2005

Consciência e heroísmo no mundo moderno [Baudelaire]

por Jorge Coli

Resumo

Whitman, Cendrars, Cocteau, os futuristas, Mário de Andrade, os da Paulicéia Desvairada… Foram muitos os poetas que homenagearam a modernidade em sua força, a partir da utopia do progresso. Não, Baudelaire. E isso muito antes dos outros. E isso rancorosamente.

A começar pela ideia de progresso, absurda; afinal, na floresta ou na civilização, o homem não abandona o estado selvagem. Nisso, ele é eterno.

E, no entanto, Baudelaire acreditava na transmutação. Por isso, alegorias modernas e prosaicas. Vagão de trem, balancete comercial – spleen. Mais: tropeções em palavras como em calçadas, incursões a cantos urbanos, passeios em meio a impressões misteriosas. De preferência, no subúrbio – nevoento, enlameado e sacudido por carroças –, pois era nele que Baudelaire via os seres que vagueavam em As flores do mal para depois expressá-los, a partir de uma sensibilidade muito aguçada por estados anormais, febris, que o jejum e as drogas podem trazer. Resistia, contudo. Nutria-se do efêmero.

Mas não só. Devido à consciência da prisão no presente, constatava a queda coletiva, nunca efetivada. Afinal, estava-se sempre em algum lugar entre o agressor e o agredido, a arma e a ferida, a violência e a vítima. Nas sombras modernas, o gozo da violência é angustiado e voluptuosos a um só tempo. Daí a impureza que transforma a viagem ideal em nostalgia impossível. Se tudo era, para Sade, intensidade e orgasmo, tudo era, para Baudelaire, desejo. Logo, contradição e temporalidade corruptora, como num mergulho no efêmero. Contemplação ainda. Não para esquecer-se de si, mas para ver-se vendo, como uma consciência que se contempla a si, insatisfeita. Não que, como poeta moderno, sofresse de saciedade ou falta circunstancial. Era a falta de sentido mesmo, quando Deus já não era mais Deus. Assim, a grandeza moderna não estava na transcendência, mas na heroica angústia, da qual nasce a arte, metamórfica. Como antes, consciência estética da criação poética.

Diferente dos românticos, que, sensíveis, sofriam com a modernidade, Baudelaire enfrentava-a, com acuidade desesperada. Por que o fazia, afinal? Porque a transformação da modernidade pela criação artística é a grande tarefa. Isso que, mais uma vez, passa pela consciência de si: na modernidade.

Enfim, sugestiva magia que abarca, a um só tempo, sujeito e objeto. Identificação e alteridade. Nada de imposições, portanto. Afinal, sem lama, ouro não se faz, e o poeta, como o albatroz, não anda por excesso de asas.


ÉBAUCHE D’UN ÉPILOGUE POUR LA DEUXIÈME ÉDITION, 1861

Tranquille comme un sage et doux comme un maudit,…

                                                               j’ai dit:

Je t’aime, ô ma très belle, ô ma charmante…

Que de fois…

Tes débauches sans soif et tes amours sans âme,

Ton goût de l’infini,

Qui partout, dans le mal lui-même se proclame,

Tes bombes, tes poignards, tes victoires, tes fêtes,

Tes faubourgs mélancoliques,

Tes hôtels garnis,

Tes jardins pleins de soupirs et d’intrigues,

Tes temples vomissant la prière en musique,

Tes désespoirs d’enfant, tes jeux de vieille folle,

Tes découragements;

Et tes feux d’artifice, éruptions de joie,

Qui font rire le ciel, muet et ténebreux.

Ton vice vénérable étalé dans la soie,

Et ta vertu risible, au regard malheureux,

Douce, s’extasiant au luxe qu’il déploie…

Tes principes sauvés et tes lois conspuées,

Tes monuments hautains où s’accrochent Les brumes.

Tes dômes de métal qu’enflamme le soleil,

Tes reines de théâtre aux voix enchanteresses,

Tes tocsins, tes canons, orchestre assourdissant,

Tes magiques pavés dressés en forteresses,

Tes petits orateurs, aux enflures batoques,

Prêchant l’amour, et puis tes égouts pleins de sang,

S’engoufrant dans l’Enfer comme des Orénoques,

Tes anges, tes bouffons neufs aux vieilles défroques

Anges revêtus d’or, de pourpre et d’hyacinthe,

O vous, soyez témoins que j’ai fait mon devoir

Comme un parfait chimiste et comme une âme sainte.

Car j’ai de chaque chose extrait la quintessence,

Tu m’as donné ta boue et j’en ai fait de l’or.

Charles Baudelaire,

Les fleurs du mal

 

PROJETO PARA UM EPÍLOGO, EDIÇÃO DE 1861

Tranquilo como um sábio e suave como um maldito,…

eu disse:

Eu te amo, oh! minha muito bela, oh! minha encantadora…

Quantas vezes…

Tuas devassidões sem sede e teus amores sem alma,

Teu gosto do infinito

Que em todos os lugares, no próprio mal, se proclama,

Tuas bombas, teus punhais, tuas vitórias, tuas festas,

Teus arrabaldes melancólicos,

Tuas casas de cômodos,

Teus jardins cheios de suspiros e de intrigas,

Teus templos vomitando a prece musicada,

Teus desesperos de criança, teus brinquedos de velha louca,

Teus desânimos;

E teus fogos de artifícios, erupções de alegria,

Que fazem o céu rir, mudo e tenebroso,

Teu vício venerável exposto sobre a seda,

E tua risível virtude, com olhar infeliz.

Doce, se extasiando diante do luxo por ele desdobrado…

Teus princípios salvos e tuas leis conspurcadas,

Teus monumentos altivos onde as brumas se agarram,

Tuas cúpulas de metal que o sol incendeia,

Tuas rainhas de teatro com vozes sedutoras,

Teus sinos que tocam o alarme, teus canhões, orquestra ensurdecedora,

Teus calçamentos mágicos que se erguem qual fortalezas,

Teus oradorezinhos, com empolações barrocas,

Pregando o amor, e depois, teus esgotos cheios de sangue,

Se engolfando no Inferno como Orenocos,

Teus anjos, teus bufões novos com velhos andrajos,

Anjos vestidos de ouro, de púrpura e de jacinto,

Oh! vós, sede testemunha de que cumpri meu dever

Como um químico perfeito e como uma alma santa.

Pois de cada coisa extraí a quintessência,

Tu me deste tua lama e eu a transformei em ouro.

Tradução de Jorge Coli

__________

A modernidade teve seus poetas, que a celebraram. Whitman, Cendrars, Cocteau, os futuristas, Mário de Andrade, os da Paulicéia Desvairada. As máquinas, que mostravam poderes e forças como jamais haviam sido criadas antes, foram admiradas na música, na pintura, em prosa e em verso. A arte entusiasmou-se por um mundo que se transformava tecnicamente, acreditou nas utopias futuras do progresso.

Tomemos este trecho de Baudelaire, extraído dos Journaux intimes:

O que é mais absurdo do que o progresso, já que o homem, como é provado pelos fatos cotidianos, é semelhante e igual ao homem, quer dizer, sempre no estado selvagem! O que são os perigos da floresta e da planície diante dos choques e dos conflitos cotidianos da civilização? Que o homem enlace sua enganada no bulevar, ou transpasse sua presa em florestas desconhecidas, não é ele o homem eterno, quer dizer, o mais perfeito animal de rapina?[1]

Walter Benjamin comenta: “É sobretudo a ‘fé no progresso’ que ele [Baudelaire] persegue com seu ódio, como uma heresia, uma doutrina errada, e não como um erro comum”.[2]

Aquilo que fazia vibrar os artistas encantados pela modernidade, isto é, o princípio de progresso, a teleologia da felicidade coletiva, está completamente eliminado de Baudelaire, que demonstra, por sinal, raros entusiasmos positivos.

No entanto — é ainda Walter Benjamin quem lembra —, Baudelaire moderniza as alegorias, empregando palavras prosaicas, sobretudo urbanas, dentro da poesia lírica: quinquet, wagon, omnibus bilan, revérbère, voirie.[3] Na ruptura entre clássicos e românticos, o uso dos termos considerados vulgares, que deviam ser excluídos nas grandes tragédias, acenderam o estopim dos conflitos: foi assim na batalha de Hernani, por causa de um verso que menciona um “escalier dérobé”.[4] Baudelaire, porém, introduz, com essas palavras, signos de novidade moderna. Para melancolia, em vez de mélancolie, ele prefere spleen,[5] expressão inserida na moda graças ao anglicismo da época: spleen, que significa baço, órgão no qual os antigos imaginavam que os humores negros se juntavam para tornar melancólico um caráter, diverge de mélancolie pela modernidade do estrangeirismo — mélancolie transfigurada em spleen soa mais moderno. E spleen recobre esses termos baudelairianos: angústia, azar, tédio, melancolia…

A poesia brota de passos nas ruas da cidade industrial: “Exercito sozinho esta absurda esgrima,/ Farejando em cada canto os acasos da rima,/ Tropeçando em palavras como na calçada,/ Dando às vezes com versos há muito sonhados” [Le soleil: Je vais m’exercer seul à ma fantasque escrime,/ Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,/ Trébuchant sur les mots comme sur les pavés,/ Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés].[6]

O poeta tropeça nas palavras como nas pedras da rua; e é farejando em cada canto dessa paisagem urbana que nasce a poesia.

Éric Hazan, num estudo sobre Baudelaire e Paris, explica:

A “esgrima fantasiosa” é um esporte solitário que ele exercita, no que era ainda a periferia da cidade, os subúrbios — o Canal Saint-Martin e o subúrbio do Temple sem dúvida, quando ele morava na rua des Marais du Temple ou na rua d’Angoulême; ou ainda no subúrbio Saint-Denis, na fumarada dos trens, quando ele morava no Hotel da Estrada de Ferro do Norte… O que é certo é que o subúrbio — nevoento, enlameado, ou sacudido pelas carroças pesadas — é o estrato parisiense onde Baudelaire encontra os seres que vagueiam nas Flores do mal.[7]

Flanar é encontrar a poesia, captando as aparições casuais nas ruas, e delas extrair impressões misteriosas. Diante da cidade moderna, o olhar do poeta não é o do hábito, que caleja a percepção. É, ao contrário, o de uma sensibilidade muito aguçada: aguçada por estados “anormais”, febris, que o jejum e as drogas (os paraísos artificiais) podem trazer. Nessa percepção do flâneur encontra-se a substância da poesia. Não existem verdades últimas, não existem seguranças de qualquer sorte. Há, ao contrário, um processo contínuo que busca se nutrir do efêmero.

Em verdade, o poeta é um vampiro da cidade moderna. Ele suga dali a força criadora. Essa força, porém, não traz um benefício ao poeta: o benefício vem para a poesia: “Quando desce à cidade, tal como um poeta,/ Mesmo a sorte das coisas mais vis enobrece/ e entra como um rei, sem ruídos e sem lacaios,/ Em todos os palácios e nos hospitais” [Quand, ainsi qu’un poète, il descend dans les villes,/ Il ennoblit le sort des choses les plus viles,/ Et s’introduit en roi, sans bruit et sans valets,/ Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais].[8]

Enobrecer a sorte das coisas mais vis: eis a chave principal.

Há uma dualidade em Baudelaire. Por um lado, a recusa violenta do progresso, do mundo moderno banalizador, corruptor do espírito — daí seu horror pela fotografia, vista por ele apenas como um modo mecânico de reproduzir a imagem do mundo. Mas, por outro, ele cultiva a ideia de que o artista moderno está ancorado no presente, aprisionado pelo presente, e não pode escapar dele. O presente é uma prisão, e o poeta, o “rei de um país chuvoso”, do qual não pode fugir. Os convites às viagens,

Minha criança, minha irmã

Pensa na doçura

De ir lá longe vivermos juntos!

Amar à vontade

Amar e morrer

No país que se parece contigo.*[9]

As nostalgias de um nirvana harmonioso sobre a terra,

Lá, tudo é apenas ordem e beleza

luxo, calma e volúpia.**[10]

são apenas nostalgias. Trata-se de viagens impossíveis, que tornam ainda mais melancólico “o país chuvoso”, ao qual o poeta moderno foi condenado, sem remissão. Essas viagens são tanto mais impossíveis quanto a modernidade surge, em Baudelaire, como a manifestação contemporânea do humano, o abominável Baudelaire é leitor de Joseph de Maistre, cujo pensamento conservador combateu a Revolução Francesa e que via com cinismo as generosidades rousseaunistas, percebendo, como Hobbes, a matéria perversa e violenta de que seriam feitos a natureza e o homem. Baudelaire assume uma culpa coletiva, uma espécie de teologia da queda, presentes em De Maistre; é este quem enuncia: “Todo malvado é um Heautontimoroumenos”,[11] empregando a palavra complicada que daria título a um poema de Baudelaire. Essa palavra, grega, título de uma comédia de Terêncio, significa o homem que se pune a si próprio. É nela, por sinal, que se encontra a conhecida frase Homo sum, humani nihil a me alienum puto: “Sou homem, nada que é humano me é alheio”, que os humanistas do Renascimento celebrariam. De Maistre, o cristão, contava com o sagrado que redime: o humano se ultrapassa pelo divino. Baudelaire, ao contrário, limita-se ao humano, concebido como contingente, como órfão: é possível perceber em Baudelaire a falta angustiada do divino e do sagrado porque o sagrado se perdeu. Deus parece fugir, Deus tornou-se inapreensível, e a redenção se tornou impossível.

Os cegos

Atravessam assim o escuro ilimitado,

Esse irmão do silêncio eterno. Ó cidade!

Enquanto à nossa volta cantas, ris e berras,

Tomada de prazer até a atrocidade,

Vê! Também eu me arrasto! E mais que eles, pasmado, Pergunto: o que procuram no Céu tantos cegos?***[12]

Sem redenção, o humano está entregue a si próprio, à sua perversidade natural. Heautontimoroumenos é a consciência do homem dual, ao mesmo tempo carrasco e vítima:

Heautontimoroumenos

Irei agredir-te sem cólera

Nem ódio, como um magarefe,

Como ao rochedo fez Moisés!

E far-te-ei brotar das pálpebras,

 

Pra refrescar meu Saara,

As águas do teu sofrimento.

Cheio de esperança, o meu desejo

Nesse teu choro nadará

 

Como uma nau a pôr-se ao largo

E no meu ébrio coração

Os teus soluços ecoarão

Como um tambor rufando à carga!

 

Não serei eu um falso acorde

Nestadivinasinfonia

Graças à voraz Ironia

Que me perturba e que me morde?

 

Está na minha voz, tão gritante!

Esse veneno é o meu sangue!

Eu sou o mais sinistro espelho

Onde a megera se contempla.

 

Eu sou a chaga e sou a faca! Sou eu a face a bofetada!

Eu sou os membros e a roda

E também vítima e carrasco! ****[13]

Heautontimoroumenos, o carrasco de si próprio, o duplo que encerra agredido e agressor, arma e ferida, o poeta consciente do homem como vítima e como violência ao mesmo tempo, nos revela um Baudelaire próximo a Sade. Mas essa proximidade, essencial, carrega-se de duas sombras modernas, no sentido de serem românticas, ou neoromânticas: 1) o gozo da violência é angustiado; 2) o gozo da violência é voluptuoso.

A primeira diferença ocorre porque no universo de Baudelaire o gozo violento e a angústia vão de par, trazidos pela consciência da condenação à impureza, essa mesma condenação que transforma o convite à viagem em nostalgia impossível. Está claro, isto é o avesso do que ocorre em Sade, para quem o sofrimento erótico está na ordem da natureza, e essa ordem deve eliminar a angústia eliminando a culpa: talvez seja esse o sentido principal da pedagogia contida em A filosofia na alcova.

A segunda pressupõe a ausência da volúpia, bem perceptível, embora não explicitada, nos textos de Sade. As orquestrações orgiásticas, os procedimentos sexuais descritos pelo marquês de modo tão metódico falam do gozo como intensidade e orgasmo, mas não como desejo. Baudelaire, ao contrário, amplia desmedidamente o desejo: sua poesia é muito menos sexual que desejante. Esse desejo é feito de contradições perturbadoras, que se alimenta das impurezas, que pressupõe a temporalidade corruptora.

E, no entanto, sereis semelhante a esse lixo, A essa horrível infecção

Estrela de meus olhos, sol de minha natureza Vós, meu anjo e minha paixão!

 

Então, oh minha bela! Dizei ao verme que vos devorará com beijos

Que eu guardei a forma e a essência divina De meus amores decompostos! *****[14]

O final do poema, referindo-se ao poder do artista de guardar “a forma e a essência divina”, é revelador. O que é imundo transfigura- se em poesia. O artista possui o poder de recriar, a partir desse dado primeiro, uma espécie de sobrerrealidade. Para empregar os termos de Baudelaire: uma realidade espiritualizada, uma contemporaneidade heroica, que parte do instante captado, do artifício que engana: a moda, a maquiagem. O transitório, a mobilidade efêmera das grandes cidades, adquirem porém vertiginosa profundidade num mergulho em si mesmo — nesse transitório moderno — mas também num mergulho dentro do poeta.

Para nós, basta ver a árvore ou a casa; inteiramente absorvidos em contemplá-las, nós nos esquecemos de nós mesmos. Baudelaire é o homem que não se esquece nunca. Ele se olha ver; ele olha para se ver olhar; é sua consciência da árvore, da casa que ele contempla e as coisas só lhe aparecem através dela [consciência], mais pálidas, menores, mais fora de alcance, como se ele as percebesse através de uma luneta. Elas não se indicam nunca umas às outras, como a seta mostra o caminho, como o marcador mostra a página, e o espírito de Baudelaire nunca se perde em seus dédalos. Sua missão imediata é, ao contrário, remeter a consciência a si própria.[15]

Eu sou a ferida e a faca… O homem encontra-se em si mesmo, mas exilado de si. Encontra-se no mundo, mas exilado do mundo. É Sartre quem formula, ainda: “‘O homem sensível moderno’ não sofre por tal ou qual motivo particular, mas, em geral, porque nada nesta terra poderia contentar seus desejos”.[16] Essa insatisfação não vem da abundância, da saciedade; também não surge daquilo que falta em modo circunstancial, mas de uma ausência de sentido. Compreende-se o ódio pelo progresso, que Baudelaire exprime: a modernidade traz um falso sentido, um falso sinal, a essa ausência: Deus não é Deus, nem a máquina é Deus. A modernidade é condição de existência; não é com ela que se fabricam sentidos, mas é dela que pode nascer o heroísmo: ele não a transcende, mas a engrandece pela consciência da heroica angústia. Nela nasce a obra de arte e o seu papel metamórfico.

A gênese da criação artística se encontra admiravelmente evocada num poema incompleto, o esboço de um epílogo para a segunda edição das Flores do mal. Eis aqui a segunda parte dele:

Tranquilo como um sábio e suave como um maldito,…

                                                                      eu disse:

Eu te amo, oh! minha muito bela, oh! minha encantadora…

Quantas vezes…

Tantas devassidões sem sede e teus amores sem alma,

                                                              Teu gosto do infinito

Que em todos os lugares, no próprio mal, se proclama,

Tuas bombas, teus punhais, tuas vitórias, tuas festas,

Teus arrabaldes melancólicos,

Tuas casas de cómodos,

Teus jardins cheios de suspiros e de intrigas,

Teus templos vomitando a prece musicada,

Teus desesperos de criança, teus brinquedos de velha louca,

                                                           Teus desânimos;

E teus fogos de artifícios, erupções de alegria,

Que fazem o céu rir, mudo e tenebroso,

Teu vício venerável exposto sobre a seda,

E tua risível virtude, com olhar infeliz.

Doce, se extasiando diante do luxo por ele desdobrado…

Teus princípios salvos e tuas leis conspurcadas,

Teus monumentos altivos onde as brumas se agarram,

Tuas cúpulas de metal que o sol incendeia,

Tuas rainhas de teatro com vozes sedutoras,

Teus sinos que tocam o alarme, teus canhões, orquestra ensurdecedora,

Teus calçamentos mágicos que se erguem qual fortalezas,

Teus oradorezinhos, com empolações barrocas,

Pregando o amor, e depois, teus esgotos cheios de sangue,

Se engolfando no Inferno como Orenocos,

Teus anjos, teus bufões novos com velhos andrajos,

 Anjos vestidos de ouro, de púrpura e de jacinto,

Oh! vós, sede testemunha de que cumpri meu dever

Como um químico perfeito e como uma alma santa.

Pois de cada coisa extraí a quintessência,

Tu me deste tua lama e eu a transformei em ouro.******[17]

Esse poema concentra, de modo notável, a relação que Baudelaire mantinha com a modernidade e, em particular, com a modernidade urbana. As invocações reiteradas dos versos fazem surgir a cidade já interpretada de modo precioso pelo poeta, e a enumeração que precede o enunciado do processo poético já é a transfiguração alquímica que esse enunciado contém. Não podia ser de outro modo, pois é a própria poesia que se diz processo poético. Ela nos declara transformar a lama em ouro, mas só pode nos mostrar a lama transformada, isto é, o ouro. Assim, a criação poética é aqui também consciência estética da criação poética. Nessa volta sobre si, Baudelaire se distancia do Romantismo, do qual ele é, de certo modo, oriundo. Diversamente dos românticos, que, sofrendo, por suas sensibilidades exasperadas e privilegiadas, agredidas pelas asperezas difíceis do mundo moderno, buscavam a fuga pelo imaginário, para outras épocas, para a natureza (que Baudelaire odeia, chamando a natureza dos românticos de “legumes santificados”) — ou mesmo pelo suicídio[18] — Baudelaire enfrenta, com uma acuidade desesperada, a consciência do contemporâneo. Porque não propõe uma fuga do mundo presente, fuga daquilo que poderia ser chama- do vagamente de real (fuga para tempos recuados ou países exóticos: se “Convite à viagem” nos leva a um nirvana perfeito, desejável mas impossível, “Viagem a Citera” nos traz ao horror inevitável de nosso próprio corpo e de nossos prazeres), mas uma transformação desse real pela imaginação e pela criação artística.

O sentido da criação está na consciência de si: um poder imaginativo que parte da imersão no moderno para criar um heroísmo a partir desse mesmo moderno. A consciência poética que sobrevive na modernidade é a forma mais aguda e torturada desse heroísmo.

O mundo é transfigurado pela presença do criador no mundo. Eis uma frase extraída do texto “Notes sur l’art philosophique”, de 1866: “O que é a arte pura, segundo a concepção moderna? É criar uma sugestiva magia contendo ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista”.[19] Sartre diz que o poeta poderia desenvolver um discurso sobre a pouca “realidade” do mundo exterior:

Pretextos, reflexos, telas, os objetos nunca valem por si próprios e só têm a missão de dar-lhe a oportunidade de se contemplar enquanto os vê. Há uma distância original de Baudelaire em relação ao mundo que não é a nossa; entre ele e os objetos se insere sempre uma translucidez um pouco embaçada, um pouco adoradora demais, como uma lufada de vento quente no verão.[20]

Distância e aproximação, mundo banal e mundo sublimado pela criação poética. De lá vem a importância, para Baudelaire, do jogo de olhares e do jogo de espelhos — eles significam consciência do mundo através da consciência de si no mundo: lucidez inspirada que cria, ao mesmo tempo, a identificação e a alteridade imediatas. Baudelaire não impõe seu mundo ao mundo. Para ele, sem a lama o ouro não se faz. E essa lama é, ela própria, o produto do homem no mundo. Sartre nota que isso é a causa da situação central em que se encontra a questão do artifício em Baudelaire, do papel essencial que ele adquire em seu pensamento, porque o artifício é a marca do homem no mundo, que lhe permite o reconhecimento de si nas aparências. De lá vem a importância da maquiagem, do dândi — enquanto ser artificial — da cidade, criação perpétua do humano.

Para o criador é necessária, no entanto, a capacidade de apreensão da modernidade espiritualizada. Essa capacidade é eminentemente sensorial: ela se faz pelos olhos, pela língua, pelos ouvidos, pelo nariz, pelas mãos — mas tudo aquilo que recebem os sentidos está filtrado pelos estados segundos da consciência. Por isso surge a necessidade dos paraísos artificiais: as drogas, o enfraquecimento físico, a febrilidade, a música de Wagner, própria a produzir a mais prodigiosa embriaguez. Magia poética, sem dúvida, mas que acaba se situando além dos instrumentos sensíveis, de onde entretanto ela se origina. Portanto, se a fascinação da modernidade se encontra na lama — a “normalidade” da lama só se enxerga enquanto lama. Isto é, se Baudelaire afirma a fascinação contida na modernidade, ele afirma também a existência de uma consciência superior mergulhada na banalidade, dessa relação nascendo a dificuldade de estar no mundo. Duas vertentes complementares: de um lado, a modernidade banal que engendra o tédio; de outro, a modernidade que, por transfiguração nela operada pela arte, é fonte de fascínio. Tal dicotomia se junta na imagem do albatroz: o poeta tem asas de gigante que o impedem de andar.

Notas

[1] Charles Baudelaire, Les paradis artificiels suivis des Journaux intimes, Paris/Lausanne, Éditions de Clairefontaine, 1947, p. 252.

[2] Walter Benjamin, Charles Baudelaire, un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, Paris, Payot, 1982, p. 247.

[3] Quinquet era um novo tipo de lanterna; vagão; ônibus; balancete; revérbero; viação.

[4] Escada disfarçada ou escondida.

[5] Ver estudo de Agnes Verlet, “Le spleen, une vanité profane” em La Nouvelle Critique – Dossier Baudelaire, Paris, p. 35.

[6] Charles Baudelaire, As flores do mal, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa,

Assírio & Alvim, 1996, p. 215.

[7] “Le sombre Paris” em La Nouvelle Critique, cit., p. 30.

[8] Do poema “O sol” em Charles Baudelaire, As flores do mal, cit., p. 215.

[9] “Convite à viagem”, tradução do autor.

[10] Idem.

[11]  De Quincey, autor bem conhecido por Baudelaire, também emprega essa palavra em seu Confessions of an English Opium-Eater. Assinalado por Fernando Pinto do Amaral em Charles Baudelaire, As flores do mal, cit., p. 359. Sobre a relação de De Maistre e Baudelaire, ver Daniel Vouga, Baudelaire et Joseph de Maistre (Paris, Corti, 1957).

[12] “Os cegos” em Charles Baudelaire, As flores do mal, cit., p. 236.

[13] Em Charles Baudelaire, As flores do mal, cit., p. 205.

[14] Poema “Uma carniça”: o poeta se dirige à amada, contemplando uma carniça. Tradução do autor.

[15] Jean-Paul Sartre, Baudelaire, Paris, Gallimard, 1963, p. 27.

[16] Ibidem.

[17] Tradução do autor.

[18] Essa consciência dolorosa afasta o suicídio porque, ela própria, enquanto consciência, é inevitável. Isso faz de Baudelaire um sobrevivente, para empregar a expressão de Sartre.

[19] Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, Paris, Laffont, 1986, p. 736; também citado por Jean-Paul Sartre em Baudelaire, cit., p. 27.

[20] Ibidem.

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* Mon enfant, ma soeur,/ Songe à la douceur/ D’aller là-bas vivre ensemble!/ Aimer à loisir,/ Aimer et mourir/ Au pays qui te ressemble!

** Là, tout n’est qu’ordre et beauté,/ Luxe, calme et volupté.

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