a justiça verdadeira, diante da qual todo o resto é puro erro de denominação, está condicionada a uma redistribuição de bens visando premiar o trabalho, o comum, segundo o princípio da igualdade.

A Utopia estabelece o programa politico da “comunidade dos iguais” para os modernos. Ela o faz atualizando a arquipolítíca platônica, para utilizar uma expressão de Jacques Rancière,[35] ou seja, a filosofia política tout court que Platão funda na República, como efetuação do princípio ou comando (arkhé) comunitário que dispõe organicamente as partes do todo segundo uma hierarquia estrita de naturezas. More retoma o modelo da Politeia platônica, mas constrói a “comunidade política” da Utopia a partir do princípio da igualdade estrita no interior de uma natureza única, humana, qualificada igualitariamente pelo trabalho. A “comunidade dos iguais” dos modernos está ligada à noção impensável no mundo grego de humano, entendido, como “humanidade”, “raça humana”: homo, humus terrestre, a que se agregará adiante a ideia de universalidade. Ao homo terrestre, comum, qualquer, atribui-se a qualidade de ser igual, em todo e qualquer lugar, no interior de toda sociedade humana, noção que terá a fortuna que conhecemos no estabelecimento da universalidade laboriosa do humano, do animal laborans, do animal trabalhador, para usar a expressão de Hannah Arendt.[36] Além disso, a Utopia é uma realidade, não uma simples ideia, como a cidade de Platão; é verdade que a sua “realidade” é a da figura ou imagem vazias, na veia satírica de Luciano de Samosata, que More e Erasmo traduziram a quatro mãos para o latim.[37] Marx escreveu que os deuses gregos morreram duas vezes: uma vez tragicamente, no Prometeu acorrentado de Ésquilo, e outra comicamente, nos diálogos de Luciano.[38] É possível que a fórmula da comunidade dos iguais tenha sido inventada para a modernidade ateia pelo cristão More, no estilo de Luciano.

A “melhor forma de comunidade política” situa-se assim na terra incógnita entre o velho e o novo mundo, numa espécie de buraco no mapa quinhentista do mundo que as descobertas acabavam de ampliar. Observe-se o funcionamento da sátira: Giles explica “em sério” que, no momento exato em que Rafael Hitlodeu fornecia aos convivas a localização precisa da ilha, um ou na verdade dois incidentes desafortunados impediram tanto a ele, Giles, quanto a More de ouvir onde ela se encontrava. Um serviçal de More falou-lhe ao ouvido e um conviva presente tossiu precisamente quando o filósofo-marinheiro detalhava as coordenadas do local. Mas seria possível obter sem grandes dificuldades a latitude da ilha, perguntando-se ao próprio Hitlodeu, que vivia, segundo dizem, perfeitamente saudável, em sua nativa Portugal. Ou, então, é possível que ele tenha voltado a viajar, para sempre insatisfeito com a vida na Europa, e decidido retornar à Utopia. Nesse caso teríamos perdido definitivamente o caminho que leva à ilha, e seria preciso palmilhar de novo os passos do descobridor satírico. É, portanto, nesse vazio que uma tosse ou a voz de um serviçal encobrem, nessa latitude enigmática, sem profundidade nem extensão, que a ilha evanescente se situa. Hitlodeu teria sido deixado por Américo Vespúcio em sua terceira expedição nas imediações do que podemos deduzir ser Cabo Frio ou a ilha do Governador no atual litoral do estado do Rio de Janeiro. More colhe essa informação no volume apócrifo, As quatro navegações, de Américo Vespúcio, no ponto em que o autor diz ter chegado a um porto onde foi construída uma feitoria – o primeiro entreposto erguido por portugueses para a exploração do pau-brasil – e onde foram deixados “24 cristãos que estavam conosco”.[39] Ali terminam a informação histórica e seus lugares recenseados e começa o reino do alhures, do “não lugar”.

A ilha é um duplo fantasmático, negativo, preciso da ilha inglesa, e de outros locais ocultamente referidos por More, da mesma forma que as cenas evocadas no primeiro livro por Hitlodeu remetem a fatos conhecidos da época. O que explica as referências específicas à topografia inglesa, que as notas de rodapé eruditas das edições modernas do livro recompõem: a Utopia tem 54 cidades, como os 53 condados, acrescidos de Londres, da Inglaterra da época; o rio Anidro utopiano lembra o Tâmisa de Londres, como frisa uma das notas marginais do original; as dimensões da ilha são semelhantes às da Inglaterra, etc. As toponímias ou antroponímias utilizadas na Utopia, termos com valor humorístico cunhados do grego por More, remetem frequentemente a um esquema negativo, seguindo o padrão do título. Assim: o rio Anidro, de an-hýdros “sem água”; a ilha dos acoreus, visitada por Hitlodeu no primeiro livro, de á-khoros, “sem lugar”, uma espécie de prévia da Utopia; o povo dos alaopolitas, contra os quais guerreiam os utopianos, de a-laos-polite, “habitante da cidade inabitada”; os governadores são ademos, de á-demos, “sem povo”. A estratégia satírica transparece em absolutamente todos os nomes, sempre brincadeiras de More: a começar pelo do protagonista, Hitlodeu, de hythlos-dáïos, “perito em baboseiras”; a capital, Amaurot, de amauroton, “obscurecido”; o povo dos polileritas, de polýs-lêros, “muito lero-lero”, etc.[40] A Utopia é um espelho satírico e crítico, uma figura a partir da qual se pode mirar a realidade política distópica da época de More, e dos séculos futuros, procedimento que a ficção científica, herdeira da Utopia, desdobrará em método ficcional.[41] Ao mesmo tempo, é a figura profética ou messiânica, como veremos mais adiante, “um esquema da imaginação social que ainda não encontrou o seu conceito”, para usar a terminologia kantiana,[42] um modelo que a política vai procurar efetuar nos anos porvir, e que permanecerá o modelo dos modelos de toda e qualquer prática igualitária futura.

Resumindo o que acabo de dizer, na Utopia discernem-se pelo menos dois gestos cuja fortuna é evidenciada pela história posterior e cujo programa o texto de More estabelece. A partir de uma injustiça ou dano político-social identificável, supõe-se o esgotamento do projeto de intervenção reformista no interior do Estado, a única solução viável para curar a patologia do corpo social, segundo a metáfora médica clássica, devendo então a reestruturação total da sociedade, a ser refundada de cima a baixo, em uma figura, a partir do princípio igualitário da razão. O gesto inscreve uma crise no reformismo, um confronto agudo com os limites do projeto humanista, inscrito pela crítica ao aconselhamento, associada insistentemente a uma referência clássica: a hesitação socrática, evocada a cada passo por Hitlodeu, quanto a transformar ou não o modelo da kallípolis, a “bela cidade”, em desenho de cidade real, em que pesem as duas tentativas fracassadas de Platão de colaboração com os tiranos Dionísio, o Velho e o Jovem.

Um segundo gesto consiste ainda na efetuação do paradigma ideal platônico. Ao contrário do que afirma Hannah Arendt, quando diz que “nenhuma dessas utopias [modeladas na República de Platão] veio a ter um papel notável na história”, a modernidade inteira foi pontuada por tentativas, à esquerda e à direita, de aplicação do molde devidamente atualiza do.[43] No socialismo do século XIXpor exemplo, inspirado em grande parte na figura utópica, a crise dos canais tradicionais da prática política, que em More suscita a realização satírica, imaginária, ou messiânica da figura, vai se tornar programa revolucionário. Mas o que aqui é sátira e imagem se transforma, com a Revolução Francesa, em programa político efetivo. É sem dúvida Hegel quem descreve a fórmula do trânsito histórico, em uma passagem citada por Engels no seu Socialismo: utópico e cientifico: “com a Revolução Francesa o mundo foi colocado de ponta-cabeça; a cabeça, o céu ideal da razão, foi literalmente posta ao chão, transformada em programa de governo”.[44] É precisamente no mesmo sentido que Deleuze e Guattari afirmam que a utopia nomeia a “conjugação da filosofia ou do conceito com o meio presente”.[45] Não é de fato falso, escrevem eles, afirmar que a revolução “é culpa dos filósofos”. A revolução é precisamente esse ponto de junção da filosofia com o mundo. Seria ainda preciso, continuam, “distinguir as utopias autoritárias ou transcendentes das utopias libertárias, revolucionárias, imanentes”.[46]

A referência à Politeia de Platão é um lugar comum nos Relógios e Espelhos de reis dos séculos XIV e XV.[47] Em cada um desses textos o pensamento é convocado a auxiliar o soberano na gestão do Estado, e funciona como uma regra virtuosa ou “ajuste” de que a soberania se serve para gerir as dificuldades e particularidades do governo, no que consiste uma arte ou técnica do governo. A solução que More propõe é, no entanto, nova em mais de uma maneira. A novidade está explicitada no sexteto que integra os parerga da obra, escrito em primeira pessoa pela própria Utopia:

“Não lugar” (Utopia)foi uma vez meu nome, fico tão

distante,

Mas ao Estado de Platão posso me igualar

ou superar (pois ao que ele desenhou

Em palavras vazias, infundi vida

Em homens e riqueza, assim como ótimas leis):

“Bom lugar” [Eutopia], mereço ser chamada.[48]

A prosopopeia da Utopia se refere aqui a uma passagem conhecida da Politeia de Platão. Sócrates explica que: “a cidade (…) fundada só em palavras (…) não se encontra em parte alguma da terra”. Mas basta que “haja um modelo [paradeigma] no céu” para “contemplá-la” e fundá-la para si mesmo. Não “importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas que ele [o modelo] pautará o seu comportamento”.[49] A contemplação do paradigma celeste e a inexistência da cidade na terra não são portanto uma falha, mas constituem o próprio interesse da cidade fundada no discurso. Ela importa precisamente pela sua inexistência, pautando as normas de toda e qualquer cidade. A Politeia platônica é assim literalmente utópica; enquanto ideia ou essência, ela não pretende à existência, mas desde a sua realidade ideal pauta ou normaliza a existência política. A diferença entre o lugar teórico da kallípolis de Platão e o não lugar ficcional da Utopia é clara. Aristóteles elenca as opções a seu dispor na discussão sobre a política: ou refletir sobre o estado ideal, como Platão, ou refletir sobre o melhor estado a partir das formas de governo existentes, procedimento que acaba escolhendo. A essas duas soluções More acrescenta uma terceira: a de construir em uma ficção crítica e messiânica a figura realizada. Daí a duplicidade do título: A melhor forma de comunidade política ou a nova ilha da Utopia, em que a conjunção ou dá conta da duplicidade da coisa: ao mesmo tempo uma discussão sobre a melhor comunidade política nos moldes de Aristóteles, e a sua realização na ilha da Utopia, ao mesmo tempo essência e existência.[50]

O comunismo platônico

Vejamos em primeiro lugar as modificações que More introduz no modelo platônico que empresta e, segundo a própria Utopia, supera.

Politeia platônica é antes de tudo um diálogo sobre a justiça, dikaiosýnedíke, entendida como princípio/comando (arkhé) unitário, distributivo e orgânico da política. Ela funda a arquipolítica, retomando a expressão de Rancière, enquanto filosofia política, como modelo de “ajuste” das partes tendo em vista o todo, o comum ou a comunidade (koinonía), não a particularidade de cada uma, fornecendo o modelo histórico da colaboração entre o pensamento e a política, conforme explicitado no aconselhamento humanista, como vimos anteriormente. A filosofia política é a efetuação acomodatícia do princípio unitário no interior do Estado, e será o modelo de toda e qualquer “técnica de governar”, ou “governança”, como se diz hoje em dia, entendida como gestão dos múltiplos interesses no jogo do poder. A díke, “justiça”, nesse ponto, nos explica Heidegger, ainda não tem o sentido moral que terá adiante;[51] é um operador ontológico, e significa tão-somente o ajuste ao 1, a solda do liame comunitário.[52] O “estado” platônico repousa sobre a “configuração fundamental da essência humana comum (…) a partir de si mesma”,[53] por oposição ao que lhe é exterior, ao que não está compreendido no interior de sua essência, ao múltiplo. Explica-se dessa forma o caráter autárquico da configuração política, em que a diferenciação para com o exterior ou o estrangeiro é o que define a integridade essencial do comum. Trata-se, como sabemos, de um Estado militar, no qual os guardiões, isto é, aqueles que justamente guardam a integridade da fronteira que separa a cidade dos seus entornos, formam a casta superior de dirigentes do Estado. Com uma função dupla, de gerir o interior da cidade, como princípio de regulagem da comunidade nos períodos de paz, e administrar a guerra com as outras cidades, nos tempos de guerra. Razão pela qual Sócrates despenderá tanto tempo em sua educação.

O que está em jogo na justiça é precisamente o próprio sentido da vida política e do humano, segundo Platão: “o curso de toda a vida que devemos seguir, para cada um de nós viver a mais útil das existências.”[54] A discussão parte da fórmula do sofista Trasímaco, “justiça é a conveniência do superior”.[55] Para Trasímaco, os poderosos ou os mais fortes fazem o que lhes traz vantagem, e é isso a justiça. Assim, cada governo age segundo a sua conveniência, promulga leis e pune aqueles que as transgridem, pois são superiores. A diferença entre um tirano justo e um injusto é apenas que o tirano justo, além de se apropriar dos bens dos cidadãos, ainda faz deles escravos, que a partir desse momento, em vez de injuriá-lo, passam a enaltecê-lo. Percebemos de imediato uma das fontes da crítica moral de More à soberba dos soberanos que governam em seu próprio interesse. A contra-argumentação de Sócrates parte de uma consideração sobre a especificidade de cada artesanato: “cada uma das artes (tékhne) se diferencia das outras pelo fato de ter uma potência específica”.[56] “A medicina produz saúde, a arte do lucro, o salário, e a do arquiteto, uma casa, ao passo que a arte dos lucros, que a acompanha, dá o salário.” A estratégia de Sócrates visa precisamente circunscrever o motivo da vantagem financeira, o lucro ou salário, crucial à argumentação do sofista, que discute e ensina por dinheiro, e apenas por ele, e convertê-la, ela também, em uma arte específica, ou subproduto inessencial das outras artes, não no único valor a ser auferido, como quer Trasímaco. A argumentação de Sócrates levará à noção de função, virtude ou propriedade: a função de cada coisa é aquilo que ela executa, cada coisa tem uma virtude ou propriedade que lhe é própria,[57] por oposição à impropriedade dos bens e da riqueza. Na primeira fundação da cidade, as funções artesanais são apenas três ou quatro: a obtenção de alimentos, habitação e vestuário. Para tanto, há três técnicos: o lavrador, o pedreiro e o tecelão. A que se deve acrescentar um quarto, o sapateiro.[58] Evidentemente, continua Sócrates, é mais eficaz do ponto de vista da comunidade que cada técnico só exerça a sua técnica, e compartilhe os resultados com os outros, tanto mais que sabemos que não nascemos iguais uns aos outros, mas que há diferenças de natureza.[59] Cada artesão só exerce na perfeição uma única arte, a sua arte, aquela para a qual nasceu, e cuja natureza ele traz em si. O que permite a Sócrates chegar afinal ao princípio a partir do qual modela a cidade como um todo: cada artesão só deve executar a sua arte e apenas ela. O lavrador lavra a terra, o guerreiro, guerreia, o juiz, julga. “Cada um executa urna só tarefa.”[60] Essa a justiça: “executar a tarefa própria, e não se meter nas dos outros”; ou: “esse princípio pode muito bem ser (…) a justiça: o desempenhar cada um a sua tarefa”.[61]

Nesse ponto avaliamos a distância que separa a definição de justiça de Trasímaco da de Sócrates: a regra da conveniência a si mesmo do superior é substituída pela atribuição justa da função à tarefa segundo a propriedade ou virtude de cada um. A unicidade das funções possibilita a articulação orgânica das múltiplas técnicas em torno do princípio comunitário, o que cada técnica tem em comum, e o que ela proporciona a todos. A regra desigual da conveniência e subordinação aos poderosos é substituída pela regra comunitária da igualdade horizontal de funções. Mas essa horizontalidade é ordenada segundo um eixo vertical, que distribui as funções a partir de uma estrita hierarquia cosmológica e psicológica de naturezas. Sócrates explica que será necessário solicitar o mito de origem fenícia da autoctonia dos cidadãos, urna “nobre mentira”, para justificar a desigualdade das funções. Segundo o mito dos “nascidos da terra” (auto-khthôn), todos são irmãos na cidade,[62] por isso devem cuidar do lugar como uma mãe ama e defende o filho se alguém o ataca, da mesma forma que a Mãe Terra moldou-os e às suas armas. A evidente intenção “nacionalista” do mito que estabelece uma homogeneidade originária de filiação como critério distintivo para com os estrangeiros, com função xenófoba, visa enaltecer a relação militar de defesa e proteção da cidade, de que todos os cidadãos, sem exceção, devem cuidar. Nesse sentido, a referência às armas dos Spartói, os “homens semeados”, não nos deixa enganar. Mas essa igualdade familiar de origem serve na verdade para estabelecer a hierarquia das naturezas. É essa a função do mito das três raças: aos aptos a governar foi-lhes misturado ouro na alma; aos auxiliares, prata, e finalmente ferro e bronze, na alma dos lavradores e artesões.[63]Essas três naturezas de nascimento se articulam por sua vez com a tripartição da alma, cada uma delas identificada a uma parte do corpo e a uma virtude. Nossas almas, explica Sócrates, têm três partes: a alma desejante, atada ao corpo, às pulsões e às necessidades, localizada no ventre, e à virtude da temperança; a alma razoável, praticamente desligada do corpo, que contempla as essências, localizada na cabeça e à virtude da sabedoria; e a alma intermediária, a alma corajosa, associada à vontade, localizada no coração, e à virtude da coragem.[64]

Portanto, a hierarquia dos nascimentos corresponde a uma hierarquia interna à alma de cada um. Cada pessoa dispõe em si, por analogia, da estrutura da cidade como um todo, como um organismo em que cada função é concatenada com as outras. As naturezas de alma são contidas em cada um, e correspondem às três classes que compõem a cidade: os artesões, os guerreiros e os guardiões. Entendemos melhor agora o princípio distributivo das funções e o sentido da justiça socrática: a relação harmoniosa entre funções é a justiça, enquanto a sedição das partes é a injustiça. Eis a justiça: “O princípio de que o que nasceu para ser sapateiro faria bem em exercer esse mister, com exclusão de qualquer outro, e o que nasceu para ser carpinteiro, em ter essa profissão, e assim por diante.”[65]

Os guardiões, aqueles que têm ouro na alma, são ligados organicamente à cabeça e têm a qualidade da sabedoria, encarnam o princípio do liame comunitário. A eles não é permitido possuir bens próprios, qualquer pessoa pode entrar em suas habitações; o que lhes é próprio deve se limitar aos bens de primeira necessidade, e a alimentação será fornecida pelos outros cidadãos de forma que “não lhes sobre ou lhes falte para um ano”.[66] As suas refeições devem ser realizadas em comum, e devem viver estritamente em comunidade. Adimanto formula então a pergunta que não quer calar: a cidade parece pertencer aos guardiões, no entanto, eles de fato não possuem nada como os outros cidadãos, a quem é dado o direito de posse, de habitações, ouro, prata, de fazer sacrifícios. Seriam eles felizes?[67] Sócrates explica que o objetivo da fundação da cidade não é que uma classe ou raça particular seja feliz, mas a felicidade da totalidade dos cidadãos e da cidade inteira. Cada classe participa da felicidade conforme a sua natureza. É este o sentido da justiça que produz uma cidade feliz: aquela em que não se visa à felicidade da parte ou de um pequeno número de cidadãos, mas do todo. Uma adulteração dessa distribuição equitativa das diferenças desiguais, por exemplo, se se outorgassem bens aos guardiões, produziria um desajuste generalizado da cidade, de forma que “nem o lavrador será lavrador, nem o oleiro, oleiro, nem ninguém ocupará o seu lugar”.[68]Assim, a díke como distribuição intrínseca das diferentes naturezas em funções organicamente subordinadas ao todo da comunidade, como atribuição de lugares no tabuleiro da cidade, está apensa à classe dos guardiões, aqueles que justamente por dispor de ouro na alma não devem manipular o ouro com as mãos. O comunismo que vigora entre eles, a falta de bens próprios, a vida estritamente em comum, sustenta o comum da comunidade, a atribuição de cada função ao seu lugar. É preciso em suma que eles ocupem o lugar do comum, para que todos os outros ocupem os seus lugares particulares, ou, é a sua falta de propriedade material que os torna guardiões da propriedade de cada um, da ordem das funções e da natureza de todos.

A formação dos guardiões é objeto de atenções especiais: diferentemente dos artesões, que devem se limitar a suas próprias tarefas, em um funcionalismo que não admite falta ou sobra de tempo, o guardião não se ocupa da produção necessária à subsistência da comunidade; ele é de certa forma supérfluo, encarnando o princípio distributivo em si. Sua especificidade começa pelo fato de ele, ao contrário dos artesões, conter uma duplicidade de atitudes: deve ser agressivo para com os inimigos da cidade e acolhedor para com os amigos, os cidadãos. Daí o duplo programa educacional: a ginástica para moldar-lhe agressivamente o corpo e a música para adestrar-lhe a alma de modo a reconhecer os seus. Uma ciência, sobretudo, lhe deve ser ensinada: a mais modesta das ciências, a “ciência comum da qual se utilizam todas as artes, todos os modos de pensar, (…) a ciência dos números e do cálculo”, a matemática.[69] A ciência do comum, a ciência dos números, em que deve ser formado o guardião, a matemática, é precisamente a ciência da tática militar, que distribui as posições no tabuleiro da guerra,[70] a que Sócrates associa à própria condição humana: é preciso aprender matemática “se quiser ser um homem (ánthropos)”.[71]
Resumindo, a Politeia inventa a figura autárquica da política, sem sobra e sem vazio, sem injustiça ou dano, como efetuação da lei (nómos), princípio/comando (arkhé) comunitário, enquanto distribuição ajustada da multiplicidade de naturezas, funções e lugares sociais, subordinados ao próprio princípio distributivo, a regra da propriedade, díke. É nos guardiões que reside por assim dizer o comum da comunidade, o que explica a exigência comunista, como vazio da função, e regra distributiva das funções, em que se explicita em Platão uma certa condição humana.

More radicaliza o princípio comunista platônico ao erradicar a distinção das naturezas ou raças, hierarquicamente organizadas. A constituição da ilha se funda sobre a natureza única, sem distinções internas, do humano, e sobre a sua única modulação possível, o trabalho, compreendido como virtude ou qualidade humana, ao mesmo tempo direito e dever, alegria e ocupação. A Utopia expande a comunidade de bens que na República era o encargo dos “especialistas” do comum, os guardiões, e a dimensiona à comunidade como um todo. A crítica da propriedade privada como princípio da desigualdade, do privilégio e do ócio leva More a pensar o comunismo como a substância mesma da comunidade, em que se espacializa a regra igualitária da razão. A Utopia substitui a justiça (díke) como princípio/comando (arkhé) distributivo pela igualdade estrita dos cidadãos. Não mais uma igualdade seletiva, geométrica, subordinada ao próprio princípio de subordinação comunitária, mas uma igualdade estrita, aritmética, que estipula a divisão das partes em partes idênticas do todo. Assim, na ilha não existe bem próprio: “o solo é visto como terra a ser cultivada, e não como propriedade”.[72] É ponto pacífico entre os intérpretes de More que a Utopia atualiza o comunismo platônico acrescentando o elemento do trabalho monacal. Politeia + monarquismo = Utopia. Não mais limitado ao artesão e ao escravo, como na Politeia, o trabalho, entendido como agricultura, é estendido a todos (um “trabalho do qual nenhuma pessoa está isenta, seja homem ou mulher (…) um dever ao qual ninguém foge”).[73] O campo é ocupado segundo um sistema de revezamento rigorosamente estabelecido: a cada ano vinte pessoas de cada casa – composta por no mínimo quarenta adultos e dois escravos (sim, há escravos em Utopia) – voltam para a cidade após dois anos de serviços no campo e são imediatamente substituídas por outras vinte que vêm da cidade, e assim por diante, em um perfeito moto-contínuo.[74] Se o princípio que pautava a relação entre função e técnica na República era a regra unitária, na Utopia ele é triplo: cada pessoa exerce além da agricultura um outro ofício, em número de quatro, como na primeira fundação da República, e eventualmente uma função política nos cargos eleitos e rotativos. Os ofícios são ligeiramente distintos: tecelões, pedreiros, ferreiros e carpinteiros. Não há alfaiates na Utopia – todos vestem a mesma roupa, uma túnica que serve tanto para o verão quanto para o inverno. A duplicidade das funções de trabalho reveste também as funções políticas: todos os cargos (com exceção do príncipe, que é vitalício) são eleitos anualmente, todos os cidadãos exercem em momentos distintos de suas vidas o labor e cargos administrativos. O duplo revezamento, do trabalho na agricultura e na função administrativa por eleição, explicita o caráter republicano da comunidade, onde não existem mais naturezas estruturando a substância pública do estado. A coisa pública é a coisa comum a todos – trabalho e política -, tal qual ordenada por humanitas, o humano. O sistema político é uma combinação de monarquia, parlamentarismo representativo e democracia, cujo esteio se situa nos conselhos concêntricos, dispostos hierarquicamente em pirâmide, em cargos eleitos e rotativos.[75] Com um sistema rigidamente igualitário e uma distribuição rigorosa das tarefas, trabalha-se apenas seis horas por dia: “essas horas de trabalho são mais que suficientes para produzir uma grande abundância de tudo o que se faz necessário para uma vida confortável”.[76] Assim, a ilha propicia a todos os seus cidadãos literalmente as três grandes formas de experiência humana, segundo a tipologia de Hannah Arendt: a vida prática (práxis): os cargos administrativos e os conselhos eleitos; a póiesis, artesanal: os ofícios; e o labor: o trabalho de todos na agricultura; vita activahomo faber e animal laborans, ao mesmo tempo e praticados em turnos.

More inventa para o utopismo por vir a relação intrínseca entre justiça e redistribuição das riquezas, segundo o parâmetro de uma substância única, humana. Em 1955, em Eros e civilização, Marcuse, por exemplo, escreve que “o empobrecimento ainda persistente de vastas áreas do mundo não é devido principalmente à pobreza de recursos humanos e naturais, mas à maneira com que eles são distribuídos e utilizados. Essa diferença pode parecer irrelevante à política e aos políticos, mas é de decisiva importância para a teoria da civilização que deriva a necessidade de repressão da desproporção ‘natural’ e perpétua entre desejos humanos e o ambiente no qual ele deve ser satisfeito”.[77] Marx, grande herdeiro da discussão fundada por More, sobretudo quando jovem, quando intitulava a sua filosofia um “humanismo real”,[78] parte da representação de uma humanidade dividida entre duas classes: a dos “proprietários e dos trabalhadores sem propriedade”.[79] A tese dos seus Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 está fundamentada sobre a mesma perspectiva de More, de uma essência humana da qual o humano seria separado pelo trabalho alienado e pela propriedade privada. A relação intrínseca entre natureza, entendida como propriedade comum, e o humano fundamenta o programa comunista como desalienação da essência humana do homem.[80] No final das contas, Marx e Engels propõem algo bastante semelhante a More:

Chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas não apenas para chegar à autoatividade, mas simplesmente para assegurar a sua existência. (…) A apropriação dessas forças não é em si mesma nada mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais, correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, precisamente por isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidade nos próprios indivíduos (…) Somente nessa fase a autoatividade coincide com a vida material, o que corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos até se tornarem indivíduos totais (…)[81]

A classe “inteiramente excluída de toda autoatividade”, expropriada de toda e qualquer propriedade, a classe trabalhadora, deve apropriar-se da totalidade das forças produtivas, para chegar afinal à autoatividade. A divisão estrita, simétrica e universal da humanidade em dois grupos: os proprietários que não trabalham, ou gerem o trabalho dos trabalhadores, e os trabalhadores sem propriedades, é resultado de um dano, mal ou injustiça (Unrecht) que não é particular; é um dano universal, um “mal em geral” (das Unrecht schlechthin, uma “injustiça do mal”), que consiste tão simplesmente na expropriação da humanidade desses humanos (Menschlich). O proletariado enquanto classe alienada de sua essência humana, cujos “sofrimentos são universais”, que sofre um dano que tem as proporções da humanidade, é, portanto, idêntico à mesma humanidade que lhe falta – uma humanidade sem humanidade, por assim dizer – e que precisa lhe ser restituída, de maneira simétrica ao dano universal que sofreu.[82] E é no comunismo que se dá a reparação, a apropriação total das forças produtivas e da propriedade de que havia sido totalmente excluído, enquanto classe que não é classe. É aí que se dá a coincidência da vida material com a autoatividade de todos, cujo resultado seria a identidade finalmente restabelecida entre essência humana e humanidade.

Assim More inventa para os modernos a comunidade de bens a partir da realização de uma essência humana comum, objeto de um dano fundamental, e de uma restituição de humanidade a uma humanidade sem humanidade. Porém o faz como figura vazia, realizada precisamente como figura vazia: a ilha de Utopia. Resta saber se a sua aplicação engendraria uma humanidade desejável, já que ela pressupõe a identidade de todos para com todos, e o humano diferente de si próprio. É preciso acompanhar no texto o momento sutil em que o princípio comunitário se transforma em controle social, já indicado desde o início pela ênfase na mesmice aritmética e mecânica da vida comum. Assim, as cidades são idênticas em Utopia; os cidadãos se vestem com a mesma roupa sem distinção de sexo e só dispõem de uma roupa; os utopianos sentem-se em casa em qualquer parte da ilha; o ócio é terminantemente proibido: todos os cidadãos são policiados de forma a não desperdiçarem um só instante do dia não fazendo nada.[83] “A função principal dos sifograntes – na verdade praticamente a única – é cuidar para que ninguém fique entregue ao ócio, e para que todos exerçam com empenho suas respectivas profissões. (…) Não existe desculpa alguma para a ociosidade, assim como não existem tavernas, cervejarias, bordéis, oportunidades para a sedução ou lugares propícios aos encontros secretos. Todos estão sob o olhar vigilante dos demais, o que praticamente força o indivíduo a realizar bem o seu trabalho e a não desperdiçar o tempo livre de que dispõe.”[84] Vista por dentro, portanto, a utopia é essencialmente distópica. O que ocorreu foi tão simplesmente que a essência humana convertida em identidade, ou Um, deve ser em seguida aplicada ou transformada em governo do Um. Ou, em termos platônicos: a partir da dedução da arkhé, princípio ou definição do humano, chega-se naturalmente à arkhé, governo ou comando humano. A substância única governa, deve ser obedecida e não admite a liberdade insubordinada dos governados. O governo do princípio, a arquipolítica, é precisamente este: o da identidade a si próprio. E o humano igual a si mesmo é o humano trabalhador. Uma vez afastado o inimigo maior, que é o ócio, sobrenome do privilégio, deve-se trabalhar todo o tempo e só trabalhar. Salvo engano, retornamos mais uma vez à regra socrática da díke: “a justiça: o desempenhar cada um a sua tarefa”. Mas, em vez das atribuições às tarefas unitárias repartidas segundo as naturezas orgânica e hierarquicamente distribuídas, como na República, temos uma série de tarefas, topicamente situadas, e realizadas por cada um, mas todas as tarefas, como qualificação da substância humana, e é preciso realizá-las e sempre nos ocuparmos com elas. Esse o preço da felicidade. A Utopia, como a República, não admite tempo vazio ou dano. A essência humana comum determina uma regra única comum, idêntica para todos. Sem vazio, sem dano, sem liberdade, chegamos quando muito a um governo inumano do humano, um esquema redutor, caricatural e monolítico da humanidade. Equívoco fundamental: transformar em regra comunitária aplicada o esquema transcendental kantiano, retirando-o do não lugar da imaginação, e fazendo dele modelo da política. E, no entanto, More colocara na boca de seu personagem, Hitlodeu, o “perito em baboseiras”, uma defesa enfática do ócio e da liberdade, como se a nos mostrar o reverso cômico, necessário da Utopia, a figura satírica, embora o próprio More optasse em sua vida pelo contrário, mas, isso, com o resultado que conhecemos. Trágica busca: no processo de determinar a essência do humano perdida pelo dano do privilégio e da expropriação do humano, perdemos a própria essência do humano, que é essencialmente vazia e livre, propriedade sem propriedade, privilégio sem privilégio, essencialmente inessencial. Dano maior o de pretender abrir mão do dano e da liberdade, e fixar o humano ao seu único lugar, à sua única propriedade, prescrever ao humano o que ele deve sempre ser. Esquecendo-se dessa forma que o humano é sempre um não lugar, essa a sua propriedade sem propriedade, isso o que lhe é próprio, esse o seu lugar.

Em todo caso, vê-se bem o contorno do problema: a insolúvel equação do humano, como escreve Drummond:

E cada instante é diferente, e cada

Homem é diferente, e somos todos iguais.[85]

Notas

  1. Consultei três traduções da Utopia de Thomas More, duas delas bilíngues. A edição brasileira (Thomas More. Utopia. Trad. Jefferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1999) apresenta inúmeras inconsistências. Por isso sempre que necessário adaptei-a usando como base as traduções de Robert M. Adams em Thomas More. Utopia. Latin Texts and English Translation. George M. Logan, Robert M. Adams e Clarence H. Miller (orgs.). New York: Cambridge University Press, 1995; e L’Utopie de Thomas More. André Prévost (apresentação do texto original fac-similar, aparato crítico, tradução e notas). Paris: Nouvelle Éditions Mame, 1978. A paginação adiante, após Utopia, refere-se à edição brasileira. Referências específicas às outras duas edições serão indicadas respectivamente por Prévost, e por Logan, seguidas da paginação. Essa citação encontra-se à página 15 da edição brasileira. 
  2. Sabemos hoje que Vespúcio fez apenas três viagens às Américas, mas More, como toda a Europa quinhentista, aliás, se baseia aqui nos dois textos latinos apócrifos, Mundus, Novus, (1504) e Quatuor Americi Vesputti NavigationesAs quatro navegações (1507), clonados a partir de textos vários e conservando elementos verídicos de cartas autênticas de Vespúcio, a que o público leitor não teve acesso na época. Ver Américo Vespúcio. Novo mundo: as cartas que batizaram a América. Eduardo Bueno (apresentação e notas). São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003. 
  3. PRÉVOST, p. 373. 
  4. ______. p. 375. 
  5. ______. p. 66. 
  6. André Prévost, com razão, a meu ver, opta por traduzir reipublica não por “república”, mas por “comunidade política”, já que após a Revolução Francesa “república” perdeu o sentido de “coisa pública” e passou a evocar uma forma de regime político, por oposição à monarquia e ao império. Da mesma forma, “estado” não é adequado para traduzir o latim status, já que designa o aparelho político que encarna os poderes da comunidade. É preferível traduzi-lo então por “forma”. PRÉVOST, p. 310. 
  7. Utopia, p. 51. 
  8. Utopia, p. 57. 
  9. Utopia, p. 34. 
  10. Utopia, p. 35. 
  11. Utopia, p. 23. 
  12. Utopia, p. 24. 
  13. A referência é Holinshed, Chronicles of England, Scotland and Ireland, 6 volumes (1807; New York, 1965), I, p. 314. Apud LOGAN, p. 57. Curiosamente Prévost cita a mesma referência, mas escreve que os mortos foram 12 mil e não 72 mil (PRÉVOST, p. 378). 
  14. Utopia, 63. 
  15. PRÉVOST, p. 434. 
  16. Utopia, p. 15. 
  17. Ver a respeito “A ideia de humanidade e o projeto de paz universal” de Claude Lefort, que resume toda essa tradição. ln: Desafios da escrita política. Trad. Eliana de Melo Souza. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p. 232, para a citação sobre o “bem comum”. Dentre as referências relevantes de Lefort, cabe lembrar esta, de Rousseau, que poderia perfeitamente aparecer entre as considerações de Hitlodeu, dos Escritos sobre o projeto de paz perpétua do abade de Saint-Pierre: “A única coisa que se espera [dos soberanos] é bastante razão para ver o que lhes é útil e bastante coragem para realizar sua própria felicidade. Se malgrado tudo isso o projeto [de paz perpétua] permanece sem execução, não é por ser quimérico; mas sim porque os homens são insensatos e porque é uma loucura ser sábio em meio a loucos.” LEFORT, p. 234. 
  18. ARENDT, Hannah. The Human Condition. A Study on the Central Dilemmas Facing Modern Man. New York: Doubleday Anchor Books, 1959, p. 287. 
  19. Idem, p.288. 
  20. Utopia, p. 57. 
  21. FOUCAULT, Michel. “‘Omnes et singulatim’: vers une critique de la raison politique”. ln: Dits et écrits, vol. II,1976-1988. Paris: Gallimard, vol. IV, 2001, p. 953-980. 
  22. FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Cours au College de France 1977-1978. Paris: Gallimard/Seuil, 2004, p.130. 
  23. Idem, p.127. 
  24. Idem, p.151. 
  25. Utopia, p. 31. 
  26. MARX, Karl. Capital, vol. II. 4ª ed. Trad. Inglesa: Eden e Cedar Paul. Londres: J.M. Dent & Sons, 1930, p. 797. 
  27. Utopia, p. 59. 
  28. PRÉVOST, p. lxviii. 
  29. Utopia, p. 197. A história está nos Atos dos apóstolos (5, 1-6): Ananias, com a cumplicidade de sua mulher Safira, reteve uma parte do dinheiro obtido na venda de um terreno, e não a deu à comunidade. A admoestação de Pedro contém essencialmente a lei da comunhão: por que haver subtraído uma parte do preço, se o que fosse dado por ele à comunidade, de que faz parte, permaneceria dele através dela. Ananias caiu fulminado ao ouvir as palavras de Pedro. 
  30. Utopia, p. 67. 
  31. PRÉVOST, p. 517. 
  32. LOGAN, p.101, 103. 
  33. Para tudo isso ver, ARISTÓTELES, Política, livro III. E RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 17-33. 
  34. PRÉVOST, p. 622. 
  35. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, loc. cit., p. 71-98. Ver a respeito a resenha crítica de Rancière de Alain Badiou. “Rancière et la communauté des égaux”. ln: Abrégé de métapolitique. Paris: Seuil, 1998. 
  36. Cf. a tese de A condição humana, loc. cit. A partir das três grandes categorias da experiência humana: a fabricação (póiesis), o trabalho (o labor) e a ação política (práxis, a vita activa), Arendt demonstra a gradativa substituição na modernidade do homo faber pelo animal laborans, o trabalhador e o operário, com concomitante achatamento da prática, da vita activa, associada na antiguidade à esfera pública, substituída pela esfera passiva do consumo e da produção da vida. São essas as atividades, que na antiguidade eram ligadas à esfera privada, que passaram a definir na modernidade a totalidade da vida social. 
  37. O resultado da colaboração foi publicado em 1506, em Paris, sob o título de Luciani opuscula
  38. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 148-149. 
  39. Américo Vespúcio,loc. cit., p. 117. 
  40. Ver PRÉVOST, p. 139-140. 
  41. Ver a respeito da relação entre a ficção científica e a utopia, Darko Suvin. Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre. New Haven e Londres: Yale University Press, 1979; e o meu “Máquinas utópicas e distópicas”. ln: NOVAES, Adauto (org.) Mutações ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESCSP, 2008. 
  42. MARIN, Louis. Utopique: jeu d’espaces. Paris: Minuit, 1973, p. 211. Ver também, Fredric Jameson, “Of Islands and Trenches: Naturalization and the Production of Utopian Discourse”. Diacritics, 7:2, 1977, Verão. 
  43. ARENDT, Hannah. Loc. cit., p. 203. 
  44. A passagem da Filosofia da história de Hegel citada por Engels é a seguinte: “O pensamento, o conceito de direito, finalmente se fez valer, e aqui a antiga estrutura do dano [Unrecht, injustiça] não pôde resistir. Nesse conceito de direito criou-se, portanto, uma constituição, e doravante tudo deve ser baseado nela. Desde que o sol começou a brilhar no firmamento e os planetas giraram a seu redor, tal visão não havia sido vista, o homem de ponta-cabeça – isto é, sobre o pensamento – e construindo a realidade a partir dele. (…) Uma emoção sublime se espalhou na época, um entusiasmo da razão invadiu o mundo, como se tivesse acontecido a verdadeira reconciliação do princípio divino com o mundo.” HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. 2ª ed. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Ed. UnB, 1999, p. 366, tradução modificada. Karl Marx & Frederick Engels. “Socialism: Utopian and Scientific”. ln: Selected Works 2ª ed. NewYork: International Publishers, 1969, p. 399. 
  45. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991, p. 96. 
  46. Idem, ibidem. 
  47. O humanismo como um todo ocupou esse lugar, de atualização e moralização da República de Platão. Se “os filósofos não podem tornar-se reis, a melhor coisa será os reis se fazerem aconselhar (…) pelos filósofos”, como resume Skinner (SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 5ª reimp., p. 267). Erasmo, amigo, apresentador e inspirador da Utopia, publicará em 1516 no mesmo ano, A educação do príncipe cristão, dedicado ao futuro Carlos V; Guillaume Budé, também apresentador da Utopia, amigo de Erasmo e de More, publicará em 1519 A educação do príncipe. Talvez a obra mais importante desse gênero, e que precisamente se distingue do gênero como um todo, seja o Príncipe de Maquiavel, que tem com a Utopia afinidades e diferenças notáveis. Ambas colocam no que Maquiavel chama de “povo”, e no que More chama de “humano”, humanitas, a possibilidade de uma repúbllca justa. 
  48. LOGAN, p. 19. 
  49. PLATÃO. A República, (592 a-b). Uso a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d, 8 ed., p. 450. 
  50. Ver a respeito, LACROIX, Jean-Yves. Un autre monde monde est possible? Utopie et philosophie. Paris: Bordas, 2004. 
  51. HEIDEGGER, Martin. Nietzsche, vol. I. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 150. Lacoue-Labarthe propõe traduzir díkecomo ajointement, “junção”, que retraduz a Fügung alemã de Heidegger: “díke (isto é, o ser), a justa instalação e junção [ajointement] (Fügung) do ente em sua totalidade: a sistematização em si.” “Sem dúvida a República se interroga sobre o Estado enquanto “estrutura fundamental” (GrundeMalt) do “ser-em-comunidade” do homem. Mas essa interrogação, enquanto ela é filosófica, se organiza a partir de umavisada teórica, quer dizer, a partir de um saber essencial que concerne a díke, ou seja, o próprio ser enquanto junção (Fügung) do ente na sua totalidade. A filosofia é o saber da díke, das leis da junção ontológica.” LACOUE-LABARTHE , Philippe. “Tipografia“. Trad. João Camillo Penna. ln: FIGUEIREDO, Virgínia de Araujo e PENNA, João Camillo (orgs.) A imitação dos modernos. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 97, 139. 
  52. Aristóteles define o ser como o comum (koinós): “o ser é o que é comum a todas as coisas”. Metafísica, D, 3 1005 27-28. Utilizo a tradução de Tricot. Aristote. Métaphysique, tomo 1. Paris: Librairie Vrin, 1991, p. 120. 
  53. HEIDEGGER,Martin. Idem, ibidem. 
  54. PLATÃO, p. 344e. 
  55. ______. p. 339a. “tò symphéron toú kréittonos” O final da fala de Trasímaco diz essencialmente o seguinte: “Isto é, meu excelente amigo, o que digo: em todas as cidades, o justo [tò díkaion] é o mesmo: a conveniência [o interesse, tò symphéron] do poder [arkhé] constituído: esse poder é o dos que detêm a força [krátos], de sorte que ocorre a todo o que raciocina [logízetai] corretamente que o justo [tó díkaion] seja o mesmo em todo o lugar, ou seja, o conveniente [o interesse, tò symphéron] do superior [do mais forte, kréítton]. Maria Helena da Rocha Pereira traduz por: “a conveniência do mais forte” (loc. cit., p.24). Rancière o traduz por “a justiça é a vantagem do superior”, argumentando que a tradução corrente do trecho por “interesse do mais forte” oculta a polissemia do termo kréitton em grego, “mais forte”, “mais poderoso”, mas também “superior”. É essa polissemia que será utilizada por Sócrates na argumentação contra Trasímaco: a uma “justiça” fundamentalmente injusta, em que o superior faz o que quer em detrimento do inferior, como quer Trasímaco, Sócrates opõe uma justiça em que o beneficiário da relação é o inferior, e onde desaparece a injustiça (RANCIÈRE, loc. cit.,p.19). Adaptei as duas traduções e preferi: “justiça é a conveniência do superior”. 
  56. PLATÃO, p346a. 
  57. Idem, p. 352a-b. 
  58. A respeito da dupla função do sapateiro na organização das funções, ao mesmo tempo técnica específica, e operador da funcionalidade geral da todas as técnicas, ver RANCIERE, Jacque. Le philosophe et ses pauvres. Paris: Fayard, 1983, p. 43. 
  59. PLATÃO, p. 370b. 
  60. ______. p. 370e. 
  61. ______. p. 433a-b. 
  62. ______. p. 415a. Há dois mitos de autoctonia em jogo aqui, o da autoctonia tebana, a história de Cadmo, de origem fenícia, e o da autoctonia ateniense, de Erechthonius, que é o que de fato interessa a Platão. Cadmo e Europa eram filhos de Agenor. Zeus se apaixona por Europa e a seduz metamorfoseando-se em touro. Ele a rapta, metamorfoseando-se uma segunda vez em águia. Agenor manda seus filhos à procura da filha desaparecida. Cadmo consulta o oráculo de Delfos sobre o paradeiro da irmã. A pitonisa o aconselha a abandonar a procura, e, ao invés, seguir uma vaca e fundar uma cidade no lugar em que ela se deitasse de cansaço. Afinal, a vaca deitou-se onde está hoje a cidade de Tebas. Cadmo deveria sacrificar a vaca a Atena, e para tanto envia seus companheiros a buscar água lustral da fonte de Áres. Mas a fonte era guardada por uma serpente que mata a maioria dos homens de Cadmo. Cadmo se vinga esmagando a cabeça da serpente com uma rocha. Após o sacrifício a Atena, ela própria lhe aparece, enaltecendo-o pelo que fizera, e ordena que semeie os dentes da serpente no solo. Quando ele fez o que Atena lhe ordenara, Spartói armados, ou “homens semeados”, surgiram da terra. Cadmo joga uma pedra entre eles e instantaneamente eles começam a se digladiar, matando uns aos outros, com exceção de cinco, que sobrevivem e passam a servir a Cadmo. A função do mito é enaltecer a linhagem dos cidadãos de Tebas, que seriam descendentes dos Spartói; teriam, portanto uma origem pura, familiar, em cuja composição racial originária não entraria sangue estrangeiro, nem mulher. O mito da autoctonia ateniense relata que durante a guerra de Troia Atena pediu que Hefaistos, o deus ferreiro, lhe confeccionasse armas. Hefaistos recusou-se a receber pagamento pela tarefa, mas sugeriu que poderia ser pago em espécie, com sexo. Poseidon decide pregar-lhe uma peça: mente a Hefaistos que Atena vinha até ele querendo fazer sexo. Hefaistos a ataca violentamente, mas ela consegue se desvencilhar. Hefaistos ejacula sobre a sua perna, um pouco acima do joelho. Ela limpa o sêmen com um paninho de lã, que joga fora, enojada. O paninho cai na terra perto de Atenas, e acidentalmente fertiliza a Terra que visitava o lugar. Daí nasce Erichthonius, patrono dos atenienses, que se orgulham de ser autóctones, ao contrário dos cidadãos de outras cidades, por exemplo, de Esparta, cidades invadidas e cujos cidadãos são mestiços. A autoctonia é, portanto, o mito do nascimento do mesmo, a partir de si mesmo, sem a intervenção do outro, mulher ou estrangeiro. GRAVES, Robert. The Greek Myths. Vol. 1. Baltimore: Penguin Books, 1955/1960, p.194- 196; 96-97. Para tudo isso, ver, Nicole Loraux. Born of the Earth. Trad. Selina Stewart. Ítaca: Cornell University Press, 2000. 
  63. PLATÃO, idem. 
  64. ______. p. 439-440b. CHÂTELET, François. Platon. Paris: Gallimard, 1965, p. 198-199. 
  65. ______. p. 443c. 
  66. Idem, p. 416e. 
  67. Idem, p. 419a. 
  68. Idem, p. 420e-421a. 
  69. PLATÃO, p. 522c. 
  70. Sócrates refere-se a Palamedes, o inventor dos números e do jogo de xadrez, herói da guerra de Troia, que teria distribuído os postos de acampamento em Troia, contado os navios, em suma, disposto o exército grego diante do inimigo. Ver a nota de Maria Helena da Rocha Pereira,Platão, A República, loc. cit., p. 330-331. 
  71. PLATÃO, p. 522e. 
  72. Utopia, p. 74. 
  73. Utopia, p. 84. 
  74. Utopia, p. 75. 
  75. Os números de Utopia são bastante rígidos: a ilha tem 54 cidades, em cada cidade há 6 mil famílias, cada família vive em uma casa com no mínimo 40 adultos; cada 30 famílias elege anualmente um representante, o sifogrante (gerente do chiqueiro), ou filarca (chefe de uma tribo); cada cidade tem 200 sifograntes; cada 10 sifograntes elegem também anualmente um traníboro (claro glutão) ou protofilarca, que por sua vez elege o príncipe, a partir de uma lista quádrupla, cada quarto da cidade submetendo o seu nome ao Conselho de traníboros. 
  76. Utopia, p. 87. 
  77. MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud. New York: Vintage Books, 1955, p. 84. 
  78. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. “La sainte famille”. In: Karl Marx. Oeuvres III Philosophie. Trad. Maximilen Rubel. Bibliotheque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1982, p. 427. 
  79. MARX, Karl, Manuscritos econômico-philosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p. 79. 
  80. GRANEL, Gérard. “L’ontologie marxiste de 1844 et la question de la ‘coupure”‘. ln: Traditionis Traditio. Paris: Gallimard, 1972. 
  81. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 73-74. 
  82. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução, loc. cit., p. 155. 
  83. PRÉVOST, p. LXX. 
  84. Utopia, p. 85, 101. 
  85. ANDRADE, Carlos Drummond de. “Os últimos dias”. ln: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 215. 

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