2011

Crença: aquém e além da razão. Da Europa para a China, ida e volta

por François Jullien

Resumo

“Crença” pode ser entendida em dois sentidos: no quaem e no além da razão. De uma parte, com certeza primitiva, antepredicativa, relacionando à existência de tudo o que nos é imediatamente dado: é a partir dela apenas que a razão poderá estabelecer relações lógicas e trabalhar. De outra parte, ou, mais precisamente, na antípoda, como fé religiosa, instituindo Deus e criando o objeto de uma grande Narrativa: ela ultrapassa então a ordem da razão e até mesmo a desafia através daquilo que lhe impõe como inaceitável.

Se a razão conhece bem, depois de longa polêmica, sua linha de separação da segunda — a fé na Escritura —, em contrapartida, ela está muito pouco à vontade para conceber sua relação com a primeira: o assentimento a uma “natureza”, da qual, entretanto, ela depende necessariamente. Prova disso  são os esforços feitos no século XVII: não dependendo da palavra revelada nem do discurso demonstrativo, esta crença é inicialmente a que temos no nosso corpo e aqueles que nos cercam, dos quais só podemos duvidar, nos diz Hume, à custa de uma ficção (aquela preparatória do cogito cartersiano); é aquela das “verdades primitivas de fato” (Leibniz): “sem crença, não poderíamos atravessar a porta nem nos pormos à mesa ou na cama” (Jacobi). Porque sabe-se que a razão não tem condição de demonstrar a existência: esta certeza da existência só pode ser senão “crença”; é o que também Merleau-Ponty tenta definir na abertura de O visível e o invisível como “fé perceptiva”.

Esta noção de crença natural— fé do “homem natural”, diz Merleau-Ponty tateando — é difícil de esclarecer, talvez não tanto por causa de seu caráter pré-reflexivo quanto pela existência das oposições categoriais às quais ela está presa no interior da filosofia ocidental, alvejada  tanto do lado materialista sensualista quanto pelo pathos idealista do sentimento (Schwärmerei). Pode também ser útil reconsiderar este fenômeno de assentimento primordial no seio do qual vivemos isolando-o do seu contexto teórico no Ocidente e que torna tão complicado chegar a ele. O desvio através do pensamento chinês pode ajudar: ele não apenas nos faz beneficiar de sua exterioridade, mas revela-se também particularmente à vontade para abordá-lo: porque ele não foi elaborado com a teoria da “representação”, fazendo ruptura na nossa relação com o mundo, e pensou globamente a sabedoria como aptidão a permanecer em fase com este grande processo do mundo — este é o “caminho” do tao — no lugar de entrar em dissidência com ele.

O pensamento chinês desdobrou tanto mais esta elucidação do assentimento primordial ao dado natural na medida em que ele não  desenvolveu a Fé em Deus. Não compondo a grande Narrativa, cedo  ele marginalizou a ideia de Deus, que igualmente ele conheceu (o

“Senhor do alto”, Shangdi) em favor da ideia do Céu, que inicialmente a torna próxima e depois a recobre, sem entretanto levar ao ateísmo:  o Céu vem significar a grande regulação natural e dispensa Revelação.

“Crer”, no sentido religioso, absoluto, não tem desdobramento; daí um distanciamento daquilo que se chamará “religião” (“ensinamento ancestral”, zong jiao, traduzido do chinês).

“Qual é o mais crível dos dois, Moisés ou a China?, perguntava Pascal.


“Crença” (Glaube) pode ser entendida de duas maneiras: infra e metafilosoficamente, ou seja, no aquém e no além da razão.

Por um lado, como certeza primeva, antepredicativa, sobre a existência do que nos é imediatamente dado: é apenas a partir dela que a razão poderá estabelecer relações lógicas e trabalhar. Por outro lado, ou melhor, no extremo oposto, como fé religiosa que coloca a existência de Deus e constitui objeto de uma Grande Narrativa: ela ultrapassa então a ordem da razão e até desafia a esta, impondo-lhe o inaceitável: creio porque é absurdo (credo quia absurdum). A “Boa Notícia” (do Evangelho) seria ainda mais crível universalmente, nos diz São Paulo, por colocar todos os homens diante de uma igual impossibilidade de acreditar: que a morte tenha sido vencida e o Cristo, ressuscitado.

O que Nietzsche refutava: o fato de acreditar tanto não torna o objeto de nossa firme crença mais certo. O que está em jogo aí talvez seja apenas uma condição da existência de nossa espécie, que só consegue sobreviver por um jogo de ficções ao qual ela se apega — e quanto mais convincente o engano, maior o apego.

A CRENÇA NO SENTIDO INFRAFILOSÓFICO: UM CONCEITO INCERTO, PORÉM INDISPENSÁVEL?

Se a razão sabe muito bem onde traçar a linha que a separa desta segunda forma de crença — a fé na Escritura —, pois foi o resultado de uma longa controvérsia, ela fica muito mais desconfortável para conceber sua relação com a primeira: para admitir uma “natureza” da qual ela no entanto depende, necessariamente. Prova disso são os esforços realizados no século XVIII para apreender tal assentimento que chamaram de “crença”, na falta de um termo melhor. Mas o conceito continua incerto e tateante. Pois ele é, por um lado, indispensável para expressar uma relação elementar de adesão a um mundo ou a uma existência sem o/a qual não poderíamos viver; e apenas a partir do (a) qual a razão pode construir suas relações e trabalhar. Por outro lado, contudo, esta crença primeva em nossas percepções que faz com que confiemos no que chamamos de “real” e, em primeiro lugar, naquilo que nos cerca, que mergulha no implícito, constitui um saber tácito e escapa ao esclarecimento da razão. Pois para esclarecer este infrafilosófico, a filosofia o recobre. E a prova desta dificuldade é a falta de jeito perceptível em Jacobi.

Na Alemanha das Luzes, Jacobi ocupa um lugar à parte. Ele é antes de tudo autodidata, não ocupará nenhum cargo acadêmico, começa escrevendo romances – ou pelo menos o que se convém considerar como tais – e vai redigir principalmente cartas e diálogos; ele se vale de sua aparência de “gafanhoto” (de “rapsodo”): nada de tratados regulares. Jacobi preza Pascal e Rousseau. Ocorre que ele criou um alvoroço ao lançar de novo a questão do espinosismo considerado como o fim – via determinismo – de uma tradição racionalista que, como ele mostra, impediu perigosamente nossa apreensão da vida e conduziu a um estrangulamento existencial. O que é mais original nesta posição é que, mesmo reivindicando para si uma “não filosofia”, Jacobi não para de querer debater com os filósofos do seu tempo, Mendelssohn, Kant ou Fichte: ele quer encaixar à força seu pensamento da vida, por mais rebelde que seja à ideia de conceito, no próprio seio dos conceitos (e torná-lo assim uma Lebensphilosophie). É por isso que ele tenta dar um conteúdo emocional ao que acabei de chamar de infrafilosófico, ao mostrar que o saber que a razão constrói sempre é apenas “de segunda mão” e pressupõe uma certeza interior, anterior e de primeira mão, como assentimento primordial, pré-reflexivo e ante-predicativo ao mesmo tempo: este saber só pode surgir, como podemos supor, aquém da ruptura entre o sujeito e o objeto fundador da operação de representação própria ao conhecimento. Pois, ele avisa, quem pode na verdade ter uma “representação do viver”, isto é, com certa distância em relação a ele? Por isso, ao deixar passar este inegável, a tradição filosófica europeia teria cometido um infeliz deslize, perdendo o “real” por baixo do especulativo, a ponto de desembocar no “niilismo”. Este termo e o processo lançado contra ele constam da obra de Jacobi: será que Nietzsche ao menos vislumbrou o que ele lhe deve?

Quanto a este infrafilosófico dentro do qual é possível apreender o sentimento do viver, Jacobi escolheu charná-lo de “crença” (Glaube). Mas o que vale o termo? Será que ele cai bem? É ao menos viável? De fato, vamos precisar separar logo da fé — pela qual a Escritura nos “instrui” — esta confiança elementar, não mais faith, porém belief, pela qual a natureza nos “força”: é ela quem nos faz aderir imediatamente a um “mundo”, a começar pelo nosso corpo, e sem ela não saberíamos como viver. Um termo como aquele tem pelo menos o mérito de destacar este ponto em comum: uma convicção dessas não espera provas e não é discutível; ela antecede qualquer conscientização e diz respeito à própria existência. Sabemos, no entanto, pelo menos desde Kant, que ela não é um predicado como os outros e não pode ser demonstrada (não pode reivindicar uma necessidade lógica, trate-se da existência de Deus ou das coisas fora de nós). A razão, por sua vez, só pode estabelecer relações entre as coisas; ora, preciso que as coisas me sejam dadas antes que eu possa perceber nelas relações: assim é a medida do infra. Por isso esta crença originária e ao mesmo tempo irrecusável nos garante logo de cara um “real” (o motivo pelo qual Jacobi pretende ser “realista”), e contra si luta em vão toda ficção ou toda dúvida metódica à la Descartes, que faz com que “acreditemos” irrefutavelmente agora que estamos neste recinto sentados a esta mesa; esta crença constitui o “elemento” primevo, ou o meio, não apenas de qualquer conhecimento, mas em primeiro lugar da menor atividade possível. Ela é, no que ela envolve implicitamente, a via de acesso, ou, digamos, a abertura inicial permanentemente exigida pela qual viver em nós se desenvolve e se efetiva (ela nos serve assim de Lebensverständnis). Viver só é possível por esta adesão na qual estou logo de início e que não questiono: “sem crença, não poderíamos passar da porta nem sentar à mesa ou deitar na cama” (em David Hume e a crença).

É verdade que, uma vez colocado este termo de “crença, Jacobi tateia. Já para nomear este antecessor do infra, será que é melhor considerá-lo sob o ângulo da “sensação” ou do “sentimento”, Empfindung ou Gefühl? No primeiro caso, seremos colocados do lado dos sensualistas; no outro, seremos logo acusados de sentimentalismo espiritualista e fusional, exaltado, da Schweirmerei. Cairemos fatalmente sob o machado de um dos dois: seria preciso começar desfazendo esta bifurcação imposta. Para onde se voltar, no entanto? Quem se inclina na direção deste montante deve chamá-lo antes desentiment de l’Être” para evitar cair demasiadamente na ordem da representação e do reflexivo? Ou então, na linguagem de Kant, devemos chamá-lo de “apercepção transcendental”, a fim de destacar seu princípio unitário (antecedendo a priori os dados da intuição)? “Axioma” seria mais comum, mais cômodo, mas sabemos também que ele pertence à discursividade demonstrativa da qual só se diferencia pela sua qualidade de indemonstrável; “pressuposto” (Voraussetzung) ainda pertence demais à lógica (ao “tético”); será que falar em “injunção” (do “verdadeiro”, Weisung) não seria, contudo, no outro extremo, místico demais? Forjadas por séculos de racionalismo do conhecimento, todas estas palavras nos traem. Por conseguinte, teremos que retrabalhá-las na medida do possível, aparar suas arestas ou voltar à sua etimologia para chamá-las a desviar do seu sentido usual — na verdade, para que desviem do seu desvio: em Vernunft, a “razão” triunfante, teremos por exemplo que devolver ao ouvido o vernehmen de um perceptivo mais originário, no entanto recoberto desde então e esquecido.

Oscilando de um lado para o outro — quando o que ele quer designar não se situa entre os dois nem é o ponto em comum entre eles, mas o aquém, o infra ou o “a montante” —, Jacobi só pode passar o sentimento de estar tateando. Tateamento filosófico: “Dá para ver que não é um filósofo”, as pessoas vão dizer… Ele, de fato, se segura um pouco rápido demais em tudo o que está à mão, no que pode lhe servir de apoio ou ao que ele pode aderir: tanto o empirismo radical de um (Hume e a evidência do sensível) quanto a ontologia espiritualista do outro (Leibniz e as “verdades primevas de fato” de um cogito aqui revisto e corrigido). Todavia, será que Jacobi pode fazer diferente? Será que ele pode não ser desajeitado para trazer à superfície do pensamento — e, em primeiro lugar, do idioma — este infra do viver, feito mais de adesão que de conhecimento de fato, mas que séculos de filosofia enterraram debaixo do seu edifício especulativo? Para apreendermos esse jorramento contínuo do viver que nos faz ao mesmo tempo, num mesmo movimento, confiar num mundo, aquém de nossas categorizações, será que conseguimos escapar deste balbuciamento? Na abertura de O visível e o invisível, Merleau-Ponty hesita igualmente e procura suas palavras. Ele tampouco consegue evitar a evocação de uma “fé perceptiva”, que “é comum ao homem natural e ao filósofo ao abrir os olhos”. Porque ela remeteria a “uma base profunda de ‘opiniões’ mudas envolvidas na nossa vida”. E Merleau-Ponty acrescenta na margem: “Noção de fé a ser detalhada. Não se trata da fé no sentido de decidir, mas no sentido do que antecede qualquer postura e [?]”. Nota inacabada, ou melhor, inacabável, pois como desenvolvê-la?

A CRENÇA NO SENTIDO METAFILOSÓFICO OU RELIGIOSO: O CONCEITO QUE DIVIDE

Não completamente distinta e até impossível de elucidar nesta primeira ponta — a da crença como adesão elementar ao que nos cerca, nós que confiamos num mundo —, a crença se revela inversamente um conceito divisor na outra ponta, no seu sentido religioso e numa superação deste mundo, quando “crer” se focaliza em Deus. Com efeito, a crença em deus(es), e mais precisamente na existência de deus(es), provocou espantosamente uma clivagem na cultura europeia. Ela traça uma linha, ou melhor, a linha de demarcação a partir da qual o pensamento europeu se tensionou. Com outras palavras, a crença organiza o grande conflito que dividiu — e com isso também motivou — o pensamento no Ocidente. O racionalismo grego não se forjou na oposição entre as coisas que sabemos por tê-las aprendido e aquelas nas quais acreditamos (já no Górgias, 454 d: mathesis / pistis)? Ele não se desenvolveu na separação entre os que creem em deus(es) e os que são “ateus”? Assim é a grande alternativa dramática.

Já atribuíam essa fama de “ateu” a Protágoras, que virou companheiro de Demócrito. Pelo menos, seu tratado Sobre os deuses começa com estas palavras: “No tocante a deuses, não estou em condições de saber se eles existem ou não, nem qual é o seu aspecto. Coisas demais nos impedem de sabê-lo: sua invisibilidade e a brevidade da vida humana” (Diels-Kranz,II,fr.4). De certa forma, neste fragmento atribuído a Protágoras, tudo está dito, o debate está aberto, ou melhor, já encerrou: o que virá depois será apenas glosa. Sócrates será acusado de “não acreditar nos deuses nos quais a Pólis acredita” (Apologia, 24 b-c): “crer” se tornou o critério decisivo, divisor, a partir do qual advogam o pró e o contra e a vida humana é julgada. No fim das Leis (x, 885), Platão enuncia a crença de que “os deuses são” a princípio fundadores da Pólis, rejeitando numa mesma categoria, por sofrerem do mesmo mal, aqueles que são incrédulos-imorais-materialistas. Mesmo que o verbo para dizê-lo ainda não esteja definitivamente fixado (nomizein, hegeisthai, pisteuein), crer tornou-se o pilar, ou melhor, o pivô do destino dos homens com relação a eles mesmos ou à sociedade. A partir daí, a distância aumenta até virar abismo entre o que você sabe e no que você acredita, recortando uma área — a do absoluto — que é da fé (pistis), já que não pode ser objeto de saber e de raciocínio (logismos). “Crer” não é apenas o verbo que recorta e separa o pensamento entre estes dois lados (fé e saber), mas ele exacerba a rivalidade entre eles. Ao se absolutizar, ele é o verbo em que você coloca ou aposta tudo: “Creio”, tudo está dito, basta.

Claro, esta história nos é tão familiar que não refletimos mais nela: tão assimilada que não conseguimos mais apreendê-la nem interrogá-la. O “bem conhecido”, como dizia Hegel, é de fato desconhecido. Fica de fato patente, ao virar os olhos para fora da Europa, que este conflito da crença e da descrença não é nem constitutivo do espírito humano — apesar da maneira como o racionalismo clássico o transformou — nem a linha de clivagem marcadora de um destino. Para tanto, seria preciso primeiro que a relação com o que se chama mais comodamente o sagrado e a transcendência tenha se estabelecido e constituído em volta da figura de deus(es); e, para isso, que ela tenha se organizado em Grande Narrativa (muthos diante de logos). E também precisamos deste verbo “ser” (einai), com o sentido não de predicação, mas de existência: que possamos dizer eu sou”, “eles são”. Se não tivesse sido isolada esta função do “ser” (no sentido absoluto), ou seja, se não dispuséssemos deste recurso do idioma para poder dizer “os deuses são” — isto é, que possamos fazer a pergunta da existência deles —, será que “crer” poderia (deveria) ter se desenvolvido?

QUANDO “CRER” NÃO SE DESENVOLVE

Se fui à China, é justamente por isso: para encontrar um ponto de distância em relação à tradição ocidental, para colocar nosso pensamento em perspectiva e romper com seu “atavismo”. Com outras palavras, para que sua “heterotopia” possa funcionar. Lembrem-se de Foucault: “As utopias tranquilizam, as heterotopias preocupam”. Pois a China é externa à Europa: pelo idioma, já que a língua chinesa não pertence à grande família indoeuropeia e sua escrita é ideográfica, e não fonética; pela história também, já que até uma época tardia (fim do século XVI e até mesmo o século XIX) ambos os mundos, chinês e europeu, não se encontraram.

Passar para a China é uma mudança de ares para o pensamento. Ao mesmo tempo, trata-se de abri-lo para outras possibilidades e, ao voltar para o pensamento europeu, interrogar sobre o que ele não interroga: como as escolhas implícitas que o carregaram, que tecem sua “evidência” e que por isso mesmo ele não consegue interrogar; enfim, encontrar um ângulo oblíquo sobre seu impensado. Visto da China, “crer” — que nos parece tão familiar e constitui uma opção principal tanto na nossa vida quanto na nossa mente — é redescoberto e vira estranho de repente. Com efeito, “crer” não se firmou como destino e se desenvolveu pouco na China.

Já dá para entender isso partindo dos dois pontos que acabei de evocar. Primeiro, “ser” no sentido de existência — seu sentido absoluto — não existe em chinês clássico. Pode-se dizer “há” (you), “ser enquanto” (wei), sobreviver” (cun) ou, ainda, “estar aqui” (zai). O chinês conhece também, obviamente, o uso da cópula (ye), mas não sabe dizer “eu sou”. Portanto, ele tampouco consegue dizer: “Deus é”. A questão “Será que Deus existe?” perde seu sentido. O problema da “existência de Deus” e de suas provas, que tanto ocupou nossa filosofia clássica, não precisa ser colocado. Além do mais, a figura de Deus também não se impôs. A China realmente conheceu no período arcaico divindades naturais: águas, ventos, pontos cardeais; e estes foram dominados por um “Senhor lá de cima”, Shangdi, para o qual se reza, que é temido, recebe sacrifícios e manda no mundo humano; uma noção que corresponde, afinal de contas, ao que se encontra em outros lugares na alvorada das grandes civilizações. Porém, essa noção não vai se desenvolver.

Na virada do primeiro milênio antes da nossa era, de fato, há uns três mil anos, com a chegada ao poder de uma nova dinastia (a dos Zhou), emerge uma nova noção que começa a se espalhar: a de “Céu” (tian). Ela não contradiz a do Senhor lá de cima, mas a cerca e progressivamente a marginaliza; ela não a expulsa, porém a coloca pouco a pouco de lado, tornando-a cada vez menos necessária. O que é, então, o “Céu” na China?

Sem eliminar qualquer dimensão pessoal, o “Céu” vai cada vez mais designar a alternância regular do dia e da noite, a das estações, enfim, vai passar a significar a natureza (esta transformação já é completada em Xunzi, no século III antes da nossa era): “Céu-natureza”, traduzem frequentemente os sinólogos. O Céu significa a Grande Regulação do mundo: contanto que não se desvie, o curso do mundo não para de se renovar, e a natureza, de gerar. Por isso, a noção de Céu não tira a de um Senhor lá de cima, mas a torna secundária: o que poderia acontecer de pior para “Deus”? Com efeito, a China não a combate nem lhe concede um papel importante, e é isso que importa: ela não “trabalhou” com Deus, nem a favor nem contra. Lá, não se desenvolveu o drama da fé contra o ateísmo. A China mal o vislumbrou e não o desenvolveu. Isso explica por que “crer” não é problemático lá, por que não é polêmico e não teve um destino singular.

CONFIABILIDADE EM VEZ DE CRENÇA

Atrás da questão do “ser”, do ens, surge a do “estar junto” ou da “presença”: “ser” para os gregos, como lembrou Heidegger, significa “estar presente” (einai equivale a pareinai). Acontece que os chineses não apenas não desenvolveram a questão de saber se os deuses “são” ou “não são”, mas mesmo em relação à presença dos espíritos eles são cautelosos: não é para eles uma questão a ser decidida. “Sacrificar para os espíritos como se estivessem aqui”, diz Confúcio (ru shen zai), o importante é a maneira como é praticado o sacrifício (Entrevistas, III, 12). Este “como” não denuncia uma aparência ou qualquer simulacro, como o fez a metafísica, mas desmonta a oposição entre presença e ausência: o estar aqui (da encarnação), não sendo um problema, tampouco embasa a crença. A tal ponto que poderão dizer mais tarde (fórmula forte de Xunzi, no Tianlun) que aquilo que o povo considera como sendo “espiritual” ou religioso — aquilo que poderia levar à crença —, um “homem de bem” considera como sendo apenas “cultural”: seu valor se limita à civilização, sem mais nenhum investimento em crença (não mais como shen, mas como wen), do mesmo jeito como hoje, cada vez mais, os europeus visitam suas igrejas.

Além do mais, o “Céu”, que resume a transcendência na China, também não resulta mais numa Grande Narrativa, já que designa antes a dimensão de renovação regulada do mundo e o Fundo sem fundo do qual este mundo não para de proceder: não há, portanto, nenhum evento aí que cause uma ruptura no curso da História e que poderia ser o objeto de um Credo. Igualmente, este “Céu” fica sem mensagem à qual aderir. “Eu gostaria de não falar”, disse um dia Confúcio, e aos seus discípulos que se perguntam, então, o que vão poder relatar, o mestre acrescenta: “Será que o Céu fala? As estações se sucedem, todos os seres existentes são gerados. Que necessidade teria o Céu de falar” (Entrevistas, XVII, 19). Do mesmo modo que não há Revelação a esperar do Céu, não há lição a esperar do Sábio. Qualquer palavra seria um obstáculo neste caminho da imanência que é preciso seguir: não há como justificar uma crença, o pensamento chinês é sem dogmatismo.

Ora, que a sabedoria consista em seguir este caminho da imanência e em fazer parte da sua Regulação permite entender não somente que a China não tenha desenvolvido o sentido metafilosófico de uma crença entrando em conflito com a Razão, mas também que ela não tenha encontrado problema na adesão que nos liga ao mundo: este sentido elementar, infrafilosófico, da crença — ou melhor, da confiança no que nos cerca — é natural na China. Não existe aí uma possibilidade de fissura a partir da qual inquietar o pensamento ou apenas interrogá-lo. Pois o pensamento chinês não questionou o testemunho dos sentidos, muito menos imaginou, como Descartes, lançar uma dúvida sistemática, hiperbólica, a respeito do sensível. Sobretudo, ele se absteve de estabelecer uma ruptura entre sujeito e objeto. Por isso, as dificuldades com as quais depara Jacobi para trazer à superfície este plano do infrafilosófico ocultado pela Razão — e que foi chamado, por falta de melhor termo, de “fé” ou crença”, de Jacobi a Merleau-Ponty — desaparecem ao passar para o pensamento chinês. Nele, elas não ficam resolvidas, mas dissolvidas. Como a sabedoria consiste em estar sintonizado com seu mundo, em “fundir-se” no seu curso e em se “sazonalizar”, a razão não trabalha para formalizar ou moldar, mas antes para explicitar e promover essa coerência interna (li, traduzida por “razão”, sendo originalmente o veio interno do jade que o lapidário deve seguir para talhá-lo). A razão se impede, portanto, de encobrir qualquer adesão mais elementar. Ela pretende, ao contrário, testar esta adesão mais adiante e desenvolvê-la.

Por isso o termo chinês que se traduz por “crer” (xin) significa essencialmente “confiar em”, “ter apego a”, “aderir”, “manter”. Da viabilidade do “caminho”, tao, resulta sua confiabilidade. É só com o budismo, todavia oriundo da Índia, e mais ainda com o cristianismo que este verbo poderá começar a significar “crer” na sua acepção religiosa. Com isso, dá para entender como “religião” pôde ser traduzida em chinês por “ensino ancestral” (zong-jiao), remetendo, portanto, principalmente à ideia de uma filiação, em vez de insistir no “salto” da fé; ou como essas tradições chamadas de “religiosas” na China, bem longe de se excluírem — exclusão a que levaria o caminho dogmático da crença —, não param de se misturar e desfazem suas demarcações (o que convém chamar de sincretismo chinês); e dá para entender também por que não houve guerras de religião na China levada em nome da crença (apenas incursões antibúdicas no século IX, mas por motivos políticos); e, finalmente, que foi isso que mais espantou os missionários cristãos ao chegar na China: que os chineses permaneciam indiferentes à sua mensagem — não a combatiam realmente (exceto, mais uma vez, quando viam nela um perigo político) nem se interessavam por ela. Esta grande aposta e este drama da fé, da salvação ou da danação, mal os atinge: eles não veem nenhuma questão decisiva nisso. Eles aceitam mais uma receita para a imortalidade, mas por que esta, com seu caráter divisor, teria que excluir outras? É o motivo pelo qual “crer”, na China, não se desenvolve.

CONCLUSÃO

“Qual dos dois é o mais crível: Moisés ou a China?”, indagava Pascal. Gosto de citar esta fórmula dos Pensamentos (Léon Brunschvicg, § 593) porque ela ousa construir uma alternativa. Ao mesmo tempo, esta alternativa é bamba: por um lado, “Moisés”, simbolizando a grande aventura do Ocidente e o monoteísmo; do outro, não algum grande nome chinês, Confúcio ou Lao-tsé, mas “a China”: um espaço de pensamento sobre o qual Pascal não sabe quase nada, embora perceba a força de objeção que ele pode representar em relação ao pensamento e à “tradição” ocidental. Prosseguindo seu diálogo com o libertino, Pascal mostra que existe de fato uma luz para nós, que pode vir deste fora chinês: “’Mas a China obscurece’, você diz; e respondo: ‘A China obscurece, mas há clareza a ser encontrada; procure-a’”. Pascal conclui finalmente: “É preciso estudar isso em detalhes, colocar as provas na mesa”. É verdade: é preciso colocar as provas na mesa, pacientemente, “em detalhes”, para começar a colocar frente a frente estes pensamentos, o chinês e o ocidental, que permaneceram tanto tempo externos e, consequentemente, indiferentes um ao outro, mas cujo encontro, pela confrontação que organiza, pode doravante dar novo alento à filosofia.

“Crível”: o termo escrito é tão forte que Pascal depois riscou esta fórmula. Ele a tirou. Será que foi longe demais? Ao ousar levar a interrogação até este ponto, ao realizar este progresso, Pascal contudo recorre ao termo que ele inscreve como denominador comum da humanidade: “crer”. Como se “crer” fosse esse termo primevo, óbvio, cujo sentido e uso são entendidos a priori, independentemente das diferenças culturais encontradas. Porém, a questão talvez não seja tanto de crer nisso ou naquilo — em Moisés ou na China —, mas de desenvolver este verbo “crer”, como o Ocidente o fez, entregando-lhe o destino da humanidade; ou então de deixá-lo subdesenvolvido, como o fez a China. Ou talvez tenha sido o oposto: o Ocidente, ao torná-lo divisor e absolutizante, o teria estranhamente hipertrofiado.

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