1994

Constelações

por Adauto Novaes

A natureza da Arte e do Pensamento põe em risco qualquer comparação. Se o trabalho de pensamento e o trabalho da obra de arte parecem tão distantes, se a obra de arte tem realidade própria e se distingue facilmente das outras atividades humanas, um e outro têm, entretanto, um destino comum: o desejo da experiência desmesurada do obscuro e do ausente. Pensar é passar do conhecido ao desconhecido — ir além dos signos; escrever um poema ou pintar um quadro é buscar o outro lado de uma presença: um e outro tentam, pela experiência, “levantar a ponta de um véu, mostrar aos homens um lado ignorado ou antes esquecido do mundo que habitam”. A metáfora de Diderot designa mais o saber do que o prazer estético, observa Starobinski: “Mas, para Diderot, o prazer estético é uma modalidade do saber”. Mas um saber que pede a retomada; a coisa desvelada continua incerta e exige de nós mais trabalho, porque o pensamento e a obra de arte são constituídos de promessas permanentes, que exigem de nós atenção:

Sabina Popea corre o risco de que seu rosto desvelado decepcione seus amantes; ou que seus grandes olhos abertos e oferecidos lhes pareçam ainda cobertos por um sombrio véu… Por ter impetuosamente respondido à sedutora velada, nosso olhar se lança para além do corpo possível, torna-se presa do nada e se consome na noite. Sabina Popea (no “retrato” feito por um mestre desconhecido da Escola de Fontainebleau) deixa ver seu corpo sob o véu, e sorri: ela não é culpada. Seus amantes não morrem por ela, morrem pelas promessas que não cumpre.

Um poema, uma pintura, uma sinfonia significam, portanto, mais do que o segredo do gosto ou a expressão da sensibilidade: o oculto inscrito em toda obra de arte e em toda obra de pensamento fascina e nos dá a pensar. Da mesma maneira que a obra de arte, a obra de pensamento nos ensina que jamais podemos ser espectadores dos nossos próprios pensamentos a menos que consideremos o pensamento como a construção repetida e sem originalidade do “mundo interior” ou a seqüência de razões objetivas bem encadeadas.

Artepensamento procura ir além das palavras e pensa com Michaux: “Identificam-se sempre os pensamentos com as palavras como se não houvesse outros meios de expressão […]. Gestos, mímicas, sons, linhas, cores, eis os meios primitivos puros, diretos, da expressão”. Frase sem palavras, escreve ainda Michaux, “corda que se desenrola indefinidamente. Quis desenhar a consciência de existir e a passagem do tempo”.

Assim é, pois, Artepensamento: através de diferentes formas de expressão, a busca da realidade oculta do pensamento. Leonardo da Vinci, Santo Agostinho, Michaux, Eisenstein, Hegel, Rousseau, Duchamp, Seurat, Nietzsche, Valéry, Joyce, Schönberg, Matisse, Cézanne, Borges, Benjamin, Fernando Pessoa, Thomas Mann, Heidegger e tantos outros presentes neste livro estão, evidentemente, longe de circunscrever, por si só, o destino da relação entre Arte e Pensamento. Mas eles constituem um bom resumo das diversas constelações que compõem o livro — arte do Renascimento, os filósofos, a radicalização da estética burguesa, poesia e prosa, as relações do pensamento e da linguagem com as imagens etc. Neste livro, a idéia de constelações apresenta-se como um método: nem arte nem pensamento impõe-se como primeiro. De onde se conclui, como observa Adorno, “que se deve recompor o todo a partir de uma seqüência de complexos parciais, todos tendo, por assim dizer, o mesmo peso ordenador proporcionalmente, de uma maneira concêntrica. A idéia vem de uma constelação, não de uma sucessão”. Em Arte-pensamento, cada constelação procura abordar momentos importantes da história da arte e resume as experiências do espírito da sua época. Elas permitem o confronto da tradição com o novo e fazem não apenas uma reflexão sobre a arte, mas também sobre o pensamento através das artes. A estrutura do livro é dada, pois, pelos artistas que refletiram sobre as artes. Pretende-se, portanto, fazer um breve percurso da história da arte tendo como referências a obra e o pensamento do artista, mas não no sentido ingênuo de confrontar o trabalho da obra com aquilo que ele escreveu. O que o artista-teórico tenta é responder às questões postas pelo seu tempo. Na realidade, a cisão entre Arte e Pensamento nunca se pôs como problema para os grandes artistas, como nos lembra Sergei Eisenstein: “Assim começou para mim uma ‘vida dupla’, na qual se conjugaram a cada instante a atividade criadora e a atividade analítica, o comentário da obra através da análise, e a verificação de minhas hipóteses teóricas através da obra”. Alguns críticos podem argumentar que a arte seria mais originária nos seus silêncios e que a função do pensamento está no dizer. Ora, Paul Valéry, que foi um artista superior e um dos mais argutos teóricos do nosso tempo, dá a resposta:

Alguns chegam a pensar que a meditação sobre a Arte, o rigor do raciocínio aplicado à cultura, só podem pôr a perder um poeta, uma vez que o principal e mais encantador objeto do seu desejo deve ser o de comunicar a impressão de um estado nascente (felizmente nascente) de emoção criadora que, pela virtude da surpresa e do prazer, possa indefinidamente livrar o poema de qualquer reflexão crítica.

A questão está, pois, na maneira pela qual artistas e teóricos tentaram superar esta cisão entre Arte e Pensamento. Dois pensadores contemporâneos foram radicais na crítica ao dualismo: tanto para Valéry quanto para Merleau-Ponty, Arte e Pensamento são indivísiveis, constituem um campo (“quiasma”, “vegetação”, “entrelaçamento”, como diz o filósofo, “mistura” de recursos emotivos com as propriedades práticas e diretamente significativas, para o poeta). Valéry diz:

O dever, o trabalho, a função do poeta consistem em pôr em evidência e em ação as potências do movimento e do encantamento, os excitantes da vida afetiva e da sensibilidade intelectual que se confundam, na linguagem usual, com os sinais e os meios de comunicação da vida ordinária e superficial. O poeta dedica-se a definir e a construir uma linguagem na linguagem…

Uma linguagem na linguagem só é possível, pois, se considerarmos que a obra faz parte do campo e se, neste campo, houver o trabalho de pensamento, se dermos, por exemplo, à palavra poesia dois sentidos e dois elementos que a constituem: designa, de um lado, como afirma ainda Valéry, inicialmente, certo tipo de emoção, e, de outro lado, uma “estranha indústria cujo objetivo é reconstituir esta emoção”. O trabalho de pensamento está aí, na “restituição” ou “reconstituição” da emoção poética, fora das condições ordinárias e por meio de artifícios da linguagem. É pois nesta ação, nesta relação movente através da “estranha indústria” que está a possibilidade mais nobre da humanidade, que é a própria criação da liberdade, tanto no que se refere às artes quanto à própria ação política. Assim, arte, pensamento, liberdade e política operam no mesmo campo, como nos leva a pensar Merleau-Ponty:

A liberdade é esse movimento através do qual somos capazes de transcender, de ultrapassar as condições de fato nas quais nos encontramos e dar a elas um sentido novo que elas não tinham sem a nossa ação. A liberdade é, portanto, uma transfiguração das situações dadas graças a um movimento de ação que nós realizamos instaurando um sentido novo, diferente do sentido factual que aquelas condições possuíam.

Pensada assim, a obra de arte, da mesma maneira que a obra de pensamento, é uma resposta às interrogações da vida e da própria história. Esta maneira de ver a arte leva-nos a outra noção fundamental: “A obra de arte não se explica pela história, mas é um deciframento da história”. Este de-cíframento designa exatamente uma tendência de perceber o mundo; mas não é só isso: é através do movimento, da ação humana, que este decifra-mento produz mudança de valores. Movimento transitório, é verdade, que permite a criação de novos valores, também transitórios, uma vez que não se pode afirmar a existência do espírito universal e absoluto, e, portanto, espírito absolutamente livre; ou, como escreve Valéry: “A famosa questão da liberdade jamais foi abordada por um espírito livre em toda liberdade de espírito”.

Ora, é certo que para que o diálogo entre Arte e Pensamento seja possível é preciso reconhecer com o Heidegger de A origem da obra de arte que arte e pensamento dizem a mesma coisa, mas o dizem de outra maneira. Dizendo a mesma coisa, arte e pensamento participam do mesmo campo histórico: é necessário que digam a mesma coisa para que o pensamento possa trazer um esclarecimento à poesia. Mas, ao dizer de outra maneira, arte e pensamento fogem da redundância e das teorias que sustentam que a arte é também reflexo do pensamento e da realidade. Assim, dizendo a mesma coisa de diferentes maneiras, arte e Pensamento permanecem fiéis à essência de cada um, mas os dois postulando, ao mesmo tempo, uma unidade essencial: “Todo pensamento que desdobra o sentido é poesia; mas toda poesia é pensamento”. Arte e Pensamento são, portanto, duas maneiras diferentes de expressão, como escreveu Valéry a propósito da relação desses dois termos, citando Da Vinci: […] ‘O sorriso de Monalisa’ não pensa em nada. Ela diz: Não penso em nada — é Leonardo que pensa por mim’…”. Em outra passagem sobre música e pensamento: “Quem melhor que Richard Wagner soube interrogar através dos sons? Interrogar não alguém, mas a si mesmo; mais a natureza das coisas; mais — em síntese — o destino”. O que, de certa maneira, equivale à célebre definição de Cézanne: “Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim”.

Por fim, Artepensamento tem também um sentido ético: reconhecemos com Ernst Bloch que, nos momentos de crise de valores, o melhor caminho está em sair momentaneamente do campo de batalha diretamente político para melhor voltar a ele em seguida. Para se fazer uma verdadeira crítica das utopias sociais, escreve Bloch, é preciso recorrer à mediação da estética.

Observamos uma origem comum à Arte e ao Pensamento: a imaginação. Se, para Merleau-Ponty, imaginar é formar certo modo de relação com o objeto ausente, a imaginação é, necessariamente, “faculdade de representação”, componente, portanto, de qualquer obra. No texto clássico O império do imaginário, Jean Starobinski faz uma breve história do conceito e demonstra, entre outras coisas, que a imaginação, “faculdade intermediária entre o sentir e o pensar, não possui a evidência da sensação direta nem a coerência lógica do raciocínio abstrato […]. Segunda e derivada em relação à sensação, ela é preliminar em relação à atividade da inteligência, que deve tomá-la sob seu controle”. Ora, diversos teóricos já apontaram muitas aproximações etimológicas entre imaginar, representar e pensar: enquanto o verbo theorein deriva de um nome, theoros, ser espectador, mas um espectador que imagina, ou melhor, que “inventa meios para ver cada vez melhor”, para Aristóteles imaginação é luz. Escreve em De anima: “E como a visão é o sentido por excelência, a imaginação (fantasia) extraiu seu nome de luz (faos) porque sem luz é impossível ver”.

A teoria clássica define a imaginação como o poder de ser afetado pelas pessoas e coisas sem que elas estejam presentes, ou ainda pelo pensamento daquilo que pode acontecer. “Chamaremos imagens das coisas (imagines rerum)” , escreve Espinosa na Ética, “as afecções do corpo humano cujas idéias nos representam os corpos exteriores como presentes, embora não reproduzam as figuras das coisas (rerum figura). E quando a alma contempla os corpos por esse processo diremos que imagina.” Lemos, num comentário de Marilena Chaui, que a imagem, que tem uma origem corporal (imago) e uma réplica anímica (imaginatio), “é uma afecção do corpo e uma representação dessa afecção. Quando imagina, a alma não tem uma idéia da imagem; simplesmente possui a representação da imagem (imaginatio mentis), razão pela qual não ‘reproduz figuras das coisas’. A imaginatio não é imago nem figura, é idéia imaginativa”. Pode-se afirmar, portanto, que a obra de arte e a obra de pensamento são ao mesmo tempo coisa mental — “La pittura è cosa mentale”, como dizia Leonardo da Vinci — e objeto material.

Atribuem-se às imagens os efeitos do entusiasmo, das emoções e das paixões. Ao escrever uma das importantes obras sobre estética — Système des beaux-arts —, Alain começa falando das paixões e da imaginação. A imaginação precisa de objetos, diz ele. Assim, as artes apresentam-se como remédios ao devaneio, “sempre errante e triste”. Mas, quando se refere às paixões, é do corpo que ele está falando e não da alma, e o corpo “é o túmulo dos deuses”. É certo que para Alain as criações da arte são obras da imaginação, mas não no sentido do que ele designa como “ficção das ficções” segundo a qual os artistas, primeiro, compõem seres sem corpos, idealmente, e depois os realizam no desenho ou na escultura, por exemplo. O artista não tem modelo interior, e se o modelo não está dentro — isto é, nas paixões da alma — nem na natureza exterior, ele só pode estar na própria obra, na criação através da experiência. Esta noção fundamental de experiência, que encontramos também nos Cahiers de Valéry e que mais tarde seria desenvolvida por Merleau-Ponty, é uma das grandes contribuições para o pensamento estético contemporâneo. Ela permite romper com a dualidade e o estado de indiferença entre imaginação e razão como se cada um tivesse domínio próprio. Mais ainda, através da experiência do corpo, chega-se ao pensamento através da imagem, em Um sentido materialmente reflexivo. Uma reflexão racional no interior da própria imagem, ou melhor, partindo da imagem mas permanecendo nela, “verdade revelada”, como narra Alain sua experiência sobre a teoria das ondas:

Cheguei a compreender o que é a onda dos físicos observando, no cais do lago de Annecy, o movimento reflexo das ondas […]. A imagem brincava com a idéia, de onde surgiu uma atenção verdadeira jamais tida sobre o problema. Contentava-me, antes, em compreender o que os livros explicavam. Foi então que reconheci minha idéia na imagem como uma reconciliação do espírito com os sentidos.

A idéia de experiência é aprofundada em Valéry, que define a imaginação como a exploração das imagens, “a operação sobre as imagens, a exploração do campo ou universo de uma imagem”. Com a noção de experiência, a imagem deixa de ser transitiva, ganha sentido de valor com um sistema de possibilidades. “Os sentimentos são valores de imagens”, escreve Valéry, “que podem aliás introduzir imagens ou serem introduzidos nelas.” Esta noção de valor, determinante e pouco levada a sério pela crítica contemporânea, é completada por outro fragmento dos Cahiers: “0 sentimento de impotência e a produção incessante de potência formam um sistema oscilante de descargas, cuja energia se acrescenta por ressonância. A produção de imagens e a produção de energia estão ligadas, e conhecer esta relação seria descobrir uma lei capital. É preciso admitir uma relação entre o fenômeno Imagem e o fenômeno Energia”. Valéry conclui, em outro fragmento, com uma frase de enorme positividade: “A ‘razão’ é uma liberdade de distribuir os valores segundo o que se sabe e não segundo o que se sente”.

Esta imaginação criadora, estas experiências que produzem criação de obras de arte e de obras de pensamento, esta relação oscilante de potência e impotência, os pontos críticos da vida afetiva, as perturbações da alma são “ocasiões ou causas imediatas de ressonâncias íntimas mais ou menos intensas, mais ou menos conscientes” que se realizam, também para Valéry, no corpo e contra o corpo, “objeto real da física” que vê o invisível, atualiza o passado e o futuro,

torna produtivas e funcionais as experiências (é Ciência) e torna as energias manipuláveis. A Ciência consiste em pôr ao alcance das mãos, na escala do corpo, dos sentidos, no estado do visível e do pseudovisível, no estado de presente atual tudo o que não está presente — substituir as expressões de certos fenômenos por atos do corpo. O corpo é o explicador universal. Deste ponto de vista, ele é o agrupamento de unidades e aparelhos de medida. O espaço e o tempo. O corpo é coisa dupla. Esta dualidade define-o. É um corpo entre os corpos e é suporte de todos os corpos.

Mais uma vez, essa idéia tão forte, “o pintor pinta com o corpo”, ganha sentido material através da experiência na obra: “o pintor deixa de imaginar em si mesmo, onde os efeitos da imaginação seriam apenas virtuais, e as imagens, que seriam apenas figuras inertes, limites de manchas e deslocamentos de manchas, são a excitação de nossas potências motoras que entra em jogo no campo-de-tempo-mental”. A conclusão é que para o poeta, o pintor, o músico — os artistas em geral — as imagens não têm interesse; o que conta é a energia de formação das imagens.

No ensaio Poesia e pensamento abstrato, Valéry afirma, a partir da própria experiência, que todo verdadeiro poeta é mais capaz de pensamento abstrato do que se pensa comumente. Mas, observa Valéry, não se deve procurar sua filosofia no que ele diz de mais ou menos filosófico: “Para mim”, diz ele, “a mais autêntica filosofia não está no objeto das nossas reflexões tanto quanto está no ato mesmo do pensamento e na sua manobra”. O poeta, ou o criador, é exatamente aquele que sabe distinguir a emoção poética (as ressonâncias íntimas) da emoção ordinária, e isso só é possível com o trabalho do intelecto, com o esforço de vontade e de precisão, com os instrumentos de medida, como ele designa: “As figuras formadas ao acaso somente por acaso são figuras harmônicas”. Para evidenciar essa relação indiscernível entre Arte e Pensamento, Valéry vale-se do exemplo musical: as unidades sonoras, os sons, estão aptos a formar sistemas cujas estruturas aparecem para nós e se impõem. São estes sistemas que permitem distinguir o ruído do som. A análise do ruído, que permitiu a constituição da música como atividade separada, “foi realizada, ou pelo menos controlada, unificada, codificada graças à intervenção da ciência física, que se descobriu ela mesma nessa ocasião e se reconheceu como ciência das medidas, e que soube, desde a Antiguidade, adaptar a medida à sensação sonora de maneira constante e idêntica por meio de instrumentos que são, na realidade, instrumentos de medida”. Há, portanto, uma diferença essencial entre as emoções ordinárias, comuns, e as emoções medidas artificialmente. No exemplo da música, a separação radical entre ruídos e sons. Enquanto um ruído limita-se a evocar em nós um acontecimento isolado qualquer, diz Valéry, “um som que se produz evoca para si, sozinho, todo o universo musical”. A afirmação de Merleau-Ponty, que diz que nas primeiras pinturas das cavernas já está contida toda a história da pintura, vai no mesmo sentido. Acontece o mesmo na poesia, arte da linguagem. Certas combinações de palavras, conclui Valéry, podem produzir uma emoção que outras não produzem. O sistema de relação entre palavras comuns tem o poder de mudar o valor de cada uma delas, criando uma emoção poética, tornando-se “musicalizadas” e ressonantes de uma para outra através de uma criação prática. Tomadas isoladamente, estas quatro palavras teriam sentido absolutamente banal. Mas quando lemos em Dante: “Chove na alta fantasia”, as palavras ganham todo o seu esplendor pelo trabalho da inteligência.

E é exatamente a experiência seguida da criação da obra que diferencia o artista do homem comum ou do louco. A alma das paixões, diz Alain, é um julgamento falso “acompanhado de todas estas provas brilhantes, lembranças, suposições, previsões, que o apaixonado percorre ingenuamente” . Mas por causa disso somos artistas? Ninguém é menos artista que o vidente, tanto na poesia como na eloqüência, responde Alain:

Chamo vidente aquele que tanto hábito tem de julgar coisas a partir do efeito que elas exercem sobre suas paixões que ele jamais duvida […]. O vidente é aquele que diz que viu mais, e é sem dúvida o que menos vê; porque não acredito que o louco veja tantas coisas; acredito apenas que experimente muito mais do que pode explicar pelas coisas presentes e visíveis. E digo que o vidente, como o louco, não é de nenhuma maneira artista, porque não tem esta exigência da obra, real e acabada entre as coisas […]. Um louco não é de nenhuma maneira artista, ainda que acredite ver muitas das coisas que os outros não vêem. E seu erro é o de querer regular as suas ações sobre suas vãs imagens, ao passo que o artista parece, ao contrário, regular suas imagens a partir do que faz, isto é, a partir do objeto que nasce dos seus dedos […].

Neste ponto, Alain segue a teoria da imaginação de Espinosa, para quem, segundo comentário de Marilena Chaui, a imagem está isenta das determinações do verdadeiro e do falso; ela é modulação corporal (imago) e representação dessa modulação (imaginatio). O erro não é pois presença de imagens, mas ausência de idéias. Comenta Chaui:

A imagem (imaginatio) embora não seja verdadeira nem falsa possuirá determinação que fará dela causa de falsidade: é confusa. E é inevitável que assim seja, pois é efeito de múltiplas afecções corporais e de suas representações cujas causas ignora. Torna-se claro que a diferença entre o real e o imaginário não passa pela fraqueza ou pela força da imagem, mas pela força do intelecto, único capaz de trazer à alma o saber do que imagina […]. Anuncia-se aqui a modalidade de relação entre a parte imaginativa e a parte reflexiva da alma: esta não abole a primeira, mas dá-lhe saber de si fazendo-a discernir as diferenças que produz, fazendo, assim, depender apenas da força da própria alma, como no profeta e no artista, dotados daquilo que falta ao louco: a aptidão para fazer das causas internas de suas afecções (isto é, de suas alucinações) uma força capaz de transformar o possível em necessário, um poder de acesso ao mundo, pois somente a loucura é “ausência de obra”.

Ora, o que se quer dizer é que as idéias que temos nas condições naturais de nossa percepção são idéias “que representam aquilo que chega ao nosso corpo”, e estas idéias são imagens, ou melhor, vestígios de um corpo exterior sobre o nosso. Quando Valéry escreve: “o pintor pinta com o corpo”, o que certamente ele quer dizer é que este corpo está carregado de signos impregnados por corpos exteriores, e enquanto o pintor tem estas idéias, diz-se que seu espírito imagina. Mas o pintor, à diferença do louco, sabe, através da sua obra, que imagina. Da mesma maneira que o músico, que usa um instrumento de medida para transformar o ruído em som — razão matemática —, o pintor utiliza-se de proporções, das cores e das medidas, como uma ciência da abelha: “O espírito não erra porque imagina, mas apenas enquanto é considerado como privado da idéia que exclui a existência das coisas que ele imagina presentes. Porque se o espírito, imaginando presentes as coisas que não existem, soubesse ao mesmo tempo que elas não existem realmente, veria essa potência de imaginar como uma virtude de sua natureza e não como um vício”.

As observações feitas até agora procuraram mostrar a origem comum para Arte e Pensamento, mas isso não quer dizer, absolutamente, que, na sua constituição, um e outro não tenham leis próprias, estruturas próprias e modos de fazer diferentes. O que se tentou foi evidenciar que tanto o pensamento como a arte, ao transformarem a origem confusa da imaginação em obras de arte e obras de pensamento, recorreram à razão. Mais ainda: para os trabalhos de pensamento e de obra de arte, a razão jamais se sobrepõe à imaginação, nem se desenvolve à parte: ela é também sentimento de alegria — paixão alegre que aumenta a potência de criar, pensar e agir.

Mas essa passagem do “ter imaginação” para “ter imagens” não é uma operação simples. Essa passagem nos põe pelo menos dois grandes problemas: o primeiro, o caráter transitório das imagens e do conhecimento. Em um fragmento denominado singularmente “Geometria imaginativa”, Valéry aponta para a crítica dos sistemas totalizantes de pensamento ao dizer que uma idéia não é senão um dos aspectos de um conjunto desaparecido, ou ainda “a invariante de um sistema desconhecido na maior parte do tempo”. Um estado de conhecimento não pode durar, completa ele em outro fragmento da sua “Geometria imaginativa”: “Ele pode se reproduzir, ou, antes, ele volta parcialmente. Quero dizer que ele se reduz a cada um dos seus retornos, sendo que cada uma de suas propriedades permanecem idênticas”. O segundo problema refere-se à própria imagem. Em um comentário ao livro L’imagination, Merleau-Ponty concorda com Jean-Paul Sartre que diz que a imagem não se basta na vida consciente, que ela está lá apenas para resumir certo trabalho de pensamento ou para “trazer certas referências simbólicas a certos objetos de pensamento”. Tudo isso é muito certo, observa Merleau-Ponty, mas não nos faz compreender

que é a imagem e de que maneira ela pode entrar em relação com o pensamento. Mais ainda: qual o sentido no ato de imaginar, na vida do homem? Para sabê-lo, responde o próprio Merleau-Ponty, é necessária uma análise que nos mostre, por exemplo, que “a imagem é, por princípio, algo que não é observável, ainda que pretenda ser. Há uma espécie de impostura essencial da imagem”. Imaginar é sempre fazer aparecer o ausente em um presente, dar uma “quase-presença”. Mas as observações de Merleau-Ponty suscitam outras questões: por que a imagem é uma espécie de “impostura essencial”? O que quer dizer “quase-presença”?

Parte das respostas pode ser encontrada em pequenos comentários de Sartre às noções absolutamente originais de Husserl: “É preciso ter sempre presente”, escreve Husserl, “a idéia de que os dados impressionais têm por função ‘representar de perfil’, a cor, a superfície ou a forma, em síntese, de todas as qualidades da coisa”. Está aqui presente a noção de intencionalidade, isto é, a distinção radical entre a consciência e aquilo de que se tem consciência. Qualquer que seja o objeto da consciência, comenta Sartre, ele está por princípio fora da consciência: é transcendente; desta maneira, “esta impressão visual que no presente faz parte da minha consciência não é o vermelho. O vermelho é uma qualidade do objeto, uma qualidade transcendental. Esta impressão subjetiva que, sem dúvida, é ‘análoga’ ao vermelho da coisa, não é senão um ‘quase-vermelho’ …”.

Estes são conflitos internos que podem dar a pensar outros conceitos, o mais importante deles, a relação do homem com os sistemas mecânicos. Pode-se dizer, de maneira infindável, que os dados não são jamais todos os dados, que o presente sempre oculta o ausente, ou até mesmo que a liberdade aparente está restrita apenas à aparência. Mas pode-se dizer também que o trabalho de pensamento e o trabalho de obra de arte são respostas daqueles que se recusam a permanecer na região dos acontecimentos ou a ser forçados a agir submetendo-se apenas à imaginação e às paixões. Apesar do momento de solitude da razão, posso interessar-me por ela ou não.