1996

Contra os mistérios da realeza, a curiosidade

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

Em 1607, o jurista John Cowell publicou um livro de grande impacto na luta entre o rei e o parlamento ingleses. Tratava-se de Interpreter, que consiste basicamente de um dicionário de princípios romanos, o que já implicava, em si, uma romanização, se considerada que a common law era fundamentada em leis não escritas. Mais: a essência mesma da legislação inglesa de então era alguma indefinição ou generalização, regulada pelo Rex in parlamento.

Mas não foi só por isso que Interpreter gerou controvérsia. Foi sobretudo pela sua definição da prerrogativa régia. Ou seja: da condição absoluta do rei, que restringia o parlamento a um órgão, que, nas palavras de Cowell, “falava mas não governava”. Eis o que valeu a ele a fúria da câmara, que pretendia puni-lo – em vão. Afinal, o rei Jaime reagia com perspicácia. Como? Valendo-se exatamente de sua prerrogativa régia. Estava, portanto, decidido: Interpreter seria apreendido, sob a alegação de que o autor intrometeu-se “nos mistérios da realeza”. E só.

Não era o Jaime de sempre. Ele que, para além da “imitação de Cristo”, evocava, em alusão à Bíblia, sua garantia de agir – como fosse – sem punição. Numa palavra: plenitude. E fato é que a plenitude traz consigo o mal, nem que seja potencialmente. Assim, não era que o poder se estruturasse a partir dele, mas que operacionalmente ele passasse a fundá-lo.

Para romper com isso, foi preciso estabelecer uma nova relação com o mal. Qual? Admiti-lo.

Assim, não se tratava mais do meio caminho entre homem e Deus, uma vez que eles se confundiam. O mistério, como sempre, escapa.

Ainda sobre o rei – à maneira do Altíssimo –, é preciso notar que ele respondia tanto ao poder originário, que consiste em conferir às coisas seu curso ordinário, quanto ao interventor, que consiste em suspender tal curso – o milagre.

E Hobbes diante disso?

Trata também do milagre, que, no século XVII, com a difusão do protestantismo, estava um tanto desacreditado. Por isso Hobbes referiu-se a ele como retórica do divino. Nada, portanto, de conhecimento ou, sequer, de transmissão, quer pela razão, quer pela revelação. Até porque o que há é a ideia hobbesiana de “predeterminação”, segundo a qual Deus, ao criar o mundo, já determinou tudo o que aconteceria nele até o fim dos tempos.

A isso – segundo ainda Hobbes – resiste a curiosidade, tentadora, motivo pelo qual ela leva o homem a penetrar “nos mais profundos mistérios, restritos aos príncipes e reis, e seus Estados, representantes de Deus na terra”.

Enfim, a razão, o conhecimento, a ciência pulsam. O “desejo de saber”, eis por que é preciso desmontar os mistérios e segredos da realeza.


Em 1607 um jurista inglês, o civilista John Cowell, publica um livro fadado a exercer grande impacto na luta, entre o rei e o Parlamento, pelas respectivas esferas de poder. Cowell é civilista, isto é, num país marcado pela common law e portanto pelo direito costumeiro, consuetudinário, pertence à minoria de advogados que se volta para o direito romano. Isso já estabelece uma diferença nítida entre ele e o eixo da tradição jurídica de seu país. Se é difícil definir em poucas palavras a common law, podemos, porém, e devemos começar tentando-o. Trata-se de um direito baseado no costume e que se tornou típico do mundo anglo-saxão, abrangendo, hoje, as ex-colônias britânicas, inclusive os Estados Unidos e o Canadá, com exceção, nesses dois países, das legislações estadual da Louisiana e provincial de Québec, não por acaso ex-colônias francesas. Assim, hoje a common law tem uma importância nada negligenciável no mundo; mas, no advento da modernidade, soava estranho que, de quase toda a Europa, apenas o reino atrasado da Inglaterra, situado geográfica e economicamente na periferia de um continente em plena expansão, se conservasse seguindo, por lei, o que eram costumes.[1]

Com efeito, na Idade Média a atividade propriamente legislativa, por toda a Europa, era escassa, estando, em escala maior ou menor, subordinada à tarefa de dizer a lei; os próprios órgãos que hoje diríamos baixar leis se revestiam com frequência de uma capa judiciária: falava-se, na Inglaterra, na High Court of Parliament, na Alta Corte do Parlamento. Baixar uma lei tendia a mal se distinguir de dizer a lei, isto é, de aplicar princípios gerais, numa mescla de religião cristã, filosofia escolástica e costumes antigos ou mesmo recentes, a casos ou esferas particulares. Por isso, constitui uma razoável revolução o fato de que sucessivamente os grandes Estados europeus efetuem a assim chamada Recepção, ou seja, a recepção do Direito Romano em seus sistemas jurídicos, impondo-lhes o rigor, a codificação, a clareza, em suma, princípios que varrem alguns traços que mais e mais eram vistos como defeitos. E, por isso mesmo, estranha que a Inglaterra se conserve, potência média ou mesmo menor que era, leal aos costumes mais antigos. Ou, talvez, isso não cause estranheza; talvez pareça um bom indício de que a ilha não fazia questão, para usar um termo de nossos dias cuja aplicação ao caso é apenas ligeiramente anacrônica, de modernizar-se.

O direito costumeiro era dito lex non scripta, lei não escrita, mas talvez seja mais adequado dizer que ele e a common law de hoje são na verdade lei não assinada. Evidentemente, boa parte de seus julgados já estava posta por escrito, em especial nos Year Books que desde séculos registravam as sessões dos três tribunais superiores do reino, mas também em tratados e memórias de insignes juristas, como Littleton e depois Coke. A precisão é que, enquanto no direito romano e em seus avatares continentais a lei vale por ter sido assinada, promulgada por uma instância mais ou menos soberana (geralmente o príncipe, mas eventualmente um senado ou assembleia), no direito costumeiro o fato de ela estar escrita é decorrência, e não causa, de sua validade. Num caso, a assinatura confere eficácia ao diploma, e portanto o legislador é sua causa eficiente, se quisermos traduzir esse processo no esquema aristotélico das quatro causas; no outro, a anotação registra algo cuja validade legal precede a observação humana, e portanto o juiz (e por extensão o deputado ou o príncipe, entendidos em certa medida como judicantes) é causa apenas em sentido bastante fraco da norma. Hoje, sem grande exagero podemos dizer que no mundo anglo-saxão quase tudo, senão tudo, do Direito está posto por escrito, mas continua ele sendo common law, o que deixa claro que a distinção entre o sistema continental e o inglês reside mais nos princípios que efetuam um e outro do que na forma pela qual sua memória é conservada. De qualquer forma, é correto dizer que um sistema no qual o essencial é julgar favorece mais o primado dos tribunais, e da jurisprudência, enquanto um sistema no qual o principal é a vontade do príncipe ou da assembleia (quod principi placuit habet vigorem legis, o que o príncipe quer tem força de lei) incentiva a primazia da atividade legislativa: daí, uma diferença essencial entre as duas tradições.

Cowell era, por formação e convicção, um defensor do direito romano. Ser civilista, na Inglaterra da época, não quer dizer apenas estudar o direito legado pelos latinos. Significa também uma opção por seus valores. Daí que em sua obra, que assume o perfil de um dicionário, procure definir os termos principais do direito segundo os preceitos que considera romanos. Na verdade, já o fato de defini-los implica uma relativa opção romanista. Isso pode parecer estranho; por que não haveria distintas definições dos mesmos conceitos pelas duas famílias de pensamento jurídico? Por que não propô-las à discussão, confrontá-las? Ora, do que dissemos já se depreende que a common law, na época, considera essencial um certo montante de indefinição. Na medida mesma em que seus princípios são genéricos, e em que cabe aos tribunais e ao Rex in Parliamento na qualidade de mais alto tribunal do reino dizer de sua aplicação às esferas mais precisas do direito, uma definição demasiado precisa engessaria o que haure sua vida exatamente de seu acionamento, variável, da tradição. Porque a tradição, o imemorial não são conteúdos precisos, mas memórias que são ativadas de distintas formas, conforme as exigências do presente; basta lembrar o papel, decisivo, que desempenhou sir Edward Coke, pelo mesmo final do século XVI e começo do XVII, na construção de uma adequação do velho direito às exigências da nova economia. Donald Wagner[2] estudou essa questão num artigo célebre, da mesma forma que Christopher Hill,[3] mas recordemos, apenas, que o grande jurista teve a capacidade, entre outras coisas, de “provar” que já a Magna Carta de 1215 proibia os monopólios econômicos; coisa bastante improvável, dado que num contexto quase impensável naqueles idos medievais, mas que lançou o sinal para a utilização moderna dos precedentes mais antigos, e para a construção de uma memória judicial que, se choca o historiador moderno (J. G. A. Pocock, por exemplo), foi porém decisiva na construção de um direito que acolhia o capitalismo sem, para isso, precisar extinguir as velhas jurisdições mais difusas e concentrar todo o poder em torno do rei.

Este, antes de voltarmos finalmente a Cowell, o sentido forte do conflito entre a common law e os civilistas na Inglaterra do século XVI e começos do XVII. Durante bastante tempo, pensou-se que o país teria corrido o risco de se ver submetido ao direito romano, que associava à limpidez, elegância e clareza de suas fórmulas uma definição precisa do poder de legislar, atribuído ao monarca só ou com o aval quase simbólico de assembleias que dificilmente o recusavam. Ou seja, tinha-se um conjunto. Por um lado, um direito mais apto que o costumeiro para dar conta das novas realidades econômicas, em especial dos contratos, viga-mestra do capitalismo em expansão. Por outro lado, porém, para chegar a esse direito que validava os contratos na atividade produtiva, foi preciso por quase toda a Europa dissolver as instituições tradicionais, fossem elas assembleias ou tribunais, que antes diziam o direito; se este era confuso, errático, o preço de um direito preciso, assegurado, estava em fazê-lo depender da vontade régia tornada a única credenciada a legislar. E isso tanto é nítido que o mesmo rei, na Inglaterra, propõe o fim do direito confuso, a supressão dos tribunais de jurisdições que competiam entre si, e a tese de que o príncipe não está sub lege, sob a tutela da lei, mas de que ele é quem faz a lei, e isso por um direito divino ao trono que é seu: falo de Jaime I, monarca culto, o primeiro a formular modernamente o “direito divino dos reis”, e que governava a Inglaterra quando o dr. Cowell publicou seu livro. Vemos, com isso, o dilema de um mundo em que o capitalismo procura encontrar seu caminho contra as tradições feudais e senhoriais. Para ter o direito dos contratos, é preciso acabar com o que há de instâncias representativas, com as instituições que serviam de mediadoras entre o monarca e o súdito. O absolutismo é, em maior ou menor escala, o preço que se paga pelo avanço do capitalismo. Este exige, portanto, a destruição daquilo que, na Idade Média, detinha a concentração do poder em mãos do rei. E isso ocorre por quase toda parte, exceto na Inglaterra.

Os ingleses têm então consciência de que suas liberdades, imemoriais, estão ameaçadas. Por toda a Europa, diz a Câmara dos Comuns numa reclamação dirigida a Jaime em começos de seu reinado, vê-se que as franquias dos súditos, e as assembleias que os representam, perdem importância, ao passo que aumenta o poder dos reis. Foi este o processo, procurei indicar acima, pelo qual ocorreu a modernização que mudou o regime de propriedade e o de produção. E não espanta que os ingleses receassem, nesse quadro, perder seu Parlamento, seu sistema de júri, o relativo autogoverno local: instituições mais ou menos análogas eram extintas no continente. Toda uma historiografia vai, nos séculos que seguem, mostrar como o direito romano quase triunfou na ilha, caminhando junto com as tentativas dos reis para empolgar o poder absoluto, de começos do século XVI até fins do XVII. Na verdade, examinando com maior distanciamento o que efetivamente sucedeu, os historiadores mais recentes do direito inglês, como sir William Holdsworth, escrevendo sua clássica History of English law já em nosso século,[4] concluem que nunca houve uma real ameaça de destituição da common law. Por quê, é uma questão que aqui nos escapa; mas o máximo que terá ocorrido é o ensaio de constituição de instâncias de direito romano paralelas às consuetudinárias. Contudo, de todo modo o que importa é que os contemporâneos captavam uma lógica, um nexo, em vários esforços do poder régio para expandir-se, e temiam que isso incluísse a substituição dos costumes, enquanto direito, por um sistema legal outorgado. Ora, a façanha de Edward Coke e de inúmeros outros juízes e parlamentares daquele tempo consistiu em mostrar, “atualizando” os efeitos de precedentes cuja realidade histórica era bastante duvidosa, que o direito dos contratos em economia podia ser mais bem assegurado pela representação parlamentar e pelos tribunais tradicionais do que pela absorção no rei de todos os demais poderes então dispersos pelo corpo político.

Nunca será demais insistir na importância dessa opção, que na época deve ter parecido tão estranha, um indício a mais, diria um possível modernizador continental daqueles tempos, de como a Inglaterra se aferrava a seu atraso. Por meio dela, o que fez a Inglaterra foi garantir um capitalismo sem pagar, por ele, o preço da renúncia ao autogoverno, do investimento numa realeza superdimensionada. Enfim, foi o inglês o único capitalismo importante sem absolutismo, mais que isso, contra o absolutismo. Isso, que em começos do século XVII soava estranho, em fins do XVIII tinha realizado a Revolução Industrial, ao passo que a via mais fácil, mais óbvia, a da aliança entre capitalistas e realeza, em especial na França do Rei Sol, desembocava em impasses maiores, implicando, entre outras coisas, a primazia inglesa sobre o resto do mundo. Ainda hoje, é correto dizer que os destinos distintos do capitalismo na esfera mais desenvolvida do mundo anglo-saxão e nas áreas de influência da Europa continental têm muito a ver com essas escolhas do fim da Renascença: o papel recíproco do Estado e da sociedade será diferente conforme a via traçada.

Com isso, temos mais ou menos traçado o contexto em que John Cowell se decide a falar da “prerrogativa régia”, entre muitos outros tópicos de que trata em seu Interpreter. Argumenta ele que “o rei da Inglaterra é um rei absoluto”, e o Parlamento apenas um órgão consultivo, no qual se fala (parle) mas não se decide. Essa é a passagem decisiva de sua obra, que causará a fúria da Câmara dos Comuns, a qual se mobiliza para puni-lo por ofensa aos privilégios daquela assembleia. Jaime, porém, adota uma solução espertíssima: manda apreender o livro por uma proclamação fundada, exatamente, na prerrogativa régia. O jurista, afirma el-rei, intrometeu-se na questão do poder real “mais do que cabia a um súdito”: sua obra deve ser destruída, e de fato o é pelo carrasco, por “intrometer-se nos mistérios da realeza”. Assim, é exatamente por uma extensão do argumento de Cowell que o monarca reprime suas ideias. O Parlamento, é evidente, preferiria uma punição do civilista que evidenciasse os poderes das câmaras em matéria legislativa, seu lugar na esfera constitucional inglesa; de certa forma, o ponto comum entre Cowell e a Câmara dos Comuns está em pretenderem ambos, embora em direções opostas, uma definição do peso relativo das instituições na vida política inglesa. Jaime efetua essa definição, é verdade, mas de forma menos clara que Cowell. Ao proclamar que são “mistérios” os pontos essenciais referentes ao governo e ao Estado, ele reduz o alcance dos Comuns e na prática referenda as teses de Cowell sobre a franca superioridade do rei em face das câmaras e, mesmo, da lei. (Na mesma década, ocorre um famoso enfrentamento de Jaime e de Coke, então presidente de um dos três tribunais superiores do reino: quando o jurista se atreve a dizer que o rei está acima de todos os demais homens, mas se encontra sub lege, Jaime tem um acesso de fúria e humilha-o; pouco depois, o rei demitirá seu juiz mais famoso e dessa forma o encaminhará para uma carreira de deputado, diríamos hoje, de “oposição”. Estar acima da lei, na qualidade de seu autor, era uma das pretensões de Jaime.) Mas há pelo menos um matiz diferenciando o que é dizer que o monarca é absoluto e afirmar que a realeza se assenta em mistérios. O absolutismo é uma doutrina de soberania. Ele teoriza a política, e o faz mediante um discurso, obviamente, público. Já uma realeza dita misteriosa escapa, por princípio, ao discurso e à esfera pública. Podemos ter o absolutismo justificado no direito divino, como ocorrerá na soma dos esforços de Luís XIV e Bossuet, mas a diferença de matizes ou de ênfase que apontamos é significativa.

Os mistérios da realeza — arcana imperII, dirá o procurador-geral de Carlos I — são assimilados, pelo filósofo Francis Bacon, ministro de Jaime, ao véu que no tabernáculo impedia o acesso do vulgo ao Santo dos Santos. Nenhum súdito, nenhum particular mas tampouco nenhum corpo constituído ousa invadir esse espaço sagrado. Evidentemente, doutrinas da realeza sagrada existiam desde a Antiguidade, e a conquista da Ásia por Alexandre Magno trouxe para o mundo helênico, habituado a ter reis que governavam homens, a figura desmedida daquele que se afirma deus e pretende rebaixar seus súditos a algo como escravos ou animais; a divinização do poder continuará, de que dão fé, em Roma, as apoteoses dos imperadores, alguns deles incluídos no Panteon já em vida. Mas o cristianismo, sendo um monoteísmo e fazendo o trânsito entre o humano e o divino passar pela paixão de Cristo, o Deus encarnado, torna inadmissível um homem dizer-se deus; é certo que ocorre uma imitatio Christi a seu modo, uma mimese de Deus-Filho pelos reis, como estudou Ernst Kantorowicz num livro fundamental,[5] mas nada disso se compara àquelas frases de impacto que desde 1598 Jaime, então rei apenas da Escócia, vai pronunciando sobre uma realeza de direito divino: os reis não são apenas vigários ou representantes de Deus na Terra, mas Deus mesmo os chama de deuses (em alusão ao salmo 82); a própria maldade de um monarca não autoriza a sua destituição, porque, como nos diz o livro I de Samuel (capítulo 8), os judeus souberam, por seu último juiz e por Deus mesmo, que poderes teria o rei que eles pediam, e aceitaram — mais que isso, quiseram — ser governados por alguém que tomaria suas filhas como perfumistas (leia-se: concubinas) e seus filhos como criados, alguém, em suma, que lhes negaria direitos e respeito, e os trataria a seu capricho. Não cabe, por isso, ao contrário do que se pensava na Idade Média, entender que um monarca perde seu direito de reinar se foge aos ideais do buon governo ou do rex justus et bonus. Desse discurso de Jaime, o do direito divino dos reis, pode ter havido — e houve — prenúncios, mas é ele o primeiro a ser eficaz de forma duradoura no Ocidente, abrindo um período de alguns séculos no qual os reis poderão dizer que reinam “por graça de Deus”. Ora, isso estabelece, entre eles e seus súditos, um corte radical; não é fortuito que a distância se assemelhe àquela marcada pelo tabernáculo, e que todo aquele que, mesmo inadvertidamente ou sem propósito, viole o tabu da separação entre o homem e o sagrado deva sofrer as consequências de algo que passa a ser visto como sacrilégio. Dizíamos, antes, que Coke foi para a oposição; mas isso tem que ser bem entendido, porque a oposição era, por si mesma, já sacrílega: uma articulação de seus membros seria difícil e perigosa, e criticar a política do rei, ainda que indiretamente (o topos é: o monarca é bom, porém seus ministros o aconselham mal), podia ser traduzido como uma profanação do território reservado ao Altíssimo.

Podemos ir mais longe. Seria equivocado pensar que a tese do mistério régio constituísse apenas um adjetivo acrescentado a uma doutrina do poder forte, uma espécie de rótulo somando-se a uma teoria que em seu cerne sustentasse outras teses, passíveis de se expor independentemente do segredo sagrado de que falamos. Na verdade, o mistério é o cerne mesmo da realeza agora em nova chave. Dizendo de outro modo, o segredo em torno da governação constitui o privilégio principal do rei pós-medieval. Não se trata de uma cautela adicional com os procedimentos usados no governar, da ordem da prudência; a essência mesma do poder régio passa a estar em enclausurar-se no mundo sacro. Embora uma doutrina como a da ragion di Stato, a razão de Estado, não se confunda com a dos “mysteries of kingship”, pela ênfase que uma dá à razão e outra confere a mistérios, o fato é que ambas compartilham esse recorte nítido entre aquele que detém a razão e/ou o mistério — o rei — e aqueles que estão privados do conhecimento, pouco importando que este proceda das faculdades racionais ou de um acesso direto, provavelmente revelado, ao sagrado.

Tal recorte se liga ao governo paternal. O rei é assimilado, vezes sem conta, a um pai. Foi um passo decisivo do direito medieval conceber a relação entre o príncipe (ou, inicialmente, o bispo e o papa) e seu Estado (antes, a diocese ou a Igreja) nos moldes de um casamento. Se a respublica, a diocese ou a Igreja inteira é a esposa, isso determina que seu marido, seja ele rei, bispo ou papa, não é proprietário, mas apenas tutor, de seus bens. Esse princípio foi uma das bases para impedir que o patrimônio público não fosse tomado, como propriedade privada, por quem transitoriamente o administra. O resultado é notável, porque protege o que é público daquele que o governa, e assim constitui uma das bases para distinguir o Estado, que permanece, do governo, que transita. Mas a imagem utilizada merece nota, porque presume que a mulher seja minor perpetua, que jamais se alce à maioridade e portanto, para sempre, necessite de tutela; e o que vale para ela vale para todo aquele que entra numa relação de poder sem ter, ele mesmo, o poder — para todos os que são subditi, súditos, aqueles a quem se põe sob o poder, em quem se manda.

Em suma, se dessa forma o patrimônio coletivo foi preservado contra o governante do momento, a liberdade não conheceu cuidados comparáveis. Para preservar o bem comum, entendido antes de mais nada como bem, sacrificou-se a liberdade dos que estão sub, talvez — penso no uso que em seu recente La mésentente Jacques Rancière faz da ideia de tort [6] — porque se entenda que a liberdade em seu cerne causa um tort, um dano a alguém, talvez, traduzindo, porque a liberdade faça mal.[7] É como se, usando a linguagem de nossos dias, a questão fosse preservar os bens e proteger-se do mal: sustentar o patrimônio, não por acaso o que nos transitou dos bens do pai, dos bens que transmitem o patronímico, o nome do pai, e para isso, no mesmo movimento, evitar o que pode vir de mal. O bem é o que vem do passado, é o esperado, enquanto a liberdade é o que se abre para o futuro, o inesperado, o imprevisto, o perigo.

Ora, o que fica, para Jaime, do casamento que funda simbolicamente o peso recíproco do governante e do governado, do homem que sabe a mulher perpetuamente ignorante e a protege (a ela, que por isso mesmo tem de ser protegida também dele, sendo o poder masculino por isso mesmo da ordem da tutela), é esse descompasso radical entre quem manda e quem obedece. O par de opostos pode ser ampliado: homem/mulher, mando/obediência, razão/ignorância, conhecimento/inocência, governante/súdito, sagrado/humano. O importante é a alternância da figura do pleno, na qual se pode inscrever o mal, e da figura do vazio, que se beneficia da presunção de inocência mas não pode empreender nada. É fundamental lembrarmos que a grande mudança de Jaime, em face do legado medieval, está em dois pontos. O primeiro é que seu rei passa a ter um plenum de poderes sem comparação na Idade Média; de modo geral, os seus predecessores que tentaram coisa parecida deram-se mal (por exemplo, Ricardo II, que dizia portar as leis em seu coração, que pretendia ter o seu placere, sua vontade, como suficiente causa eficiente para legislar). O segundo é que, enquanto a Idade Média subordinava a legitimidade do rei a ser ele justus, bonus, a governar bem, isto é, segundo a moral legada pela religião, Jaime usa como modelo para introduzir seu rei divinizado as figuras bíblicas dos maus reis, os do Salmo 82 e do livro I de Samuel. Isso se entende facilmente. Se a realeza estiver condicionada a uma qualidade religiosa, quererá isso dizer que sempre será possível destituir um rei, desde que ocorra uma prévia destituição sua por meio da linguagem. A linguagem será o campo de batalha: constituindo o rei de quem discordamos como tirano, daí à sua deposição somente se terá que dar um passo. É preciso, se queremos assegurar a monarquia, e isso ainda mais num mundo do qual desapareceu o consenso pretendido por uma universitas christiana, por uma cristandade homogênea, fraturada desde a Guerra dos Cem Anos e cindida decisivamente pela Reforma, é preciso, repetimos, que o rei esteja a salvo de qualquer destituição linguajeira. Não pretende Jaime, é claro, exaltar o mau rei. O que ele quer é negar que haja alguma jurisdição humana com poder para julgar algum rei. As palavras que ele cita do Velho Testamento são veementes na crítica que Deus dirige aos monarcas, mas explicitam — ou implicam — que o juízo sobre estes pertence somente ao Todo-Poderoso.

Feita essa ressalva, porém, o fato é que a plenitude atribuída ao rei vem junto com a maldade enquanto um seu potencial. O plenum traz como possibilidade o mal, ao passo que a inocência se aloja lá onde está o vazio, mas um vazio de princípio, que não se preencherá, a não ser, paradoxalmente, alojando um mal que lhe vem de fora, um mal que não se pode conceber como nascendo ali mesmo.

Essa leitura, porém, que acabo de propor tem o leve problema de um pequeno anacronismo. Na verdade, o que fiz foi infletir a relação que Jaime estabelecia entre os termos do pleno e do mal. Para o primeiro rei Stuart, o mal permitia estabelecer o pleno. Era excluindo a temática do bom governo, isto é, descartando o bem enquanto condição para o poder legítimo, ou seja, declarando tanto o mal como o bem neutros em relação ao fundamento do poder, ou ainda, aceitando que um poder pudesse ser mau sem com isso deixar de ser legítimo, que Jaime efetuava essa derivação. Se o mal era indiferente, tanto quanto o bem, na fundação do poder legítimo, isso significava que operacionalmente o mal funda o bem. Digamos que, estruturalmente, nem o bem nem o mal fundamentam o poder, mas que operacionalmente é o mal que passa a fundá-lo, na medida exata em que exclui a anterior fundação do mesmo no bem. Ora, o que propus acima é uma inflexão nesse esquema. Em vez de considerar que o mal funda o pleno, sugeri que ou bem o pleno estabelece o mal, ou que vêm ambos juntos, desenhando a ideia de um poder forte, soberano, que de certa forma engloba bem e mal, e por isso mesmo se contrapõe a uma inocência que se constitui enquanto carência.

O inocente é aquele a quem falta algo, e por isso mesmo, ignorando, desconhecendo, precisa ser regido. Dos Santos Inocentes que morreram por Jesus, até as figuras mais modernas da inocência, fica essa associação da pobreza de espírito, da carência de razão e de vontade, e ao mesmo tempo de algo que é valorizado: paradoxalmente, algo que recebe conotação positiva, enquanto valor, justamente porque está tomado pela carência, isto é, pelo negativo. O inocente é um não: não tem razão, vontade, história, autonomia; e por isso pode ser estimado positivamente. É como se a positividade do valor a ele atribuído compensasse a negatividade de seu ser. Já o mau é aquele que está na plenitude. Por ter razão, vontade, história, capacidade de decisão, não pode ser tutelado. Não é à toa que o enunciado de seu poder, “Vós sois deuses”, na frase que Deus dirige àqueles que Jaime entende serem reis (no Salmo 82), prontamente engata numa censura divina: sois deuses e no entanto agis mal, pecais, sereis punidos (mas somente por Deus, excluindo-se toda jurisdição humana). Há algo de prometéico nessa figura do homem pleno e mau, do homem pleno e fadado ao castigo no Além: como se apenas pudessem beneficiar-se da salvação aqueles humanos que aceitassem seu estado de carentes. O rei — mas, de novo, pode ser que esta seja uma inflexão de nossos dias a enfatizar[8] algo que naquele tempo terá sido captado de outro modo —, sendo aquele que conhece, está fora da inocência e é introduzido pela culpa. É seu o segredo, o acesso aos mistérios do Estado mas, por isso mesmo, é sua a culpa. O conhecimento das coisas do poder, mais ou menos como a ciência do bem e do mal prodigada por certa árvore proibida no Paraíso terrestre, traz consigo uma certa maldição. O homem que se emancipa da tutela divina, para conhecer por conta própria o bem e o mal, comete o pecado que se chama original: não apenas o primeiro pecado, mas aquilo que está na origem dos pecados, seu fundamento, e, mais que isso, aquilo que está na origem em geral, ou seja, na origem da humanidade.

A única maneira de romper com uma figura de governante que tem uma programação prévia, que está regrada de antemão pelas leis do bem cristão, depende pois de se estabelecer uma nova relação com o mal, de admiti-lo. Um pacto com o mal parece assim ser a condição — fáustica — para emancipar a ação do governante. É quando o rei pode ser mau, sem deixar de ser rei, que realmente sua vontade triunfará:[9] ou seja, operacionalmente, o que faz sua vontade vencer, o que o emancipa, de rei fazendo-o passar a soberano, é o mal enquanto possibilidade nova (o que recorda, está visível, Maquiavel e seu Príncipe que deve aprender a poder ser mau[10]). Mas notemos que essa nova oportunidade do rei depende, também, de um recorte claríssimo e insuperável, aquele que ao mesmo tempo que institui a culpa no horizonte do rei exclui sua culpabilização pelos homens. O rei é dito talvez mau (portanto, é dito também mau), e de pronto se acrescenta que ele não pode ser punido pelos homens. Aos homens está vedado tirar as consequências da maldade do rei. Esta é proclamada, mas conhecê-la (no sentido jurídico: instruí-la penalmente) é proibido aos homens, isto é, aos súditos. Isso porque no gênero humano se efetuou um recorte que distingue os súditos, que passam a ser o mesmo que homens, e os reis, que foram alçados a deuses. Sem exagero, cabe dizer que o poder se torna desumano, na medida em que o exercem seres que, sendo divinizados, perderam a humanidade; e que a humanidade passou a ser sinônima da sujeição, isto é, de uma posição subalterna nas relações de poder. O poder divide, em suas duas pontas, o meramente humano do divino.

Uma série de divisões bastante acentuadas assim se estabelece ou, em alguns casos, se desloca sensivelmente. Antes, havia uma separação entre o bem e o mal, entre a realeza justa e a tirania, e o rei funcionava, a meio caminho entre o homem e Deus, como Cristo;[11] toda essa topologia se modifica. O rei ocupa o lugar de Deus, com isso deixa a sua posição mediana entre os homens e o Criador, larga o que lhe restava de humanidade, mas assim também engloba o bem e o mal em sua figura. Insisto em que antes havia clivagens pronunciadas, as quais porém se alteram agora. Com isso, por um lado, elas se tornam mais pronunciadas ainda: deixa de caber Cristo no esquema. Um mediador entre os homens e Deus perde sentido; não é casual que Jaime, em vez do Novo Testamento, se valha essencialmente de passagens do Velho. Seu rei, depois de ser dito vigário e representante de Deus (o que o deixaria mais próximo da concepção cristã, embora esta não apresente Cristo — com raras exceções, como a hobbesiana — enquanto representante de Deus pai), implicitamente nega que ele o seja: por Deus mesmo, acrescenta, são eles chamados deuses. Os reis não são vigários de Deus, como o papa; são deuses mesmo. Ou quando muito, se assim o quisermos ressalvar, são nominados como deuses, mas isso por Deus mesmo, o autor da única linguagem perfeita, daquela que diz as coisas mesmas, sem falta nem sobra.

Por outro lado, contudo, as divisões talvez percam parte de sua nitidez. Um recorte fundamental antes clivava o bem e o mal, separando Deus e a danação eterna, o rei e o tirano. Agora, tudo isso que cindia o exercício do poder pelo rei, em nome de uma autoridade moral e religiosa, a única capaz de legitimar ou condenar a política e a governação, é descartado. Para que o poder se emancipe dessa autoridade religiosa, para que se torne soberano, é preciso mesclar bem e mal, negar ao homem — isto é, ao súdito — competência, no sentido técnico e no jurídico, para conhecer, também nos sentidos técnico e jurídico, o que é justo ou injusto, bom ou mau, na ação do príncipe. Em suma, e reiterando, os dois movimentos se implicam reciprocamente. Foi preciso separar os homens do novo deus, cortando as pontes que antes estabeleciam sucessivas mediações, passagens menos abruptas que escalonavam do humano ao divino, passando pelo rei, pelos anjos etc.; foi preciso também cortar a jurisdição humana sobre o bem e o mal; e com isso o poder dos reis foi ampliado ad infinitum, já sem mais limites, na indistinção entre bem e mal, numa espécie de além do bem e do mal que, contudo, chegando o rei ao Além, se verá substituído por um juízo do bem e do mal, só que divino e de nós tão desconhecido, tão absconso, quanto qualquer outro desígnio de Deus.

Essa indistinção do bem e do mal é o que garante na realeza, por imitação de Deus, o oculto, o segredo, o que excede a compreensão das cria turas comuns: é ela que institui a realeza enquanto mistério. Desconhecemos em que consiste governar, eis a palavra-chave; os mistérios nos escapam. Mas isso não significa que se furtem a nós temporariamente, como um desconhecido ainda ignorado, e sim que estão vedados a nosso conhecimento por princípio. É esse o caso, embora controverso, da cura das escrófulas por imposição das mãos do rei, costume praticado na França e na Inglaterra da alta Idade Média até que, num país e noutro, o poder régio se viu limitado pelo Estado de direito, pelos direitos humanos, por uma soberania popular, ainda que apenas esboçada. Pouco importa se o poder atribuído ao rei de curar essa afecção da pele tocando o doente vem de um segredo a ele transmitido por seu antecessor ou se, mais provavelmente, seria algo inerente à própria condição régia, decorrendo dos rituais de sagração: o fato é que a cura do King’s evil delineia uma esfera em que o mistério incide sobre o físico, em que a realeza resolve males deste mundo.[12] A diferença é que a doutrina dos mysteries of kingship dará extensão bem maior, no exercício legítimo do poder, ao misterioso. Na cura das escrófulas, temos simplesmente a restauração da saúde, isto é, a restituição de um bem notório em lugar de um mal evidente; tudo é nítido, é distinto. Já nos mistérios da realeza, temos um espaço em que não podemos saber, nós, humanos, exatamente o que é bem, o que é mal. Essa nossa incapacidade de conhecer e de julgar o bem e o mal em matérias de Estado coincide com a monopolização, por Deus, de tal poder no que diz respeito aos reis.

Já propus, em outro lugar, que a posição respectiva de cada instituição, numa sociedade na qual o poder legítimo assim evoca o mistério, estaria ligada à relevância dos segredos que tem a resguardar. Isso se evidencia na disposição de sir John Eliot a morrer na Torre de Londres, o que acontece em 1632, em vez de pedir perdão ao rei por ter se oposto à sua política no Parlamento precedente,[13] mas também na discussão, em torno de 1641, sobre o que é o privilégio do Parlamento. Porque, se existe por um lado a praero gativa regis, aquela área de decisão indeterminada mas extensa na qual o rei pode suspender o curso ordinário das leis e das instituições para agir de forma extraordinária e absoluta, há por outro lado o privilégio dos deputados aos Comuns e dos Lordes de falarem (de parler, como convém a um Parlamento) a seu critério, o qual deriva, aliás, do papel da assembleia enquanto órgão que dá o conselho para depois aprovar o auxílio. O consilium se prodiga em palavras, para posteriormente resultar em auxilium, isto é, em imposto. Conselheiros — e este parece ser o sentido inicial do Parlamento, antes mesmo de ir passando, pouco a pouco, de câmara consultiva a deliberativa — têm o direito de falar sem castigo nem maiores limitações. Uma franquia de fala é essencial. Mas essa fala não significa o direito dos parlamentares a terem seus discursos publicados. Como conselheiros, não podem ser punidos pelo que dizem ao rei, ou pelo que discutem entre si, mas seus debates não são públicos, e difundi-los pelo reino seria pouco legítimo.

Os deputados são, pois, representantes do reino, mas para falar ao rei e não para prestar contas a seus representados. A ideia de retornar suas vozes aos que os instituíram como representantes não tem muito cabimento. O privilégio de fala dos parlamentares significa que, se o rei não os pode punir pelo que disserem nas duas casas, e se no caso dos Comuns, a cujas deliberações o monarca não assiste (ele tem direito de ouvir os seus pares, os Lordes), é também ilegítimo relatar ao rei o que um ou outro dos deputados disse dele ou do reino, além disso também é inadmissível divulgar ao povo as posições de cada deputado nos Comuns. Isso é o que deixará indignado Edward Hyde, o futuro conde de Clarendon, que no início do Longo Parlamento se senta com a oposição antes de esta se radicalizar: Hyde faz, porém, parte da minoria que se recusa a ir a ponto de acabar com os bispos na Igreja anglicana, e sua revolta se dá quando a maioria vitoriosa publica os nomes de quem votou de um jeito ou de outro. Fica evidente, por seus comentários, que denunciar os deputados ao rei ou ao reino, ao monarca ou aos commoners, plebeus, que os Comuns representam, é igualmente inaceitável. Os segredos fazem parte da instituição. Ela é corporativa com todo o rigor: funciona interna corporis. Uma ideia de que preste contas a seus comitentes é tão duvidosa quanto a de prostrar-se diante do rei.

Mas o maior de todos os segredos é o dos reis. Se os juízes, admite Jaime, são quem melhor conhece o “mistério” em que consiste a common law, o mesmo rei declara que sua prerrogativa, que é “mistério de Estado”, situa-se acima dos segredos apenas judicantes. Discutir o que Deus pode é ateísmo e blasfêmia, assim como é “muita presunção e desacato” um súdito debater os poderes de um rei. São os arcana imperii, que o procurador-ge ral de Carlos I comparará aos arcana Dei. Não é por acaso que se diz que a distinção entre o poder ordinário do rei e seu poder extraordinário (ou absoluto, isto é, solutus, solto das leis, não dependendo delas) espelha a distinção entre dois poderes de Deus. O Altíssimo possui um poder ordinário, que é o do curso ordinário das coisas, e outro poder, a ele superior, que é o de quando intervém no mundo excepcionalmente, suspendendo a rotina que Ele mesmo instituiu: esse poder de exceção é o do milagre. E, assim como Deus pratica milagres, pode também o rei fazê-los, dirão alguns defensores do direito divino dos reis. O excesso em relação à lei faz parte desse rei miraculoso.

Onde fica Hobbes em face dessa política do segredo e do milagre? Examinemos duas teses suas que mostram, à saciedade, como é precisamente neste ponto que o simpatizante do poder absoluto dos reis corta o contato com aqueles a quem defende ou, pelo menos, cuja causa faz vibrar os seus sentimentos. Serão as teses da curiosidade e do milagre.

O milagre está, no século XVII e sobretudo entre os protestantes, em recuo. O mundo, sabe-o qualquer um que tenha lido Weber, passa então por um processo de laicização, ou de desencantamento. É comum dizerem os protestantes que os milagres cessaram, embora a data de seu fim varie (por exemplo, desde a Reforma, mas para alguns já bem antes dela). Hobbes é claríssimo a respeito. No capítulo XXXVII do Leviatã, a que dá o título “Dos milagres e seu uso”, vai reduzindo o que é o milagre. No capítulo anterior, “Da palavra de Deus e dos profetas”, definira quem profetiza como sendo “aquele que fala de Deus ao homem, ou do homem a Deus”, depois “aquele que prediz as coisas futuras”, e finalmente “[outras vezes] aquele que fala incoerentemente, como os homens que estão distraídos’’.[14] O humor, num filósofo que dele não abusa mas dele não está tampouco privado, é evidente. Temos uma rápida enumeração que conota os sentidos mais nobres do profetismo (aqueles em que se é porta-voz de Deus) com uma acepção pejorativa ou pelo menos sarcástica: como distinguir se a fala é a mais sagrada ou apenas incoerente? Como separar o profeta do louco? A resposta é que se distingue o verdadeiro profeta por duas regras básicas, “a conformidade doutrinária com o que Moisés, o profeta soberano, havia ensinado”, e “o poder miraculoso [grifo meu] de predizer o que Deus ia fazer acontecer”.[15] Resumindo, o profeta não pode pregar nenhuma novidade doutrinária; só vale como legítimo aquilo que não acrescenta nem tira nada àquilo que já foi enviado de Deus aos homens; e o milagre, como fator adicional a endossar seus ditos, não está portanto credenciado a validar nenhuma nova doutrina. O milagre é, rigorosamente, estéril. E todo o capítulo seguinte, ao tratar do “uso” dos milagres, evidencia que estes mais visam conquistar a fé dos seus espectadores do que lhes trazer algum novo conhecimento. Em suma, o milagre faz parte do que poderíamos chamar, no uso corrente do termo, a retórica do divino, mas sem chegar a constituir conhecimento ou, sequer, sua transmissão, quer pela razão, quer pela revelação.

Essa esterilização do milagre vem de par, em Hobbes, com a doutrina da predeterminação de tudo o que acontecerá. Essa é uma teoria delicada de se divulgar, e por isso mesmo aparece apenas insinuada nas grandes obras, como o Leviatã; seu local de maior desenvolvimento é a polêmica com o bispo Bramhall, que Hobbes desejava ficasse em sigilo por tratar de questões perigosas para o vulgo, como a liberdade, a necessidade e o acaso. A tese da predeterminação não se confunde com a da predestinação, que é uma dou trina religiosa, sobretudo calvinista, segundo a qual desde toda a eternidade o Criador decidiu quem será salvo e quem, condenado. De acordo com a predeterminação, Deus, ao criar o mundo, já determinou tudo o que suce deria em toda a eternidade — não apenas o destino das almas, mas o funcionamento de todas as coisas. E isso se entende não apenas pela onisciência e onipotência de Deus, que desde sempre tudo pode e tudo sabe, mas sobretudo por uma compreensão mecanicista da causalidade. Nada se efetua sem ser causado por algo que o antecede. A causa é anterior ao efeito e este é produzido, por inteiro, pelas causas anteriores. Daí que, tendo-se todas as causas (o que nenhuma ciência humana é capaz de ter, mas a divina é), podem-se saber todos os efeitos. Nada há, nisso, de místico ou misterioso. Este é apenas o sonho do cientista na época do mecanicismo ou, se quisermos assim dizê-lo, na época de uma doutrina mecânica da causalidade. Deus será o conhecedor de todas as causas; estar tudo previsto é somente o resultado da ciência divina, no sentido do conhecimento que Deus, que de Criador em acepção mística passa a ser causador em sentido científico, tem de Sua obra. Portanto, o milagre é dispensável e quase absurdo. Significaria que Deus, em certo momento da história, interviesse para modificar o curso que Ele mesmo definiu no início. E na melhor das hipóteses, isto é, na melhor para o milagre, na mais favorável à sua conservação, não teremos como fornecer, por nossa razão, uma doutrina que o explique. Daí que a porção que lhe cabe, na teoria de Hobbes, seja tão pequena.

Finalmente, a teoria da curiosidade. Esta era verberada por Jaime e todos os defensores do direito divino. O rei, ao mandar apreender a obra de John Cowell, reclamara em sua proclamação que os homens tinham uma curiosidade insaciável, que os fazia tentar penetrar “até os mais profundos mistérios que pertencem às pessoas e ao estado dos reis e príncipes, que são Deus na Terra”. De modo geral, o que fazem os reis é verberar os que tentam imiscuir-se no que não lhes diz respeito, advertindo-os ou alertando os demais para que não imitem seu exemplo. Carlos I, no cadafalso, dirá em 1649 que sempre tentou o bem de seu povo, mas que o bem dos súditos não consiste em dar-lhes parte no governo: o rei e o povo são coisas bem distintas. E, reinando os dois primeiros Stuart, o tribunal maior de exceção, que é a Star Chamber, constantemente adverte os súditos que se metem a tratar da coisa pública a take heed, a tomar tento ou cuidado, porque poderão ser destruídos.

Ora, é interessante que logo um simpatizante da Coroa recuse essa aversão do direito divino pela curiosidade dos homens comuns. Hobbes, 
cientista que é, dá o melhor papel à curiosidade. Numa carta de 1646 ao marquês de Newcastle,[16] diz ele que homens e animais têm as mesmas paixões uns e outros. Apenas uma paixão nenhum animal tem, que é a da curiosidade, da pergunta pelas causas, e mais que isso: quanto maior for essa paixão num homem, menor será, nele, a parte alcançada pela rapina, que constitui a suma da bestialidade. O que assim distingue o homem do animal é, mais que a razão ou pelo menos antes dela, uma paixão propriamente humana ou, para usar uma linguagem antropológica de nosso tempo, humanizadora. Na verdade, a razão, a ciência e tudo o que se segue somente serão possíveis a partir da paixão que lhes abrirá lugar. Hobbes, sabemos, entende o homem como um ser de paixão, mais que por uma razão soberana. Uma paixão assim o distingue de tudo o que se bestializa. Não espanta, então, que ele negue o recorte radical que Jaime e os defensores do direito divino estabeleciam entre os homens, pondo de um lado o rei com seu conhecimento revelado ou consagrado sobre os “mistérios” do poder, de outro os súditos a quem todo conhecimento a esse respeito estava vedado. Se Hobbes não escreve livros para os príncipes, mas para os súditos (já foi comentado que Maquiavel escreveu O Príncipe, e ele Do cidadão), é porque espera destes que alcancem a ciência. Uma ciência que os ensinará a obedecer, sem dúvida, mas que nem por isso deixa de ser ciência, e que deduz a obediência a partir de seus próprios interesses. Por maior que seja a obediência assim alcançada, ela deixa obviamente de ser um mandamento incondicional, e por aí se torna inaceitável para uma doutrina religiosa do poder, como a do direito divino dos reis.

Disso, o que concluímos no tocante à razão, pivô deste ciclo de conferências? A doutrina do segredo e do mistério em torno do governo, que apontamos no primeiro grande teórico do direito divino dos reis, Jaime I, não é uma teoria sobre a razão. Embora faça lembrar a teoria, que dela não se afasta muito no tempo, da ragion di Stato, não se trata de uma razão atribuída ao governante em descompasso com a irracionalização dos súditos. Se estes, numa e noutra doutrinas, aparecem como carentes de conhecimento, a natureza desse saber que lhes vem é muito distinta. Nas ideias do segredo e do mistério, o saber é de ordem mística, possivelmente revelado, seguramente decorrendo da sagração ou da hereditariedade, que são formas pelas quais a voz de Deus chega a nós.

Ora, se os mistérios da realeza repelem ser caracterizados como doutrina racional, contra eles é que Hobbes propõe sua apologia da curiosidade e da ciência política. Aqui, sim, temos a razão em funcionamento, por isso mesmo baseando a nova política nos interesses dos súditos (ter a vida salva) e no seu contrato (a vontade dos de baixo assim fundando o poder de cima). Pouco importa que esse poder seja, de preferência, dos reis: o fato, que incomoda profundamente os monarquistas no século XVII, é que parece valer pouco uma defesa, ainda que decidida, do poder ilimitado dos reis se assume por fundamento a razão, o interesse, o contrato. A oposição entre Hobbes e os defensores do direito divino não é pequena.

E no entanto, para concluir, Hobbes não é bem um racionalista. Além de toda a sua insistência no caráter convencional da linguagem e da razão, no seu caráter também de artifícios, basta lembrar que o homem se distingue do animal nem por ser zoon politikon (o que claramente nós não somos) nem mesmo por ser animal racional. É como se, perguntando Hobbes o que faz o homem desejar conhecer, ele não acentuasse o segundo verbo, mas o primeiro. A tradição do animal racional acentua o verbo conhecer, e entende que aí já está, por completo, a pulsão. Hobbes parece dar maior importância ao desejar. Daí que o conhecimento, a razão, a ciência, para se entender por que e como pulsam, exijam que saibamos que paixões os ativam. O desejo de saber, eis por onde nosso filósofo desmonta os mistérios e segredos da realeza.

Notas

[1] Este artigo retoma alguns pontos trabalhados por mim em Ao leitor sem medo — Hobbes escrevendo contra o seu tempo (São Paulo, Brasiliense, 1984), dando-lhes novo enfoque. Para o exame pormenorizado do tema nos autores da época, com citações, análise de texto e bibliografia, remeto em especial aos capítulos V, “O triunfo da vontade”, em especial pp. 133-46, e I, “O gêmeo do medo”, em especial pp. 34-41.

De todo modo, procurei evitar aqui simplesmente repetir o que foi dito naquela obra, de modo que os tratamentos em ambas são distintos e complementares.

[2] “Coke and the rise of economic liberalism”, Economic History Review, 6 (1), 1935, 
pp. 30-44.

[3] Em seu As origens intelectuais da Revolução Inglesa, São Paulo, Martins Fontes, 1992.

[4] Ver a edição em dezessete volumes da Methuen, 1970-2.

[5] The king’s two bodies: a study in medieval political thought, Princeton, 1957.

[6] Paris, Galilée, 1995. Tradução brasileira: 34 Letras, 1996: O desentendimento.

[7] Não, está claro, no sentido de que ela faça o mal, mas no de que ela perturba, danifica, agride: de que faz mal.

[8] Insisto que o anacronismo, que há, está na ênfase e não no conteúdo. O que hoje efetuamos como leitura não se afasta do texto. Mas a historicidade cambiante deste deve muito às ênfases que mudam com os tempos.

[9] Ver o capítulo v, “O triunfo da vontade”, de Ao leitor sem medo.

[10] O Príncipe, capítulo XV.

[11] Antes de ser deus, o rei foi Cristo: Ao leitor sem medo, p. 138.

[12] O livro de referência é, obviamente, Os reis taumaturgos, de Marc Bloch.

[13] Ver Ao leitor sem medo, p. 136.

[14] Na excelente tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo, 1973, Abril Cultural, p. 254; na edição Penguin do Leviathan, p. 456.

[15] Leviatã, p. 261; Leviathan, pp. 467-8.

[16] English works, VII, p. 467, comentada em Ao leitor sem medo, pp. 34-5.

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