2004

Crepúsculo de uma civilização

por Adauto Novaes

Nenhum testamento precedeu nossa herança.

René Char

O título deste livro, Civilização e barbárie, dois termos que jamais estiveram distantes um do outro, é laborioso e sujeito a várias especulações. Os acontecimentos recentes apenas o confirmam: poucas vezes, ao longo da história, o Ocidente viveu de forma tão trágica e explícita a confluência da civilização e da barbárie. Por isso, prometido ao caos de um mundo que não é inteiramente humano e de um tempo que esqueceu o passado e perdeu de vista o horizonte futuro, o pensamento caminha muitas vezes à deriva. Mas, se os ensaios aqui reunidos pelo menos apontarem algumas origens da crise, já é o bastante. Tudo parece irremediável: dividimos nossa existência entre um naturalismo e um artificialismo extremos; vivemos o descrédito da política, o desprezo das normas éticas e morais, a opacidade das relações sociais, a obscuridade na cultura e nas artes, “verdades” estabelecidas pela ciência e pela técnica. A astúcia do poder produz guerra em nome da paz, substitui o medo pelo terror e, ao mesmo tempo, cria a mais nova configuração da relação clássica entre paixão e razão. Se, como nos diz Jacques Rancière, o medo era uma paixão cúmplice da razão, que a filosofia se propunha a dissipar e a política, a “transformar sua irracionalidade em inteligência positiva dos perigos e obstáculos”, o terror é a paixão que rompe essa cumplicidade.

A “voz da razão”, prometida desde o século XVIII, parece estar na defensiva. Como nomear aquilo que, apenas na Europa, entre 1914 e 1945, produziu, com guerras, deportações, limpezas étnicas, Auschwitz e Gulag, em torno de 100 milhões de mortes? Onze de setembro seria o emblema não apenas de uma crise, mas da morte, ou passagem, para outro tipo de civilização?

Ora, mais que barbárie, o que define nossa situação hoje é a ausência de um sentido para o termo civilização. É certo que a civilização ocidental sempre viveu em crise e das crises. Cada vez que surgia um grande conflito — e isso aconteceu, por exemplo, entre as duas Grandes Guerras —, pensadores evocavam o mal-estar, a decadência e a crise da civilização, mas havia sempre um caminho que indicava o futuro. O que vemos de novo, no estado presente, é a ausência de futuro. Imaginar o futuro tornou-se impossível e passamos a ser dominados por aquilo que muitos definem como vida “volátil e efêmera”, cuja experiência desconhece qualquer “sentido de continuidade e se esgota em um presente vivido como instante fugaz”. Sabe-se que nenhuma civilização se estrutura apenas em um presente eterno e confuso. Assim, sem passado e sem futuro, a crise presente deixa de ser apenas um “acontecimento” que poderia ser mediado pela razão, como aconteceu com as crises anteriores, para traduzir-se em advento de algo inteiramente estranho às antigas formas de organização do pensamento e da própria história. A passagem da “crise” para a “morte da civilização” foi pensada em três célebres textos de Paul Valéry (A crise do espírito, A política do espírito, nosso supremo bem e O balanço da inteligência), que, segundo comentário do filósofo Martin Heidegger, mostram que a “decadência espiritual da terra está tão avançada que os povos estão ameaçados de perder a última força espiritual, aquela que lhes permitiria pelo menos ver e estimar como tal essa decadência”. A crise maior surge, portanto, da própria impossibilidade de ver a crise, provocada por “grandes maquinações” que jogam o homem “para fora do ser sem que ele mesmo o saiba”.

Lembremos Valéry e sua frase tantas vezes citada mas que até hoje impressiona: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”. Depois de evocar a grandeza e a decadência de Elam, Nínive e Babilônia, Valéry conclui: “O abismo da história é suficientemente grande para todo o mundo. Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade de uma vida”.

Mas, antes de apontarmos os signos e sintomas ligados à história dos acontecimentos, preferimos começar este livro com alguns ensaios sobre a história das ideias. Seguimos os caminhos propostos por Valéry, que, “diante de milhões de espectros”, preferiu, primeiro, ouvir o Hamlet intelectual que medita sobre a vida e a morte das verdades. Elas nos ajudam a definir quais foram as noções centrais que moveram ou foram afetadas por essa passagem — que é também uma crise. A “crise da civilização” dominou boa parte dos debates intelectuais depois do 11 de setembro — do livro de Samuel Huntington (O choque de civilizações) às ácidas respostas que este recebeu do orientalista Edward Said (O choque de ignorâncias) e aos ensaios de Umberto Eco, Jacques Rancière e outros. Quase todos relacionam a crise da civilização a uma herança da modernidade.

Civilização e modernidade convidam-nos, pois, à reflexão. Mas, ao primeiro movimento do pensamento, essas duas noções tornam-se vagas e imprecisas, e passamos a sentir o peso, os obstáculos e as resistências a um entendimento imediato. Talvez a incerteza seja um de seus elementos constitutivos, porque, desde que foram formuladas pela primeira vez até hoje, elas não cessam de nos interrogar sobre o próprio sentido: não há atividade do espírito — filosofia, literatura, moral, política, estética — que não se pergunte hoje o que é ser civilizado (e, em consequência, quem é o bárbaro), o que é ser moderno. Há até mesmo aqueles que levantam a dúvida: “Existe uma civilização moderna ocidental?”.

Um livro sobre civilização contemporânea obriga-nos, antes de tudo, a discutir também as implicações do que se convencionou chamar “civilização tecnológica” mundial. Como nos lembra Abdelwahab Meddeb em seu ensaio, ao evidenciar um dos efeitos da universalização da técnica, em particular sua introdução na cultura de alguns países do Oriente, devemos insistir mais em sua utilização do que no desenvolvimento da ciência. “O mundo islâmico”, escreve Meddeb, não cria ciência, mas pôde, em certas camadas, dominar a técnica que implica, antes de tudo, o controle do funcionamento da máquina mais do que de sua invenção, menos ainda de sua produção”.

A palavra civilização aparece, pois, de formas variadas neste livro. Mas a palavra deixa-nos uma incômoda sensação de que, aos poucos, perde seu vigor. Já que não mais podemos interrogar nossa experiência como civilizados, muitos de nós vamos aos dicionários para “conhecer” o sentido dela. Mas mesmo seu declínio pode nos ensinar algo: “O próprio desuso confere a um termo moribundo uma espécie de suprema significação”, escreve Valéry. O declínio nos ensina, por exemplo, que o uso político da palavra degrada a ideia de civilização, transformando-a em “arma deplorável” e instrumento de guerra permanente. O sentido ou o pensamento contido desprega-se da palavra, criando aquilo que pode ser designado como palavra-ídolo que carrega em si violências, muitas vezes  violências sangrentas como a que se vê hoje.

A simples  evocação  da  palavra  civilização  remete,  necessariamente, a seu outro, que é a barbárie. Pelo menos foi assim ao longo da história: Lemos, por exemplo, no ensaio de Francis Wolff, que, ao responder às duas questões postas pela organização do livro: “O que é ser civilizado?”, “Quem é o bárbaro?”, o autor apresentou duas visões correntes: a “mais ingênua”, a mais difundida é: nós somos os civilizados, os outros (mais antigos, exóticos e distantes) são bárbaros. Sabemos que, para os gregos da Antiguidade, bárbaro era todo povo que não falava grego. Hoje, essa visão traduz-se assim: nas guerras santas de todas as espécies, o Bem somos nós, civilizados — contra o Mal, os outros, Bárbaros.

Wolff lembra também outra resposta, “mais sofisticada”, que consiste, diz ele, em negar o problema, relativizar as noções: “Nenhum povo é mais civilizado que o outro, nenhum costume é bárbaro”. Em síntese, todas as culturas se equivalem. Duas consequências éticas e políticas dessas visões: a primeira é fonte do escravismo, do colonialismo e do imperialismo; a outra, ou seja, o relativismo cultural, nega todo valor humano universal, além de levar ao ceticismo sobre suas próprias crenças. O que fazer, pergunta Wolff, quando julgamos, segundo nossos próprios critérios culturais, que outras culturas, consideradas tão “civilizadas” quanto a nossa, são produtoras de humilhação, opressão e exploração? Para sair do impasse posto pelas duas concepções, Wolff dá, em seu ensaio, uma alternativa, definindo quem é bárbaro e, portanto, ao mesmo tempo, o que é ser civilizado: “Seria bárbara toda cultura que não disponha, em seu próprio interior, de possibilidades que lhe permitam admitir, assimilar ou reconhecer uma outra”.

Notamos, pois, que a civilização vive a inversão em seu próprio interior, isto é, traz em si mesma a possibilidade de retorno da barbárie. Que elementos invertidos são estes, sempre ameaçadores, que habitam o núcleo da civilização? Essa maneira de pensar a civilização é uma resposta a certa tendência que vê a humanidade em uma irresistível evolução civilizatória. É a crítica que se pode ler em A dialética da razão, de Adorno e Horkheimer: o Iluminismo, no sentido mais amplo do “pensamento em progresso, teve por fim liberar os homens do medo e torná-los soberanos. Mas a terra, inteiramente ‘esclarecida’, resplandece sob o signo das calamidades triunfantes em toda parte”.

Ora, as sociedades democráticas modernas, pelo menos em seus postulados gerais, baseiam-se na defesa do direito à diferença para afirmar a tolerância como valor fundamental da vida em sociedade.

Partindo do axioma de Michael Waltzer (“a tolerância torna a diferença possível; a diferença torna a tolerância necessária”), Newton Bignotto questiona os limites postos hoje por alguns pensadores e governantes a essas duas virtudes, num mundo no qual “subitamente as diferenças entre grupos étnicos, nações e crenças religiosas voltaram a estar no centro das discussões”. O que se discute, em última análise, é a natureza das instituições políticas contemporâneas. Essa natureza muda essencialmente quando se vê o retorno do teológico-político, isto é, uma fusão de crenças e religiões e política. Esse retorno remete-nos aos ensaios de dois outros filósofos aqui reunidos: para Marilena Chaui, o que hoje se chama de fundamentalismo religioso foi denominado no século XVII de poder teológico-político, por Espinosa, que encontra a origem desse poder na superstição. A causa da superstição é o medo, e seu efeito é a religião, escreve Chaui: “É, portanto, no contexto de uma paixão — o medo —, de uma relação com a realidade — a superstição — e de uma instituição social — a religião — que Espinosa analisará as duas grandes manifestações da teologia política: o judaísmo e o cristianismo”. Já Abdelwahab Meddeb mostra que, ao lado da conotação religiosa, o islã criou uma das maiores civilizações da humanidade, que teve seu apogeu entre o início do século IX e o fim do século XII. Foi uma revolução que cobriu todos  os campos do saber, da poesia à ciência, resultado do cruzamento de várias tradições e traduções — a grega, a latina, a persa, a indiana, a chinesa —, tudo confluindo para a língua árabe. Para Meddeb, a crise da civilização islâmica decorre, em grande parte, do descompasso tecnocientífico. Segundo ele, “o funesto instaura-se a partir do momento em que os meios da técnica dão a ilusão da possibilidade de restaurar sua soberania sem proceder ao trabalho necessário sobre si mesmo que venha pôr em acordo os espíritos com o estado da metafísica e das ciências”.

Impossível, pois, circunscrever, em todos os aspectos, um tema tão amplo como esse da crise da civilização. Em um célebre e antecipador ensaio, A política do espírito, Paul Valéry aponta o desenvolvimento técnico como um dos elementos essenciais, certamente aquele que concentra e define o ponto de partida da crise. Ele escreve:

O mundo moderno em toda a sua potência, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, não soube, entretanto, estabelecer uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estivessem em harmonia com os modos de vida que criou e mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico impõem pouco a pouco a todos os homens.

Ainda que em outros textos sobre a crise da civilização Valéry nos induza a pensar que estivesse lamentando um passado perdido, a citação acima aponta para questões do presente. Valéry não está sozinho no diagnóstico dessa crise. É certo que os métodos de análise e as conclusões são diferentes (basta lembrar a diferença entre as ideias de declínio, que predominam nos debates do momento, e a de morte da civilização apontada por Valéry), mas impossível não citar obras essenciais como O declínio do Ocidente, de Spengler, e os escritos de Wittgenstein. Em um ensaio que acaba de publicar — Wittgenstein: cultura e valor —, Bento Prado Júnior mostra de que maneira, para o filósofo, é a civilização tecnocientífica, filha do espírito das Luzes, que é a origem dos descombros da cultura, das artes e da religião. Duas citações de Wittgenstein ilustram a crise: “Disse um dia, e talvez a justo título: da antiga cultura só restará um amontoado de descombros e, para terminar, um amontoado de cinzas, mas haverá espíritos que flutuarão sobre essas cinzas”. É evidente a separação clássica entre cultura e civilização. É evidente também que, para Wittgenstein, a crise é da cultura, o que o diferencia de Valéry no diagnóstico deste sobre a morte da civilização. Mas ambos falam da crise do espírito, “fim das artes”, desencantamento do mundo. Se esse espírito contra a Aufklärung pode ser sintetizado na frase “fortemente agressiva” de Wittgenstein — “Que eu seja compreendido ou apreciado pelo cientista ocidental típico, isso me é indiferente. Porque ele não compreende o espírito segundo o qual eu escrevo” —, para Valéry, a crise intelectual,

mais sutil e que, por sua própria natureza, ganha as mais enganosas aparências (uma vez que ela se passa no reino da dissimulação), dificilmente essa crise deixa tocar seu verdadeiro ponto, sua fase… Ninguém pode dizer o que, amanhã, estará morto ou vivo na literatura, na filosofia, na estética; ninguém sabe ainda quais idéias e quais modos de expressão serão inscritos na lista das perdas, que novidades serão proclamadas.

Até chegar à crise atual, a ideia de civilização passou por vários caminhos, do etnocentrismo europeu ao ceticismo. Comecemos, pois, pela frase emblemática de Victor Hugo: “Paris expressa o mundo”, o que, de alguma maneira, traduz a visão dos historiadores Fernand Braudel e Jacques Le Goff, para quem as civilizações são espaços, e o espaço ocidental confunde-se com a Europa/Paris, “uma Europa enriquecida com as contribuições externas, ‘expandida’ pela colonização e pela emigração”. Se as civilizações são espaços, economias e sociedades (Braudel), elas são também “mentalidades” e “costumes”: todo o problema consiste, então, em saber como essas mentalidades e esses costumes, necessariamente diferentes em cada sociedade, são transformados em um todo homogêneo, até se chamar Civilização ocidental — apesar do ou graças ao  “enriquecimento”  (e  ao  esquecimento) de culturas diferentes, inclusive e, em alguns casos, principalmente do Oriente. Talvez o que permite transformar a civilização do Ocidente em um conceito homogêneo seja o deslocamento das contradições para o exterior ao próprio “Ocidente-Europa”: “Os ocidentais só são definidos como tais opondo-se a um Outro: o Bárbaro, o Infiel, o Selvagem e, principalmente, ao Oriental, que acumula todas as diferenças” (Le Goff). A relação estabelecida pelo Ocidente (inicialmente a Europa e agora os Estados Unidos) sempre foi desigual, não só com o Oriente mas também com todas as outras culturas: “Cientes de sua superioridade, os ocidentais esforçaram-se por exportar seus valores: ‘cristianizaram’, ‘civilizaram’ e depois ‘colonizaram’ os povos do Oriente. Mas o mito do ‘bom selvagem’, as viagens ao Oriente ou a moda do primitivismo atestam ao mesmo tempo que o exotismo oriental sempre os fascinou”. Mais ainda: a história ocidental é feita em boa parte graças ao Oriente. Como nos lembra ainda Le Goff, o próprio cristianismo, que iria fazer do Ocidente a “civilização cristã por excelência e assegurar durante séculos a unidade europeia, é uma religião nascida no Oriente mediterrâneo”.

Essa cisão entre Oriente e Ocidente não daria à palavra civilização um caráter utilitário e ideológico? Em seu livro Le remède dans le mal, no qual dedica um ensaio à palavra civilização, Jean Starobinski nos lembra que Mirabeau fala de “falsa civilização”, chegando até mesmo a anular a oposição entre bárbaro e civilizado, denunciando “a barbárie de nossas civilizações”. Encontramos também nesse ensaio algumas indicações precisas: “polimento” e policiamento dos costumes, quando polidez é, inicialmente, quase sinônimo de civilidade; relações estreitas entre civilização e progresso; civilização decorrente da sociedade industrial e democrática, apresentada por Baudelaire como uma “grande barbárie iluminada a gás”; e ainda uma prática absolutamente moderna: “no lugar de uma barbárie declarada, as civilizações contemporâneas exercem uma violência dissimulada”.

Um dos caminhos para entender o conceito de civilização está na  obra  fundamental  de  Montesquieu,  as  Cartas  persas,  em que lemos a célebre pergunta: “Como se pode ser persa?”. Com ironia, Paul Valéry dá como resposta outra pergunta: “Como se pode ser o que se é?”. Tal questão — diz ele — nos faz sair de nós mesmos, mergulharmos de repente em um outro mundo a fim de que possamos perceber “todo o absurdo que nos é imperceptível, a estranheza dos costumes, as leis bizarras, a particularidade das convenções, dos sentimentos, das crenças nas quais todos os homens se acomodam…”. Entrar no campo do outro “para desconcertar suas idéias, fazer-lhe a surpresa de ser surpreendido com o que faz, o que pensa, e mostrar que ele jamais concebeu pensar de forma diferente… é o meio de trazer à luz toda a relatividade de uma civilização, de uma confiança habitual na ordem  estabelecida…”.

Se a ideia de civilização tem como um de seus fundamentos os costumes, nada mais relativo que a civilização. É o que diz Voltaire em seu Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações: “Tudo o que está intimamente ligado à natureza humana é parecido de um ponto a outro do universo; tudo o que pode depender do costume é diferente, e é por acaso que um se parece com o outro. O império do costume é bem mais vasto do que o da natureza”. Ou, em outras palavras, se, para Nietzsche, cultura e civilização são noções absolutamente contrárias, separadas “por um antagonismo profundo como um abismo”, para ele, civilização não é senão domínio e repressão sobre o indivíduo; a cultura, ao contrário, pode caminhar ao lado da própria decadência das sociedades.

A ideia de decadência da civilização leva-nos a repensar o clássico Declínio do Ocidente, de Spengler. Por mais problemática que seja a ideia de “declínio” — que, no mínimo, pressupõe que o Ocidente tenha vivido um “auge” —, e ainda que, como nos lembra Jacques Bouveresse, o livro não suscite hoje nenhuma controvérsia ou polêmica, como aconteceu na década de 1920, Spengler jamais seria “tão presente e tão influente nos debates sobre o futuro da civilização atual”. Bouveresse cita Adorno: “Spengler percebe algo do duplo caráter do Aufklärung na época da dominação universal”. Não poderíamos pensar de outra maneira se levássemos às últimas consequências o axioma de Spengler: “O que é a política civilizada de amanhã em oposição à política cultivada de ontem? Na Antiguidade, a retórica; no Ocidente, o jornalismo, e tudo a serviço dessa coisa abstrata que representa a potência da civilização, o dinheiro”? Eis um bom caminho para entender o 11 de setembro: sairmos de nós para entrarmos em nós; avaliarmos as contribuições que o Ocidente excluído e o Oriente deram para a constituição da civilização ocidental; esclarecermos quem é o bárbaro; e, por fim, conhecermos outras civilizações, inclusive as orientais: é apenas através de um espelhamento, de um reflexo, que podemos ver a nossa imagem.

Os teóricos da civilização tendem a relacioná-la com os conceitos de costumes e maneiras, que passam pelos gestos, pela moda, pela maneira de andar, pela crítica dos maus costumes (cuspir, urinar e fazer outras necessidades em público), à proscrição da poligamia, do concubinato e ao elogio dos ideais cristãos da temperança e da moderação. Mas, para falar dos fundamentos da civilização no Ocidente, três nomes são absolutamente indispensáveis: Erasmo, Montaigne e Descartes. Em 1530,  Erasmo escreve Civilidade pueril,  uma espécie de manual de boas maneiras destinado não apenas às crianças: nele, Erasmo procura “fundar o liame social sobre a aprendizagem de um código comum de ‘bons costumes’ válido para todos”. No capítulo VII, diz:

É vergonhoso para aqueles que são de alta extração não ter costumes correspondentes à sua nobreza. Aqueles cuja fortuna os fez plebeus, pessoas de condição humilde, camponeses mesmo, devem esforçar-se para compensar com boas maneiras as vantagens que o acaso lhes recusou. Ninguém escolheu seu país nem seus pais: todo mundo pode adquirir qualidades e costumes.

Montaigne vai bem mais longe: põe em evidência a universal contradição entre instituições, leis e costumes, tornando-os relativos no espaço e no tempo. Assim, dá aos usos e costumes uma conotação política. Mais: considera os costumes “uma segunda natureza”:

A natureza exige muito pouco para nossa conservação […] permitamo-nos algo mais e chamemos de natureza os costumes e a situação pessoal e fixemos assim os limites de nossas aspirações, levando em conta o que já possuímos. Parece-me desculpável agir desse modo, pois os costumes são uma segunda natureza, tão poderosa quanto a primeira. Se falta aquilo a que estou acostumado, sinto-o profundamente.

Assim, torna-se difícil falar de civilização ocidental se esquecemos esses três autores: Erasmo e seu código de boas maneiras, Montaigne e seu ceticismo e Descartes e sua ideia de liberdade individual e a constituição do “sujeito”. Livre das autoridades e da tradição, “praticando a dúvida metódica, o indivíduo constrói pessoalmente sua relação com o mundo e com os outros. Misturado aos outros, o indivíduo é cada vez mais abandonado a si mesmo”. Esta é, pois, a condição do indivíduo ocidental moderno, cheia de paradoxos: ele é público mas procura preservar seu anonimato, tem usos e costumes próprios mas precisa submeter-se a leis gerais da sociedade, é livre mas tem que se submeter às leis, aos usos e costumes, reconhecer, enfim, os limites da própria liberdade… Tudo isso leva a um ponto central para a reflexão sobre a civilização ocidental, que é o Iluminismo. O século XVIII e suas revoluções passam a ser ao mesmo tempo ponto de chegada e ponto de partida para o que entendemos hoje como “civilização moderna ocidental”.

Se o que define a Europa é a submissão a três influências — Roma, com suas normas, leis, o civis romanus e a criação de um novo homem político; o cristianismo e a conquista que empreendeu, que “visa e atinge o profundo da consciência”; e, por fim, a Grécia, a que devemos nosso modo de pensar e boa parte da constituição da ciência no Ocidente —, então podemos considerar que somos também “europeus”. São três conceitos que definem o europeu, mas que são tidos também como os pilares da idéia de “civilização ocidental”.

Resta a questão da modernidade. Ou civilização moderna. Muitos autores estabelecem uma relação íntima entre civilização e modernidade, ao definirem o homem moderno como aquele que coexiste com as contradições e com uma desordem permanente, isto é, “contradições nos pensamentos e inconsequências nos atos”. O espírito do homem moderno, define Valéry,

está repleto de tendências e pensamentos que se ignoram. Se a idade das civilizações deve ser medida pelo número de contradições que elas acumulam, pelo número de costumes e crenças incompatíveis que nelas se reencontram e se temperam uma a outra, pela pluralidade das filosofias e das estéticas que coexistem e coabitam nas mesmas cabeças, é preciso reconhecer que nossa civilização é das mais antigas. Não se encontram, a cada instante, em uma mesma família, muitas religiões praticadas, muitas raças juntas, diversas opiniões políticas e, em um mesmo indivíduo, todo um tesouro de discórdias latentes?

Valéry está definindo o que se entende por homem moderno, mas sua definição serve, certamente, para a ideia de civilização moderna. Ela nos ajuda a esclarecer o 11 de setembro, e nos ajuda também a entender o que acontece hoje com a civilização ocidental moderna e cristã.

É evidente que a modernidade chegou aos limites de sua ação, gerando uma crise sem precedentes e sem exemplos na história: o máximo de intensidade e de velocidade pelo uso da ciência e da técnica: “Em todos os lugares dominados pelo Espírito Europeu, vêem-se aparecer o máximo de necessidades, o máximo de trabalho, o máximo de capital, o máximo de rendimento, o máximo de ambição, o máximo de potência, o máximo de modificação da natureza exterior, o máximo de relações e de trocas” (Valéry, A crise do espírito).

Somos levados a concordar com Peter Sloterdijk, que identifica a modernidade à vontade de potência de poder fazer, isto é, a uma ilimitada intervenção da tecnociência em todas as atividades da natureza: dizer que a modernidade teria prometido fazer a história humana a partir de agora seria minimizar os fatos, escreve Sloterdijk: “No mais profundo de si mesma, ela quer não apenas fazer a história, mas igualmente a natureza. […] A ideia de fazer história não passava de um pretexto. O objetivo decisivo da modernidade é fazer a natureza”.

É isso que define a crise da civilização ocidental cristã, e Sloterdijk aponta alguns sintomas, dois deles muito evidentes: o primeiro é o que ele chama de era pós-cristã, já diagnosticada pelo “jovem conservador Otto Petras”, que dizia com pertinência, em 1935: “O cristianismo, esse movimento impressionante que marcou a história e que foi o mais poderoso formador do nosso planeta, esgotou sua força criadora. Vivemos post Christum em um sentido mais forte do que o do calendário”.

Sloterdijk aponta como uma das consequências do pós-cristianismo a busca de um novo “renascimento” ocidental, voltado, desta vez, para o antigo Oriente. O segundo sintoma apontado por Sloterdijk é o esgotamento moral da modernidade, “incapaz de liberar a partir de si mesma contraforças que barrem a deriva fatal”.

Contra essa mobilização desenfreada da modernidade, Sloterdijk indica, ao lado das “virtudes terapêuticas dos modos de pensamento do antigo Oriente”, uma ética alternativa da “boa mobilização”, uma espécie de negação ativa e criadora.

Por fim, a novidade que nos leva a pensar nas intuições geniais de Valéry, Wittgenstein e outros sobre a crise da cultura e a morte da civilização está não apenas nas grandes transformações trazidas na ideia de espaço, encurtado pelas novas tecnologias, mas também, ou principalmente, na ideia de tempo. Valéry vai bem mais longe e torna-se bem mais radical ao dizer que o mundo moderno aboliu as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro. O que representa para o homem viver em um presente eterno? O que significa a perda de sentido do futuro e do passado? Se isso é verdade, perdemos a memória, a história e a possibilidade de projetos. No mundo do domínio técnico, no qual predominam a “precisão”, a rapidez dos atos e a fluidez dos pensamentos, existe a permanente produção do esquecimento, decorrente de restrições ocultas não só ao pensamento mas, principalmente, àquilo que, ainda não pensado, participa da constituição do pensamento: lembranças, percepções, sentidos, projetos, o indizível, o invisível, o impensado. A mais eficiente das restrições está no domínio absoluto do interesse imediato, na conquista imediata dos bens materiais e, no plano das ideias, na repetição do já pensado e naquilo que se define como “razoavelmente”, “eficazmente” incorporado à vida funcional; tudo o que está no reino do impreciso, do mais ou menos, do indeterminado, do esquecimento parcial das coisas e das ideias (esquecimento que faz parte do pensamento) tende a ser apagado pela racionalidade técnica. Em uma nota ao ensaio “A metafísica no homem”, Merleau-Ponty observa que Bergson mostrou com profundidade que a ciência deve ser considerada não apenas em suas fórmulas acabadas, mas também com a margem de indeterminação que separa estas dos dados a conhecer. Esse esforço e essa tensão do conhecido e do que é dado a conhecer valem para todas as atividades humanas. Força estranha, completa Jean Starobinski, que leva o espírito a voltar-se para o inacessível, para uma espera sem nome. Todo ato de criação de obras de arte e de obras de pensamento é habitado pelo imperioso apelo da ausência: “É meu apetite de ver mais, de recusar e de atravessar meus limi- tes provisórios, que me incita a pôr em questão o já visto”, conclui Starobinski. Ora, já se disse que pensar é ser diferente do que se é. Só percebemos o que somos pelas contradições e lacunas do pensamento ou, como escreve Valéry nos Cahiers, “pela presença de coisas que, ainda que vindo ao pensamento, não são pensamento”. No mundo dominado pela técnica e pela eterna repetição das mesmas imagens e falas, as “coisas” são abolidas, o diálogo “mudo” do pensamento com o pensamento é apagado da mesma maneira como é apagada a relação necessária com o “mundo exterior”, isto é, o mundo social, cultural e político. Ou seja, a possibilidade de expor as idéias segundo a intenção, expressar o sentido das coisas. No mundo tecnicizado, jamais existe retomada do pensamento, mas sempre começo do mesmo. É certo que todo recomeço é mais difícil do que qualquer começo. “Sem a memória, sem a presença do não-presente”, escreve Valéry, “sem a noção confusa e iminente de ser outra coisa, sem a recusa meio implícita de definir-se inteiramente pelo momento e pelos estados atuais — sem a espera que se liga a essa propriedade —, sem a impossibilidade de escrever uma equação acabada — a consciência seria um caos, uma dor inexplicável, um eterno começo”. Como tudo é planejado, o acaso também é abolido: é a luta do um, que é sempre apresentado pelo mundo técnico como única alternativa, o já pensado, o já sabido, o já dado, contra o múltiplo, que é constitutivo do acaso, e que abre à pluralidade de expressão de cada coisa e de cada pensamento e do jamais pensado.

Que outro nome dar à civilização tecnológica que conduz à clandestinidade as artes, a política, a vida vivida, a experiência do outro em nós (germe de uma civilização universal), senão o de barbárie?