1988

De olhos vendados

por Adauto Novaes

No ensaio O encontro do mito e da ciência, Lévi-Strauss narra o início de um desencontro, origem de um esquecimento trágico. Para se afirmar contra velhas gerações de pensamento, diz ele, a ciência voltou as costas ao mundo dos sentidos, o mundo das paixões e desejos, o mundo que vemos e percebemos. O mundo sensorial é ilusório; “real seria o mundo das propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o mundo dos sentidos”.[1]

Que se fale do corpo ou que se fale da História, é preciso rememorar esse desencontro: os antigos nos ensinam que mortos são aqueles que perderam a memória, e não foi por acaso que os gregos escolheram um dos sentidos para descrever a retomada da lembrança: beber a água fresca do lago de Mnemosine.

Se a realidade é o domínio do impreciso, das sombras e das coisas ocultas, por que a ciência — ou a precisão científica — passou a ter soberania tão absoluta sobre os sentidos? E por que, dentre os sentidos, o olhar é o primeiro a ser chamado à ordem? Seria por que, de todos os sentidos, “a vista é o que nos faz adquirir mais conhecimentos, nos faz descobrir mais diferenças”?[2] Ou é em virtude do prestígio que a visão passou a ter em nossa cultura, concentrando em si a inteligência e as paixões? Por que o olhar ignora e é ignorado na experiência ambígua de imagens que não cessam de convidá-lo a ver? Como o geômetra que, despojando os corpos das qualidades sensíveis, tenta apagar as “imperfeições” do mundo real, a visão científica domina as coisas à distância, e, se cai sobre os homens, “transforma-os em manequins movidos unicamente por molas”[3].

Quando conseguimos desvendar os olhos, reconhecemos: “a vontade de delimitar, de geometrizar, de fixar relações estáveis não se impõe sem uma violência suplementar sobre a experiência natural do olhar”[4].

Mas esse olhar vigilante provoca uma resposta: só existe mundo da ordem para quem nunca se dispôs a ver.

A palavra e o texto destas conferências — desdobramento de Os sentidos da paixão — não pretendem iluminar ou traduzir o visível, mas apenas excitar o invisível. O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver. Para isso, foi também necessário que o indizível se tornasse prosa, participando do lado de sombra da História e revelando o sensível que está oculto no outro lado do corpo, acolhendo-o como um secreto prolongamento da matéria. É através dessa fissura que, guardando o sentido originário, a theoria — que os romanos traduziram por contemplatio, o olhar com admiração — pode descobrir que existe uma plenitude invisível de um mundo imperfeito. Ao Timeu, que, numa analogia ao mundo das ideias, diz que a esfera é a figura mais perfeita e uniforme porque todos os pontos da superfície são equidistantes. do centro, preferimos a “vertigem” de Pascal que escreveu: “A natureza é uma esfera espantosa, cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma”[5]. Descentremos o olhar, eis o que pede este livro.

“Todos os poemas do passado, do presente e do futuro são episódios ou fragmentos de um único e infinito poema escrito por todos os poetas.” O que Shelley escreveu sobre a poesia vale para o olhar. Todos os filósofos ou sistemas filosóficos falaram sobre o olhar ou a partir dele. Mas a ideia de uma gênese — que conduzisse do olhar imaginário ao real, da magia à superstição, do olhar religioso e interior ao olhar da sedução e do desejo até chegar ao olhar soberano e universal — se vê comprometida a partir do momento em que se tenta a sua articulação. Nada foge mais à ideia de uma evolução linear, aos esquemas de continuidade e descontinuidade ou de começos e rupturas. Como escreveu Merleau-Ponty, o filósofo que dedicou o melhor de seu pensamento ao enigma do olhar — e que, ao morrer, tinha sobre a mesa de trabalho um livro aberto, a Dióptrica de Descartes —, jamais existe superação absoluta: “Como o mundo percebido só se mantém através de reflexos, sombras, níveis, horizontes entre as coisas e que nada são mas que, ao contrário, apenas delimitam os campos de variação possível na mesma coisa e no mesmo mundo — da mesma maneira a obra e o pensamento de um filósofo são feitos também de certas articulações entre as coisas ditas, a respeito das quais não existe dilema da interpretação objetiva e arbitrária, uma vez que não são objetos de pensamento; como sombra e reflexo, seriam destruídos se fossem submetidos à observação analítica ou ao pensamento isolante; só se pode ser fiel a eles, reencontrá-los, se os pensarmos novamente”. Há, portanto, um eterno retorno da questão: o que é ver? O que é o visível?

Lemos em alguns autores que o conhecimento sensível é vago, confuso e inadequado porque no mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia. A realidade sensível jamais pode produzir um saber porque as coisas sensíveis são ao mesmo tempo dissemelhantes, muitas e múltiplas nelas mesmas. Aquele que se deixa seduzir apenas pelos sentidos deve assumir os riscos da incerteza ou perder-se naquilo que vê. Os sentidos, como as paixões, perturbam a alma, e, sem temperança, conduzem ao vício e à loucura. O homem que contempla é absorvido pelo que contempla. Por essa razão, Platão nos convida a desconfiar da percepção, das pulsões e dos caprichos do corpo. A estabilidade e harmonia estão no mundo suprassensível, nas ideias transcendentes e separadas do sensível, imutáveis, genéricas. Cada Ideia e todas as Ideias participam do Um transcendente, da Ideia universal. Esta concepção teve uma influência doutrinal e prática considerável, em todas as épocas e todos os domínios. Marca a grande cisão de dois reinos que subsistem paralelamente. Quando Platão propõe, no mito da caverna, que, por uma operação do olhar, o homem se afaste do mundo sensível, estava ao mesmo tempo dirigindo o olhar para “um ver concentrado no mundo da Ideia”[6]. Livrar-se do mundo sensível e suas flutuações; procurar ver o fundamento do sensível, que é a Ideia. Como escreveu Plutarco, ele não propunha suprimir os sentidos “que sofremos” e dos quais estamos impregnados, mas mostrava que existe algo mais “sólido e mais durável” na sua essência porque esse algo “não nasce, nem sofre, nem morre”: é o pensamento divino universal ou, como disse Marx, “noção vazia de sentido, abstraída da realidade sensível”. Heidegger completa: “As ideias [de Platão] não pertencem ao domínio daquilo que os sentidos nos fazem perceber; só podemos contemplar as ideias na sua pureza através da percepção não sensível”.[7] Nesse império do pensamento sobre o pensamento, como seguir Lucrécio que nos convida, primeiro, a libertar-nos do jugo da superstição e depois “distribuir feixes de luz sobre as mais obscuras matérias, e flores da poesia sobre os espinhos de uma filosofia árida”?[8]

Se a determinação platônica de distinguir o inteligível e o sensível, a ideia e a imagem, representou um momento importante na história do pensamento — a constituição, através de um esforço consciente, de conceitos universais, mostrando que o elemento concreto não deve ser confundido com a Substância — essa determinação cria, ao mesmo tempo, uma relação de exterioridade: a coisa perde o seu poder de constituição e transforma-se em Ideia da coisa. Na ideia universal, a percepção sensível e as formas concretas de sua existência tornam-se objeto de pensamento e perdem a possibilidade de revelar a determinação oculta através de um desdobramento reflexivo nelas mesmas. Em todo objeto sensível há uma transcendência silenciosa que é esquecida pela Ideia, e isso decorre de uma torsão radical: se a Ideia pura, imaterial, é erigida à condição de realidade primeira, anterior e superior à matéria sensível, o mundo sensível participa ou de maneira direta ou “imediata” do mundo Ideal, ou indireta e “mediatizada” no Todo transcendente.

De eidos, que em Platão significa aquilo que jamais é percebido pelos olhos do corpo, à palavra ideia há um percurso que vai determinar boa parte do pensamento ocidental; mas, como lembra Heidegger, Platão exige muito mais da palavra: ideia não designa apenas o aspecto não sensível do que é sensivelmente visível: é a essência daquilo que se pode escutar, ver, tocar, sentir.[9] Apenas uma visão despojada dos sentidos e do corpo pode levar à evidência, à essência e à certeza. As ideias tornam-se, pois, “entidades” não físicas, imóveis, inalteradas, irredutíveis. É o que lemos em Kojève: “As ideias eram tidas como ‘objetivamente-reais’ no sentido de que existe entre elas uma oposição-irredutível semelhante à que existe entre os Átomos de Demócrito: cada Ideia é, para Platão, tão ‘inalterável’, talvez indivisível ou ‘atômica’ (atomos eidos) quanto como cada átomo é para Demócrito. Mas se os átomos se opõem ‘ativamente’ uns aos outros num conjunto ‘movente’ e ‘movimentado’ que constitui o Espaço-tempo físico, as Ideias são tidas em todo o lugar e sempre como ‘imóveis’ e sem agir em nenhum lugar e jamais. Ora, as entidades que diferem umas das outras sem se opor ativamente movendo-se são entidades matemáticas e não físicas: se se quiser, são números abstratos e não Grandezas materiais. Eis por que Platão parece ter dito que as Ideias ‘degenerariam’ em Números, mas não em átomos democratianos”.[10] Até aqui, tínhamos um mundo sem sentidos. Com ideias “entidades matemáticas” podemos multiplicar quantas vezes quisermos esta certeza e teremos muitos mundos sem sentidos.

O esquecimento dos sentidos funda, pois, um método e um saber: da paixão da diferença à indiferença pelas paixões há um longo percurso, que jamais pode ser abarcado inteiramente. Estabelece-se assim, “de uma vez por todas”[11], um princípio: pensar é se pôr à distância. Entre a ordem empírica e a reflexão há um abismo de recusa.

A força desse pensamento, que persiste, está em criar um idealismo sem romper inteiramente com a experiência do mundo. Um exemplo é a admirável declaração no Banquete onde Alcebíades aprendeu a amar a alma e a atividade do conhecimento através do amor carnal que sentia por Sócrates.[12]

Pensar não é experimentar, mas construir conceitos. Ninguém foi mais radical nessa ideia do que Hegel. E mais uma vez os olhos são chamados não apenas como testemunhos de uma grande mudança na história do pensamento, mas como o ponto de partida de todo o sistema hegeliano, o olho do Espírito que nega o olho do corpo. Em uma carta a Schelling, de novembro de 1800, Hegel marca o seu distanciamento e mesmo certa aversão ao mundo dos sentidos e a descoberta de um sentido na oposição entre o homem e a natureza: a superação dessa contradição se dá numa síntese — Espírito Absoluto — através de um método rigoroso e científico. Na carta, Hegel diz: “Na minha formação científica (filosófica), que começou com as preocupações inferiores do homem, fui levado à ciência; o ideal da minha juventude teve de se transformar em uma forma de reflexão, em um sistema”.[13]

Mas foi em uma das célebres conferências de Iena, entre 1805 e 1806, através daquilo que viu nos olhos do homem comum, que Hegel esboçou a sua tese do mundo: em poucas linhas, ele repõe e critica imagens clássicas do pensamento: para ele, os olhos não são espelho do mundo, e janela da alma, como escreveram Leonardo da Vinci e muitos renascentistas; não existe também o olho da alma, o olhar interior do cristianismo, morada da verdade (o olho do corpo é fonte de pecado. Faz do homem escravo e por ele tem de se livrar das paixões para não perder a liberdade interior. A mortificação do olhar é, pois, necessária, porque, como diz Padre Antônio Vieira, nos olhos estão compreendidos todos os sentidos). O olhar de Hegel é ao mesmo tempo aterrador e revelador: um olhar que se impressiona com os acontecimentos políticos da época (Napoleão comanda a Batalha de Iena), época de fermentação “quando o Espírito deu um salto para frente. Toda a massa de ideias e conceitos em curso até aqui, as próprias relações do mundo dissolveram-se e desmoronaram-se nelas mesmas como uma visão de sonho. Prepara-se uma nova liberação de Espirito”.[14]

Assim descreve Hegel a visão de sonho e a grande transformação do olhar científico: “O Homem é esta noite, esse nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade indivisa: uma riqueza de um número infinito de representações, de imagens das quais nenhuma lhe vem precisamente ao espírito; ou melhor, não existem enquanto realmente presentes. O que existe aqui é noite, interioridade ou intimidade da natureza: o Eu-pessoal-puro. Nas representações fantasmagóricas, tudo é noite: aqui surge bruscamente uma cabeça ensanguentada, ali, outra aparição branca, que desaparecem bruscamente da mesma maneira. É nessa noite que se percebe quando se olha nos olhos de um homem: seus olhares mergulham em uma noite que se torna terrível. É a noite do mundo que então se nos apresenta… É nessa noite que se refugiou a entidade-existente-como-um-ser-dado; mas o movimento (dialético) desta potência está igualmente posto”.[15]

Através daquilo que o filósofo viu nos olhos naturais, pode-se pensar o mundo anterior à consciência do mundo e definir o momento de constituição da História. O homem sem consciência de si, para si, é um ser silencioso e vazio que ainda não se sabe como sujeito. Vive no mundo das superstições, da fantasia e da imaginação. Ele é a noite do não-ser, cheio de lacunas e possibilidades ocultas, uma “concha-oca”. Dorme na noite escura à espera de que o Espírito vivo venha despertá-lo. Nas representações e na. imaginação, ele está ainda submetido “à errância do desejo, que flutua ao sabor do instante”.[16]

Vemos no texto de Hegel os três momentos que constituem o Espírito Absoluto e a exclusão do homem do mundo dos sentidos: o espírito subjetivo — o eu-pessoal-puro — é a consciência, mas uma consciência limitada porque imediata, pura representação sensível; o espírito-objeto que não tem consciência de si, pensamento representativo, imaginação, mito, superstição; e, por fim, a síntese dos dois momentos, que é o Conceito, ou Espírito Absoluto. É o nascimento grandioso do universo dos espíritos, como escreveu Marx num belo texto romântico, cheio de referências ao olhar: “Morte e amor são o mito da dialética negativa, porque a dialética é pura luz interior, o olhar penetrante do amor, a alma íntima que não é reprimida pelo corpo da matéria atomizada; ela é o lugar íntimo do espírito. O mito da dialética é, assim, o amor; mas a dialética é também a torrente impetuosa que destrói o múltiplo e seus limites, que arruína as figuras autônomas, lançando tudo no oceano único da eternidade. Eis porque o mito dialético é a morte”[17]

Com a morte do sensível, começa a vida do Espírito: o conhecimento intelectual ou a consciência desprovida de atributos sensíveis jamais pode restituir o valor da sensualidade e a potência emotiva dos homens e das coisas. O máximo que pode produzir é uma forma abstrata do homem estranho a si mesmo.[18]

Hegel vai dizer textualmente que o Espírito é Ciência, e a ciência, a única realidade objetiva do Espírito.[19] Dedicado a compreender o ser natural, ele substitui a cegueira da imaginação pelo pensamento de ver: o mundo e a natureza não são mais o mundo de imagens-fontes da superstição e do engano, “mas um mundo de nomes. O mundo de imagens é o espírito que sonha, que diz respeito a um conteúdo que não tem nenhuma realidade, nenhum ser. Seu despertar é o mundo dos nomes. É apenas agora que as imagens possuem a verdade”. É este idealismo, que transforma o sensível em coisa pensada, e em nome (ou Conceito, ou Consciência de Si, ou Saber Absoluto) única realidade e toda realidade. É a Ciência que tenta unir “o que ela própria cindiu arbitrariamente em elementos”.[20] Criamos dicotomias permanentes: a consciência e a coisa, o sujeito e o objeto divisões brutais que determinam com rigor as esferas do sensível e do pensado,
do que vê e do que é visto.

que em mim sente está pensando

Fernando Pessoa

Ao abrir o ensaio O olho e o espírito com a frase “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”, Merleau-Ponty afirmava que só a experiência sensível, “fundamento de direito” para todas as construções do conhecimento, pode revelar a cegueira da consciência. Ora, essa cegueira é fonte de uma grande ilusão: porque se separa do sensível, a consciência passa a ser propriedade física da ideia, e a partir daí “ela se tomará a si própria como causa primeira, e evocará seu poder sobre o corpo”.[21] Separada de sua própria causa, a consciência, ideia da ideia, produz ideias confusas e inadequadas. Cisão que porá uma questão jamais resolvida pelo idealismo ou pelo empirismo: como passar do sensível ao pensado e do pensado ao sensível sem que haja domínio de um sobre outro? Quando Merleau-Ponty escreve: “Somos o mundo que pensa, o mundo que está no âmago da nossa carne”; ou ainda, citando Cézanne, “eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim”, estava propondo uma mudança radical na forma de pensar. Convidava a tomar o corpo como fundamento. Uma nota de O visível e o invisível completa o seu pensamento: “Definir o espírito com o outro lado do corpo — não temos ideia de um espírito que não estivesse de par com um corpo, que não se estabelecesse sobre esse solo”. Dessa maneira, referia-se indiretamente a toda a tradição que elege a Ideia ou o Espírito absoluto como fonte de conhecimento, e diretamente a Descartes que pretendia a dominação das paixões pela consciência, e a cisão entre espírito e corpo. De que maneira o pensamento pode refazer o caminho sem que o corpo instaure sua superioridade sobre o espírito? Para ele, existe um campo, um “tecido conjuntivo dos horizontes exteriores e interiores” que não é nem a Natureza transcendente — o em si do naturalismo — nem o espírito imanente: “É neste entremeio que é preciso tentar avançar”. É neste campo, no intervalo dos sentidos, em contradição com o positivismo da consciência, que, segundo Merleau-Ponty, podemos descobrir que “ver é, por princípio, ver mais do que o que se vê, é aceder a um ser latente. O invisível é o relevo e a profundidade do visível”, e que “a filosofia que desvela este quiasma do visível e do invisível é inteiramente contrária a um pensamento de sobrevoo. Ela mergulha no sensível, no tempo e na História em direção às suas junturas”.

Aqui, o olho não é suporte natural do espírito, nem o espírito sublimação da visão. O que Merleau-Ponty propõe é uma retomada, a partir de um momento “esquecido”, quando o pensamento de ver substituiu o ver e fez dele seu objeto. Falando em quiasma ou entrelaçamento, procura desfazer corporalmente a distinção clássica entre sujeito e objeto, carne e espírito. Assim, em A prosa do mundo, descreve a relação carnal do sujeito e do objeto através de uma imagem muito forte: “Enquanto adere ao meu corpo como a túnica de Nessus, o mundo não é somente para mim, mas para tudo aquilo que, nele, faz sinal para ela. Há uma universalidade do sentir e é sobre ela que repousa nossa identificação, a generalização de meu corpo, a percepção do outro”.[22] A túnica de Nessus é mais do que uma metáfora. Diz a mitologia que, com ciúmes de Hércules e com medo de perdê-lo, Dejanira deu-lhe uma túnica banhada de sangue do Centauro Nessus, acreditando, assim, reconquistá-lo para sempre. A túnica penetrou até a medula dos ossos e colou de tal maneira à pele e aos membros que, ao tentar arrancá-la dos ombros, Hércules rasgava a própria pele e carne.

O desdobramento dessa visão é dado em uma das últimas notas escritas por Merleau-Ponty pouco antes de morrer: “O sentir que se sente, o ver que se vê, não o pensamento de ver ou de sentir, mas visão, sentir, experiência muda de um sentido mudo… A carne do mundo não é sentir-se como minha carne — é sensível e não sentiente. Chamo-a, não obstante, carne para dizer que ela é pregnância de possíveis”.

Combatendo qualquer tipo de positivismo tanto no pensar quanto no sentir, Merleau-Ponty escolhe a pregnância para exprimir tudo aquilo que, não sendo visível, nos permite ver, não sendo pensado, nos dá a pensar através de outro pensamento.

Lemos ainda em O filósofo e sua sombra uma definição contrária à que atribui à consciência o papel de fundante do ser e do mundo. Retomando Husserl, Merleau-Ponty redescobre o sensível como fonte do pensamento e forma universal do “ser bruto”, anterior à objetividade e à subjetividade. “O sensível — diz Merleau-Ponty — não é feito somente de coisas. É feito também de tudo o que nelas se desenha, mesmo no oco dos intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que nelas figura, mesmo a título de distância e como certa ausência: ‘o que pode ser apreendido pela experiência no sentido originário do termo, o ser que pode dar-se em presença originária não é todo o ser, e nem todo ser de que se tem experiência. Os animalia são realidades que não podem dar-se em presença originária para vários sujeitos: encerram subjetividades. São uma espécie de objetos muito particulares: dão-se originariamente de maneira tal que pressupõem presenças originárias sem que eles próprios possam ser dados em presença originária’. Eis o que são os animalia e os homens: seres absolutamente presentes sulcando uma esteira de negativo. Um corpo percipiente que vejo é também uma certa ausência, escavada e preparada atrás dele por seu comportamento. E, no entanto, a própria ausência está enraizada na presença; aos meus olhos, a alma do outro é alma graças ao seu corpo. As ‘negatividades’ também contam no mundo sensível que é, decididamente, o universal”.[23]

Este texto, de aparência enigmática, não é apenas uma crítica radical à separação corpo-alma, consciência-corpo, e à positividade da evidência intelectual imediata. Ele dá principalmente aos animalia uma materialidade e uma corporeidade sempre recalcadas pelo idealismo e pelo empirismo e desloca a reflexão da consciência para o corpo. Entretanto, o que mais nos interessa é indagar o que Merleau-Ponty quis dizer com o termo “ redescobrir” o sensível como forma universal do ser bruto. Como nos convida a retomar o pensamento anterior à racionalidade, e como nos exorta a nos deixarmos seduzir pela camada do sensível e a criticar tudo o que obriga o corpo a viver à distância de si mesmo, do mundo e do pensamento, tentemos uma aproximação — com todos os riscos e diferenças que ela implica — de um filósofo que, de maneira provocante, investiu contra a Ideia separada dos sentidos.

Se a consciência intelectual, esse esforço concentrado do pensamento clássico rumo às ideias inteligíveis, nos afastou do mundo sensível, a consciência sensível de Epicuro indica outro caminho que nos leva sempre a um encontro ou a um reencontro hoje como se, após uma travessia no vazio, “o olhar não tivesse outra saída a não ser uma volta à. evidência imediata”[24]. Não à evidência intelectual do pensamento moderno, mas à evidência sensível. A teoria de Epicuro é um permanente encontro, a começar pela sua escola, um Jardim, que é mais o espaço do encontro dos amigos do que a Academia dos outros filósofos gregos, a sensação nasce do encontro de duas presenças, de dois corpos e, por isso, Epicuro diz que todo o conhecimento começa nos sentidos. Encontro do homem com a razão humana quando, contradizendo todos os que o antecederam, Epicuro afirma que a Natureza não está ligada à ideia de Destino providencial, nas formas do mito, dos deuses ou de qualquer ser sobrenatural. Vitória de Epicuro sobre as superstições, diz Lucrécio: “Enquanto, aos olhos de todos, a humanidade tinha na terra uma vida abjeta, esmagada sob o peso de uma religião cujo rosto, mostrando-se do alto. das regiões celestes, ameaçava os mortais com seu aspecto horrível, foi um grego o primeiro homem a ousar levantar seus olhos mortais contra ela e fazer-lhe frente”.[25] Encontro dos átomos (a teoria da declinação — clinamen) através de um sutilíssimo afastamento em sua queda vertical, origem da criação de todas as coisas na natureza. Encontro do corpo e da alma com o sensualismo. Encontro do homem com a memória, o que o permite operar uma seleção do prazer sobre a dor. É a lembrança das sensações ou imagens que se opõe à dor.

Mas são as noções de visível e invisível, corpo-alma, e a relação — ou passagem — do sentido ao pensado que, ao ler Merleau-Ponty, nos fazem lembrar Epicuro.

Para Epicuro, os sentidos são os mensageiros do conhecimento. Nem mesmo a razão, ou conceito, pode refutar os sentidos porque toda razão, ou todo conceito, depende deles. A exemplo de Merleau-Ponty que diz que “todo o saber se instala nos horizontes abertos pela percepção”, Epicuro afirma que “todos os nossos pensamentos têm a sua origem nas sensações por conjuntura, analogia, similitude e combinação, contribuindo também o pensamento para elas”. Os sentidos são, pois, fenômenos objetivos. Nada escapa, nada pode escapar ao olho sensível de Epicuro porque, além de objetivo, o sensível é material: com Lucrécio, ele construiu uma das mais curiosas concepções: os corpos da natureza desprendem elementos muito sutis, fluídos e tênues que são os simulacros, membranas superficiais que são levadas ao mundo dos fenômenos. São estas formas que, ao penetrar nos sentidos, provocam um encontro e modificam a estrutura de nossos átomos. Os simulacros são o invisível do visível, ou melhor, eles são a condição do ver: são “finas partículas da mesma forma e da mesma cor” que batem nos nossos olhos, apesar de a própria vista ser um contato. Marx chamou este fenômeno de “reflexão do mundo fenomenal nele mesmo, o mundo temporal tornado corpo […] porque, quando escutamos, é a própria natureza que se escuta, quando vemos, ela própria se vê”.[26] É a consciência de si “objetivada e sensível”. Mas essa ideia de simulacros nos remete a uma das noções mais importantes em Epicuro que é o espaço, ou o vazio: o espaço é uma “natureza intangível” e o vazio é condição da existência do movimento perpétuo dos átomos. Ele é o intervalo que se encontra “entre os átomos no interior dos corpos compostos”. Na constituição das coisas, lemos em Epicuro termos tão caros à fenomenologia contemporânea: entre os átomos, “alguns estão separados dos outros por uma longa distância, outros mantêm a sua vibração cada vez que lhes acontece estar ligados por entrelaçamento aos outros, ou ainda estar contidos por átomos entrelaçados em torno deles”.[27]

Entrelaçamento é a própria relação corpo-alma: se, em Platão, temos a alma dividida em duas partes, uma inferior (alma sensível), situada no baixo-ventre (o desejo), e no peito (sede da coragem); e outra superior (alma inteligível), imortal, obra do Demiurgo , em Epicuro ela é matéria: “É um corpo composto de partes sutis, disperso através do conjunto que constitui nosso corpo e que, por outro lado, se assemelha a um sopro misturado com calor”. “A substância do espírito e da alma é material” — diz Lucrécio. “Se a vemos, pois, levar nossos membros para a frente, arrancar o nosso corpo ao sono, fazer-nos mudar o rosto, dirigir e governar todo o corpo humano, como nenhuma destas ações pode, evidentemente, produzir-se sem contato, nem o contato sem matéria, não deveríamos reconhecer a natureza material (corporea natura) do espírito e da alma? Ainda mais, também é verdade que o espírito sofre com o corpo, partilha as sensações do corpo, como é fácil ver.”

A relação corpo-alma em Epicuro é mediada pelo prazer. O senso comum, quando pensa o prazer em Epicuro, relaciona-o apenas ao corpo. Ora, como demonstrou Bro-chard, esquecer os prazeres da alma leva não apenas a uma reflexão incompleta, mas degrada o melhor do pensamento de Epicuro, que é a abertura para o trabalho da consciência e da imaginação. É claro que só se pode falar em prazeres da alma à condição de “entender por isso os prazeres corporais conservados pela memória ou antecipados pela esperança.[28] É opondo um prazer a uma dor, pelo jogo voluntário da imaginação — escreve Brochard — “que o sábio atinge a felicidade, da mesma maneira que, por uma operação inversa, perturbando o bem-estar físico com vãos temores e ideias falsas que o vulgo se torna infeliz”.[29]

Diante dessa concepção, que outra conclusão tirar a não ser a de que, com Epicuro, instaura-se a “dignidade ontológica do sensível”, reclamada por Merleau-Ponty?
Mais o procuro, mais ele se esconde dos meus olhos

Heroicos furores

Quando, em pleno Renascimento, os olhos estavam sendo estudados cientificamente, cada membrana dissecada, cada nervo ou fio comparado a águas de rios que correm no interior do olho sem se misturarem — um mergulho físico na retina para compreender a visão e o visível; quando predominava ainda a ideia de um olho mágico: “A, fascinação é uma ligação ou um charme que, do espírito daquele que enfeitiça (ou seduz), passa pelos olhos daquele que é enfeitiçado e daí para o coração. O sortilégio é o instrumento do espírito, isto é, um vapor puro, luzidio, sutil, que provém do mais puro sangue engendrado pelo calor do coração, que reenvia continuamente, através dos olhos, raios que trazem com eles um vapor espiritual”,[30] quando, enfim, se discutia ainda a rivalidade no olhar, tentando-se decidir se a visão vinha das coisas ou dos raios luminosos do olho, um filósofo provocaria uma reversão, outra maneira de olhar o olhar, no encontro poético entre os olhos, falando em nome da vida intelectiva (a razão) e o coração, falando em nome das paixões.

“A vista — escreveu Giordano Bruno — é o mais espiritual de todos os sentidos” e por isso, seguindo a tradição neoplatônica do Renascimento, acreditava num olhar revelador em busca da ascensão ao Bem supremo e à Luz. Mas, ao dizer também que “no sentido e no intelecto existe um apetite sensível, um impulso em direção ao sensível”, Giordano revelava um outro lado, dava uma materialidade ao seu pensamento que iria ser combatido com o fogo da Inquisição. Heroicos furores é um livro dedicado aos olhos.

Começamos pela pergunta: o que são Heroicos furores? Na tradição renascentista, furor era ardor, coragem, paixão desmedida, furor amoroso (sagrado ou profano), dar-se ao prazer com furor, elã impetuoso do espírito que excede à razão; heroico era o acontecimento memorável, forma nobre e elevada, virtude superior, força da alma. Mas heroico era também erótico: os antigos tendiam a aproximar vocábulos com sons vizinhos, ainda que a etimologia fosse outra. Assim, pode-se dizer que, se o heroísmo clássico era feito muitas vezes para o prazer dos olhos, os Heroicos furores podem ser lidos também como prazer do corpo. Lemos em um dos mais densos Diálogos do livro, que trata do progresso da reflexão, que a vigor do intelecto traz para junto de si as afeições sensíveis “voltadas para a vida do corpo”. Mas como a relação com o sensível jamais pode ser completa, porque ele é feito de fragmentos e sombras dos sentidos, Giordano dirá que este caminho não se faz sem tormento: “cruel” é o objeto que “não consente dar prazer, ou pleno prazer de si mesmo, que é objeto de desejo mais que de posse, de sorte que, aquele que tem dele posse parcial não pode descansar em perfeita felicidade, uma vez que deseja ainda, com um ardor que leva ao desfalecimento”.[31] Mais interessante é a noção de progresso do pensamento neste diálogo: não tem o sentido de movimento que se dirige do imperfeito ao perfeito, mas descreve “círculos por graus de perfeição”.

Mas Giordano só poderia dizer que os olhos são a fonte do conhecimento sensível mudando sua concepção do cosmos e rompendo com a visão intelectual e o aparato religioso e mental predominantes. Critica o domínio do intelecto sobre os sentidos e escreve: “erramos quando, seduzidos pela beleza do intelecto, deixamos em perigo de morte a outra parte de nós mesmos. É aí onde nasce esse humor melancólico e perverso”.[32]

Há, pois, uma troca interessante na definição dada por Giordano à passagem do pensar e do sentir: “O intelecto quer perceber tudo o que é verdadeiro a fim de poder, em seguida, apoderar-se de tudo o que é belo e bom no inteligível; a potência sensitiva quer compreender todo o sensível a fim de abarcar tudo o que, no sensível, é belo e bom. Daí decorre que mais desejamos ver as coisas ignoradas e nunca vistas do que as coisas já conhecidas e vistas”.[33]

Em Giordano, o saber depende pois da visão: “Os olhares são as razões pelas quais o objeto (como se ele nos olhasse) se faz presente a nós”. Mas faz uma distinção no ver, em que a palavra visão tem dois significados: o ver concreto, ou a faculdade de ver pelo intelecto ou pelo olho; e a própria ação do ver, o ato da potência de ver. É a partir dessa ideia de ato de ver, da ação do ver, que Giordano escreve o diálogo — o embate — entre os olhos e o coração. Mas o curioso neste diálogo é que tanto o coração como os olhos são representados como entidades corporais separadas, e “substâncias separadas, dotadas de razão e de sentidos”, o que nos leva a pensar que nada do que é dito é pura idealidade ou metáfora. Temos uma visão corpórea da razão e das paixões, olhos e coração.

O diálogo começa com uma acusação e um lamento do coração: ele se queixa do fogo que o consome e acusa os olhos de serem “causa desse cruel incêndio” que nem toda a água do oceano bastaria para apagar. É que a primeira chama veio dos olhos, porque a razão excita o desejo: “Perceber, ver, conhecer, eis, em verdade, o que o desejo acende. É, pois, graças aos olhos que o coração é incendiado”.[34]

Por sua vez, os olhos acusam o coração de ser o princípio de todas as lágrimas: na verdade, o fogo e a dor do coração fazem brotar as lágrimas dos olhos: se os olhos incendeiam o coração, é por causa do coração que os olhos são inundados em lágrimas. “Copiosas lágrimas que, se espalhadas, inundariam o universo.”[35]

Os olhos perguntam: se toda matéria, convertida em fogo móvel e ligeiro, eleva-se às alturas do céu, “por que você, que um tão grande fogo de amor atormenta, não é levado, rápido como o vento, de um só clã até o sol?”. O coração responde: “Louco é aquele que, fora das aparências, nada conhece e que, pela razão, recusa-se a acreditar: o fogo que está em mim não pode alçar pleno vôo, nem pode ver esse desmesurado incêndio, porque acima dele estende-se o oceano de olhos e o infinito não pode ultrapassar o infinito”.

Aqui se chega à questão central posta por Giordano: como é possível traduzir em ato uma potência infinita? Como dar uma positividade ao infinito? Como romper o equilíbrio de duas forças iguais? “Onde existem duas forças — comenta Giordano — uma não sendo superior à outra, uma e outra cessam de ser operantes, uma vez que a resistência de uma iguala-se à insistência da outra.”[36] Prossegue, porém, lembrando que a igualdade só é possível entre dois infinitos. Duas forças finitas em oposição sempre produzem a ruptura da harmonia e do equilíbrio, por serem desiguais.

A resposta é dada no fim do diálogo: acima dos olhos e do coração está o Desejo: “Estas duas potências da alma jamais são e podem ser satisfeitas por seu objeto uma vez que infinitamente elas o buscam”.[37] Se fossem satisfeitas, estaríamos diante de um infinito negativo, enquanto o Desejo o é por positiva afirmação do “fim infinito sem fim”. O Desejo é o infinito que trabalha o interior das paixões e da razão. É o Desejo que leva o ver a se transformar em ação de ver, dando às paixões e ao intelecto movimento infinito.

Assim, a relação dos olhos e do coração, do pensado e do sentido, é posta por Giordano num duplo movimento, ou “dois ofícios”, como ele diz: “Para os olhos: imprimir no coração e receber a impressão no coração, da mesma maneira que o coração tem dois Olhos ofícios… receber a impressão dos e imprimir nos olhos. Os olhos apreendem as aparências e as propõem ao coração; elas se tornam então, para o coração, objeto de desejo, e esse desejo, ele o transmite aos olhos; estes concebem a luz, irradiam-na e, nela, inflamam o coração; este, abrasado, espalha sobre os olhos seu humor. Assim, primeiro a cognição emite a faculdade afetiva que, por sua vez e em seguida, emite a cognição”.

Cada ideia dos Furores heroicos faz ressentir o corpo e a busca incessante da felicidade e do prazer. Não foi, certamente, por acaso que o último pensamento do diálogo é o prazer, o sentido do prazer: Os olhos em lágrimas significam a difícil separação da coisa desejada daquilo que a deseja e ao qual, para lhe poupar sociedade e lassitude, ela se propõe como esforço de um zelo infinito, sempre em posse e sempre em busca de seu objeto; a felicidade dos deuses, tal como é descrita, é beber e não ter bebido”.[38]

Assim, seguindo o percurso proposto por Giordano, tivemos Os sentidos da Paixão e O olhar. Retomemos a caminhada com O desejo.

Notas

[1] C., Lévi-Strauss, Mito e significado, Lisboa, Edições 70, p.18.

[2] Aristóteles, abertura da Metafísica.

[3] M., Merleau-Ponty, O visível e o invisível, São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 81.

[4] J. , Starobinski, L’oeil vivant, Paris, Gallimard, 1961, p. 12.

[5] Citado por Jorge Luis Borges no ensaio “La esfera de Pascal” em otras inquificiones, Buenos Aires, Emecé Editores, 1960.

[6] G., Bornheim, em As metamorfoses do olhar, conferência de Curitiba, abril de 1988, no ciclo “O olhar” (pp. 18-25 deste volume).

[7] M., Heidegger, Essais et conferences, Paris, Gallimard, 1958.

[8] Citado por Marx na tese sobre Demócrito e Epicuro, in Oeuvres III, Philosophie, Bibliothèque de la Pleiade.

[9] M., Heidegger, op. cit.

[10] A., Kojève, Essai d’une histoire raisonnée de la philosophie paienne, tomo ii, Paris, Gallimard, 1972, p. 30.

[11] Ideia desenvolvida por François Châtelet no ensaio sobre Platão em La philosophie de Platon à St. Thomas, Bélgica, Les Nouvelles Editions Marabout, 1979.

[12] A., Koyré, Introduction à la lecture de Platon, Paris, Gallimard, 1962.

[13] M., Régnier, “Hegel”, in Histoire de la Philosophic. 2, De la Renaissance à la revolution Kann-tienne, Paris, Gallimard, Encyclopédie de la Pleiade, 1973, p. 856.

[14] Hegel, Conferências de Iena, 1805-6, citado por Kojève na Introduction à la lecture de Hegel, Paris, Gallimard, 1968.

[15] Idem, p. 575.

[16] Veja-se, em particular, o excelente capítulo “A prosa da história” do livro Hegel — a ordem do tempo de Paulo Eduardo Arantes, São Paulo, Editora Pólis, 1981: “O advento do histórico está assim ordenado aos mecanismos da tomada de consciência’, ou, em outras palavras, a abertura da história supõe a desarticulação das formas imediatas, e, por isso, confusas da consciência, estando necessariamente bloqueada enquanto a consciência permanecer mergulhada na natureza, enquanto o espírito permanecer em estado de ‘incubação’. É o Espírito, é claro, que desencadeia a História, mas só pode fazê-lo à condição de quebrar a carapaça do em-si, ao instalar-se na primeira evidência do para-si; numa palavra, o Espírito só desencadeia a História ao atingir a etapa do desdobramento reflexivo. Daí Hegel estabelecer, como fundamento do critério de inclusão na História, a incompatibilidade entre a estruturação ético-política e a errância do desejo, que flutua ao sabor do instante: ‘de uma maneira geral, um povo só participa da História [ist Welthistorisch] na, medida em que identificou sua natureza fundamental, seu fim fundamental, com um princípio universal, e é apenas nessa medida que a obra que produz constitui uma organização ética, política. Se é apenas o desejo que conduz os povos à ação, sua agitação passa sem deixar vestígios”. Paulo Arantes mostra que os “vestígios” são a história escrita e quais são os fundamentos e o papel do Estado hegeliano: “Na prosa e só com ela, abre-se o campo da História, tornando possível um saber inédito que, por sua vez, se alimenta de uma base real igualmente nova (novidade definida por Hegel de maneira precisa e forte: ‘só o Estado pode fornecer um conteúdo que não é próprio apenas à prosa da História, mas que contribui também para produzi-la’ […] A consideração retrospectiva, para organizar a dispersão do passado e assimilá-lo, exige, como fundamento (além da regra de exatidão, do princípio geral da adequação à dignificação e à determinação abstrata do conteúdo, que são específicos da prosa) um objeto sólido que seja, ao mesmo tempo, objeto de saber e meta da vontade: objeto que só o Estado pode propor”.

[17] K., Marx, “Philosophic épicurienne”, Cahier v, in Oeuvres, “Philosophie”, Paris, Bibliothèque de la Pleiade, p. 851.

[18] Nos manuscritos econômicos e filosóficos, Marx escreveu um texto fundamental sobre os sentidos e sobre o olho, geralmente “esquecido” pelo positivismo à direita e à esquerda: “O olho transformou-se em olho humano quando seu objeto se tornou um objeto social humano, vindo do homem e destinado a ele. Os sentidos tornaram-se, pois, diretamente, na prática, teóricos. Eles se relacionam com a coisa por amor à coisa, mas a coisa é, ela própria, uma relação humana objetiva com ela mesma e com o homem, e vice-versa. A necessidade ou o espírito perdeu, pois, sua natureza egoísta, e a natureza perdeu sua simples utilidade porque a utilidade transformou-se em utilidade humana […]. Além dos órgãos imediatos, órgãos sociais são constituídos na forma da sociedade; assim, por exemplo, a atividade imediata em sociedade com outros tornou-se um órgão de manifestação da vida e um modo de apropriação da vida humana. De onde se conclui que o olho humano é diferente do olho grosseiro, não humano, o ouvido humano diferente do ouvido grosseiro, etc… […] Para o olho, o objeto não é o mesmo que para o ouvido… A particularidade da força de todo o ser é justamente sua essência particular, e também, portanto, o modo particular de sua objetivação, do seu ser vivo objetivo e real. Não é, pois, apenas no pensamento, mas através de todos os sentidos que o homem se afirmou no mundo objetivo”.

[19] Conforme demonstra Kojève no texto “La dialectique du réel et la méthode phénoménologique chez Hegel”, in Introduction à la lecture de Hegel, op. cit.

[20] T. Adorno, Dialectique négative, Paris, Payot, 1978, p. 141.

[21] Deleuze dedica breve comentário à noção de consciência como causa primeira no livro Spinoza Philosophie pratique, Paris, Editions de Minuit, 1981.

[22] Utilizo aqui a tradução feita em uma nota da p. 251 de O filósofo e sua sombra da coleção “Os pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980.

[23] M., Merleau-Ponty, O filósofo e sua sombra, col. “Os pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 252-53.

[24] J., Starobinski, op. cit.

[25] Tradução de Jean Brun em L’épicurisme, Presses Universitaires de France, 1959.

[26] K., Marx, “Démocrite et Epicure”, in Oeuvres III, Philosophie, Paris, Bibliothèque de la Pleiade, p. 55.

[27] J., Brun, op. cit.

[28] V., Brochard, Les Etudes de Philosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris, J. Vrin, 1954.

[29] Idem, ibidem.

[30] C., Agrippa, La philosophie occulte ou la magie, Paris, Bibliothèque Chacornac, 1910, p. 128.

[31] G., Bruno, Des fureurs héroiques [De gl’Heroici Furor], edição bilíngue, Paris, Les Belles Lettres, 1984.

[32] Idem, ibidem, p. 224.

[33] Idem, ibidem, p. 220.

[34] O embate entre os olhos e o coração começa no Diálogo terceiro da segunda parte do livro, p. 380.

[35] Idem, ibidem, p. 382.

[36] O diálogo, em forma poética, é intercalado por comentários filosóficos que podem ser mais bem compreendidos pela leitura dos textos de Giordano sobre magia e memória.

[37] A ideia do infinito positivo é posta claramente no comentário de Giordano à segunda resposta dos olhos ao coração, p. 392.

[38] Des fureurs heroiques, p. 396.