2013

Desprogramar o futuro

por David Lapoujade

Resumo

O futuro costuma ser apresentado de formas opostas. A primeira é sombria, pois, nela, o homem, preso num amplo sistema que lhe escapa por todos os lados, nada pode fazer para mudar seu destino. O mesmo aconteceria com os indivíduos e os Estados. Impotentes, eles seguiriam o ritmo desenfreado de um sistema que funciona sozinho. Reconhece-se aí a origem dos discursos sobre a “globalização”. Mas não só – já que, simultâneas à globalização, há as “sociedades de controle” (segundo Deleuze), que se confundem com a propagação das redes de informação e das novas tecnologias.

De um lado, o descontrole. De outro, o controle excessivo, sob o qual o cidadão (como observa Agamben) resume-se a um banco de dados numa gigantesca máquina totalitarista. Acontece que a globalização só opera com a condição de justamente não se deixar totalizar ou unificar. Ela pressupõe uma interdependência, uma interconexão, mas sem concentração ou centralização, sem a ubiquidade que se atribui a um totalitarismo “high tech”. As palavras-chave são, então, “democratização” e “liberalização”, já que liberadas estão não só todas as formas de afeto e sexualidade como de comunicação e expressão. De fato: a ausência estrutural de hierarquia e de centralismo concorre para a pluralidade. Nisso está – diz-se – a garantia de uma liberdade que se confunde com o próprio futuro, em que está garantida a circulação das pessoas, informações e riquezas. Esse mundo. Trata-se de um todo aberto do qual é impossível sair. Ora, como é possível a simultaneidade de tais perspectivas, em tudo opostas? Isso se explica porque a imagem que se faz dela é total ou global? Ao pensar assim, não se corre o risco de conferir a tal todo uma forma preexistente, resolvida? Mais: de realizar um futuro segundo a crença geral? Nesse caso, o homem está-se dando por vencido antes mesmo de lutar, cego que está para os interstícios, de que tratam Deleuze e Didi-Huberman.


O que Valéry quer dizer quando afirma: “O futuro não é mais o que era”? Que sentido dar a essa frase célebre? Não vou analisar o papel que essa frase desempenha em Valéry, nem explorar os paradoxos que se poderia tirar dela. Ao contrário, vou separá-la do seu contexto e tentar compreendê-la como uma proposição para o pensamento, para a vida, para nós, hoje, aqui e agora. O que quer dizer afirmar hoje que o futuro não é mais o que era? Pode querer dizer pelo menos duas coisas: ou que o futuro oferece daqui por diante possibilidades de uma novidade radical sem precedentes, quase inesperadas, que modificam não apenas o futuro, mas a própria ideia que podemos fazer do futuro; ou, ao contrário, que o futuro se esvaziou das possibilidades com que o preenchíamos no passado e se apresenta a nós desesperadamente vazio – ou melhor, saturado de uma realidade que aniquila todas as nossas esperanças. É nesse sentido que nos falam do “fim das utopias”. Se o futuro não é mais o mesmo, é porque seu horizonte se esvaziou de todas as utopias que o povoavam. Se, no primeiro caso, o futuro ultrapassa nossas esperanças, no segundo ele deixou de ser uma razão de ter esperança. Seria um erro, porém, acreditar que a frase de Valéry tem por objeto o futuro. Ela nada diz sobre o futuro, apesar das aparências. Então, do que ela fala? Ela se apresenta antes de tudo como uma espécie de avaliação do presente; talvez a ideia mesma de futuro não seja outra coisa senão um diagnóstico do presente. Ora, o que é um diagnóstico? Sabemos que são os médicos que diagnosticam, são eles que revelam os sintomas, os sinais anunciadores de uma doença ou de uma melhora. Fazer um diagnóstico do presente é transformar-se, nem que seja por um breve instante, em “médico da civilização”, segundo as palavras de Nietzsche. “O futuro não é mais o que era” é a frase de um médico da civilização. E talvez ela convoque a esperança de vida das civilizações (de modo que essa frase deveria ser relacionada com outra expressão célebre de Valéry: “Agora, sabemos que as civilizações são mortais”). O médico não tem aqui por vocação curar, mas apenas identificar linhas de forças, aquelas que encerram novas potencialidades, que contêm os germes de um futuro – sombrio ou radioso, um pouco à maneira como Kafka falava das “potências diabólicas do futuro que já batem à porta”. Se houve alguém com percepção de médico, capaz de ler os sinais do futuro no presente, foi Kafka. Ainda que hoje sintamos a falta de um Kafka para decifrar o futuro, vemos claramente que nossas sociedades atravessam um conjunto de mutações tecnológicas sem precedente que desenham novas linhas de forças. Eis aí um diagnóstico muito geral, feito de inúmeras vozes concordantes – jornalistas, sociólogos, filósofos e outros mais -, cujos traços é preciso esclarecer para tentar adivinhar que futuro ele nos reserva.

O que dizem então os rumores? Dizem que vivemos numa sociedade de comunicação ou de controle. Como se o futuro devesse agora passar por uma sociedade que se desenvolve, se estende e se governa pelas informações que ela não cessa de fazer circular por todos os meios possíveis. Trata-se de um poder de um novo tipo. O poder não funciona mais por encerramento e disciplina, como analisou Foucault em relação ao século XIX e à primeira metade do século XX. Não se encerram mais os indivíduos em escolas, depois em casernas, depois em fábricas, asilos, hospitais, para submetê-los a uma disciplina. O poder é cada vez menos disciplinar. Não se lida mais com as massas e os indivíduos, que são as duas realidades do poder disciplinar: a quantidade das massas e a assinatura dos indivíduos. Pelo menos, é o diagnóstico de Deleuze. Na esteira de Foucault, Deleuze sustenta que vivemos agora numa sociedade de controle e de comunicação. Indivíduos e assinaturas foram substituídos por códigos de acesso ou por números. Não se assinam mais documentos: codificam-se acessos de informações, numeram-se fluxos. As massas organizadas em corpos coletivos (operários, alunos, prisioneiros, loucos, doentes) são substituídas por bancos de dados. Constituímos coletivamente bancos de dados. O poder não disciplina mais, ele informatiza, no sentido de que antecipa informações que faz circular através de uma quantidade sempre crescente de redes de toda natureza. Não cessamos de fazer fluir comunicações, de recolher informações, de numerar seus acessos, e quanto mais comunicamos e trocamos informações, tanto mais nos submetemos a isso. Estamos sob controle permanente, expostos ao controle pelo controle que exercemos sobre nossas redes de comunicação. Sabe-se tudo de nós, o que fazemos, compramos, vendemos, pensamos; sabe-se onde estamos, em que momento. Todo o nosso espaço-tempo é esquadrinhado pelos fluxos de informação que ele faz circular. E esse controle se exerce mais e mais à medida que tudo passa pelos computadores e pelas trocas de informações. Pressente-se claramente que tudo é dirigido para um computador total, a uma tela total, a um mundo povoado de telas de controle.

Esses aspectos, conhecidos de todos, mostram uma transformação profunda do capitalismo, que agora tem por objetivo menos a produção que a superprodução. Como diz Deleuze, é o capitalismo da superprodução (em que a produção industrial é lançada à periferia do mundo rico). Ele não compra mais matérias-primas e não vende mais produtos acabados; compra produtos acabados ou monta peças separadas. O que ele quer vender são serviços, e o que ele quer comprar são ações. Doravante tudo está voltado para a venda, mais que para a produção industrial. Nesse sentido, Deleuze pode dizer que o modelo da empresa substituiu o da indústria. E certamente, aos olhos de Deleuze, o modelo da comunicação ou do controle é, de uma ponta a outra, empresarial. São em primeiro lugar as empresas que comunicam, e comunicar, de uma maneira ou de outra, é entrar no mundo da empresa. Comunicar é necessariamente tornar-se empresário. Eis algumas das linhas de forças que constituem nosso presente e nas quais devemos tentar ler. decifrar o futuro que nelas se prepara. Ele é sombrio? É radioso? O presente no qual vivemos nos obriga a afirmar, como Valéry, que o futuro não é mais o que era? Em outras palavras, que diagnóstico estabelecer a partir daí?

Já entrevimos que havia dois diagnósticos possíveis, cuja natureza devemos agora explicar. Primeiro diagnóstico. Conhecemos todos os discursos, por tê-los ouvido com muita frequência, para os quais se desenham, nessas mutações tecnológicas, possibilidades inéditas, inesperadas. De fato, alguns veem aí um novo regime que permite uma democratização do conhecimento, uma transparência dos saberes, contra as opacidades, os segredos de Estado à moda antiga. Quem não ouviu esses discursos sobre a web, sobre as novas redes, sobre seu caráter ao mesmo tempo local e global, não centralizado, sobre a livre circulação de informação e de opiniões, da mais trivial à mais protegida? As novas forças do futuro constituem um modelo de democratização, de comunicação horizontal, não controlada por uma instância superior central (já que o controle está em toda parte, age em toda parte), em que a informação não cessa de circular segundo os acessos e os códigos digitais que regulam seus fluxos. Iremos sempre em direção a mais democratização, a mais liberdade individual.

Um dos modelos recorrentes, sinal dessa democratização, é o vazamento de informação tal como o sistematizou o Wikileaks. Desse ponto de vista, o vazamento de informação não é um erro ou uma disfunção, mas pertence por natureza à sociedade de comunicação. Pode-se mesmo dizer que o principal, nela, é o vazamento de informações, como garantia de seu funcionamento, de sua eficácia, em suma, de seu poder, ou melhor, de seu contrapoder. A sociedade de comunicação não se coloca, de início, como poder, mas como contrapoder, contra todos os antigos poderes disciplinares que segmentam, que separam, que centralizam e hierarquizam. É a força democrática da circulação de informações, sinal de sua transparência futura, a informação como contrapoder: o que vocês têm a esconder, poderosos? Sob certos aspectos, vemos que essa circulação constitui um novo tipo de poder na medida em que o saber pode ser colocado à disposição de todos e tornar-se uma força coletiva dispersa, não localizável, segundo um modo de funcionamento horizontal oposto às hierarquias verticais e centralizadas do antigo poder. Mais ainda, as redes só funcionam de maneira eficaz com a condição de não serem centralizadas. E foi possível dizer que voltávamos à convivialidade das praças de aldeia, em que os habitantes se reuniam para falar coletivamente dos problemas locais: do mais arcaico ao mais contemporâneo, é a famosa “aldeia global”, a conjunção do local e do global. Isto quanto ao primeiro diagnóstico. Se o futuro não é mais o que era, é porque, pela primeira vez na história, informação e comunicação não podem mais pertencer a poderes centrais e unificados que decidam sobre o curso de nossas existências.

Mas então o que seria o outro diagnóstico? Como ele pode ver o futuro de maneira tão sombria e pessimista? Segundo quais linhas de força ele se constrói? É que as mutações tecnológicas nunca fazem senão reforçar um único e mesmo sistema, o do capitalismo, sempre mais triunfante. O futuro está inteiramente encerrado no interior dos limites do capitalismo, que captura todas as suas possibilidades para estender-se, propagar-se. Não há futuro exceto no capitalismo. E todo futuro nunca é senão o futuro do capitalismo. Como lembra Fredric Jameson num artigo justamente chamado “Future City”, é mais fácil – em particular para o cinema americano – imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo, como se não houvesse mais outro horizonte possível. O que seriam então as forças de democratização, de liberdade, de que falei há pouco?

É que esse contrapoder funciona, em realidade, como um novo poder. Como não ver que nenhum de nós consegue escapar a este mundo de informações, de comunicações, que ele não cessa de nos controlar, de obter inúmeras informações sobre nossos modos de existência para transformá-las em dados comerciais? Tornou-se impossível subtrair-se a este mundo, a não ser lançando-se em sua periferia, lá onde reina a profunda miséria que ele, por outro lado, produz. Vivemos num mundo cujo futuro está tamponado, regulamentado, programado, um mundo do qual agora é impossível sair. É o todo da “sociedade do espetáculo” ou dos meios de comunicação de que fala Guy Debord, ou mesmo o fantasma da realização de um novo tipo de totalitarismo high-tech: não podemos mais escapar da luz do poder, de suas telas de controle e de suas circulações de dados, a luz gloriosa do poder, como diz Giorgio Agamben subscrevendo as descrições de Guy Debord. Passa-se, por deslizamentos sucessivos, do conceito de todo ao de totalização, depois do conceito de totalização ao de totalitarismo. Por isso, nosso futuro seria sem futuro para nós – porque global quer dizer total, e porque total já quase quer dizer totalitário. Somos pegos num vasto sistema que nos escapa por todos os lados, sobre o qual não temos poder de intervenção nenhum, a não ser irrisório, e no interior do qual nenhuma decisão individual tem agora importância. Eis aí, rapidamente esboçada, a visão própria ao segundo diagnóstico.

Nos diagnósticos considerados, temos duas maneiras de conceber o Todo do futuro. Ou ele é concebido (ingênua ou cinicamente) de forma neoliberal como um todo aberto que favorece a livre circulação dos bens, das pessoas e das informações, e sua ausência de hierarquia e de centralismo é doravante a condição de seu funcionamento, donde, em longo prazo, uma democratização inevitável ao mesmo tempo que desejável. É um velho refrão da pior sociologia: o progresso tecnológico como fator de democratização. Ou, ao contrário, esse mundo é concebido como um todo, aberto, é verdade, mas à maneira de um horizonte globalizador, insuperável ou mesmo sufocante: o todo do capitalismo cuja comunicação nunca é senão a última descoberta, o último avatar, a nova força de venda, já que agora vender é uma força. A questão pessimista “como escapar ao sistema? como não ser recuperado pelo sistema?” torna-se, por sua vez, a mais velha questão do militantismo mais cambaio, uma espécie de utopia impossível como único futuro. As sociedades atuais são sociedades de controle de comunicação. Toda a alternativa desses dois diagnósticos está no “e”, já que de um lado se ouve gritar: viva a comunicação! e de outro: abaixo o controle!
Mas parece que essas duas visões, não obstante objetos de uma literatura abundante, são demasiado unilaterais e cada uma é cega ao que a outra percebe. O sentido da minha intervenção visa simplesmente tentar saber se não há outra maneira de proceder, propondo outro tipo de descrição das sociedades de controle e de comunicação. Por isso chamei minha intervenção: desprogramar o futuro. Como desfazer-se dessas visões ora otimistas, ora pessimistas? Talvez seja preciso mesmo acabar com o par otimismo/ pessimismo. Talvez não sejam boas categorias para pensar o futuro. Talvez não se deva ser nem otimista nem pessimista quanto ao futuro. Talvez seja preciso encontrar outro conceito, outra categoria. Mas qual? E que atitude adotar diante do futuro se não devemos ser nem uma coisa nem outra? Talvez seja esse o sentido da frase de Valéry, o novo sentido que lhe podemos dar. Nem otimista, nem pessimista. Mas o quê, então?

A primeira coisa a dizer, parece-me, contra os dois diagnósticos que acabo de apresentar, é que não há mais Todo, mesmo aberto, mesmo imanente. É preciso abandonar o conceito de “todo” para pensar a globalização. Global não quer dizer total. Os conceitos de todo, de totalidade ou, mais ainda, de totalitarismo, não só não permitem como também nos impedem de pensar as sociedades de controle. Por quê? Percebe-se claramente que as imagens se multiplicaram, que os meios de comunicação se desenvolvem em todas as direções por intermédio das novas tecnologias, mas conserva-se a ideia de ubiquidade, de centralismo difuso do “poder” no seio mesmo dessa propagação. Percebe-se o controle como um novo modo de vigilância, uma versão high-tech da vigilância disciplinar: substitui-se o guarda da prisão pelo satélite de vigilância.

O erro de Agamben ou de Debord (para citar apenas esses dois autores) é permanecer num esquema disciplinar de encerramento, quando, ao contrário, o controle funciona em meio aberto. Que vivamos em sociedades de controle não quer dizer que estejamos sob controle (como estávamos outrora sob vigilância e como ainda estamos), mas sim que produzimos controle; antes de tudo, cada um de nós é que não cessa de produzir controle enquanto comunica. O que se deve entender por isso? Já que o modelo atual é o da empresa (e já que esse modelo se difunde em toda parte), vou tomar o modelo do trabalho em empresa para torná-lo mais facilmente perceptível. Também aí existe uma literatura abundante para descrever os novos modos de trabalho em empresa, a flexibilidade, a polivalência, o management, que, sob pretexto de “criatividade”, de “abertura”, de “adaptabilidade”, obriga o empregado a se investir de tal maneira que não fique mais sob as ordens de um superior hierárquico, mas que produza ele próprio essas ordens na forma de metas que contribuirão para seu êxito profissional e seu desenvolvimento pessoal, que esteja em fase de adaptação e de formação permanente etc.: todas as manipulações do discurso do management (e a literatura mais interessante ou a mais terrível não é a que denuncia essas práticas, mas a que a encoraja e a desenvolve, todos os livros dedicados ao management). No limite, não há mais hierarquia, pois a comunicação vertical das ordens faz perder um tempo precioso, há somente um conjunto coletivo de competências que se autorregula em função das metas que foram fixadas. É a competência que decide eventuais hierarquias, não mais o inverso.

Por que se fala aqui de controle? É que o trabalho em empresa consiste cada vez mais em dividir de maneira interna o trabalho, de tal modo que um empregado participa de várias atividades cuja interconexão ele assegura; sua atividade consiste em “gerenciar fluxos” distintos, simultâneos, mas também em conhecer e estabelecer os protocolos que permitam relacionar esses fluxos uns aos outros. Tomemos um exemplo que nada tem a ver com o trabalho: um condutor de veículo não é mais apenas um indivíduo que se submete (ou não) à regulamentação rodoviária e cuja única atividade consiste em vigiar a estrada. Isso é o automobilista da sociedade disciplinar. Agora, enquanto vigia a estrada, ele consulta o GPS, ao mesmo tempo em que telefona para resolver um problema, ao mesmo tempo em que conecta seu rádio e se ocupa dos passageiros (se forem crianças, por exemplo). Esse indivíduo vê sua atenção se dividir, distribuindo-se segundo pontos fortes e pontos fracos, da mesma maneira que uma tela de computador se divide em janelas. Todos os fluxos de informações são contínuos, simultâneos, paralelos, e se conectam ou se desconectam entre si conforme os momentos. O importante aqui não é a hiperatividade, a súbita aceleração temporal a que o indivíduo é submetido, é a relação (ou não) de interconexão, a divisão interna da atividade numa pluralidade de fluxos que passam sob seu controle. Mesmo num lugar tão isolado como um veículo, o indivíduo é atravessado, assaltado por informações. O homem do controle é um indivíduo ao mesmo tempo hiperconcentrado e totalmente distraído, hiperconectado e totalmente desconectado.

Percebe-se: as sociedades de controle não nos colocam sob controle, elas nos fazem controlar. Ou, se preferirem, estar sob controle é ter fluxos ou atividades sob seu controle. E todos esses diversos organismos de controle, individuais ou coletivos, não estão submetidos a uma forma superior que os englobaria; quando muito se pode dizer que cada organismo de controle faz parte, ele também, embora parcialmente, de outro organismo de controle, por sua vez controlado por outros, sem que se possa falar de unidade última ou de uma forma superior, centralizada, do controle. Só é possível falar de totalização quando esta se faz gradualmente ou à distância, não sem fragmentação, dispersão. Toda atividade que interconecta fluxos ou lhes gerencia a simultaneidade se estende, favorece o entrelaçamento do controle. Não existe aí totalidade alguma, processo de totalização algum, pelo contrário. Dissipa-se a miragem ou o fantasma do poder com P maiúsculo, o poder como totalidade ou todo, o Big Brother. Quanto mais o controle conjuga os fluxos para ligá-los, tanto maior se faz, paralelamente, a descontinuidade, a desconexão. O mundo tornou-se um mundo estilhaçado, implodido numa multiplicidade de células independentes que tendem a se separar umas das outras ao mesmo tempo em que não cessam de multiplicar as interconexões. Eis por que é difícil conceber esse mundo como um Todo acabado, fechado em si mesmo, e a razão pela qual é difícil conformar-se com o diagnóstico mais pessimista.

Nesse caso, devemos então ser otimistas? Devemos nos alegrar com a propagação ilimitada desses fluxos de informações? Mas se o conceito de controle não é tão totalitário quanto se supõe, não é certo, inversamente, que o conceito de comunicação ou de informação seja tão libertário quanto se imagina. Volto um instante a Deleuze. Deleuze, justamente, é muito cético acerca das noções de informação e de comunicação. Numa entrevista a Toni Negri, ele declara o seguinte:

Você pergunta se as sociedades de controle ou de comunicação não suscitarão formas de resistência […] Não sei, talvez. Mas não seria na medida em que as minorias pudessem retomar a palavra.

Deleuze prossegue:

Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um desvio da palavra. Criar sempre foi algo diferente de comunicar. O importante será talvez criar vacúolos de não comunicação, interruptores para escapar ao controle.

Por que tal desconfiança? Por que tal pessimismo acerca da comunicação? Para Deleuze, o modo de comunicação atual passa essencialmente pelas imagens e pela linguagem. Vivemos cercados de linguagem e cercados de imagens; nosso cérebro está banhado nas imagens e na linguagem. Mas a natureza delas, ou pelo menos a percepção que temos delas, mudou. As imagens entre as quais vivemos agora não remetem mais ao mundo exterior, mas a outras imagens. É esse o seu poder comunicante. Sua característica é serem sem exterioridade (embora não possuam tampouco interioridade); elas possuem apenas um avesso e um direito, ou então deslizam umas sobre as outras. Constituem assim um mundo-tela autossuficiente, isto é, um mundo que se tornou uma espécie de mesa de informações tal que as imagens comunicam diretamente informações ao cérebro; não são mais imagens a ver, mas imagens a ler. Um pouco como os turistas que nem olham mais os lugares que visitam, contentando-se em filmá-los para vê-los depois. Elas não exigem primeiramente um olho, mas um cérebro. Desse ponto de vista, o computador, para Deleuze, é o fim do olho, pelo menos o fim de sua autonomia em favor de um reinado exclusivo do cérebro (que subordina o olho), não em vista de uma ação qualquer, mas em vista da circulação de informações. É o fim da percepção em proveito da simples leitura (que não tem mais finalidade motora). É como uma mutação corporal que libera o cérebro do problema da motricidade. Deleuze ainda:

A imagem não cessa de se recortar noutra imagem, de se imprimir através de uma trama aparente, de deslizar sobre outras imagens num fluxo incessante de imagens, e o próprio plano se assemelha menos a um olho que a um cérebro sobrecarregado que absorve constantemente informações: é o par cérebro-cidade que substitui o par olho-natureza.

Reencontramos nosso automobilista de há pouco, que lida menos com um mundo exterior que com um painel de bordo no qual desfilam fluxos de informação visuais ou sonoros que ele tenta controlar. Ele é menos um olho que percebe um mundo exterior que um cérebro que decifra um mundo agora sem exterioridade.

Em tal mundo, as imagens funcionam como a linguagem. Pois a linguagem é também sem exterioridade. Sabe-se que toda frase remete a outra frase que ela supõe ou implica. Todo enunciado remete a um enunciado anterior e não a uma realidade exterior. Mesmo se me perguntam o sentido da palavra “sol” e mostro o sol com o dedo, não ponho em relação a palavra e a coisa do mundo exterior, não digo nada do próprio sol, apenas explico a significação de uma palavra. Não saio da linguagem. Pois a linguagem é sem exterioridade. Não há nada no exterior da linguagem, como não há nada no exterior das imagens. De modo que a linguagem faz de nós emissores ou transmissores de informação, assim como a imagem faz de nós receptores ou cérebros-telas. Mais ainda, percebe-se que ver é sempre colocado em correspondência com falar, e vice-versa. Na maioria das vezes, falar é transmitir a informação sobre aquilo que há para ver, assim como ver é olhar o que nos dizem para olhar. Há um sistema de retomada da linguagem pela imagem e, inversamente, da imagem pela linguagem, um entrelaçamento em circuito fechado que é inteiramente redundância, ressonância, repetição de informação, e que faz que cada forma controle a outra. O fluxo de linguagem é controlado pelo fluxo de imagem, o fluxo de imagem é controlado pelo fluxo de linguagem, donde a multiplicação e a saturação quase imediata da informação que nos faz passar imediatamente de uma informação a outra, ela também imediatamente saturada de imagens e de linguagem, e assim por diante. Isso explica e confirma o que eu dizia há pouco: ao mesmo tempo hiperconcentrado e totalmente distraído, hiperconectado e totalmente desconectado. É outra maneira de dizer que o mundo exterior passou ao segundo plano. Perdemos, por assim dizer, contato com o mundo. O perigo da comunicação é a perda do mundo ou, o que dá no mesmo, sua substituição pela informação (e pela informática, que é seu suporte).

Objetarão que isso se deve ao fato de estarmos saturados de informações, de haver agora informações demais e de não sabermos mais o que pensar, de se produzir um fenômeno sem precedente de aceleração da comunicação que nos faz perder de vista o próprio mundo. Para barrar esse fenômeno bastaria selecionar ou diminuir o consumo desses fluxos inumeráveis. Mas dizer isso é desconhecer a natureza mesma da informação. Pois é próprio da informação propagar-se até o ponto em que ela própria se anula, em que ela atinge um ponto de saturação que a torna ineficaz e nos deixa abestalhados, sem reação, hiperconectados e desconectados ao mesmo tempo. Comunicar é anular a informação no momento mesmo em que ela é transmitida, é conectar os indivíduos aos fluxos informativos ou informáticos e desconectá-los do mundo. Não há informação sem que já haja informação demais. A saturação é consubstancial à informação.

Mas, se tal é nossa situação, será que não nos vemos no mesmo encerramento de há pouco, enclausurados na correspondência entre o todo das imagens e o todo da linguagem, na incapacidade de sair da linguagem e de sair das imagens, já que nada existe fora? Não se juntaria Deleuze ao campo dos pessimistas? Não retornamos à alternativa da qual eu queria sair? Entretanto vimos por onde passava a solução, para Deleuze. Ela consiste em criar, em sermos criadores. Mas isso é algo muito modesto. De fato, o que é criar? Criar é um ato de resistência, mas que não consiste em propor um contrapoder; não se trata de derrubar o poder das imagens ou da linguagem, como uma ação revolucionária tenta derrubar um poder político. Derrubar é derrubar um todo, o todo de uma organização política, em favor de outro. É ainda uma lógica do todo, das totalidades. Não se trata de retomar o poder. Deleuze diz isso bem: não se trata de retomar a palavra… Para Deleuze, a questão toda é revirar, não derrubar. Qual a diferença? Não há nada fora do todo, mas o próprio todo tem um fora ou, se preferirem, um avesso. Há um avesso da linguagem, um avesso das imagens. O que isso quer dizer?

Significa que é preciso desfazer a relação de correspondência regulada que se estabeleceu entre imagem e linguagem. É preciso fazer passar o que está no interior da linguagem ou da imagem para o exterior delas. Não existe mais nada fora da linguagem e da imagem, mas elas têm um exterior, um limite que torna seu exercício impossível – ou melhor, que torna impossível relacionar o que se diz ao que se vê, e vice-versa, quando bruscamente há algo que se vê e que não se pode dizer, ou algo que é preciso dizer mas que não se consegue fazer ver, quando se vê no visível outra coisa que não o que ele mostra, quando se percebe no dizível outra coisa que não o que se deixa dizer. É o que Deleuze chama um acontecimento. Passou-se alguma coisa que é grande demais, forte demais para que eu possa dizê-la, para que eu possa propor sua simples imagem ou enunciá-la em algumas palavras. Existe aí como que uma brecha, uma espécie de fenda, de rachadura no sistema de comunicação ou de controle que abala a relação entre imagem e linguagem.

Ver e falar entram então numa relação disjunta, uma não relação. O que digo não se relaciona mais ao que vejo (embora seja inseparável dele); o que vejo não se relaciona mais ao que digo. Lidamos com outra lógica, não mais de retomada ou de comunicação, mas de interrupção, de ruptura. Cada forma atinge seu limite próprio. A linguagem só atinge seu próprio exterior ou seu limite se romper com seus laços visuais; a visão só atinge seu próprio exterior ou seu limite se romper com a sintaxe, com a ordem sintática estabelecida e as significações convencionais. Isso é próprio do acontecimento. Senti ou vivi algo de muito forte para fazê-lo entrar na relação regulada entre imagem e linguagem. Por um breve instante, passei para o avesso da linguagem (o indizível que, no entanto, só pode ser dito numa linguagem estranha) ou o avesso do visível (o invisível que, no entanto, só pode ser visto num estranho exercício de vidência). Deleuze dá exemplos em alguns cineastas, quando a voz que fala evoca alguma coisa que não é visível na imagem, ou quando a imagem mostra alguma coisa da qual a fala nada pode dizer, criando assim brechas ou vacúolos de não comunicação, segundo seus termos. Com isso, talvez, ao perdermos nossas conexões, reencontramos fragmentos do mundo, espaços-tempo não quadriculados pelo controle, imagens não saturadas de informações e que nada têm a comunicar senão elas mesmas. Não se trata de uma utopia, isso não muda em nada o futuro, o futuro continua sendo o que era, isto é, uma ideia, nada mais que uma ideia ou um programa que otimistas e pessimistas preenchem com suas convicções; trata-se agora de crer num fragmento do mundo presente, que volta a ser dado ou liberado nos intervalos ou nos interstícios do controle.

Num belo texto recente, Sobrevivência dos vagalumes, Georges Didi-Huberman escreve o seguinte:

Será o mundo tão totalmente subjugado quanto o sonharam – quanto o projetam, o programam e no-lo querem impor – nossos atuais conselheiros pérfidos? Postular isso é justamente dar crédito ao que a máquina deles quer nos fazer acreditar. É não ver senão a noite negra ou a luz ofuscante dos projetores. É agir como vencidos: é sermos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É ver apenas o todo. Portanto, é não ver o espaço – nem que seja intersticial, intermitente, nômade, improvavelmente situado – das aberturas, dos possíveis, dos vislumbres, dos apesar de tudo.

Fora da escuridão e da luz, há ainda a pulsação de vagalumes que captam uma luz que não é a das telas de controle e que aparecem em espaços-tempo não quadriculados.

Percebe-se bem que a questão não é mais, em absoluto, ser otimista ou pessimista. Eu buscava há pouco outro termo. Talvez seja em William James, um filósofo americano do século XIX, já hostil a toda ideia de totalidade, de unificação, de totalização, que eu deva procurá-la. Aos olhos dele, o erro tanto do pessimismo como do otimismo é justamente considerar o mundo como um Todo coletivo, perdido ou salvo a priori, como se a ação de cada um de nós não modificasse em nada o resultado final. Como diria Georges Didi-Huberman, somos já vencidos (ou já vencedores) se supomos que o todo precede as partes. É assim que se pode dizer: de todo modo, o todo da comunicação conduz à democratização; de todo modo, o todo do controle conduz a um novo tipo de totalitarismo. Pensa-se em termos de todos, de totalidades, como nos convida a isso o próprio termo “globalização”. E sim, diante de um todo coletivo, não se tem outra escolha senão ser pessimista ou otimista. Mas o que seria diante das partes que compõem esse todo? O que se passa entre essas partes? E, principalmente, o que se passa quando se desce nos interstícios, nos intervalos do todo? Como diz William James: “As coisas estão relacionadas umas com as outras de muitas maneiras; mas não há uma que encerre ou domine todas elas. Uma frase arrasta sempre consigo a palavra e, que a prolonga. Há sempre alguma coisa que escapa”. No interior mesmo do todo, há alguma coisa que escapa para fora, que revira o todo do avesso. James utiliza um termo inventado por George Eliot. Ele chama melhorismo a atitude segundo a qual, se o mundo é aberto, ele pode ser, aqui ou ali, tornado melhor ou diferente, mais rico, por nossas ações individuais. Mas é preciso estender o que diz William James: essas ações devem ser criações de espaços-tempos que desfaçam a trama do controle, atos de resistência que introduzam um pouco de não comunicação, disjunções ou interrupções no fluxo de informações que se propaga em todas as direções. Então não se considera mais o futuro, o porvir de um todo ou de uma totalidade; entra-se num devir com as partes desse mundo, às vezes as mais irrisórias, às vezes as mais ínfimas, mas que têm pelo menos a força de resistir aos prodigiosos meios desenvolvidos pelas sociedades de controle, das quais, aliás, participamos inevitavelmente. Então, sim, talvez Valéry tenha razão de afirmar que “o futuro não é mais o que era”; por isso é preciso deixá-lo aos programadores de todo tipo e arriscar-se a entrar em devires que anulem o futuro que nos programam. Por isso é preciso, na medida em que tivermos força e desejo para isso, desfazer-se da ideia de futuro ou desprogramar suas possibilidades preestabelecidas.

Tradução de Paulo Neves.

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