2002

Democracia mundial

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

Para Max Weber, a modernidade significou um aumento de eficácia econômica, política e cultural (nas relações de trabalho, na administração pública, nos usos da razão). Mas ela não se esgota nesse vetor da chamada racionalidade instrumental: ela tem a ver também com a autonomia e a emancipação dos indivíduos. E esse ideal iluminista, por mais desrespeitado que seja na prática, continua vivo, apesar do que dizem os profetas do fim da modernidade. O que mudou foram suas condições de aplicação. A modernidade se internacionalizou (como já previa Marx ao falar de uma tendência ao “cosmopolitismo da mercadoria”), mas conserva duas formas distintas. Se a globalização tende a nivelar as particularidades, a universalização é pluralista e só pode atingir seus fins por uma racionalidade comunicativa. Assim, é para uma democracia mundial que se orienta hoje o universalismo iluminista. Não se trata de substituir as democracias nacionais e sim de complementá-las de modo a assegurar os direitos humanos, o cuidado com o meio-ambiente, a coexistência não conflitiva de culturas e etnias. E a própria Internet, que transformou a mercadoria em verdadeira fantasmagoria, pode ser mobilizada para fins transformadores ao permitir, por exemplo, o voto à distância e o encaminhamento de reivindicações, juntando, de certo modo, democracia representativa e democracia direta. Se a esperança é a ideia reguladora da consciência utópica, como disse Ernst Bloch, ela deve se articular com processos reais para se tornar uma utopia concreta.


Em nossa época de fim de milênio e de século, estamos vivendo o fim de várias coisas: o fim da história, o fim da geografia, e o fim do homem, para não falar no fim do mundo, tema que pertence às seitas apocalípticas, por direito de antiguidade. Entre as coisas que acabaram ou estão acabando, um lugar de honra tem sido reservado à modernidade. A modernidade estaria morta, deixando-nos imersos na pós-modernidade. A tese pode ser até plausível, dependendo da definição que dermos à modernidade. Segundo o sociólogo Anthony Giddens, por exemplo, “a modernidade se refere aos modos de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que se tornaram subsequentemente mais ou menos mundiais em sua influência”. De fato, segundo ritmos biológicos normais, algo que nasceu há quatro séculos pode muito bem ter falecido hoje. Mas se levarmos em conta que a longevidade dos processos históricos normalmente ultrapassa a dos seres humanos, só podemos saber se o óbito de fato ocorreu se substituirmos o critério cronológico pelo critério estrutural. Se a estrutura da modernidade mostrar realmente traços de rigidez cadavérica, podemos razoavelmente supor que ela abandonou o mundo dos vivos.

Se quisermos compreender essa estrutura, faríamos bem se recorrêssemos às análises clássicas de Max Weber. Para ele, como se sabe, a modernidade é o produto de processos cumulativos de racionalização que se deram na esfera econômica, política e cultural. Podemos falar assim em modernidade econômica, política e cultural. A modernidade econômica implica a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. A modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada, típica do

feudalismo, pelo estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, de uma administração burocrática racional. A modernidade cultural implica a secularização das visões do mundo tradicionais (Entzauberung) e sua diferenciação em esferas de valor ( Wertsphären), até então embutidas na religião: a ciência, a moral, o direito e a arte.

Se examinarmos com atenção essas categorias, verificaremos que, para Weber, modernização significa principalmente aumento de eficácia. Mesmo quando outros fatores parecem entrar em jogo, o que se esconde atrás deles é sempre um desempenho mais eficaz dos três subsistemas da modernidade. Esse conceito de modernidade é o que prevalece na literatura especializada e nas políticas de desenvolvimento econômico e social. Modernizar significa melhorar a eficácia do sistema tributário, educacional, de saúde, de transportes, de alimentação. Modernizar é melhorar a eficiência da administração pública, das instituições políticas, dos partidos. É um conceito funcional de modernidade, no sentido próprio da palavra: numa sociedade moderna as instituições funcionam melhor que numa sociedade arcaica.

Mas a modernidade não se esgota nesse vetor funcional. Ela tem um segundo vetor, que não tem a ver com a eficácia, e sim com a autonomia. Sua matriz é o modelo civilizatório da Ilustração, que não busca a funcionalidade das estruturas e sim a emancipação dos indivíduos. Segundo esse modelo, uma sociedade não será moderna apenas quando seus subsistemas forem mais eficazes, e sim quando eles proporcionarem o máximo de autonomia possível para os indivíduos. Nessa perspectiva, a modernidade econômica passa a significar a capacidade de obter pelo trabalho os bens e serviços necessários ao próprio bem-estar, num sistema social que exclua a exploração e a injustiça institucionalizada. A modernidade política significa a capacidade plena de exercer a cidadania, num estado de direito que assegure a vigência integral da democracia e dos direitos humanos. A modernidade cultural significa o livre uso da razão, sem tutelas de qualquer natureza — o sapere aude kantiano — num contexto institucional que garanta a todos o direito à produção cultural e o direito de acesso à cultura.

A modernidade é a coexistência contraditória desses dois vetores. Ela é uma prisão, uma “gaiola dura como o aço” (Stahlhartes Gehäuse), na expressão de Weber, mas também uma promessa de autonomia, é o reino da racionalidade instrumental, que submete o homem a imperativos sistêmicos, mas também o prenúncio de uma humanidade mais livre.

Pois bem, se confrontarmos agora essas características estruturais com a nossa contemporaneidade, não encontramos nenhum indício de que elas tenham se tornado obsoletas. Na dimensão da modernidade funcional não há vestígios de qualquer regressão a um estado de coisas em que a ciência e a técnica deixem de ser incorporadas ao processo produtivo, em que as relações feudais entre suseranos e vassalos sejam consideradas desejáveis e em que seja obrigatório ensinar nas escolas a doutrina bíblica de que o Sol gira em torno da Terra. Na dimensão da modernidade emancipatória, os ideais da autonomia econômica, política e cultural estão mais vivos que nunca, por mais que sejam desrespeitados na prática. Somos obrigados a dizer aos profetas do fim da modernidade: “Les morts que vous tuez se portent à merveille” e até mesmo a dar a palavra à própria modernidade, que prefere falar inglês e gosta de citar Mark Twain: “The news about my death are grossly exaggerated”.

Dito isto, somos obrigados a reconhecer que as condições de aplicação tanto, do modelo weberiano quanto do modelo iluminista mudaram. Eles foram concebidos para processos de modernização que se davam em espaços territoriais definidos, como cidades, no caso do capitalismo urbano da Itália, ou estados já unificados, como a França e a Inglaterra. Hoje a modernidade se internacionalizou, e não pode mais ser estudada no âmbito exclusivo de países e sociedades específicas.

É verdade que a modernidade sempre teve uma tendência imanente para a extroversão. A modernidade funcional, por exemplo, percebeu as barreiras locais e nacionais como obstáculos para o pleno desdobramento da lógica da eficácia e do rendimento. Consequentemente, ela foi derrubando essas barreiras, passando dos particularismos locais, que impunham limites à ação do capital, para o espaço mais amplo criado pelo Estado nacional, que punha à sua disposição um mercado integrado. Desde o século XIX, era evidente que mais cedo ou mais tarde os próprios Estados nacionais se tornariam demasiadamente estreitos. Leia-se, a propósito, o trecho célebre do Manifesto Comunista, em que Marx descreve nos mínimos detalhes o que hoje chamamos globalização:

Nossa época, a época da burguesia, se caracteriza pelo fato de ter simplificado as contradições de classe […] a burguesia moderna é o produto de um longo ciclo de desenvolvimento […]. Cada estágio no desenvolvimento da burguesia foi acompanhado de um progresso político correspondente […] Com a gênese da grande indústria e do mercado mundial ela conseguiu chegar à dominação política exclusiva, na forma do estado representativo moderno. O poder político moderno é somente um comitê que administra os negócios gerais da burguesia […]. Quando chegou ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu os vínculos feudais que ligavam o homem a seus superiores naturais, e não deixou nenhum outro nexo entre os homens a não ser o interesse nu, o pagamento à vista. Ela afogou na água gelada do cálculo egoísta o zelo sagrado dos devotos, o entusiasmo cavalheiresco, a melancolia dos pequenos burgueses. Ela dissolveu a dignidade pessoal no valor de troca e pôs no lugar das liberdades asseguradas e bem adquiridas uma liberdade sem consciência, a liberdade do comércio. Em suma, em lugar da exploração envolta em ilusões religiosas e políticas, ela colocou a exploração aberta, despudorada, direta, brutal. Ela tirou seu halo de todas as atividades que até agora tinham sido contempladas com temor reverencial […]. A burguesia rasgou o véu terno e sentimental que recobria as relações familiares e reduziu-as a uma relação monetária […] Ela realizou obras mais prodigiosas que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos e as catedrais góticas […]. A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente todos os instrumentos de produção, e portanto as relações de produção, e portanto as relações sociais em seu conjunto […]. Todas as relações fixas, oxidadas, com sua sequela de ideias e concepções tradicionais, são dissolvidas, e todas as que se formam novamente envelhecem antes que se ossifiquem. Tudo o que é estamental, tudo o que é sólido, se evapora, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a olhar de frente, com sobriedade, suas atitudes com relação ã vida e suas relações recíprocas. A necessidade de escoar seus produtos num espaço cada vez maior leva a burguesia a espalhar-se por todo 0 planeta. Ela precisa inserir-se em toda parte, construir em toda parte, estabelecer ligações em toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia organizou de forma cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para tristeza dos reacionários, ela tirou o solo debaixo da indústria. As velhas indústrias nacionais foram aniquiladas e continuam sendo aniquiladas todos os dias. Elas são substituídas por novas indústrias, cuja introdução se tornou uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, e que não usam mais matérias-primas locais mas matérias-primas procedentes das zonas mais remotas, e cujos produtos não são consumidos somente no país, mas em todas as partes do mundo. Em lugar das necessidades antigas, que podiam ser satisfeitas por produtos domésticos, aparecem novas necessidades, que só podem ser satisfeitas com os produtos das terras e climas mais distantes. Em lugar da auto-suficiência e do isolamento, em nível local e nacional, entra em cena um intercâmbio geral, uma interdependência geral entre as nações.

Mas o nacionalismo dos principais países capitalistas e as condições da Guerra Fria, que impediram que a lógica econômica prevalecesse de modo exclusivo, frearam essa tendência “apátrida” do capital. Com o fim do socialismo real, esses fatores de inibição foram desativados e o que Marx chamava o “cosmopolitismo das mercadorias” pôde manifestar-se sem entraves. A modernidade pôde seguir sua vocação mais profunda, internacionalizando-se. É o que chamamos de globalização, no sentido técnico. A modernidade se globalizou na dimensão econômica, planetarizando o processo produtivo e dando caráter mundial aos fluxos de comércio, de capitais e de tecnologia. Globalizou-se na dimensão política, relativizando as soberanias nacionais e impondo a aplicação em todos os países do mesmo modelo de ação estatal, baseado na abertura dos mercados, na privatização e na desregulamentação. Globalizou-se, enfim, na dimensão cultural, difundindo em toda parte uma cultura eletrônica de massas.

Em suma, o Estado nacional, que servira no passado os objetivos da modernidade funcional, tornou-se irrelevante para ela, na nova etapa do capitalismo globalizado.

Curiosamente, o mesmo ocorreu no que diz respeito à modernidade emancipatória. No início, o Estado nacional democrático funcionou como moldura adequada para a realização dos objetivos da emancipação iluminista. Mas com o advento da globalização, as democracias nacionais revelaram-se incompetentes para realizar os valores da autonomia.

A autonomia econômica é uma ficção, num mundo em que as principais decisões macroeconômicas são tomadas por bancos centrais estrangeiros e por conselhos de administração de empresas transnacionais, em que a volatilidade dos mercados financeiros impede qualquer planejamento a longo prazo, e em que as inovações tecnológicas têm origem externa. A autonomia política se torna relativa, quando se leva em conta que as decisões políticas que mais diretamente afetam nossas vidas foram tomadas fora de nossas fronteiras. Deixa de valer, assim, o grande postulado rousseauísta de que o povo que manda, como soberano, é o mesmo que obedece, como súdito, pois quem sofre os efeitos dessas medidas não participou do processo político que levou à sua adoção. A autonomia cultural é uma fraude para aqueles que ficam indefesos diante dos aparelhos ideológicos e que são meros consumidores passivos de bens culturais sobre cuja produção e distribuição não têm qualquer controle. A democracia interna, garante dos valores da autonomia, fica fragilizada, em geral, com a inexistência de uma ordem internacional não democrática, que obriga os Estados nacionais a recorrer à razão de Estado, aos serviços de inteligência, e a todos os dispositivos que asseguram a invisibilidade do poder, erodindo com isso o princípio da responsabilidade dos governantes diante dos governados, exigência central da democracia. Se não há ordem internacional democrática sem Estados democráticos, a recíproca é também verdadeira, pois não há democracia interna plena sem uma ordem internacional plenamente democrática. Enfim, o suporte material da autonomia, a segurança física do indivíduo, não pode ser assegurado apenas pelo monopólio da violência por parte do Estado, pois numa ordem em que nenhuma instância detém o monopólio da violência internacional, não há nenhuma proteção contra a violência suprema, a guerra.

Tudo isso sugere que os objetivos de autonomia visados pela modernidade emancipatória não podem mais ser buscados no âmbito dos Estados nacionais. É importante, para mapear caminhos alternativos, mobilizar a vocação internacionalista da modernidade emancipatória.

Essa vocação deriva do projeto universalista da Ilustração. A Ilustração levou às últimas consequências o cosmopolitismo estóico e o conceito de fraternidade cristã. Para ela, a ideia de que todos os homens eram iguais, independentemente de fronteiras e culturas, estava longe de ser uma abstração retórica. O mundo, para ela, era realmente uma civitas maxima. Era o ideal kantiano do Weltbürgertum, partilhado por Gibbon, Voltaire, Wieland, Diderot, Condorcet, que se vangloriavam de ser cidadãos do mundo. Até o mais “particularista” dos filósofos, Rousseau, que nunca abriu mão do seu patriotismo helvético, louvou “as grandes almas cosmopolitas, que atravessam as barreiras imaginárias que separam os povos e que, seguindo o exemplo do Ser soberano que os criou, abraçam o mundo inteiro com sua benevolência”. A consequência dessa concepção é que em caso de conflito entre normas universais e particulares deveriam prevalecer as que incorporassem os interesses gerais do gênero humano. Foi a posição de Montesquieu: “Se soubesse de alguma coisa que fosse útil à minha pátria, mas prejudicial à Europa, ou útil à Europa, mas prejudicial ao gênero humano, eu a consideraria um crime”. Diderot se pronunciou no mesmo sentido, ao afirmar que entre duas vontade antagônicas, a do indivíduo e a da espécie, deveria predominar “a vontades geral da espécie”. Rousseau não ficou atrás: para ele, a vontade particular de cada cidadão está subordinada à “grande cidade do mundo” e os “deveres do homem vêm antes dos deveres do cidadão”.

Como se vê, tanto a modernidade funcional como a emancipatória tendem à internacionalização. Mas são duas formas distintas de internacionalização. No primeiro caso, estamos diante da globalização, como vimos. O movimento correspondente, no caso da modernidade emancipatória, pode ser chamado de universalização. A globalização tende a nivelar todas as particularidades, porque sua força motriz é a otimização do ganho, através de uma racionalidade de mercado que supõe a criação de espaços homogêneos. A universalização é pluralista, porque seus fins só podem ser atingidos por uma racionalidade comunicativa que supõe o desejo e o poder dos sujeitos de defender a especificidade de suas formas de vida. A globalização é a união dos conglomerados, a universalização é a união dos povos. Somos objetos da globalização. Somos sujeitos da universalização. Os agentes da globalização são os executivos das corporações multinacionais, as elites tecnoburocráticas, os especialistas da comunicação por satélites, e em geral os “intelectuais orgânicos” do novo Príncipe, para usar uma linguagem gramsciana: a “burguesia global”. Os agentes da universalização são as organizações não-governamentais, os parlamentos, os governos democráticos, e os intelectuais críticos comprometidos com ideais universalistas.

A modernidade emancipatória tem progredido consideravelmente no sentido da universalização. Ela se universaliza na dimensão econômica, transformando o desenvolvimento num direito codificado internacionalmente, criando instituições multilaterais para assegurar o bem-estar do Terceiro Mundo, e coordenando esforços mundiais para garantir o progresso social em áreas como a a alimentação, a saúde pública, a educação. Universaliza-se na dimensão política, limitando a soberania dos Estados a fim de “civilizar” o estado de natureza em que se encontra a sociedade mundial, transformando a defesa da paz num valor supremo, fortalecendo as Nações Unidas, promovendo uma política de direitos humanos capaz de transcender todas as fronteiras nacionais, e debatendo riscos ecológicos planetários numa escala também planetária. Ela se universaliza, também, na dimensão cultural, favorecendo contactos entre cientistas, escritores e artistas de todas as nacionalidades, multiplicando as traduções, melhorando o ensino de línguas estrangeiras, implantando escolas bilíngües.

Mas esses progressos em direção à universalização ainda são tímidos e fragmentários. Para que os impulsos universalistas da modernidade emancipatória cheguem a seu desfecho lógico, deveriam desembocar na concepção de uma organização mundial. Não seria um Estado mundial, como os constituídos pela força das armas, no período alexandrino ou durante o Império Romano, ou pela hegemonia econômica de uma superpotência, como talvez esteja começando a ocorrer em nossos dias. Não teria grande coisa em comum, tampouco, com as fabulações dos vários sonhadores que propuseram a constituição de um Estado mundial, porque em seus projetos a união entre os Estados resultava em geral das iniciativas dos próprios governantes, exparteprincipis, enquanto segundo a lógica do Iluminismo atual tais iniciativas não poderiam vir senão de baixo, ex parte populi.

Não, é para uma democracia mundial que tende, hoje, o universalismo iluminista. Ela seria composta de uma sociedade civil, onde funcionariam instituições como igrejas, sindicatos, associações de artistas e intelectuais, organizações não-governamentais em geral. Contaria, também., com uma sociedade política, cuja constituição teria no pórtico os princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (e documentos equivalentes) e descreveria os diferentes órgãos: um Parlamento bicameral, com uma Assembleia dos Povos, cujos membros seriam escolhidos por eleição direta, e outra em que eles seriam indicados pelos Estados nacionais; um executivo capaz de aplicar essas leis, de fazer uso legítimo da força sempre que necessário, e de submeter a algum tipo de regulamentação as relações econômicas internacionais; e um tribunal capaz de julgar violações dos direitos humanos e das demais

normas estabelecidas pelo Parlamento.

Tradicionalmente, o demos era limitado ao território de uma cidade ou de um país, e os não-membros dessa comunidade política não gozavam de nenhum dos benefícios da cidadania. A concepção da democracia mundial dilata ao mundo inteiro o tamanho do demos. Consequentemente, não há mais estrangeiros. Desaparece com isso a tensão, típica das democracias nacionais, entre o componente liberal e o componente democrático, entre os direitos do homem e os direitos do cidadão, porque os direitos do homem se transformam em direito positivo do demos planetário, e os direitos do cidadão são estendidos a todos os habitantes do mundo.

Cria-se com isso, pela primeira vez, um quadro político-jurídico para a plena implementação dos valores da autonomia. A autonomia econômica seria facilitada por uma supervisão internacional dos fluxos de comércio e de investimento, que permitisse aos Estados e aos indivíduos orientarem sua ação segundo parâmetros previsíveis, e por esquemas eficazes de redistribuição internacional de renda. A autonomia política se fortaleceria na medida em que todos os indivíduos se tornassem participantes ativos, pelo voto, de processos decisórios de alcance global, em vez de serem vítimas ou espectadores de decisões tomadas à sua revelia, nos grandes centros de poder. Enfim, a autonomia cultural será favorecida por uma ordem internacional que intensifique o intercâmbio de artistas e intelectuais, que ponha ao alcance de todos os bens culturais produzidos em todos os países do mundo, relativizando assim o monopólio de fato exercido pela indústria cultural dos países hegemônicos.

Mas o conceito de democracia mundial não é apenas a materialização da vertente universalista do Iluminismo. Ele faz justiça, também, ao foco individualizante da sua utopia. Com efeito, a democracia supõe uma comunidade mundial composta de cidadãos livres e iguais, titulares dos mesmos direitos, independentemente de sua nacionalidade, de sua etnia. Seguindo a lição de filósofos como Isaiah Berlin e de juristas como Norberto Bobbio, os defensores dessa concepção encaram com ceticismo a noção de direitos coletivos, na medida em que eles possam colidir com os direitos fundamentais do homem. Em sua essência, a democracia mundial se dirige a indivíduos, e não a nações ou a culturas.

Isso não significa desconhecer as preocupações válidas que estão na raiz do nacionalismo e do cuituralismo. Parece-me, ao contrário, que só a democracia mundial atende plenamente a essas inquietações.

O nacionalismo tinha como objetivo fundamental manter sob controle do Estado os grandes processos decisórios que afetavam a vida dos cidadãos. Ele buscava reduzir a dependência com relação a decisões externas. Estava a serviço da autodeterminação e nisso era compatível com os ideais iluministas. Mas na era global, a possibilidade para os Estados nacionais de assegurar esse controle se reduziu. Todos sofrem os efeitos de decisões para cuja adoção eles não contribuíram. Daí a importância de uma democracia mundial, em que todas essas decisões serão tomadas com plena participação dos diretamente interessados. Em outras palavras, a democracia mundial continua, por outros meios, a política da autodeterminação visada pelos antigos nacionalismos. Ela não substitui as democracias nacionais, mas as complementa. Elas continuariam sendo soberanas para tratar de matérias susceptíveis de ser processadas em seu próprio âmbito, mas participariam, além disso, da formulação e execução das políticas que exigissem uma ação supranacional.

Chamo de culturalista a tendência a preservar a especificidade das culturas distintas, evitando sua homogeneização. Longe de promover o nivelamento do planeta, somente a democracia mundial pode assegurar a coexistência não conflitiva de todas as culturas e etnias. Na ausência das instituições de arbitragem e de controle da violência próprias a essa democracia, as identidades coletivas poderiam transformar-se em barricadas, e as diferenças explodiriam em conflitos interétnicos e mesmo intercivilizacionais, na acepção de Samuel Huntington. Em vez disso, a democracia, mundial oferece um quadro em que as culturas mais diversas podem conviver, em toda a variedade dos seus estilos de vida, desde que se submetam a um núcleo mínimo de normas e princípios universais.

Segundo o novo ordenamento internacional pressuposto pelo conceito de democracia mundial, não mais valeria o chamado modelo “westphaliano”, estabelecido em 1648, no Congresso de Westphalia, e que criou um sistema de Estados soberanos, que só poderiam resolver suas diferenças pela guerra. Mas os Estados nacionais preservariam um lugar importante, como quadro básico, ainda que não exclusivo, para assegurar a realização dos objetivos de autonomia exigidos pela modernidade emancipatória. No entanto, a autoridade desses Estados estaria sujeita a dois limites, um vindo de cima e outro vindo de baixo. Com relação a certos temas estariam subordinados a diretrizes supranacionais, e com relação a outros, teriam que levar em conta interesses e reivindicações de caráter subnacional, expressos por grupos e minorias. Como observou Hedley Bull, algo de semelhante ocorria na Idade Média, em que a autoridade do rei era limitada, por cima, pela preeminência do Papa ou do Imperador, e por baixo, pelas prerrogativas dos senhores e pelas franquias das cidades.

As condições para a implantação da democracia mundial são relativamente favoráveis. Com todas as suas perversões, o processo de globalização tem pelo menos o mérito de haver diluído as fronteiras que separam os homens, contribuindo para a emergência da ideia da humanidade única. A globalização é um mero pastiche do sonho iluminista da unidade do gênero humano, mas a paródia pode contribuir, obliquamente, para a realização da utopia original. A universalização caminha a largos passos, em áreas como a defesa dos direitos humanos e a proteção ambiental. O conceito de jurisdição universal no tocante aos crimes contra a humanidade aponta para a revisão do conceito de soberania, que agora não mais poderá ser usado para acobertar tiranos e torturadores.

Uma reflexão especial, nesse contexto, deve ser dedicada às novas tecnologias de informação e comunicação.

Sabemos que a Internet serve para vender mercadorias — é o chamado e-commerce. Podemos prever que uma proporção cada vez maior do comércio mundial será feita por esse meio. Um Walter Benjamin de hoje talvez dissesse que se no protocapitalismo a mercadoria morava nas passagens, e no capitalismo moderno nos shopping centers, seu domicílio, na era do capitalismo pós-moderno, é o ciberespaço. Só agora a mercadoria chegou ao seu estágio fetichista, no sentido de Marx: dissolvida na realidade virtual, ela se transformou, verdadeiramente, numa fantasmagoria.

Sabemos também que a Internet serve para a guerrilha econômica, alvejando sites estratégicos para o funcionamento do sistema capitalista. Ela serve para difundir pornografia, para fazer propaganda neonazista, para anunciar o fim do mundo, e até, mais inocentemente, para o chat, para a conversa fiada. Nisso, a Internet talvez substitua o salão do antigo regime, onde cônegos obesos conversavam com duquesas sobre o último escândalo de Versalhes. Não são bem esses os chats que interessam às nossas filhas adolescentes, mas isso é um detalhe. Se ressuscitasse, Madame de Sévigné talvez até dissesse que hoje a web é o último lugar onde podemos conversar, le dernier salon où l’on cause.

Seriamente, creio que a Internet pode ser mobilizada para fins transformadores. Afinal, também a imprensa, escrita e televisiva, ajudou a vender mercadorias, através da publicidade. Também ela se prestou a todos os abusos e distorções. Foi usada para difundir o lixo cultural, para fazer propaganda militarista, para acirrar preconceitos anti-semitas. O que não impediu, feitas as contas, que ela tenha sido o principal veículo da modernidade emancipatória, ajudando a humanidade a combater o obscurantismo, o irracionalismo, a tirania e a guerra. Poderiam as novas tecnologias levar adiante esse programa?

Sem dúvida. A modernidade emancipatória está às voltas com dois grandes projetos universalistas, e ambos poderiam beneficiar-se com essas tecnologias.

O primeiro projeto é a implementação de uma ética universal. Na versão de Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, essa ética enuncia as condições formais para que uma norma seja considerada válida: ela precisa ser consensualmente aceitável, num processo argumentativo de que participem todos os interessados, de modo igualitário e não coercitivo. Mas num mundo dividido em comunidades nacionais, a aplicação prática dessa ética encontra dificuldades insuperáveis. Sua principal exigência — a participação livre e igualitária de todos os afetados — não pode ser atendida. Assim, quando uma grande potência adota uma política protecionista, ou restringe a imigração, ou realiza uma intervenção militar, está afetando milhões de cidadãos de outros países. Mas essas pessoas não são nem podem ser incluídas nas deliberações que levaram à adoção daquelas políticas. A aplicação das novas tecnologias pode preencher, em parte, esse déficit de comunicação. Elas permitem, em tese, que todas as pessoas potencialmente afetadas por tais políticas, qualquer que seja sua nacionalidade, façam chegar às instâncias decisórias apropriadas suas inquietações e suas propostas.

Mas é óbvio que uma ética universal só poderá ser plenamente eficaz quando os interessados possam participar, de fato, dos respectivos processos deliberativos. Isso só será possível quando todos os afetados sejam, ao mesmo tempo, cidadãos, o que somente acontecerá quando as democracias nacionais forem complementadas por uma democracia mundial. As novas tecnologias podem contribuir para o advento dessa democracia. Interligando milhões de pessoas, de todos os países do mundo, elas podem relativizar os reflexos nacionalistas, combater a xenofobia, facilitar á compreensão mútua entre as diversas culturas. E uma vez criada uma democracia cosmopolita, as novas tecnologias serão um instrumento poderosíssimo para assegurar a comunicação entre indivíduos e organizações, no bojo da sociedade civil mundial.

Devemos evitar qualquer forma de triunfalismo tecnológico. Nada garante que a argumentação moral conduzida pela Internet entre um filósofo paulista e um sofista bávaro seja tão fecunda quanto a conduzida, na ágora, entre Sócrates e Górgias. A polis digital não é a mesma coisa que a polis ateniense. A world wide web tem uma vaga semelhança com um Parlamento mundial, mas talvez leve algum tempo até que esse Parlamento produza um Gladstone. Mesmo que a humanidade inteira esteja ligada à rede, isso fará dos usuários netizens, mas não necessariamente citizens.

Não importa. Um Windows 2000 não pode gerar nem Voltaire nem Zola, mas eles não teriam desdenhado a Internet para a reabilitação de Calas e para a defesa de Dreyfus.

Sim, podemos pensar, não numa orwelliana democracia eletrônica, que nos exporia ao risco de desativar os mecanismos de representação política e de mediação partidária que constituem a essência da democracia moderna, mas numa democracia mundial viabilizada em parte pelas novas tecnologias de comunicação, que permitiriam o voto à distância, o acesso a programas políticos, o encaminhamento de reivindicações, e poderiam resultar em algo como uma democracia contínua, em contraste com a democracia intermitente que caracteriza tanto a democracia direta como a democracia representativa.

A democracia mundial é utópica? Talvez. Mas há boas e más utopias, utopias abstratas e utopias concretas, no sentido de Ernst Bloch, isto é, as vinculadas a tendências já presentes no real. Para Bloch, a esperança é a ideia reguladora da consciência utópica, mas o “princípio esperança” precisa articular-se com processos reais. Para Bloch, a esperança deve ser instruída pelo presente, ser uma docta spes, o que a distingue da mera fantasmagoria subjetiva. À luz de todos os sinais que apontam para o fortalecimento da perspectiva universalista, a esperança suscitada pela ideia da democracia mundial é uma esperança objetiva, e consequentemente a utopia que ela permite estruturar é uma utopia concreta.

 

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