1990

Diderot: juras indiscretas

por Luiz Fernando Franklin de Matos

Resumo

No século XVIII, não havia fronteiras precisas entre filosofia e literatura. A obra de Diderot é, nisso, exemplar. Com que objetivo? Esclarecer. Ensinar a ser virtuoso e, com isso, feliz.

Eis por que analisar Isto não é um conto, Madame de la Carlière e Suplemento à viagem de Bouganville, diálogos que deveriam ser lidos como integrantes de um mesmo tríptico, uma vez que a moral dos dois primeiros só se revela com a leitura do terceiro, que se destaca por transportar o leitor para o Taiti (onde se mergulha numa espécie de utopia), expediente comum nos escritos iluministas, dado que “para saber o que acontece conosco, é preciso interrogar o outro” ou “ver com olhos de outrem”, ou ainda, nas palavras de Voltaire, “viajar, porque, tanto em geografia quanto em moral, nada se sabe sem sair de casa”.

Costumes? Por que não o amor?

Pois é exatamente disso que trata o tríptico em questão.

Ora, o que o longínquo Taiti pode, nisso, ensinar aos franceses?

Para que se entenda isso, é preciso recorrer, primeiro, a Isto…, cuja banalidade narrativa é bem representada pela seguinte máxima: “É preciso confessar que há homens bem bons e mulheres bem más”.

A história começa com Tanié, jovem que se apaixona pela mme. Reymer, cuja obsessão é o luxo. Temeroso de perdê-la, ele resolve tentar a sorte na América. De volta à Paris, ele é bem recebido por Reymer, bem como sua pequena fortuna. Vivem juntos – confortavelmente. Acontece que ela, obcecada, constrange o marido a engajar-se num empreendimento comercial na Rússia, onde com a “alma aos pedaços”, contrai uma febre e morre.

Já a segunda parte de Isto… prova a máxima que representa a primeira – às avessas.

A culta mlle. de la Chaux apaixona-se por Gardeil, homem de letras engajado num projeto enciclopédico típico da época. Mais: por ele, sacrifica família, bens, e, com o passar do tempo, a própria saúde, pois, em busca de ajudar seu amado, passa noites em claro decifrando manuscritos gregos e hebreus. Sem mais, Gardeil declara-se desapaixonado e rompe relações. Desesperada, Chaux procura um amigo de ambos – o narrador da história – e pede que intervenha junto a Gardeil – em vão. Ela, então, cai prostrada, sob os cuidados de um médico chamado Camus, que se apaixona por ela – silenciosamente. Enfim, recompõe-se, traduz a obra de Hume, e escreve um romance de sucesso. Desprovida de ambição, ela se muda para a periferia de Paris, onde morre. Enquanto isso, Gardeil exerce medicina em Montpellier ou Toulouse e goza de conforto e reputação de “homem de bem”.

Interessante, a esta altura, descobrir que o narrador das duas histórias (que compõem Isto…) é o mesmo. Ele que, em geral, sustenta postura de frio observador. Já o ouvinte, que conhece a primeira história, tanto de ouvir dizer, como no papel de ex-pretendente de Reymer, seu ponto de vista é outro, motivo pelo qual ele, na primeira parte de Isto…, sente-se no direito de interromper constantemente o narrador para, como a maioria dos leitores, censurar Reymer, o que se explica se considerada que a origem do amor dela não é natural, mas social, instância que gera um “oceano de fantasias”, tantas são as convenções que recobrem a natureza.

Mas como julgar a docilidade com que Tanié deixa-se espoliar? É ele digno de lástima, como quer o narrador, ou de desprezo, como quer o interlocutor? Por extensão, como avaliar o sacrifício integral de Chaux? O rompimento de Gardeil? Aos poucos, ou seja, por meio da voz do narrador, Diderot mina as convicções dos mais sólidos moralistas, a começar pelo interlocutor. Ele que, ao censurar Chaux por apaixonar-se por um homem sem atrativos, é lembrado, pelo espirituoso narrador, de uma ex-amante sua, feia e tola. Por outro lado, aos que desprezam Tanié, cabe lembrar da beleza de Reymer, pois é claro objetivo de Diderot que o leitor abdique de sua superioridade. Afinal, “só há sabedoria até o momento em que se esbarra com uma mulher que, bela ou feia, inteligente ou tola, dissipe-a até a loucura”. Daí, mais do que o censurar, lamentar o homem, que, como um barril de pólvora, será atingido por uma faísca. Assim até Gardeil pode ser compreendido, se considerado o amor não só como um ato de vontade, mas também – e sobretudo – um capricho da natureza. A partir de então, Diderot trata do modo, a começar pela crueldade de Gardeil, pois, se amor não é escolha, tampouco é motivo para nivelar todos os atos. Do contrário, ou vê-se crime por todos os lados, ou o debate é interminável.

Enfim, em Madame…, o protagonista é Desroches, um libertino que observa escrupulosamente os deveres sociais. É como militar, lotado numa cidade pequena, que trava relacionamento com a jovem viúva mme. de la Carlière, conhecida pela sua integridade. Dias antes do casamento, a ser celebrado em Paris, ela, em reunião com amigos (de ambas as partes), discursa. Mais: exorta-os – como integrantes de um tribunal – a abandonar Desroches se ele for infiel a ela. Juramento feito, o casal é feliz até o nascimento do primeiro filho, seguido de um período de abstinência. Isso porque, ao mesmo tempo, Desroches é cortejado por uma poderosa e sedutora mulher. Comete o deslize, que não passaria disso, não fosse a descoberta de algumas cartas. Carlière de início silencia. Não demora, e o tribunal é convocado. A “imbecil multidão” delibera… a favor de Desroches, até Carlière valer-se da reclusão do marido, destroçado física e espiritualmente, para vitimizar-se.

Eis, clara, a intenção de Diderot: denunciar que os vícios decorrem menos deles mesmos do que dos costumes – absurdos. Isso Suplemento…, herdeiro da questão, esclarecerá.

Vizinho da fábula, o Suplemento… é composto de personagens que se aproximam de abstrações, como o Ancião ou o Capelão, a quem são oferecidas a mulher e a filha do taitiano Orus. Para fugir de seu dever, explica o voto que fez. Lança mão de todos os motivos morais, enquanto a encantadora filha de Orus suplica. Nisso, vem à tona a oposição entre a sabedoria taitiana e a insanidade europeia; afinal, a comunidade é feliz, uma vez que fundada na natureza (eterna) em vez de na ideia de propriedade.

A lição utópica é a seguinte: a paixão, necessidade física, não é boa nem má; por isso, amoral. Não que não haja moral haitiana. O que há é que – nem social, nem religiosa – ela decorre da lei geral dos seres. O sujeito não é coisa. Logo, lá – um eterno lá –, não há Reymer, Gardeil, Chaux, Desroches, Carlière ou qualquer outra perversão.

Trata-se, enfim, de, a caminho dos Mares do Sul, um convite à desobediência.


Um dos traços mais fascinantes do pensamento do século XVIII é sem dúvida a inexistência de fronteiras precisas entre filosofia e literatura e, consequentemente, a multiplicidade de gêneros então praticada pelo filósofo. Este já não se espelha nas figuras do teólogo, do metafísico ou do sábio e já não privilegia o tratado ordenado e rigoroso como meio de expressão filosófica. Segundo uma fórmula bem-sucedida na época, o filósofo “é um homem que quer agradar e se tornar útil”. Isso quer dizer que a maior de suas preocupações é a sociedade em que vive, sua virtude por excelência é a sociabilidade, e a missão que o guia, incitar os demais a praticá-la. Quer dizer também que para melhor convencer os homens, é preciso dialogar com eles, é preciso diversificar os lugares e os meios de atuação, ganhar os salões, os cafés, as casas de espetáculo, a exemplo de Sócrates, que frequentava a praça pública. Desse modo, o filósofo se torna romancista, contista, homem de teatro.

Não há exemplo mais marcante dessa diversificação que a obra de Diderot, diretor do empreendimento filosófico mais significativo do século, a Enciclopédia, e, ao mesmo tempo, dramaturgo, teórico do espetáculo teatral, crítico de arte, contista, romancista etc. Apesar do seu respeito por vezes escrupuloso pela especificidade de cada uma dessas formas de expressão, Diderot integrou-as todas ao combate filosófico das Luzes, tornando-as flexíveis para esclarecer os homens (como se dizia então), fazê-los virtuosos e, desse modo, felizes. Meu objetivo é evocar um fragmento desse combate e dessa integração, pondo em relevo uma das múltiplas facetas do Diderot prosador. Não me refiro ao exímio parodista de Jacques ou ao romancista anticlerical de A religiosa, cujas traduções o leitor brasileiro conhece há algum tempo, nem ao autor libertino das Joias indiscretas, só mais recentemente acessível em tradução. Quero evocar um Diderot parcialmente desconhecido em português: o contista, o narrador que nos conta as histórias mais banais (“as ações mais comuns” dos homens, como dizia) e, a partir delas, resgata os temas maiores do Iluminismo.

Os textos analisados aqui — “Isto não é um conto”, “Madame de la Carliére” e “Suplemento à viagem de Bougainville” —[1] foram publicados entre 1772 e 1773 numa revista hoje célebre, a Correspondência literária, filosófica e crítica, composta em Paris e destinada a um seleto público de aristocratas estrangeiros. Segundo expressa indicação de Diderot, os textos, embora autônomos, deveriam ser lidos como um tríptico, visto que a “moral” dos dois primeiros se esclareceria retrospectivamente a partir do último. Todos são compostos na forma de diálogo entre dois interlocutores que, conforme indicações que o leitor vai pouco a pouco recolhendo, são sempre os mesmos. Em “Isto não é um conto” e “Madame de la Carlière”, o primeiro interlocutor, interrompido pelos comentários de seu ouvinte, conta três histórias de amor e morte, passadas em Paris, cuja “geografia” é evocada com frequência. No último texto, ambos lêem e debatem o suposto “suplemento” de um livro então célebre, as Viagens em torno do mundo, do navegante francês Bougainville, e então nos vemos transportados para as ilhas do Taiti, mergulhando, assim, num clima de utopia.

O leitor um pouco familiarizado com os procedimentos do século XVIII já terá percebido a razão dessa brusca mudança de cenário. Segundo recurso em voga no tempo, para saber aquilo que se passa conosco é preciso interrogar o outro: ninguém revela melhor os segredos da visão ou as origens da fala que o cego ou o mudo. Esta tentativa de “ver pelos olhos de outrem” explica o prestígio então desfrutado pela forma do diálogo socrático e pelo tema da viagem. Voltaire afirmou certa vez que, “tanto em geografia quanto em moral, é muito difícil conhecer o mundo sem sair de casa”, isto é, sem viajar e, pode-se acrescentar, sem conversar. Daí a importância que o século atribui ao diálogo com os persas, chineses ou iroqueses, cujos usos e costumes iluminam, por contraste, os nossos, daí a forma destes contos de Diderot, e daí também que um dos interlocutores do “Suplemento…”, ao enumerar as vantagens da viagem de Bougainville, comece por invocar o “melhor conhecimento de nosso velho domicílio e de seus habitantes”. Mas o que precisamente o longínquo Taiti poderia nos ensinar sobre os desastres amorosos de meia dúzia de infelizes parisienses?

A primeira história de “Isto não é um conto” é de uma banalidade tão desconcertante quanto a máxima que, aparentemente, procura ilustrar: “É preciso confessar que há homens bem bons e mulheres bem más”. Um jovem desprovido de qualquer fortuna, Tanié, se apaixona perdidamente pela bela mme. Reymer, mulher obcecada pelo amor do luxo. Por causa dela, Tanié trabalha como pode e chega até a pedir esmolas, mas, atormentado pela ideia de não poder lhe dar uma vida confortável, talvez temeroso de perdê-la para os homens abastados que a assediam, resolve tentar a América em busca de melhor sorte. Antes de partir, desobriga a amante das juras que lhe fez e só pede uma coisa: que não assuma “nenhum compromisso que os separe para sempre”. No fim de alguns anos, volta dono de pequena fortuna e mme. Reymer o recebe de braços abertos, quer porque cumprisse a promessa, quer porque, casualmente, então estivesse só. Durante certo tempo, vivem juntos, senão de forma opulenta, ao menos com todo o conforto. Porém, sempre obcecada pelo “amor do fausto e da riqueza”, a voraz Reymer constrange o amigo a engajar-se em outro empreendimento comercial, desta vez na Rússia. A princípio Tanié resiste, mas, incapaz de negar o que quer que seja à amante, acaba partindo novamente, com a alma aos pedaços e, tão logo chega, contrai uma febre que o mata em seguida.

A segunda história narrada no conto é igualmente banal e parece provar a máxima simetricamente oposta: “se há mulheres muito más e homens muito bons, há também mulheres muito boas e homens muito maus”. Mas aqui o narrador se demora mais nas circunstâncias da história, chegando a evocar, como pano de fundo, a vida dos subliteratos do século, vida do trabalho árduo e do anonimato. Se a intriga é banal, as personagens são menos comuns: tanto assim que o narrador as considera “prodígios” da ternura feminina e da ingratidão masculina, e se debruça com mais cuidado sobre suas psicologias. A sensível e culta mlle. de la Chaux se apaixona por Gardeil, obscuro homem de letras engajado como colaborador num desses projetos enciclopédicos do século XVIII. Por ele, mlle. de la Chaux sacrifica família, bens e, com o passar do tempo, a própria saúde, pois, a fim de aliviar as obrigações do amigo, passa as noites em claro, decifrando manuscritos gregos ou hebreus. Um dia, entretanto — bruscamente, friamente, cruelmente, como se pusesse para fora um “catarro” —, Gardeil se declara desapaixonado e rompe. Em desespero, a moça bate à porta de um amigo de ambos, o narrador da história, e pede sua interferência junto ao amante. A cena de explicação entre os três, clímax do relato, mostra ao leitor a aflição de mlle. de la Chaux, a terrível indiferença de Gardeil, os sobressaltos do narrador pelo estado da moça, a inutilidade de seus argumentos frente à decisão de Gardeil. Definitivamente repelida, mlle. de la Chaux cai em estado de prostração, ficando sob os cuidados do narrador e de um certo doutor Camus, que ama a moça sem ser correspondido. Após o restabelecimento dela, ambos a estimulam a recompor a vida. Mlle. de la Chaux então traduz Hume, escreve um romance que é enviado a mme. de Pompadour, cai nas graças da favorita do rei, é chamada insistentemente a Versailles, mas, desprovida de qualquer ambição pessoal, recusa sempre. Muda-se, enfim, para as extremidades de Paris e acaba morrendo num sótão, repelida pela família e assistida apenas pelo doutor, ao passo que Gardeil, “o tigrezinho da rua Hyacinthe”, segundo o narrador, “o único amante que tivera, exercia a medicina em Montpellier ou em Toulouse, e gozava no maior bem-estar da reputação merecida de homem hábil, e da reputação usurpada de homem de bem”.

Ligado às personagens por laços de amizade, o narrador foi testemunha das duas histórias, presenciando as cenas que são o clímax de ambas: não só a explicação entre Gardeil e La Chaux, os inúteis lances teatrais da moça, as frias e, afinal, irrebatíveis razões do outro, mas também a partida de Tanié, seus gemidos junto ao leito da Reymer, o silêncio inabalável dela. Em geral, sua atitude como testemunha é a do observador que não se deixa levar pela sensibilidade, embora os quadros patéticos que presencia lhe dessem razões de sobra para isso. Lembremos que, segundo “O paradoxo sobre o comediante”, texto que Diderot escreveu e reescreveu durante os anos 70, tal postura é condição para a descoberta das verdadeiras relações e para o juízo certeiro. É bem verdade que, na cena com Gardeil e La Chaux, o narrador, como personagem, mostra inquietação pela moça, toma seu partido sem qualquer hesitação e argumenta veeementemente a favor dela. Tudo isso, entretanto, dentro dos limites da contenção que exibe na história anterior, as eventuais efusões sentimentais ficando reservadas à sua atividade como narrador.

O ouvinte, por sua vez, que ignora a segunda história, conhece integralmente a primeira, não como testemunha, mas por ouvir dizer, pois foi “um dos sucessores de Tanié” e chegou a arriscar seus bens na aventura com a Reymer. Seu ponto de vista, assim, não é o mesmo do narrador: enquanto este, isento e objetivo, conta o que se passou e procura ser cauteloso nos julgamentos, o ouvinte o interrompe com frequência e se apressa em fazer juízos, condenando a boa-fé de Tanié e a voracidade de mme. Reymer. Como se pode ver, a estrutura dialogada do conto começa por oferecer diferentes perspectivas sobre os acontecimentos, o que dá margem a um debate que põe alternativas diante do leitor. Certamente, a atitude da Reymer não está em discussão, pois ninguém hesita em condenar sua paixão do luxo — o narrador, de maneira tácita, o ouvinte, abertamente, pois afinal essa paixão custou-lhe caro. Como se verá com mais clareza à frente, a condenação tácita do narrador deriva do fato de que a paixão da Reymer não é da ordem da natureza, mas da sociedade, ou seja, deste “oceano sem limites de fantasias”, próprio das convenções, que recobre a natureza. Mas como julgar a docilidade com que Tanié, por amor, se deixa espoliar? É ele digno de lástima, como quer o narrador, ou de desprezo, conforme o ouvinte? Como avaliar, por extensão, o sacrifício integral de mlle. de la Chaux à sua paixão? E como julgar ainda —problema talvez mais delicado — o rompimento de Gardeil com La Chaux?

Depois de confrontar o leitor com ambas as perspectivas — precipitação e circunspeçcão nos juízos —, aos poucos Diderot faz prevalecer a do narrador e, para isso, começa por colocar em prática uma “técnica” que abala a posição de pretensa superioridade daqueles que se apressam em julgar. Ao ouvinte, por exemplo, que se espanta com a paixão de La Chaux por um homem desprovido de qualquer atrativo físico, o narrador evoca, com divertida malícia, uma história passada do próprio ouvinte, que quase morreu de amores por uma mulher, embora tola e feia. Aos que desprezam o comportamento de Tanié, por outro lado, ele torce para que “o destino” os faça topar com uma mulher tão bela e artificiosa quanto a Reymer. Assim, se nos dispusermos a abdicar de nossa suposta superioridade de juízes, se formos obrigados a nos colocar no lugar daqueles que julgamos, nossos juízos sobre certas ações não parecerão tão firmes assim.

Num longo e benevolente sermão, que vale a pena citar integralmente, as razões e as consequências dessa técnica surgirão com toda a clareza:

Meu amigo, o mais sábio dentre nós é bem-aventurado por não ter encontrado a mulher bela ou feia, espirituosa ou tola que o enlouqueceria a ponto de ser mandado para o hospício. Lamentemos muito os homens, censuremo-los sobriamente, olhemos estes anos passados como tantos momentos subtraídos à maldade que nos segue; e só pensemos tremendo na violência de certas inclinações da natureza, sobretudo para as almas quentes e as imaginações ardentes. A faísca que cai fortuitamente sobre um barril de pólvora não produz efeito mais terrível. O dedo prestes a sacudir sobre vós ou sobre mim esta faísca fatal, talvez esteja levantado.

Não nos apressemos, pois, em julgar os homens pelos atos que envolvem a paixão amorosa; coloquemo-nos, antes, no lugar deles, porque também estamos sujeitos à natureza, e, se ainda não cometemos os mesmos desatinos, isso se deve menos à nossa suposta sabedoria que a um feliz acaso, que pode deixar de nos favorecer a qualquer momento. Esta “técnica” judiciosa, que exorta o ouvinte (e o leitor) a se pôr no lugar do outro para julgá-lo sobriamente, será retomada a propósito de Gardeil, mas numa perspectiva ligeiramente retocada.

Mas dir-se-á talvez que é muito apressado pronunciar-se definitivamente sobre o caráter de um homem segundo uma única ação; que uma regra tão severa reduziria o número de pessoas de bem a ponto de deixar menos sobre a terra do que o evangelho do cristão admite de eleitos no céu; que alguém pode ser inconstante em amor, gabar-se mesmo de pouca religião para com as mulheres, sem ser desprovido de honra e probidade; que ninguém é senhor de deter uma paixão que se acende, nem de prolongar uma que se extingue; que nas casas e nas ruas já há bastantes homens que merecem a justo título o nome de patifes, sem ser preciso inventar crimes imaginários que os multiplicariam ao infinito. Perguntar-se-á se jamais traí, enganei, abandonei nenhuma mulher sem motivo. Se quisesse responder a estas questões, minha resposta não ficaria sem réplica, e seria uma disputa a só acabar no juízo final. Mas ponha a mão sobre a consciência e diga-me, senhor apologista dos enganadores e infiéis, se o senhor tomaria o doutor de Toulouse por amigo. Hesita? Tudo está dito; e sobre isto rogo a Deus que tenha em sua santa guarda qualquer mulher a quem o senhor tiver o capricho de dirigir sua homenagem.

A argumentação anterior é repetida e aperfeiçoada: certos atos são determinados por causas físicas (ou químicas, segundo a metáfora da faísca e da pólvora), pertencem à ordem da natureza e não da vontade e, por essa razão, não podem nem mesmo constituir objetos de juízos morais. Não somos livres para cometer ou não essas ações, não podemos ser responsabilizados por elas e, para comprová-lo, basta nos pormos no lugar de Gardeil: quantos de nós jamais romperam, sem razão, com uma mulher? Assim, não apenas sejamos sóbrios em julgá-lo, mas cheguemos mesmo a suspender os juízos morais sobre sua conduta como amante. Aqui, a técnica convida o leitor a um curioso paradoxo, o de pôr-se no lugar do outro para não julgá-lo (segundo os preconceitos correntes). Entretanto, nem todos os atos de Gardeil pertencem à ordem biológica: se não é livre para deixar de amar mlle. de la Chaux (que, por sua vez, tampouco é livre para corresponder aos sentimentos do doutor), se não é responsável pelo rompimento, é ele quem escolhe o modo cruel de fazê-lo e a recusa em se ” associar”, como amigo, por exemplo, à miséria da moça. Surge, pois, uma nova etapa, capaz de orientar nossa ação e evitar que a suspensão do juízo venha a nivelar para nós todos os atos. Depois de assumirmos o lugar de Gardeil, coloquemo-nos em seguida no de mlle. de la Chaux, para daí extrair uma máxima de ordem prática: não se deve procurar a amizade de alguém capaz de tal conduta para com a amante, pois esse alguém revela, assim, uma natureza maléfica.

Essa passagem do conto esboça ainda outra questão, a de que a suspensão do juízo, nestes casos, é necessária para que não sejamos forçados a abdicar de qualquer princípio moral. De fato, se julgarmos de forma inconsiderada, de duas, uma: ou os crimes se multiplicarão e os patifes estarão em toda parte, ou nos precipitaremos num debate interminável — o que dará na mesma, isto é, seremos obrigados a renunciar a qualquer moral. Que moral será esta, nós o veremos adiante. O que nos importa, por enquanto, é que o tema da suspensão das nossas avaliações morais quanto às ações que envolvem a paixão amorosa, conclusão geral do primeiro conto, constituirá o centro do debate no conto seguinte, “Madame de la Carlière”.

O herói da história, Desroches, leva uma vida privada um pouco libertina, mas observa escrupulosamente os deveres para com a sociedade. De início, escolhe o estado eclesiástico, deixa-o devido à sua inclinação pelas mulheres, abraça a magistratura, mas, ao descobrir que sentenciara com a morte sem dispor de provas suficientes, “renuncia para sempre à perigosa função de pronunciar sobre a vida dos homens”. Tenta em seguida a carreira militar e então um pequeno acidente, durante sua licença de inverno, o leva a encontrar uma jovem viúva, mme. de la Carlière, conhecida pelo rigor com que cumprira os deveres de esposa. Desroches se apaixona, pede a mão da moça, ela hesita, devido às más lembranças da vida conjugal e a fama de conquistador do pretendente. Consente, afinal, mas na véspera do casamento promove uma estranha e curiosa cerimônia: reúne os parentes e amigos de ambos, faz um longo e eloquente discurso — em nome dos “costumes” — pela mais estrita fidelidade conjugal, jura-a solenemente a Desroches e exige dele a mesma coisa. Diz ela:

Os juramentos pronunciados ao pé dos altares foram seguidos de tantos perjúrios, que não dou nenhuma importância à promessa solene de amanhã. A presença de Deus é menos temível para nós do que o julgamento de nossos semelhantes. Senhor Desroches, aproxime-se, eis minha mão, dê-me a sua, e jure-me uma fidelidade, uma ternura eternas. Que o atestem os homens que nos cercam; permita que, se acontecer de o senhor me dar alguns motivos legítimos de queixa, eu o denuncie a este tribunal e o abandone à sua indignação; consinta que eles se juntem à minha voz e que o chamem de traidor, ingrato, pérfido, homem falso, homem mau. São meus amigos e seus: consinta que no momento em que eu o perder, não lhe reste nenhum deles. Vocês, meus amigos, jurem-me deixá-lo só…

A assembleia se vê arrebatada pela patética Carlière e, em meio às lágrimas e aos gritos, cada qual pronuncia o seu juramento. É assim que os Desroches se casam, vivem felizes algum tempo e têm um filho, que mme. Desroches faz questão de amamentar. Essa decisão abre um delicado “intervalo na vida do ardente Desroches, que, por este tempo, passa a frequentar uma poderosa e sedutora mulher, a fim de acompanhar o andamento do processo de um amigo. Pois bem, quer por gosto, fraqueza ou desocupação, quer por medo de que seus escrúpulos prejudiquem a causa do amigo, Desroches se envolve, cometendo um dia a pequena imprudência que leva suas cartas de amor às mãos da esposa. Prostrada, mme. Desroches guarda silêncio a princípio, mas, ao recuperar-se, convoca novamente a assembleia, exibe as provas do crime, leva o marido a “julgamento” e numa nova cena patética rompe com ele. A partir daqui, o conto se põe a considerar as oscilações do Público, essa “multidão imbecil que nos julga” . Inicialmente, a opinião tende a reprovar o rigor de mme. Desroches, sua “ridícula pretensão” à exclusividade sobre o desejo sexual do marido. Pouco a pouco, porém, uma reviravolta se dá, Desroches se torna odioso e mme. de la Carlière uma pobre vítima. Por que razão? Porque ele se recolhe, se retira para o campo e, embora “num estado deplorável de espírito e de corpo”, não é visto pelo Público, ao passo que a esposa permanece em Paris, exibindo sua desgraça, definhando e provocando a comiseração de todos. Afinal, Desroches acaba se transformando em objeto de execração quando a “extravagante” mme. de la Carlière proporciona ao Público um derradeiro espetáculo, expirando, teatralmente, na Igreja de Saint-Eustache, em plena comunhão.

Ao contrário das anteriores, eis uma história sem dúvida excepcional — “maravilhosa”, como se diria no século XVIII. Conforme Diderot afirma em outra parte, quando se vê às voltas com acontecimentos tão singulares assim, o poeta precisa “de arte, tempo, espaço e circunstâncias para compensar o maravilhoso e fundar a ilusão”. Daí o cuidado (ao qual o resumo acima está longe de fazer justiça) com que o relato se demora nas particularidades da história e mesmo da pré-história de cada personagem (estas últimas preocupações mal aparecem nos contos anteriores), daí o tempo muito mais amplo e o espaço mais diversificado. E daí, sobretudo, o esmero com que a arte do diálogo é conduzida. Senão, vejamos.

O diálogo dos dois interlocutores ganha agora um cenário e uma situação: provisoriamente apartados de um ”salão”, ambos conversam sob um céu a princípio carregado e cuja configuração muda rapidamente. Mais uma vez o narrador foi testemunha direta da história, mas sua condição de observador agora se extrema: circula, invisível, por entre os acontecimentos, diz que esteve presente em tal parte, mas não toma qualquer iniciativa na ação. O ouvinte, por sua vez, que estivera fora do reino, conhece parte da história, por intermédio de outra testemunha. Sua perspectiva, como no caso de Tanié, é de novo outra, pois alguém lhe fizera uma “paródia cômica” do discurso solene e virtuoso de mme. de la Carlière. Ora, o que há de novo aqui é que o contraste entre a versão patética e a versão burlesca dá ao ouvinte uma ponta de incredulidade em relação aos fatos. Ele faz ressalvas irônicas o tempo todo, ri, quando deveria se comover, em certas ocasiões demonstra um espanto não estranho à descrença (“Mas que loucura! morre-se na cama. Quem é que jamais teve a ideia de morrer na igreja?”). Pouco a pouco, essa incredulidade é removida pelo narrador e, no final do relato, o ouvinte encara a história de Desroches com a devida seriedade, admitindo tacitamente que este não é um ”louco”, como pensava a princípio, mas uma vítima dos julgamentos inconsiderados dos homens, como queria o narrador. Creio não precisar insistir no detalhe de que este ouvinte representa um espelho dos leitores que somos. Por intermédio dele, não só nos descarregamos e nos liberamos de eventuais objeções à verossimilhança do relato, mas ainda, diante de sua “conversão” a Desroches, dificilmente consideraríamos este último fora da perspectiva proposta pelo narrador. Essa perspectiva, aliás, não é diferente das anteriores. Se nos colocarmos no lugar de Desroches, não o condenaremos, “porque o acaso o comprometeria num desses passos difíceis do qual nem tu, nem eu, nem ninguém pode prometer se safar”. Se nos pusermos, por outro lado, no lugar de mme. de la Carlière para “julgar” Desroches, o resultado não será diferente, pois, “sem aprovar os maridos infiéis, não prezo tampouco as mulheres que dão tanta importância a esta rara qualidade”. A máxima de sabedoria prática a retirar daqui não será, pois, contra Desroches, mas ainda a seu favor: se tivesse “uma filha para casar”, o narrador não hesitaria em dar a ele sua mão. O conto silencia sobre a terceira alternativa — julgar mme. de la Carlière a partir do lugar de Desroches —, pois o rigorismo moral que ela demonstra não está propriamente em discussão: ele pertence à ordem das convenções, não da natureza, e merece uma condenação tácita a exemplo da voracidade de mme. Reymer.

Entretanto, “Madame de la Carlière” não se limita a repetir os termos do debate anterior, pois o que está em jogo agora não é tanto a conduta de Desroches ou da esposa quanto os juízos “desregrados” que a opinião pública faz sobre uma e outra. Se os contos anteriores estabeleciam, progressivamente, a necessidade da suspensão de nossos julgamentos morais sobre certas ações, “Madame de la Carlière” retoma a questão e a leva adiante, fazendo o processo da atitude contrária e explicitando as suas condições. A que se deve, pois, esse “desregramento” ou essa ”inconsideração”?

Em primeiro lugar, ao preconceito. A tendência da Opinião para julgar segundo os preconceitos correntes é ressaltada desde o início do conto: quando Desroches troca a Igreja pela magistratura e entra, por isso, em conflito com a família, o Público, “que jamais deixa de tomar partido dos pais contra os filhos” condena Desroches segundo o odioso preconceito de que os pais sempre têm razão contra os filhos. Do mesmo modo, quando, a princípio, reprova o rigor de mme. de la Carlière, a Opinião o faz em nome daquilo que uma parte esclarecida do século considera um preconceito: os maridos devem ser infiéis às esposas. Lembremos, de passagem, que Nivelle de la Chaussé escreveu uma comédia, O preconceito em moda, para exaltar a atitude oposta.

Mas há uma outra espécie de juízo desregrado e é dela sobretudo que se trata em “Madame de la Carlière”. Como se viu há pouco, depois de sustentar o marido contra a mulher, o julgamento do Público experimenta uma reviravolta, motivada pela discrição de Desroches e pelo exibicionismo de mme. de la Carlière. O traço mais patente da psicologia desta e sem dúvida seu profundo senso de teatralidade, exercido com todo êxito desde a cerimônia do casamento até sua morte pública e espetacular. Para escolher um exemplo ao acaso, evoquemos o talento patético com que prepara a cena da ruptura:

Mme. de la Carlière toca; faz um sinal, trazem-lhe o filho. Ela o recebe tremendo, descobre o seio, dá-lhe de mamar e o devolve à governanta, depois de olhá-lo tristemente e molhá-lo com uma lágrima que caiu sobre o rosto da criança. Limpando essa lágrima, diz: Não será a última… mas estas palavras foram pronunciadas tão baixo que mal se as ouviram. Este espetáculo enterneceu todos os assistentes e estabeleceu no salão um silêncio profundo.

A estes e tantos outros imponentes desempenhos de atriz, opõe-se, por outro lado, não apenas o recato e a “decência” de Desroches, mas também o seu estouvamento em lidar com as situações patéticas. No início do conto, depois do acidente que lhe quebrara a perna, por causa de outro processo Desroches passa a frequentar os juízes que deveriam julgá-lo, e então o narrador declara:

O engraçado é que, perfeitamente curado da fratura, jamais os visitava sem um borzeguim na perna: pretendia que suas solicitações apoiadas pelo borzeguim se tornavam mais tocantes; é verdade que o colocava ora de um lado, ora de outro, e às vezes isso era notado.[2]

Pois bem, é sem dúvida por causa dessa falta de “talento” que Desroches tem contra si o Público, enquanto mme. de la Carlière acaba se impondo a ele porque consegue despertar-lhe a comiseração, segredo do interesse na tragédia e no drama, como se sabe. O Público julga, pois, tendo em vista o prestígio do patético, tão em moda no século XVIII, e em relação ao qual Diderot — depois de ter sido um dos seus entusiasmados promotores — acabou se mostrando reticente. É verdade que tais juízos, que supõem a identificação, exigem que aquele que julga se ponha no lugar do outro. O mecanismo nada tem a ver, entretanto, com a técnica do frio observador e do homem judicioso — que se põe alternativamente no lugar de todos os interessados — mas com as leis da sensibilidade, que perturba o verdadeiro juízo, e se identifica apenas com aquele cujo sofrimento é compartilhável.

Assim, “Isso não é um conto” levanta a questão da dificuldade do pronunciamento moral sobre as ações que decorrem da paixão amorosa, e conclui pela necessidade de suspensão do juízo, deixando em seu lugar uma “técnica” qu releva do plano da razão prática. “Madame de la Carlière”, por sua vez, confirma as teses anteriores, faz o processo dos nossos julgamentos “inconsiderados” e mostra as condições de seu “desregramento”. Quer isso dizer, entretanto, que o apetite sexual, irrefreável inclinação da natureza, que está para além da vontade e da esfera moral, é estranho a qualquer código e, por isso, fonte inesgotável de nossos males e desgraças? “Madame de la Carlière” termina esboçando a resposta dessa questão. Declara o narrador:

E depois eu tenho lá minhas ideias, talvez justas, certamente extravagantes, sobre certas ações que encaro menos como vícios do homem do que como consequências de nossas absurdas legislações, fontes de costumes tão absurdos quanto elas e de uma depravação que de bom grado chamaria de artificial. Isto não é muito claro, mas talvez se esclareça numa outra vez.

É preciso, pois, redefinir os termos do debate e passar do plano estritamente moral para a esfera jurídica, quer dizer, da sociedde. Herdando a questão, o “Suplemento… ” a esclarecerá.

O cenário que enquadra os dois interlocutores é o mesmo de “Madame de la Carlière”, mas o céu estrelado sob o qual o deixaram na noite anterior dá lugar a uma espessa neblina. O indócil ouvinte parece vencido, já não faz perguntas embaraçosas, apenas aquelas que permitem melhor explicitação das teses do interlocutor. Reconhece de saída a “superioridade” do outro, o que dá ao diálogo um tom dogmático — sinal, talvez, de que chegamos a postulados evidentes e a verdades indiscutíveis. Se os textos anteriores são contos escritos em forma dia-lógica, o ”Suplemento…” é, pode-se dizer, um diálogo que se avizinha da fábula, tendendo fortemente para o alegórico. As personagens que o dominam são grandes abstrações, sem nome próprio: o Ancião, o Capelão; a figura principal, Oru, mesmo nomeada, também não passa de uma encarnação de ideias. Por outro lado, o diálogo não gira em torno de uma intriga, mas de supostas anedotas — breves, às vezes apenas esboçadas, como acontece com tanta frequência nos diálogos de Diderot — relativas à passagem de Bougainville pelo Taiti. Os suplementos que se acrescentam às suas Viagens… são constituídos por apenas dois episódios: o discurso do Ancião e o diálogo entre o nativo Oru e o capelão da esquadra.

O primeiro se dá quando da partida dos visitantes: um velho taitiano, que os recebeu friamente, toma a palavra num longo discurso, dirigido primeiramente aos nativos, em seguida a Bougainville. O tema maior das Luzes, o da oposição entre o homem natural e o homem civilizado, já sugerido no princípio do diálogo, é agora trabalhado na perspectiva de Montaigne, aparecendo como contraste entre a bondade e inocência do taitiano e a crueldade e perversão do europeu. Esse discurso prepara o episódio seguinte, o “suplemento” essencial do texto, o diálogo Oru-Capelão, que apanha e amplia ao máximo o tema acima tratado, explicando as razões do contraste.

Essa conversa decorre de uma situação picante, embaraçosa para o pobre Capelão, cômica para nós, leitores. Abrigado na cabana de Oru, o Capelão descobre, no fim do primeiro serão, que dormir com a mulher ou uma das três filhas do anfitrião faz parte do seu dever de hóspede reconhecido, e que a melhor forma de desincumbir-se da obrigação é escolher a mais jovem, que ainda não concebeu um filho. Constrangido, o Capelão recusa, alegando a religião, o seu estado, a honestidade, os bons costumes, mas diante dos argumentos do anfitrião, e sobretudo das encantadoras súplicas da moça, acaba cedendo. Na manhã seguinte, o Capelão e Oru se põem a falar, um sobre os motivos da relutância, o outro acerca das razões do oferecimento; o desdobramento da conversa fará surgir a oposição entre a sabedoria taitiana e a insanidade europeia na elaboração de suas leis civis.

O Taiti é uma comunidade feliz por uma razão bastante simples: sua legislação se funda na natureza, cuja “vontade eterna” é “que o bem seja preferido ao mal e o bem geral ao bem particular”. Ora, visto que o direito de propriedade não é natural, o taitiano desconhece as noções de teu e de meu, prezando como riqueza o número máximo de filhos, que virão trabalhar as terras disponíveis, defender a nação contra os inimigos ou gerar outros taitianos, novos braços para o trabalho e a defesa da terra comum. Por isso, não é surpreendente que o nascimento de uma criança seja objeto do maior regozijo público e privado, que a sexualidade seja a grande preocupação da educação taitiana e que as leis civis procurem encorajar ao máximo “a mais augusta inclinação da natureza”. A união do macho e da fêmea, assim, não se faz necessariamente pelo vínculo do casamento, podendo acontecer fora dele, tão logo o rapaz chegue à puberdade e a moça à idade núbil; no segundo caso, se a ligação trouxe ao mundo uma criança, esta pertencerá à mãe e fará parte de seu dote em futuras uniões; na hipótese de casamento (leia-se: se o rapaz e a moça passaram a morar na mesma cabana), nenhum dos dois empenha por isso sua liberdade sexual: um e outro não perdem o direito a ligações fugazes e só permanecem juntos até assim o desejarem, os eventuais filhos comuns sendo partilhados após a separação. Como se pode supor, o taitiano ignora, assim, uma série de paixões, valores e práticas que provocam tanta desordem e infelicidade entre os europeus: o ciúme, a constância, a fidelidade conjugal, o incesto, o pudor, a galanteria, o coquetismo. Libertinos, os taitianos? De modo algum. Para a elaboração das leis, eles não consultam senão uma regra: “a do bem geral e da utilidade particular”; ora, visto que o bem geral, aqui, se identifica com o crescimento da população, não é surpreendente, pois, que a educação doméstica e pública proíba a prática sexual aos rapazes não-púberes, às moças não-núbeis e às mulheres menstruadas ou estéreis, e que os transgressores sejam punidos com castigos que variam da simples reprimenda ao exílio e à escravidão.

No fundo, que lições se devem tirar da utopia taitiana? A primeira delas é explícita: as paixões humanas, decorrentes de necessidades físicas, não são boas nem más, tanto da perspectiva da natureza como da estrita perspectiva do indivíduo, e, portanto, são estranhas ao domínio da moral. A segunda, implícita, é que este ponto de vista meramente biológico diz respeito ao homem natural, fora de qualquer vínculo com os outros, e ainda ao homem social, em todos os casos em que suas ações são indiferentes à sociedade. Mas o homem vive em sociedade e é então que intervém o domínio da moral, que deve regular suas relações com os outros.[3] Uma sociedade bem constituída pode, pois, dirigir as paixões humanas no sentido do bem público e é precisamente o que fazem os taitianos: eles devem sua boa constituição à sabedoria na observação de um código único, o natural, que funda uma moral sadia e revela, por contraste, a insanidade das legislações europeias. O código da natureza é, com efeito, de uma transparência desconcertante. Prova disso é a espantosa facilidade com que o primeiro interlocutor lê os sinais inscritos neste céu nebuloso que enquadra os dois últimos contos. A contraprova? As ligações tempestuosàs dos casais parisienses, dilacerados pelo amálgama de três códigos — o natural, o civil e o religioso — que se contradizem entre si e impedem o homem europeu de se tornar homem, piedoso ou cidadão. Diante da simplicidade do Taiti, que poderia pensar Oru das “condições requeridas” na Europa para a união do macho e da fêmea, isto é, destas “cerimônias prévias, em consequência das quais um homem pertence a uma mulher e só a ela, uma mulher pertence a um homem, e só pertence a ele”? Certamente que são “contrárias à razão”, “à natureza” e “à lei geral dos seres”. À razão, pois só parecem ter sido instituídas a fim de serem violadas — o código da natureza é, afinal, incontornável; à natureza, pois transformam o homem em propriedade, confundindo “a coisa que não tem nem sensibilidade, nem pensamento, nem desejo, nem vontade […] com a coisa que não se troca, que não se adquire; que tem liberdade, vontade, desejo”; e, afinal, à lei geral dos seres, pois pretendem suprimir nos homens a mudança, exigindo-lhes uma constância que viola sua liberdade. Ora, enquanto nossos desejos naturais forem “sofisticados”, enquanto não se reduzir a paixão do amor, como no Taiti, “a um simples apetite físico”, nossas sociedades poderão continuar contando com a existência de homens e mulheres maus, cruéis ou desgraçados como mme. Reymer, Gardeil, Tanié, mile. de la Chaux, Desroches, mme. de la Carlière.

Quer isso dizer, entretanto, que Diderot esteja propondo uma fabulosa volta à natureza, expondo-se, desse modo, à cruel tirada de Voltaire contra Rousseau, — a de que sua obra daria vontade de voltar a andar de quatro? Em outros termos, quer isso dizer que esteja encorajando uma desobediência generalizada à depravação do tríplice código? De modo algum. Terminada a leitura do diálogo Oru-Capelão, os dois interlocutores voltam ao debate e a conclusão é clara — mais que isso, iluminista. Não há costumes sem submissão às leis, quer boas, quer más. Donde a afirmação:

Falaremos contra as leis insensatas até que sejam reformadas e, esperando, nos submeteremos a elas. Aquele que, por sua própria autoridade privada, infringe uma lei má, autoriza qualquer outro a infringir as boas. Há menos inconvenientes em ser louco entre os loucos do que em ser sábio sozinho. Digamos a nós próprios, gritemos incessantemente que a vergonha, o castigo e a ignomínia foram vinculadas a ações inocentes em si mesma; mas não as cometamos, porque a vergonha, o castigo e a ignomínia são os maiores de todos os males. Imitemos o bom capelão, monge na França, selvagem no Taiti.

Quando acabamos a leitura do “Suplemento…” dissipa-se o nevoeiro que envolvia os dois interlocutores. Das sombras iniciais até aqui, o caminho é claro e mostra de que modo, partindo de uma conversa banal entre dois amigos, Diderot recupera os mais caros temas do Iluminismo. A princípio, o filósofo, aparentemente distraído das graves questões que deveriam ocupá-lo, debruça-se sobre algumas vidas privadas e nos conta uma história de amor como tantas outras, repete-a depois num outro registro, tensionando um pouco mais a corda do instrumento: são histórias de pessoas que, levadas pela paixão amorosa, se precipitam nas maiores desgraças e, afinal, na morte. Por isso, Diderot exige do leitor um julgamento moral sobre suas condutas. Mostra que é difícil se pronunciar desta maneira sobre atos que derivam de uma ordem “física”, que é preciso fazê-lo com circunspecção, ou melhor, que se deve mesmo suspender qualquer juízo e deixar-se guiar por máximas de ordem prática. Em seguida, estica a corda ao máximo e deixa á mostra a inconsideração e o desregramento nos quais nos precipitamos se insistimos em julgar. Mas de que maneira “o maior, o mais doce, o mais inocente dos prazeres se tornou a fonte mais fecunda […] de nossos males”? Para responder a essa questão, é preciso tirar os olhos de Paris, seguir no encalço da esquadra de Bougainville e escutar o selvagem Oru, por intermédio de quem se expressa a voz da natureza. A razão de tantos males, conforme mostra a feliz comunidade do Taiti, não deve ser buscada na pretensa falta de moralidade deste ou daquele indivíduo, nem certamente nos cegos impulsos da natureza, mas nas nossas sociedades, cujas legislações depravadas entregam os homens a códigos incompatíveis e atribuem ideias morais a ações físicas que não as comportam. Depois de sondar algumas intimidades mais ou menos banais e embrenhar-se nos mares em busca do Taiti, é assim que o filósofo, apesar dos rodeios, volta ao lugar que jamais deixou: o céu aberto (fechado) da cidade em que habita.

Notas

[1] Podem ser lidos, por exemplo, Oeuvres, de Diderot. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade. O “Suplemento…” foi publicado no volume Diderot, trad. J. Guinsburg, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores).

[2] Diga-se, de passagem, que em francês a expressão chausser le brodequin significa “escrever ou representar comédias”.

[3] Esta tensão entre moralismo e amoralismo no pensamento de Diderot foi estudada por Jacques Proust em Diderot et l’Encyclopédie, Paris, armand Colin, 1967 (ver o capítulo “Materialisme et morale”).

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