2011

Crença na palavra, aposta no sujeito

por Maria Rita Kehl

Resumo

O tema da crença da palavra passa necessariamente por um resumo do percurso empreendido por Michel Foucault em A palavra e as coisas. A ilusão da similitude teria sido a forma primitiva da crença na palavra:  a cada coisa criada por Deus corresponderia um único  nome, revelador da verdade inscrita em sua natureza. Tal confiança na relação entre palavra e coisa teria sido abalada pelos acontecimentos que encerraram o longo período medieval. A reforma da Igreja, a descoberta copernicana, o ciclo das navegações e, acima de tudo, a revelação da existência de outros povos a nomear as coisas e os seres com palavras até então desconhecidas, toldaram para sempre a confiança do homem renascentista na transparência da prosa do mundo.

Na era moderna, o lugar da verdade deslocou-se outra vez. Para o homem moderno, escreveu Foucault, a palavra não revela mais que a verdade do sujeito. O descentramento do sujeito, revelado pela proposta freudiana, veio a abalar ainda mais a relação entre a palavra e a verdade.

A psicanálise freudiana representou um esforço gigantesco para trazer à luz da razão as forças obscuras do inconsciente. Mas a aposta iluminista de Freud levou em conta a impossibilidade de traduzir com exatidão, nos termos da linguagem compartilhada pelo senso comum, a verdade da língua fundamental. Freud comparou o trabalho de interpretação da linguagem dos sonhos à difícil tarefa do tradutor, pois, ao transpor um texto de uma língua a outra, o tradutor tentaria sempre o impossível: alcançar a verdadeira natureza da língua original.

A empreitada da Interpretação dos sonhos inaugurou o século XX com a decifração do código que dava acesso à linguagem inconsciente, mas só até o limite em que o conteúdo manifesto contém a chave para o acesso ao conteúdo latente. O conteúdo latente dos sonhos já chega modificado pelos processos secundários, estes que procuram recompor as formações erráticas dos processos primários de acordo com a sintaxe coletiva que organiza a língua. O “umbigo do sonho”, na expressão de Freud, estaria fora do alcance da interpretação psicanalítica.

As formações do inconsciente participam do caráter coletivo das formações da linguagem, mas não são redutíveis a ela. A verdade mais íntima do sujeito, que só se revela inteiramente em ato. A passagem ao ato é o momento da revelação da verdade psíquica: fragmento de um gozo que escapa à possibilidade de expressão simbólica. Sua contrapartida, o ato analítico, é uma aposta que o sujeito faz nos efeitos simbólicos do saber inconsciente.

A palavra é um recurso importantíssimo do eu, o ego freudiano. Ela ajuda a preservar o narcisismo, regula a relação do eu com os ideais, participa das racionalizações e de outros mecanismos de defesa. A palavra também é um veículo de engano e de fantasia. A palavra induz à crença – cujo efeito paradoxal é ser capaz de produzir realidade intersubjetiva.

Nisto consiste o caráter público das crenças: elas podem ser transmitidas através das práticas falantes, e com isso adquirem o poder de modificar a conduta daqueles que a compartilham. A relação da crença com a verdade é ambígua: o mais redondo engano, transmitido de maneira consistente entre os membros de um grupo, é capaz de criar ou modificar a realidade social.

Os críticos da modernidade dizem que as formas modernas da subjetividade foram fundadas sobre um desses enganos: a crença de que o eu seja capaz de construir a si mesmo e, com isso, inventar seu destino. Tal crença tem algum fundamento material. De fato o capitalismo, em sua origem, tanto propiciou a acumulação de meios necessária a algumas iniciativas individuais quanto necessitou de homens que se acreditassem capazes de romper com a ordem tradicional  para empreender a construção de um destino self made.


La verité, c’est le cas de le dire, la verité ne dit la verité — pas à moitié — que dans un cas: c’est quand elle dit “je mens”.
Jacques Lacan, Séminaire: Le savoir du psychanalyste

PALAVRA E MUNDO

Desde as formas mais primitivas de animismo, não há crença que não passe por uma formulação verbal. As crenças são sempre sustentadas por algum elemento imaginário que se transmite através de narrativas. Estas, por sua vez, dependem de que a própria palavra seja confiável. As lendas mais inverossímeis conquistam, pelo menos no momento em que são narradas, a credulidade daquele que escuta ou lê. A teia de palavras envolve o leitor não tanto pela veracidade do que é contado, mas pela verossimilhança de sua estrutura interna. Não é a relação direta da palavra com o Real que importa aqui, mas a capacidade da palavra de cercar o Real, dar contorno e forma ao que até então permanecera inominável. A palavra gera as condições de sua credibilidade. Ou, em termos lacanianos, a palavra instaura a existência do que ela enuncia, avaliza a existência daquele que diz: “eu sou”.

Como se estabelece tal confiança? No mínimo podemos afirmar, como Sausurre, que a confiança na palavra se estabelece em função de sua circulação social. O uso da palavra é que lhe confere poder de verdade — a bem dizer, a palavra, ao ser acolhida pelo Outro, tem o poder de tornar verdadeiro aquilo que enuncia. Pois não há nenhuma ligação evidente entre cada pequena partícula sonora a que chamamos palavra, cujo correspondente espacial é um agrupamento linear de sinais gráficos, e a verdade que ela tenta designar. A palavra, escreve Lacan, “define o lugar do que chamamos de verdade com uma estrutura de ficção”[1].

A palavra é o recurso que distingue o humano do animal. Ainda que reconheçamos que os animais possuem alguma forma de linguagem e que alguns mamíferos sejam capazes de comunicação com o homem em níveis bastante sofisticados, o recurso à palavra é exclusivamente humano. A palavra possibilita que se estruture uma forma superior de linguagem. Ela não serve apenas para indicar as coisas. Estabelece os mais variados tipos de relação entre as coisas. Só a palavra é capaz de instaurar entre as coisas que ela designa complexas relações temporais, espaciais, causais, paradoxais etc. A palavra pode comentar a si mesma — é o que faço nesse momento. E também pode mentir, inventar, fabular. Só o humano é capaz disso, e mais ainda: só o humano é capaz de construir realidades objetivas — isto é, socialmente compartilhadas — a partir das mentiras, ou fabulações, que inventa. O homem constrói com sua teia de palavras, projetos, seitas, ordens, reinos, e até formas eficientes de magia, tais como as relatadas por Lévi-Strauss no seu clássico “A eficácia simbólica”. Sendo assim, onde se encontra o lastro capaz de sustentar nossa crença na verdade contida na palavra?

O tema da crença na palavra passa necessariamente por um resumo do percurso empreendido por Michel Foucault em As palavras e as coisas. A pesquisa efetuada por Foucault persegue a relação da palavra com a verdade, ou com o mundo (as coisas), desde a Antiguidade clássica até o umbral da modernidade.

Sob sua forma primeira, quando foi dada aos homens pelo próprio Deus, a linguagem era um signo das coisas absolutamente certo e transparente, porque se lhes assemelhava. Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma da similitude. Essa transparência foi destruída em Babel para punição dos homens. As línguas foram separadas umas das outras e se tornaram incompatíveis, somente na medida em que antes se apagou essa semelhança com as coisas que havia sido a primeira razão de ser da linguagem[2].

A Antiguidade greco-romana buscou garantir a transparência da linguagem ao apoiar os signos sobre uma estrutura ternária, “já que nele se reconhecia o significante, o significado e a ‘conjuntura’[3]” — que se manifestava nas formas da similitude. Também para o pensamento renascentista, as formas da similitude — conveniência, emulação, analogia e simpatia — garantiam a verdade da nomeação, mas a legibilidade do mundo já deixara de ser imediatamente transparente. Se a natureza ainda era percebida como um “tecido ininterrupto de palavras e de marcas, de narrativas e de caracteres[4]“, sua legibilidade dependia da palavra escrita, chancelada pela confiança em Deus e no legado de sabedoria encontrado nos textos dos antigos. A credibilidade da palavra dependia, no século XVI (ao final do Renascimento, portanto), da teia de comentários que se tecia em torno das marcas deixadas por Deus na natureza, para ser decifradas pelo homem. “A linguagem tem em si mesma um princípio interior de proliferação”, escreve Foucault[5], recordando o comentário de Montaigne de que seus contemporâneos interpretavam mais as interpretações do que as próprias coisas: “há mais livros sobre os livros que sobre qualquer assunto; nós não fazemos mais do que nos entreglosar”.

De fato, no século XVI, a ordem do mundo deixara de ser evidente aos habitantes do continente a que hoje chamamos Europa. A Reforma da Igreja questionou os dogmas até então inabaláveis da fé católica e o poder das autoridades eclesiásticas em mediar a relação dos fiéis com a palavra de Deus. A descoberta copernicana deslocou a Terra do centro do sistema solar. O ciclo das navegações revelou a existência de outros povos a nomear as coisas e os seres com palavras até então desconhecidas.

A confiança do homem renascentista na transparência da prosa do mundo foi seriamente abalada.

Dentre as revoluções ocorridas no século XVI, a invenção da imprensa provocou a reviravolta mais importante no estatuto da crença na palavra. O Renascimento deve grande parte de suas transformações, decisivas para a emancipação do sujeito moderno, à invenção de Gutenberg e à enorme circulação da palavra escrita que ela possibilitou, ao torná-la independente do controle que a Igreja Católica exercia sobre os livros durante a Idade Média. A invenção de Gutenberg libertou a palavra escrita de seu confinamento nas bibliotecas dos mosteiros e permitiu que ela passasse a circular entre leitores leigos e recém-alfabetizados na forma de panfletos políticos, vulgatas de textos sagrados e obras de popularização dos mais diversos saberes. Com isto, estabeleciam-se as primeiras condições para a livre circulação de ideias que viria a caracterizar as futuras democracias no Ocidente. A própria Bíblia, o Livro Sagrado, tornou-se mais acessível às populações recém-alfabetizadas das cidades, traduzida e resumida em diversas línguas e em versões nem sempre autorizadas pela Igreja.

Inaugurava-se, com isto, a possibilidade de leituras e interpretações individuais da Palavra sagrada, concomitante às novas práticas de leituras silenciosas e solitárias que vieram substituir o hábito das leituras coletivas, em família ou na igreja, tuteladas nesse caso por uma autoridade eclesiástica.

A rápida passagem da predominância da transmissão oral à leitura solitária correspondeu ao surgimento de uma nova forma de subjetividade: o individualismo. A relação dos homens com a vontade divina, até então sustentada em uma palavra de autoridade mediada pelas autoridades da Igreja, deslocava-se aos poucos para uma relação solitária, feita a cargo de cada leitor isolado diante de sua consciência. Os desígnios do “Pai” tornaram-se, assim, passíveis de interpretações individuais, com toda a margem de risco que esta relação implica. Alguns historiadores consideram que a prática das leituras silenciosas teve um papel determinante na formação do individualismo religioso, essa grande revolução subjetiva provocada pela Reforma da Igreja. Lutero, em 1520, retomou as palavras de São Paulo e abalou a tutela da Igreja Católica sobre as almas e as mentes de seu vasto rebanho ao promulgar que todo cristão teria autonomia plena para sentir e julgar o que é justo ou injusto na fé”.

Concomitantes à recém-inaugurada circulação da palavra impressa, as viagens marítimas que levaram à descoberta do Novo Mundo abalaram a confiança do homem europeu na relação segura (assegurada por Deus) entre palavras e coisas. Cito um trecho do prefácio que Pierre Clastres escreveu ao Discurso da servidão voluntária, de Etienne de La Boétie:

Pode-se medir a fascinação que a descoberta do continente desconhecido exerceu sobre a Europa ocidental pela extrema rapidez de difusão de todas as notícias provindas de além-mar. […] Já em 1493 eram publicadas em Paris as cartas de Cristóvão Colombo relativas à sua descoberta. Podia-se ler, em 1503, […] a tradução latina do relato da primeira viagem de Américo Vespúcio […]. Desde 1515, a tradução francesa das viagens portuguesas era sucesso de livraria […]. A abundância das informações e a rapidez de sua circulação — apesar das dificuldades de transmissão da época — denotam, nas pessoas cultas daquele tempo, um interesse ardente tanto por essas terras novas e pelos povos que as habitam como pelo mundo antigo revelado pelos livros. Dupla descoberta, mesmo desejo de saber, que investe simultaneamente a história antiga da Europa e sua nova extensão geográfica.

Vale lembrar aqui a saga solitária do moleiro Menocchio, relatada pelo historiador Carlo Guinsburg, em O queijo e os vermes. Encantado e abalado por efeito das leituras que fez, em sua aldeia no interior da Itália, sobre relatos das navegações, vulgatas da Bíblia e trechos do Decameron, entre outras publicações que lhe caíam nas mãos, Menocchio começou inexoravelmente a “pensar com sua própria cabeça” e questionar passagens do Livro Sagrado que lhe pareciam inverossímeis. De boa-fé, procurava o pároco de sua aldeia para conversar a respeito de sua versão individual da criação do mundo, que lhe parecia mais razoável e “científica” que o Gênesis. Depois de idas e vindas aos tribunais eclesiásticos e alguns períodos na cadeia, Menocchio, que não conseguia deixar de dizer o que pensava, foi queimado pela Inquisição.

Volto à história da palavra empreendida por Foucault. No período chamado de clássico, inaugurado no século XVII — o século do empirismo, do mercantilismo e da universalização da moeda como medida simbólica do valor das mercadorias — a suposta transparência da relação da palavra com a verdade se perdeu. “A profunda interdependência entre a linguagem e o mundo se acha desfeita[6].”

No século de Descartes, a Gramática de Port-Royal (1660) veio destituir o estatuto ternário do signo que teria regido a relação da palavra com a verdade até o Renascimento. Até então, o signo comportaria o significante, o significado e a referência concreta que os ligaria de maneira segura. A Gramática de Port-Royal instituiu o estatuto binário da relação entre significante e significado, desprovida de qualquer garantia dada por um suporte material.

O homem do século XVII não estava mais apenas órfão da antiga relação unívoca com a palavra divina, que a Reforma da Igreja veio fraturar. Agora se tornara órfão no seio de uma linguagem que estava, ela também, órfã da verdade. A verdade enunciada pelo uso da linguagem já não dispunha mais da garantia dada pela palavra divina. Foucault: “A relação entre significante e significado aloja-se agora num espaço onde nenhuma figura intermediária assegura seu encontro — só se estabelece o laço entre a ideia de uma coisa e a ideia de outra”. A ligação entre o signo e o ser foi abalada: “Não há, para constituir a linguagem ou para animá-la por dentro, um ato essencial e primitivo de significação, mas tão somente, no coração da representação, este poder que ela detém de representar a si mesma”[7].

À medida que as relações entre os homens tornam-se mais abstratas, as palavras soltam-se das referências “reais”, por isso mesmo, a partir do século XVIII até a contemporaneidade, já não há nada que não possa ser representado pela linguagem. A representação harmoniosa do mundo, coordenada pelas regras da retórica clássica, veio substituir a chancela divina que garantia, até então, o estatuto de verdade da nomeação de todas as coisas. A verdade surge, então, como um efeito de estilo produzido pelas técnicas do bem dizer. Mas tais regras ainda haveriam de ser estabelecidas conforme um cânone de autoridade impessoal — não mais ditado pela Igreja, mas pela Gramática. Ainda não chegamos ao sujeito contemporâneo, o sujeito da psicanálise, responsável solitário pela palavra que diz e pelo estilo pessoal com que se expressa. A consolidação da modernidade, que trouxe em seu bojo a descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise, só pôde ocorrer no período burguês, em que a palavra perde todas as garantias de autoridade para tornar-se a expressão daquele que fala.

Descartes, que era matemático, estava familiarizado com a natureza arbitrária e abstrata do signo. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, Descartes, depois de duvidar radicalmente até mesmo da verdade da experiência dos sentidos, resolveu fundar o ser na linguagem. Só sei que existo porque penso, ou seja, porque estou aqui neste momento a duvidar de minha própria existência. Só sei de minha existência pela teia de palavras que a sustenta ante mim mesmo, seja lá o que for este “mim mesmo”.

Foucault considera que o grande gesto de Descartes no século XVII foi este, de apoiar a garantia do ser no pensamento, ou seja, na representação. Mas vale considerar a análise muito original que nos oferece o sociólogo Norbert Elias, a respeito do que ele chama de “engodos da dúvida cartesiana”, para exemplificar as consequências do esquecimento da dimensão coletiva, recalcada, na modernidade. Elias não ignora, mas deixa de lado a dimensão artificial, metódica, da dúvida cartesiana sobre o ser, para defender a ideia de que Descartes só poderia ter duvidado de sua própria existência (e pensado na hipótese de um Deus enganador etc.) porque tentava pensar-se como indivíduo isolado de seus semelhantes. Para Norbert Elias, o isolamento que motivou a dúvida cartesiana é tributário de

[…] modificações específicas das condições de vida e das relações de poder no seio dos grupos sociais no Ocidente. As Meditações de Descartes […] ilustram de maneira paradigmática os problemas específicos com os quais os homens se confrontam, na reflexão sobre si mesmos e na incerteza sobre a imagem que faziam de si mesmos, a partir do momento em que o princípio fundamental da experiência vivida, tal como era definido pela Igreja e pela religião, foi submetido à dúvida pública e perdeu sua evidência[8].

O argumento de Elias nos faz pensar que mesmo a aparente auto-suficiência cartesiana, de fundar o ser no verbo, não se sustentaria fora da dimensão coletiva da linguagem da qual dependia a formulação de seu pensamento, pois não existe pensamento alheio à sua formulação de seu pensamento, pois não existe pensamento alheio à sua formulação em palavras.

A autonomia do pensamento de Descartes, que constituía também para ele a fonte da certeza de sua existência, dependia inteiramente da existência do mundo, em particular da comunidade humana a que ele pertencia. Em termos lacanianos: o “penso, logo existo” de Descartes passa necessariamente pela existência do Outro, que, em Lacan, é este grande tesouro simbólico, o tesouro dos significantes, que precede nossa existência e determina nosso pertencimento ao gênero humano, ou seja: nossa possibilidade de falar. Lacan, pensador do século XX — da alta modernidade, portanto —, reinstaurou a figura de um terceiro para explicar a eficácia do símbolo. O signo que perdeu seu referente real e adquiriu, desde Port-Royal, o caráter de uma ligação arbitrária entre significante e significado, não é para Lacan uma estrutura binária, pois a circulação dos signos — sua comunicabilidade — passa necessariamente por este terceiro campo, o campo do Outro.

A retórica clássica buscava restaurar, entre o discurso e a verdade, uma harmonia que perdera seu lastro. Não existe o Outro do Outro, como diz um dos famosos aforismos de Lacan. “Só existe o poder da linguagem de representar a si mesma”, escreve Foucault[9]. Por outro lado, não existe comunicação verbal que não passe pela forma ternária do significante, do significado e do Outro. Só na psicose o Outro ficaria excluído do discurso, mas este não é nosso tema no momento.

A separação entre palavras e coisas não impediu que o “ser vivo da linguagem” sobrevivesse, na forma dos textos literários. A similitude, para o barroco, não era a via para a verdade, ao contrário, ela conduz ao erro. Mas não deixa de revelar alguma coisa ao mundo, ao adquirir o estatuto de obra da imaginação[10]. Por isso mesmo, a contrapartida farsesca de Descartes é o personagem de Cervantes. Foucault considera Dom Quixote o primeiro herói efetivamente moderno: um herói feito de palavras, de letras, de restos de fantasias literárias. Para Foucault, o delírio de Quixote consistiu em emprestar seu próprio corpo, sua própria vida, para tornar verdadeiras as fantasias dos livros que o apaixonavam. O Cavaleiro da Triste Figura seria o precursor de outra heroína, no caso uma personagem feminina (e só poderia ser assim), definitivamente moderna e também construída a partir dos resíduos de suas leituras romanescas de adolescência: esta foi Madame Bovary, personagem de Gustave Flaubert.

PALAVRA E LIBERDADE

Faço uma rápida passagem sobre os séculos XVIII e XIX. A verdade, nesse meio-tempo, passou pelas teorias do valor, pelo empirismo científico e pela descoberta da importância da história para se conhecer a natureza das coisas, dos homens e das sociedades. A consolidação do mercado e da produção, desde as revoluções industriais, fez com que o valor da moeda se definisse não mais a partir das necessidades dos homens ou da abundância/escassez de bens, e sim no conjunto dos atos de troca. Talvez em função da mesma complexidade crescente da vida social, o valor da palavra passava a se estabelecer em função das práticas falantes, que são as formas mais abstratas da troca. A verdade da linguagem passa a ser encontrada no terreno móvel e vivo da fala.

No século XIX, um linguista do porte de Ferdinand de Sausurre ensinou, em seu Curso de linguística geral (1ª edição, póstuma, de 1916), que ninguém é livre para inventar, ou escolher, os signos linguísticos que emprega para pensar e falar. Embora a língua seja uma estrutura viva, que se modifica através dos tempos em função das mudanças ocorridas na comunidade que a emprega, é sempre de uma época precedente que recebemos a herança da língua. “Um dado estado de língua é sempre produto de fatores históricos, e são estes fatores que explicam por que o signo é imutável, vale dizer, por que resiste a toda substituição[11].” Saussure atribui a força da linguagem, e de sua renovação, ao incessante surgimento de “novas necessidades expressivas” pelo qual nenhuma pessoa é responsável isoladamente; são as práticas sociais, sempre mutáveis, que instituem as práticas falantes.

“A linguagem”, escreve Foucault[12], “enraíza-se não do lado das coisas percebidas, mas do lado do sujeito em sua atividade. E talvez seja ela, então, proveniente do querer e da força, mais do que dessa memória que reduplica a representação. Fala-se como se age e não porque, reconhecendo, se conhece. Como a ação, a linguagem exprime uma vontade profunda.” Sua força está em manifestar “o querer fundamental daqueles que falam”. A história da linguagem revela-se solidária à história dos agrupamentos humanos; não é mais um produto estável, e sim uma atividade incessante que advém não da necessidade de conhecer as coisas, mas do exercício da liberdade dos homens[13]. “A linguagem é humana; à nossa plena liberdade deve sua origem e seus progressos; ela é nossa história, nossa herança[14].”

PALAVRA E SUJEITO

Para o homem moderno, a palavra não revela mais que a verdade do sujeito: uma verdade opaca até mesmo para aquele que a enuncia. O descentramento do sujeito, revelado pela proposta freudiana, veio a abalar ainda mais a relação entre a palavra e a verdade. Se, para Freud, a verdade sobre o inconsciente tem que ser buscada na fala do neurótico, isto não significa que ele sabe o que diz. O freguês, em psicanálise, tem sempre razão — mesmo que o freguês não seja quem ele pensa ser. Mas, uma vez pronunciada, a palavra que não seja vazia, isto é, que não tenha perdido sua conexão com o desejo inconsciente, instaura a verdade que ela enuncia, no dizer de Lacan.

A psicanálise freudiana representou um esforço gigantesco para trazer à luz da razão as forças obscuras do inconsciente. Mas a aposta iluminista de Freud — wo Es war, soll Ich werden (“onde estava o Isso, deve advir o Eu”) — levou em conta a impossibilidade de traduzir com exatidão, nos termos da linguagem compartilhada pelo senso comum, a verdade da língua fundamental — essa que Lacan apelidou de lalangue. Se Freud comparou o trabalho de interpretação da linguagem dos sonhos à difícil tarefa do tradutor, não devemos nos esquecer da lição de Walter Benjamin: a perfeita transposição de uma linguagem a outra almejada pelo tradutor é impossível. Ao transpor um texto de uma língua a outra, o tradutor tentaria sempre o impossível: alcançar a verdadeira natureza da língua original.

A formidável empreitada da Interpretação dos sonhos (Traumdeutung) inaugurou o século XX com a decifração do código que dava acesso à linguagem inconsciente, mas só até o limite em que o conteúdo manifesto contém a chave para o acesso ao conteúdo latente. O conteúdo latente dos sonhos já nos chega modificado pelos processos secundários, estes que procuram recompor as formações erráticas dos processos primários de acordo com a sintaxe coletiva que organiza a língua. O “umbigo do sonho”, na expressão de Freud, estaria fora do alcance da interpretação psicanalítica. Toda palavra dita já está calcada sobre essa perda.

Tomemos alguns exemplos de deformações de palavras relatados por Freud na Traumdeutung. As palavras absurdas ou deformadas que aparecem nos sonhos são decifradas através das associações que o sonhador oferece ao analista, até conduzirem a alguma verdade inconsciente do sonhador. O que Freud ofereceu, com sua teoria sobre os sonhos, não foi uma tabela interpretativa para as formações oníricas: foi uma hipótese de decifração dos mecanismos formadores da linguagem dos sonhos, a condensação e o deslocamento. A imagem onírica, que deve ser entendida como uma palavra ou uma frase é formada no ponto de encontro entre vários trilhamentos inconscientes. Para que ela seja eficaz, é preciso escutar as associações do sonhador e percorrer, de volta, as condensações e os deslocamentos que produziram o conteúdo manifesto dos sonhos até chegar ao desejo inconsciente que o motivou. Só um desejo é capaz de colocar em movimento o mecanismo de formação dos sonhos, escreveu Freud[15].

O sonho se forma, no inconsciente, através de imagens. Justaposições, similitudes, condensações, vizinhanças entre imagens formam a gramática particular do inconsciente, que não dispõe das partículas gramaticais de ligação entre as ideias e ignora a negação e a impossibilidade. No sonho, alguém pode estar vivo e morto ao mesmo tempo, assim como o sonhador pode representar-se na infância e na idade adulta, ou em dois lugares ao mesmo tempo, sem contradição. Mas para que o sonho chegue à consciência, isto é, para que a energia livre que motivou o sonho possa transpor a barreira do recalque e efetuar ligações mais estáveis em outro sistema psíquico — a consciência —, as palavras são indispensáveis. Freud chamou de primários os processos inconscientes que produzem as imagens aparentemente absurdas dos sonhos, e de processos secundários aqueles capazes de traduzir o sonho através de palavras. Nessa transposição, algo do prazer buscado pelo sonhador se perde: a plena realização do desejo é, a rigor, impossível. Tudo o que temos são pistas, já organizadas pelas leis da lógica que regem o pensamento, para indicar a posição do sujeito do desejo no sonho. Mas a “falsidade” do sonho, no sentido vulgar daquilo que se contrapõe à realidade, não impede que ele seja expressão da verdade do sujeito.

O enigma da realização de desejos através dos sonhos é análogo ao da produção de prazer, manifesto na forma do riso, provocado pelos ditos humorísticos. O modo como Freud entendeu a formação dos chistes é outro exemplo interessante de relação da palavra com a verdade subjetiva. O chiste seria um “juízo brincalhão” (Fischer, apud Freud) que cumpriria a função de “fazer surgir algo oculto”[16]. Freud menciona Kant, para quem uma singular qualidade do cômico consiste em não poder nos enganar por mais do que um instante. O efeito do chiste é de “desconcerto e esclarecimento”[17]A princípio a palavra que constitui o núcleo do cômico parece uma composição verbal defeituosa, incompreensível e misteriosa” — desconcerto. A seguir (em um curto instante…) nos revela um sentido inesperado — esclarecimento. O primeiro esclarecimento promovido pela comicidade provém da revelação da condensação que formou a palavra esquisita. A este se acrescenta um segundo esclarecimento, o sentido surpreendente revelado através daquela exótica formação lexical. O que se esclarece nesse instante estaria, até então, recalcado, daí o efeito de desvelamento de algo proibido, oculto. O riso provocado pelo dito humorístico é efeito do levantamento do recalque em uma situação socialmente compartilhada e consentida, ou seja: circunstância em que o levantamento do recalque não produz angústia ou vergonha porque não expõe a verdade íntima de um sujeito e sim uma verdade silenciada, mas compartilhada pelo grupo. O chiste é social, o sonho é singular. A oposição individual/coletivo não faz muita diferença para nós, pós-freudianos, para quem não existe um indivíduo que não seja atravessado pela dimensão simbólica, coletiva, que o situa em um (ou mais de um) grupo social. A diferença entre um chiste e um sonho é que a verdade que o primeiro expõe pode circular e produzir prazer entre os que narram e ouvem a piada pelo seu caráter impessoal: o sujeito da enunciação não se apresenta na piada que enuncia.

O exemplo empregado por Kant foi extraído de um personagem de Heine, um pobre agente de loteria que se vangloria de ter visitado o barão de Rothschild, tendo sido tratado muito familionarmente. A análise que Freud faz sobre este chiste já é bem conhecida: a justaposição empregada pelo pobre Hyacinth, entre as palavras “familiar” “milionário”, já indica a distância impossível de se superar, na relação entre um milionário e um suposto parente pobre.

As formações do inconsciente participam do caráter coletivo das formações da linguagem, mas não são redutíveis a ela. Penso onde não sou, escreveu Lacan invertendo a fórmula cartesiana: e sou onde não penso[18]eu, que deveria advir ali, onde as pulsões se manifestam, não é capaz de colocar em palavras tudo o que advém do Isso. O que resta por dizer seria a verdade mais íntima (ou extima, de acordo com o neologismo lacaniano) do sujeito, que só se revela inteiramente em ato. A passagem ao ato é o momento da revelação terrível da verdade psíquica: fragmento de um gozo que escapa à possibilidade de expressão simbólica. Sua contrapartida, o ato analítico, é uma aposta que o sujeito faz nos efeitos simbólicos do saber inconsciente.

A psicanálise marcou o século XX como aposta não só na verdade da palavra, mas na cura pela palavra. Podemos falar, então, em uma “crença na psicanálise”? Penso que sim, desde que se tome a palavra “crença” no sentido de uma aposta, de uma vontade de acreditar na possibilidade de uma direção da cura que vou chamar de ética, pois tem a ver com a construção de uma autonomia do sujeito diante do Outro (no caso, o analista). No campo das chamadas ciências do homem, o que norteia nossas escolhas por esta ou aquela abordagem não deveria ser, a princípio, o critério da crença, mas o da identificação com uma via que nos parece mais de acordo com nossas convicções éticas. Não sei se me aproximo da filosofia analítica ao afirmar isto — a discutir.

PALAVRA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

Nem toda palavra expressa a verdade do sujeito do inconsciente. A palavra também é um recurso importantíssimo do eu, o velho ego freudiano. Ela ajuda a preservar o narcisismo, regula a relação do eu com os ideais, participa das racionalizações e de outros mecanismos de defesa. A palavra mente. A palavra inventa. A palavra é veículo de engano e de fantasia. A palavra induz à crença — cujo efeito paradoxal é ser capaz de produzir realidade subjetiva e intersubjetiva.

Em que consiste, por exemplo, o nosso eu? Vou usar o termo ego, adotado pelas traduções inglesa e espanhola da obra de Freud, para diferenciar do uso francês da palavra je, que designa o sujeito do inconsciente. Na terminologia lacaniana, o ego seria o moi — mas o exemplo lacaniano que revela a duplicidade do sujeito no uso da linguagem é uma frase que só faz sentido em francês: “Moi, je m’apelle Rita”. O moi expressa a posição do eu narcísico, imagem com a qual o falante se identifica. O je, sujeito da enunciação, advém no enunciado quer o falante queira, quer não.

Do que é feito o ego, este eu unificado, mais ou menos coerente, sede do que se chama autoestima (ou narcisismo secundário) que me identifica perante mim mesma e também perante os outros?

Sua base mais primitiva é formada a partir de sensações de prazer e desprazer. O prazer do bebê demarca a diferença entre um eu, sede do prazer, e um não eu, sede das sensações de desprazer. Assim o infans tenta se proteger de sensações corporais e aflições que, de fato, são indissociáveis de seu pequeno ser. No texto “Introdução ao narcisismo” de 1914, Freud escreve que as sensações prazerosas a princípio são proporcionadas pelo Outro materno durante os atos de amamentação, cuidados corporais etc. Com o desenvolvimento da motricidade, tais sensações de prazer também podem ser produzidas pelo próprio bebê, que descobre a sucção do dedo, o balanceio do corpo e outros recursos a que Freud denominou de autoerotismo. No entanto, a integração do corpo erógeno promovida pela intervenção do Outro, e também pelo autoerotismo, não é suficiente para construir o eu (ego). Para que do corpo erógeno surja o ego é necessário, escreve Freud, um “novo ato psíquico”.

Este novo ato psíquico é a identificação da criança com sua imagem corporal — imagem que ele desconhece a princípio, e da qual forma aos poucos uma ideia a partir do olhar do Outro. A criança identifica-se com a imagem que o Outro vê. O texto de Lacan sobre “O estádio do espelho”, escrito em 1938, veio complementar a teoria freudiana sobre a constituição do eu. Ele observa que a criança de pouco mais de um ano, ao reconhecer-se em sua imagem especular, manifesta uma espécie de júbilo. O encontro com a imagem no espelho corresponde, para a criança, a um reencontro com a mesma imagem de perfeição que lhe é devolvida pelo olhar materno — mas agora, entre criança e mãe, há um campo simbólico (representado pelo espelho) que separa infans da imagem encontrada. Esta separação produz um efeito paradoxal: ao encontrar-se com sua imagem, a criança encontra-se ao mesmo tempo com a distância que separa sua experiência corporal, ainda rudimentar, da imagem “perfeita” que o representa. Nesse instante fugaz ela vislumbra seu Ideal ao mesmo tempo que o perde. Uma linha assintótica indica o encontro, sempre adiado, entre o Eu e o Ideal.

O encontro com a imagem estabelece, para a criança, ao mesmo tempo, uma esperança renovada de refazer a perfeição perdida e uma aflição permanente em relação à distância que o separa do Ideal de si mesmo (Eu Ideal). É uma passagem que produz, ao mesmo tempo, identificação com sua própria imagem, I(a) (que o infans descobre ao ver-se no olhar do Outro); e alienação em relação ao ideal de perfeição que não corresponde à sensação que a criança tem em relação ao próprio corpo, agora percebido por ela como uma unidade, mas que ela ainda mal consegue coordenar.

Para estabelecer alguma solução de compromisso entre o Eu Ideal inatingível e a realidade de sua experiência corriqueira, a criança precisa contar com algum recurso além da imagem. Este recurso é, digamos, discursivo. Nem todo discurso se estabelece com palavras. O essencial do discurso é que seja um modo de fazer laço com o Outro. Os jogos infantis, desde o esconde-esconde do bebê sob a coberta, até as primeiras tentativas de atrair a atenção da mãe, são modalidades de discurso.

O importante, para o que discutimos aqui, é que o ego, que nasce do encontro entre as sensações autoeróticas e a imagem do corpo, depende de recursos discursivos para negociar sua distância em relação ao Eu Ideal. A partir do momento (que coincide mais ou menos com o estádio do espelho) em que a criança começa a manejar a palavra, esta haverá de se tornar, para o resto de sua vida, o recurso mais importante de negociação entre o Eu Ideal e os ideais de eu. O ego desenvolve-se, na expressão da psicanalista Ana Costa, como uma “ficção de si mesmo”. Este é um dos casos em que a verdade tem estatuto de ficção, no dizer de Lacan.

No que consiste esta ficção? De um lado, no modo como o sujeito se narra: o que lhe contaram sobre sua origem, a história familiar pregressa, seu mito familiar, que não deixa de ser uma versão fictícia a sustentar o lugar do sujeito no triângulo edípico. De outro lado, o modo como o sujeito se projeta no tempo, de acordo com os ideais com os quais se identifica e que busca alcançar, para chegar o mais perto possível do Ideal perdido. O que ele pretende ser? Com que recursos pensa atingir seus ideais? Observem que, a partir deste ponto, não é mais o opressivo e alienante Eu Ideal que está em jogo, mas os diversos ideais parciais, menores (digamos) que compõem os ideais do ego (necessariamente no plural).

É importante observar também que este campo narrativo ampliou-se na modernidade, período inédito na história da humanidade em que as condições de nascimento deixam de determinar 100% os destinos das pessoas. Na modernidade, ou seja, nas sociedades capitalistas liberais, inaugura-se a possibilidade de escolher, ou inventar, o próprio destino, com relativa liberdade em relação às condições de nascimento dos sujeitos.

Neste ponto faço um rodeio para examinar um modo de crença na palavra que caracteriza o sujeito moderno: o bovarysmo.

O BOVARISMO: PALAVRA E IMAGINAÇÃO

Dizem alguns críticos da modernidade que as formas modernas da subjetividade foram fundadas sobre um desses enganos: a crença de que o eu seja capaz de construir a si mesmo e, com isso, inventar seu destino. Tal crença tem algum fundamento material. De fato o capitalismo, em sua origem, tanto propiciou a acumulação de meios necessária a algumas iniciativas individuais quanto necessitou de homens que se acreditassem capazes de romper com a ordem tradicional para empreender a construção de um destino self-made. De fantasia também se vive: a crença na autodeterminação e na liberdade individual contribuiu para a construção da ordem capitalista e da cultura burguesa correspondente a ela.

No início do século passado, o filósofo e psicólogo Jules de Gaultier valeu-se do nome da personagem mais significativa da literatura moderna, a Emma Bovary de Gustave Flaubert, para batizar um conjunto de sintomas que, a seu ver, indicavam uma forma de patologia do eu. Seu livro Le Bovarysme, publicado pela primeira vez na França em 1902, descreve o bovarismo como um conjunto de autoilusões, entre as quais a crença no eu, no livre-arbítrio e na possibilidade de tornar-se outro, ou seja: de construir o destino com a força da vontade individual. Vale ressaltar desde já o caráter conservador do pensamento de Gaultier ao patologizar a crença no eu, na liberdade de escolha e na possibilidade de transformar o destino independentemente das condições de nascimento: afinal, esta crença constava entre os melhores ideais modernos instaurados pela Revolução Francesa.

Vejamos o que escreve Gaultier sobre a sintomatologia por ele batizada de bovarismo. No primeiro capítulo de seu livro, lemos que os personagens de Flaubert são marcados por um traço que, a seu ver, participa da construção da personalidade de todo ser humano: o poder de todo ser humano de se conceber diferente do que é. “Toda a comicidade e todo o drama da vida se concentram neste intervalo entre […] o que se é e o que se imagina ser[19]”. Os personagens de Flaubert — Emma Bovary, Frédéric Moreau, St. Antoine — caracterizam-se por empregar, a serviço da “falsa concepção de si mesmo, a serviço do impossível, a quantidade precisa de forças que ele deveria empregar para desenvolver suas aptidões naturais”[20].

Por que falsa concepção de si? Observem que Gaultier parte de um princípio estranho à psicanálise e às formas modernas de se conceber o indivíduo: o princípio de que existe, para o humano, um ser essencial, que não tem nada a ver com o modo como o sujeito concebe a si mesmo. Ou ele toma a divisão do sujeito como uma anomalia, ou confunde fantasia com falsidade. Ou ambos. Mas não importa: suas observações nos ajudam a pensar um aspecto importante da crença na palavra. Se a personagem de Flaubert comete um erro de avaliação de suas possibilidades de transformação de si mesma, este consiste em ignorar que o que chamamos vulgarmente de “realidade não é uma construção individual, mas coletiva. Emma tenta não apenas transformar seu destino, mas também adaptar a seus sonhos romanescos o pequeno mundo provinciano à sua volta.

Gaultier percebe o delírio de autossuficiência da personagem. “Ela ignora o intervalo que separa a realidade criada por ela da realidade coletiva.” A tragédia de Emma Bovary seria “o triunfo do irreal”[21] e o fracasso do ideal.

Volto a frisar aqui o caráter público das crenças, aliado ao caráter social das construções da linguagem: elas podem ser transmitidas através das práticas falantes, e com isso adquirem o poder de modificar a conduta daqueles que a compartilham. A relação da crença com a verdade é ambígua: o mais redondo engano, transmitido de maneira consistente entre os membros de um grupo, é capaz de criar ou modificar a realidade social. Só um psicótico é capaz de sustentar uma crença inteiramente privada, para seu uso solitário, fora do laço social. Como disse no início dessa conferência, só na psicose o laço entre a palavra e o real não passa pelo campo do Outro.

Há um ponto em que Gaultier admite que a faculdade de conceber-se como “outro” demonstra ser o próprio mecanismo que move a humanidade, mecanismo que ele considera um “princípio funesto e indestrutível que a funda e constitui sua essência”. Aqui, o autor apresenta um paradoxo do qual não sei se ele se dá conta: se o bovarismo está na essência do humano, o desejo de tornar-se outro e todos os empreendimentos feitos nessa direção não podem ser entendidos como autoengano. O bovarismo pertence ao repertório de possibilidades humanas, liberadas pelas possibilidades de ascensão social e de ruptura com a tradição que se encontram no cerne das sociedades modernas.

Gaultier considera, sim, que o “desenvolvimento da civilização” abriu caminho às desmesuras bovaristas. Para ele, o crescimento da riqueza coletiva torna difícil para os indivíduos distinguir, entre todas as aquisições e mudanças do passado, entre todas as novas noções morais e intelectuais que se descortinam diante dele, quais deveriam ser apenas objeto de contemplação estética e quais podem ser incluídas em sua vida prática.

Ao considerar os personagens de Flaubert, assim como os de Molière[22] como exemplos de autoengano e falsa consciência, Gaultier parece ignorar a recomendação de Pascal a um interlocutor que não crê em Deus: reze, e você acreditará. E se eu não souber rezar? Ajoelhe, diz Pascal: e você rezará. De tanto acreditar-se fidalgo, o burguês de Molière não deixa de sê-lo, um pouco.

O caráter conservador da crítica ao bovarismo como puro engano se revela nos capítulos em que Jules de Gaultier analisa os casos de bovarismo social: para ele, todas as sociedades que empreendem esforços de ruptura progressista com o passado incorrem em erro por ignorar a força de suas tradições antigas. Sobre a Revoluçao Francesa, por exemplo, o autor escreve que “o bovarismo se realiza também quando certo número de indivíduos […] sofre a fascinação de um costume estrangeiro em lugar de sofrer a sugestão do costume de seu grupo”. Gaultier refere-se ao fato de a Revolução Francesa ter se inspirado no modelo da democracia grega e do republicanismo romano, que não poderia “dar aos franceses do século XVIII, produtos de uma longa herança cristã, os sentimentos e concepções de um grego ou de um romano”. A moderna (re)invenção da cidadania teria sido, segundo as concepções do autor, um desvio bovarista da verdadeira natureza do povo francês. Para o autor, o conflito entre “educação e fator hereditário” seria insolúvel. Vale considerar que este modelo dualista, com ênfase na hereditariedade, hoje volta à voga no pensamento científico. A psicofarmacologia atual joga um jogo pesado a favor do fator hereditário, como se a química cerebral representasse a verdade imutável do sujeito, em oposição aos “enganos” da fantasia e da palavra. Na via oposta a esta encontramos a psicanálise, para a qual o significante e a fantasia sustentam o eu e indicam ao sujeito a via de seu desejo.

BOVARISMO E PARANOIA: O SINTOMA SUSTENTA A CRENÇA?

Três décadas após a publicação do livro de Gaultier, Lacan em sua tese de doutoramento sobre as relações entre a psicose paranoica e a personalidade, retoma o pensamento dos médicos e psiquiatras do século XIX e início do XX. Entre eles, muitos haverão de incluir o bovarismo entre os importantes sintomas da paranoia. Ora, em linhas gerais, todo sujeito mais ou menos adaptado às condições de relativa mobilidade social das sociedades capitalistas liberais, pelo menos nas primeiras décadas da consolidação do liberalismo, tem que ser bovarista.

A tese de Lacan é de 1936, anterior à adesão do jovem psiquiatra à psicanálise freudiana. Sua contribuição consiste em articular o conceito de paranoia com a ideia de personalidade individual, uma ideia tributária das mesmas transformações subjetivas que, a partir do século XIX, deram origem à suposta patologia calcada em delírios de autodeterminação que Gaultier chamou de bovarismo. No percurso empreendido por Lacan entre os psiquiatras do século XIX e início do XX, encontramos a ideia de paranoia associada a uma das funções da personalidade, que é a função de síntese do eu. A paranoia seria uma forma de distúrbio dessa função de síntese psíquica. Como se produz a síntese que confere unidade à personalidade? Para Lacan, esta não seria uma função interna ao eu, e sim o resultado da interação de diversos fatores externos que afetam o sujeito. Nos termos da doutrina lacaniana posterior a sua tese, construir a unidade do eu, ou da personalidade, seria como que acomodar, ou dotar de alguma coerência, as marcas da intrusão do Outro no psiquismo. A paranoia, delírio de intrusão de um outro situado no campo externo ao psiquismo, resultaria de uma espécie de fracasso na simbolização da divisão do sujeito. O Outro não simbolizado retorna como perseguidor.

A paranoia, forma radical do bovarismo, torna-se uma patologia a partir do momento em que o paranoico se esforça por excluir do campo narcísico do eu toda a “má notícia” de sua divisão subjetiva advinda do Outro. Em outras palavras: o paranoico não reconhece sua dívida simbólica. Em termos não psicanalíticos, isto significa que o paranoico ignora sua dependência em relação à coletividade à qual, bem ou mal, ele pertence. Coletividade dos vivos e também dos mortos, ou seja, de toda a linhagem (não necessariamente familiar) dos antepassados que instauraram a tradição a que o sujeito pertence. Ainda quando essa tradição se chame modernidade. O Outro comparece na paranoia como perseguidor, sabotador, inimigo mortal, invasor inconveniente da consciência e da razão onipotente. Lacan não escreveu nesses termos, em 1936. Esta é uma releitura lacaniana de sua tese de doutorado.

Vladimir Safatle, em seu livro sobre Lacan, escreve que “a constituição do homem moderno […] coloca em funcionamento uma dinâmica de identificações e de desconhecimento própria à paranoia”. Ou seja, no dizer de Lacan, “a psicose paranoica e a personalidade […] são a mesma coisa”. Paranoico é aquele que elege como agente perseguidor seu próprio tipo ideal por este ser também, como bem observa Lacan, objeto do ódio do sujeito. A dependência em relação ao Outro, constitutiva do sujeito, mas, na modernidade, totalmente recalcada (em função do ideal bovarista de autodeterminação), produz rivalidade e, por efeitos de projeção, delírios de perseguição.

A paranoia seria a doença do bovarista — cujo paradigma no século XX, para Lacan, seria o autoditada — que não compreende seu fracasso a não ser em razão da perseguição e das sabotagens articuladas por um ou mais rivais. Delírios de intrusão, de conspirações para prejudicá-lo e de perseguição compõem o imaginário de um doente mental” em relação a quem o médico ou o analista deveriam reconhecer que tem mais razão do que parece. O delírio pode ser compreendido como uma resposta confusa à rivalidade que domina as relações com o Outro, sob o capitalismo, e à impossibilidade de se atingir, sozinho, os ideais do serf-made man.

Se a paranoia está instalada no coração do sujeito moderno, como retorno persecutório da dimensão coletiva à consciência daquele que se concebe como responsável solitário pela construção de seu eu e de seu destino individual, a psicanálise visa a reintroduzir, através da dinâmica da transferência, a dimensão coletiva do Outro. Desse modo, é possível ao neurótico o acesso à moeda capaz de saldar sua dívida simbólica e tornar-se responsável não pela garantia de sucesso de sua empreitada bovarista (inevitável?), mas pelos efeitos de verdade do “saber que não se sabe” veiculado pela palavra que ele enuncia.

Toda psicose contém um saber recalcado pela coletividade dos supostos normais. A inflação bovarista na paranoia talvez nos ajude a compreender a natureza da patologia social criada pelas condições de extrema competitividade impostas pelo mundo capitalista. Também neste caso, a palavra delirante do paranoico pode ser um meio de acesso ao saber que a modernidade quer manter fora da consciência, a má notícia freudiana de que o eu não é soberano em sua própria casa.

  1. Jacques Lacan, “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise”, Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 
  2. Michel Foucault, As palavras e as coisas (1966), São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 49. 
  3. Idem, p. 58. 
  4. Idem, p. 55. 
  5. Idem, p. 56. 
  6. Michel Foucault, op. cit., p. 59. 
  7. Idem, ibedem. 
  8. Norbert Elias, La Societé des individus, Paris: Fayard, 1991, p. 40. 
  9. Michel Foucault, op. cit., p. 107. 
  10. Idem, p. 93. 
  11. Ferdinand de Saussure, Curso de linguística geral (1916), São Paulo: Cultrix, 1975, p. 86. 
  12. Michel Foucault, op. cit., pp. 400-401. 
  13. Idem, p. 400. 
  14. J. Grimm, L’origine des langues, apud Michel Foucault, op. cit., p. 402. 
  15. Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos (1900). In: Obras completas, Madri: Biblioteca Nueva, 1976, v. I, pp. 517, 521, 523. 
  16. Sigmund Freud, O chiste e suas revelações com o inconsciente”, vol. I, Obras Completas, Madri: Biblioteca Nueva, trad. Luís Lopes Ballesteros, p. 1032. 
  17. Idem, p. 1031. 
  18. Jacques Lacan. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no Inconsciente freudiano” (1960), Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, V. n, pp. 773-807. 
  19. Jules Gaultier, Le Bovarysme (1902), Paris: Mercure de France, 1921, p. 16. 
  20. Idem, p.17. 
  21. Idem, pp. 3234. 
  22. Idem, p. 68. 

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