2002

Condição trágica e liberdade

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

A descoberta da América provocou uma reflexão sobre a relatividade do mundo europeu-cristão. Para os libertinos da época, os selvagens mostravam que a natureza humana, originalmente boa, fora corrompida pela civilização. Os jansenistas, por sua vez, vão aprofundar essa questão de um ponto de vista teológico. Eles pregam uma moralidade radical (por isso contrária às transigências dos jesuítas) e uma renúncia ascética do mundo. Mas essa posição é criticada por Pascal. Para ele não há como escolher recusar o mundo. A condição humana tem que ser compreendida e vivida na sua contradição entre exigência do infinito e insuperabilidade do finito, condição que é essencialmente trágica. Um abismo separa a vontade humana e a graça divina, e só nos resta apostar tudo na busca da salvação. A liberdade de não pecar se resume à liberdade de perseverar. Trata-se de uma esperança nascida no desespero e de uma crença nascida na incerteza. O que Pascal visa assim é negar as afirmações peremptórias que enaltecem nossa grandeza ou lastimam nossa miséria, e mostrar que ambas estão ligadas. A compreensão do ser humano nasce da contradição (“E o contradigo sempre até que compreenda que é um monstro incompreensível”, ele dirá). Tal posição se opõe tanto ao naturalismo dos libertinos quanto ao otimismo racionalista dos cartesianos. A busca pascaliana se dá num solo movediço. O homem deve entregar sua liberdade ao Deus absconditus para tentar obter a graça, não como escolha mas como certeza do coração.


Na França do século XVII as condições históricas já permitem uma discussão que colocará em pauta a universalidade do homem europeu cristão. A descoberta de novos povos, principalmente os da América, fora seguida da produção de uma literatura, fruto do contato direto ou indireto com esses povos e seus costumes, cuja descrição ensejava a tomada de consciência de uma diversidade dantes insuspeitada. Os europeus se viam diante das mais diversas formas de sociabilidade, de preceituação moral e de organização intelectual e religiosa. Muito embora essa visão não chegasse ainda a uma compreensão específica da adequação desses quadros de convenção às culturas de que faziam parte, o impacto da diversidade era suficiente para provocar uma reflexão acerca da relatividade do mundo europeu-cristão. Duas questões pelo menos estavam definitivamente suscitadas, a primeira relacionada com possibilidades não cristãs de contato com o divino, e a segunda concernente à existência de convenções morais não fundamentadas nos padrões do cristianismo.

A este fator antropológico que induziu à relativização é preciso acrescentar ainda o resultado das mudanças na concepção cosmológica. Já com Copérnico e Kepler, mas principalmente com Galileu, a cosmologia tradicional se havia rompido, passando de uma organização finita de elementos hierarquicamente organizados, no centro da qual situava-se a Terra, para um universo infinito, com uma série indefinida de mundos, mas que podia ter sua estrutura apreendida por via da homogeneidade fundamental que o instrumental de conhecimento matemático conferia a todos esses elementos. Assim ficava comprometida a diferenciação hierárquica que conferia ao homem um lugar privilegiado, espécie de finalidade para a qual tudo convergiria e na qual se configurava o sentido da realidade. Ora, dada a estreita relação entre os dogmas cristãos, principalmente o da Encarnação, e a concepção cosmológica tradicional, o que se colocava em questão era exatamente a unidade e a coerência do sistema de intelecção do mundo e do homem que até então alimentara o pensamento europeu.[1]

Era possível ainda observar outra coisa, de extrema importância para a relativização do quadro de valores legado pela tradição cristã. Muitos desses povos, completamente alheios à religião, à organização política e ao saber, tais como os entendiam os europeus, viviam, como indivíduos e como grupos sociais, num estado de maior equilíbrio do que as sociedades ditas civilizadas. O que se começava a reparar aqui é algo como uma inocência primitiva, que Rousseau descreverá mais tarde como o “bom selvagem”, e que aos olhos dos europeus começa a aparecer como superioridade. Guy De La Brosse, um escritor da época, ao descrever esses povos, estende-se no enaltecimento de virtudes como simplicidade e contato com a natureza, harmonia entre corpo e alma que, segundo ele, preservam esses indivíduos das falsas necessidades da civilização e dos vícios que elas acarretam. Gabriel Naudé, nessa mesma linha, fala de um “senso inato de bondade” que atuaria nesses povos de maneira mais eficaz do que “a censura do mundo”, as ciências e até mesmo “o temor de Deus”. O que ele quer dizer é que essa bondade inata não apenas substitui com vantagem a religião instituída, o progresso científico e as normas do direito, como ainda evita que esses povos selvagens descambem para o sectarismo e para a intolerância, vícios que, tendo sufocado nos europeus a bondade natural, propiciam os conflitos e as guerras, que muitas vezes têm origem na própria religião, como é o caso do que ocorre na Europa nessa época.

Esses dois autores citados, juntamente com La Mothe le Vayer e outros, fazem parte do grupo dos libertinos, ou seja, aqueles que procuravam valorizar os dotes naturais do ser humano contrastando-os com as aquisições da civilização, principalmente a dominância dos dogmas religiosos. Viam nos selvagens aquilo que os homens poderiam ser se não tivessem trocado a liberdade e a inocência primitivas pelas cadeias que forjaram para si mesmos, renunciando assim à conquista da felicidade, objetivo maior da moral. O caráter artificial das regras morais instituídas e alicerçadas na religião cristã trouxera para os europeus a submissão e não a independência da consciência, que em princípio seria o fundamento de uma vida verdadeiramente humana. Por isso assumiam os libertinos uma posição resolutamente crítica em relação aos valores instituídos. Mesmo ao reconhecerem que eram necessários para a agregação da sociedade e para a manutenção da ordem estabelecida, não deixavam de acentuar, por isso mesmo, a função afinal repressora que se tornara inerente a essas normas. O mais grave, porém, é que a necessidade cada vez maior de assegurar por meio de normas artificiais as conquistas civilizatórias abafava, na mesma proporção, as virtudes naturais que os homens trariam em si. Ainda que tais virtudes naturais estivessem vinculadas a uma religiosidade natural, intrínseca ao ser humano, como a crença deísta, por exemplo, a religião instituída não soubera prolongar esse sentimento de autêntica ligação com o divino, substituindo-o pela ritualização formal, pela superstição e pelo sectarismo. Em resumo, aquilo que poderia ter sido o gozo de uma liberdade natural havia sido corrompido pelas contradições em que o homem se enredara no seu processo de civilizar-se. Não apenas esse homem europeu-cristão não representa o homem na sua significação universal como manifesta um empobrecimento do sentido originário de hurríanidade.

Toda essa crítica e essa constatação de uma liberdade perdida repousam em um pressuposto, que os libertinos acreditam verificado pelo contato com os povos selvagens: a natureza humana é boa em si mesma; o homem é naturalmente bom. A essa convicção naturalista os jansenistas vão opor uma outra de ordem teológica: o pecado original comprometeu irremediavelmente a natureza original do homem, de modo que a sua condição atual o coloca muito distante da bondade primitiva e completamente despojado de meios próprios para recuperá-la. Essa insuficiência tornou-se característica da condição humana, que é a do pecado, de modo que a superação dessa condição não pode dar-se sem a ajuda de Deus, isto é, sem a dispensação da graça, concedida àqueles que ele escolheu para contemplar, de maneira gratuita e devida unicamente à sua misericórdia, já que o homem livremente renunciou ao merecimento. Concordam com a afirmação de uma bondade primitiva, pois o homem, criado por Deus à sua imagem e semelhança, teria de refletir, no estado de criatura, a perfeição do Criador. Criatura perfeita no seu gênero, uma das perfeições de que o homem dispunha era a liberdade. Ele a usou para afastar-se de Deus, sendo assim o responsável pela sua própria queda. Esta seria em princípio definitiva, porque o homem, dada a sua condição inferior, não poderia por si mesmo reparar a ofensa feita a um ser infinitamente superior. A gravidade da ofensa se mede pela dignidade do ofendido e não do ofensor: de acordo com tal princípio, a humanidade, que pecou em Adão, estaria, de maneira inteiramente justa, porque por sua própria escolha, destinada à danação. No entanto, Deus, movido pela sua misericórdia, que nesse caso superou a justiça, ofereceu a possibilidade de salvação por meio da única reparação devida, o sacrifício do próprio Deus na pessoa de Jesus Cristo, que trouxe aos homens, por via da paixão, a possibilidade de recompor a união com Deus. Trata-se de uma graça, isto é, de algo que Deus oferece independentemente do merecimento humano e por isso é somente através dessa graça que o homem pode triunfar sobre o pecado.

Os jansenistas acreditam, portanto, que os vícios que a humanidade veio adquirindo no processo de civilização têm como única causa o pecado original como afastamento voluntário do homem em relação a Deus. Isso muda o sentido da ação histórica, que os libertinos entendiam como decorrente da vontade humana insuficientemente esclarecida quanto às suas finalidades, e mistificada pela associação perversa entre religião e poder político, o que teria feito com que as iniciativas civilizatórias de progresso e emancipação redundassem na perda de liberdade e no empobrecimento do sentido da vida humana. Algo em princípio reversível pela própria ação humana, se a ação histórica pudesse ser liberada da carga dogmática e mistificadora que lhe foi imposta. Os jansenistas evidentemente não podem aceitar a eficácia dessa ação histórica, mesmo restaurada, nem a existência de criaturas “puras”, porque o ponto inicial da degradação do gênero humano situa-se numa relação direta entre o homem e Deus: a corrupção da natureza humana deveu-se a uma escolha que deve a sua singularidade a uma carga ontológica especial. O homem escolheu contra Deus, entendendo que estava escolhendo a favor de si, e com isso desqualificou-se como criatura — podemos dizer que repudiou a Deus. A decorrência que daí procede não pode comportar qualquer ação histórica de significação análoga, e o homem não pode reverter o processo de corrupção por si mesmo, como já vimos. Só resta portanto a iniciativa de Deus para que possa haver uma rearticulação entre o homem e o divino, já que o homem apequenou-se a tal ponto que o seu estado criatural passou a tender muito mais para o nada de onde foi criado do que para o absoluto que o criou. Enquanto os libertinos discutem a questão da degradação humana no terreno histórico-natural, os jansenistas entendem que o problema só pode ser compreendido no plano teológico e sobrenatural, tanto no que se refere ao pecado quanto no que concerne à salvação. Isso porque, se é verdade que o homem foi, na criação, dotado de uma natureza boa, é certo também que ele a perdeu definitivamente, no sentido em que não está em seu poder recuperá-la.

Mas essa posição contrária aos libertinos é uma das frentes de combate dos jansenistas. A outra polêmica eles a travam dentro do próprio cristianismo e no interior da Igreja Católica, contra a tendência laxista que visava acomodar a religião às deturpações históricas da civilização que poderiam comprometer a fé e a moral cristãs. O alinhamento da Igreja com a monarquia e a nobreza como classe dominante só poderia preservar os preceitos evangélicos reinterpretando-os num sentido bastante lato. A necessidade de manter tais alianças, sobretudo como estratégia de fortalecimento institucional diante do protestantismo, levava a Igreja Católica a procurar, na prática, os meios de adaptar a religião aos costumes do século. Nessa tarefa destacaram-se os jesuítas, num esforço prático e teórico de justificação de condutas morais que por vezes estavam bem distanciadas dos princípios religiosos. A isso prestava-se uma espécie de exercício dialético que ficou conhecido como casuística. Consistia em formular as condições concretas em que os princípios deveriam regular os casos particulares. Embora tal preocupação faça sentido, pois são inúmeras e indefinidamente diferenciadas as situações humanas em que se deve discernir o verdadeiro do falso, é claro também que a instância de aplicação não pode influir a ponto de modificar ou esvaziar o conteúdo dos princípios, sobretudo levando-se em conta, nesse caso, seu caráter sagrado. Acerca da importância dessa possibilidade de interpretar os preceitos basta lembrarmos que no século XVII havia a figura do diretor de consciência, função desempenhada em geral por um sacerdote, confessor, a quem cabia orientar espiritual e moralmente as pessoas, gozando portanto de confiança absoluta. O que os jansenistas punham em dúvida era se tal papel poderia ser bem desempenhado por pessoas que tendiam a fazer a balança das decisões morais pender mais para o lado dos interesses mundanos, ainda que no afã bem-intencionado de diminuir o peso da carga ascética da religião cristã sobre os ombros dos fiéis, principalmente quando tais fiéis eram aqueles ligados à riqueza e ao poder, para fazer desaparecer as contradições entre as leis de Deus e os interesses do mundo. Se a moral praticada pelo cristão não precisa diferir muito da postura do honnête homme, que poderia ser um ateu honesto, então bem pouco valera o sacrifício de Cristo em prol da restauração do homem perante Deus.

A afirmação absoluta da verdade e da singularidade do cristianismo é, assim, o que está por detrás do rigorismo jansenista. Daí a concepção pessimista do homem e do mundo que se nota principalmente em Barcos, Saint-Cyran e Pascal. Daí também a desvalorização da esfera mundana em todos os seus aspectos, conscientes que estavam, esses herdeiros de santo Agostinho, que é no cultivo intimista da alma que o homem encontra Deus, principalmente se souber, nessa procura, reconhecer a imensa distância que se abre entre o homem finito e corrompido e a absoluta infinitude de Deus. Foi esse rigorismo que deu aos jansenistas a fama de “docteur extrêmes”, como eram conhecidos no meio eclesiástico ern que se desenrolavam essas controvérsias. Com efeito, os jansenistas representam, na época, um cristianismo extremado, porque não podiam conceber a vivência da religião fora dessa radicalidade. O homem deve entregar-se todo a Deus simplesmente porque a salvação da sua alma depende unicamente da graça de Deus. Trata-se de uma posição derivada também de santo Agostinho: o homem, corrompido e esfacelado na sua identidade espiritual, só pode reintegrar-se e recuperar sua identidade em Deus.[2] Portanto, querer dividir com Ele a tarefa de salvação é manifestação de soberba e orgulho. Assim se compreende a posição extrema de um Barcos: o único caminho é a renúncia ao mundo e o cultivo solitário da interioridade. É nessa atitude de desapego, tão reiterada no Evangelho, que se encontra a única possibilidade do exercício da liberdade, se por liberdade entendemos a libertação, ou pelo menos a tentativa de libertação das correntes que nos prendem à corrupção. Na condição de pecado em que vive, o homem só se torna livre se logra libertar-se de sua própria condição: ainda que não o consiga, é nessa direção que deve envidar seus esforços, porque é a direção que o leva a Deus e que o afasta da nulidade a que o conduziu a sua extrema miséria. Se há aí um paradoxo — e veremos que Pascal o percebe intensamente — ele é inevitável. Se o homem for livre para permanecer no mundo como criatura decaída, a sua liberdade prolongará aquela exercida por Adão, e o resultado será a escravidão à concupiscência. Se o homem for livre para renunciar ao mundo e a si mesmo como criatura odiosa e corrupta, então essa liberdade só pode exprimir-se como submissão à graça, talvez mesmo como escravidão à graça. É a visão radical das consequências do pecado original que motiva a concepção também radical da moralidade cristã.

Eis o quadro em que se insere o pensamento de Pascal e a partir do qual ele conceberá a liberdade do homem. Mas há em Pascal algo que confere ainda mais intensidade ao paradoxo que mencionamos. Enquanto Barcos opta por uma renúncia ao mundo que se efetiva pelo abandono das coisas humanas, Pascal tentará praticar uma renúncia que Goldmann denomina renúncia intra mundana ao mundo. A atitude de Barcos se compreende como a de um cristão que, tendo constatado o movimento de sublimação da religião como recusa dos homens em aceitar a distância e o ocultamento de Deus, retira-se para o cultivo solitário da alma com a finalidade de fazer com que a meditação incessante sobre essa distância e esse ocultamento se tornem, de alguma maneira, meios de aproximar-se de Deus, não no sentido de romper, pelo conhecimento ou mesmo pela prece, a distância que separa o finito do infinito, ou a diferença entre a corrupção e a perfeição, mas no sentido de entregar a Deus, unicamente por via da caridade, a desordem e a inquietação de uma alma que vê na obscuridade do divino o único sinal de sua existência, e retira da sua própria fraqueza, trêmula de anseio pelo absoluto, o ímpeto de amor que deve a Deus. Godmann considera que essa atitude de oposição ao mundo evita que o paradoxo se revele até as suas últimas consequências e, assim, seja vivido como intrínseco à condição humana. Por isso ele definirá a radicalidade pascaliana como “recusa paradoxal e intramundana do mundo”.[3]

Na atitude de Barcos, a recusa do mundo é consequência da impossibilidade de que se realize, no mundo, a exigência absoluta de realização do absoluto, pois o mundo se caracteriza pela ausência de Deus, o seu infinito distanciamento. Mas, se essa ausência é um vazio do ponto de vista onto-teológico, é por outro lado plena de significação por ser a única forma de relação que o homem corrompido pode ter com Deus. O abandono do mundo apresenta-se como a única maneira de viver, pela prece e pela caridade, pela meditação solitária acerca dessa ausência, a relação possível com o divino. Dessa forma não se supera o paradoxo intrínseco ã relação entre o finito e o infinito, mas se recusa um dos seus termos na medida em que se recusa a existência no regime da mundaneidade. Se não se pode dizer que tal atitude anula um dos termos da relação paradoxal, porque isso equivaleria a dissolver o paradoxo, deve-se contudo admitir que ela obscurece o elemento finito, e assim obscurece o próprio paradoxo. Ora, para Pascal, a condição humana tem de ser compreendida e vivida na sua contradição, tornada constitutiva depois do pecado. Abandonar o mundo seria, pois, não propriamente recusá-lo, mas recusar-se a manter a polaridade contraditória entre o finito e o infinito em toda a sua extensão e significação. Isso não significa que a inteira manutenção da contradição me leve a compreendê-la, se por compreensão entendermos a conciliação dos termos. Justamente, a aceitação dos dois pólos da contradição é o que mostra o seu caráter inconciliável. Compreender esse caráter inconciliável é, portanto, inseparável da vivência da contradição e da constante presença do inconciliável diante de uma razão vocacionada à harmonia, manifestando assim a impotência dessa mesma razão perante uma questão essencial. Esta atitude conserva a incompatibilidade entre a exigência de absoluto e a possibilidade de sua realização como intrínseca à condição humana entendida como existência mundana. Aqui estaria talvez a principal diferença em relação a Barcos. A condição humana é vivida no mundo, e por isso o abandono do mundo a obscurece parcialmente, no sentido de que evita que todos os aspectos da contradição continuem a se mostrar na sua efetividade. No limite, a relação extramundana com Deus desejaria passar ao largo de aspectos candentes da finitude relacionados com o caráter intramundano da condição humana. A vivência radical da condição humana é a aceitação completa da contingência como plano de contradições. O ascetismo entendido como separação entre o homem e o mundo de alguma forma simplifica a patética complexidade do ser humano.

Dessa forma, não é simples responder a uma pergunta que decorre desse problema: o homem tem a liberdade de escolhera recusa do mundo? Se tal recusa significa o abandono do mundo, ela na verdade tem de ser entendida como uma escolha aparente, ou a escolha da aparência. Uma escolha aparente porque a opção pela separação não anula a natureza intramundana da condição humana: o mundo do qual nos separamos permanece no horizonte do asceta como uma referência negativa e como uma espécie de ideia reguladora da separação. Uma escolha da aparência, porque obscurece o caráter essencial do paradoxo que consiste na exigência de realizar, no mundo, algo que o mundo não pode comportar. Não temos a liberdade de escolher um dos termos do paradoxo, assim como não temos a liberdade de conciliar esses termos. A impossibilidade de reduzir ou de superar o paradoxo faz com que somente possamos pensar a liberdade humana a partir da contradição que constitui a nossa condição. Observemos que há um aspecto de ordem metafísica na radicalidade com que Pascal pensa a contradição entre a finitude e a exigência de infinitude. Quando Descartes, na Terceira Meditação, mostra que não poderíamos representar a ideia de infinito por negação da ideia de finito, porque a ideia positiva é a de infinito e, portanto, o mais certo é dizer que representamos a finitude a partir da ideia da infinito, ele não institui propriamente uma oposição, mas uma inclusão da ideia de finito na de infinito, na medida em que nos reconhecemos finitos ao pensar o que nos falta para realizarmos em nós a infinitude. Pascal, ainda que reconheça a precedência do infinito sobre o finito, não deixa de considerar a oposição que aí se inscreve, porque aquilo que Descartes concebe como o que nos falta para sermos infinitos, Pascal pensa como exigência absoluta de realização da infinitude. Isso faz com que a representação do infinito seja, mais do que uma maneira de pensar, um desejo irrealizável. Não se trata do desejo de ser Deus, mas de pôr, para o homem e para o mundo, exigências que em princípio só teriam sentido no plano do infinito, e de pô-las sabendo-as desde sempre impossíveis de ser cumpridas, porque só poderiam sê-lo numa síntese entre infinito e finito, possibilidade que se exclui na concepção de contradição insolúvel ou de paradoxo insuperável.

Há portanto em Pascal uma exigência de infinitude e uma insuperabilidade da finitude, ambas igualmente reais e efetivas. Daí a oposição, mas uma oposição dinâmica e existencial, e não apenas representada como urna concepção intelectual do homem. Vista dessa maneira, a oposição faz da condição humana uma condição trágica. O trágico se caracteriza como a concretude vivida das contradições insolúveis e das oposições inconciliáveis. Se o paradoxo é a figura lógica da impossibilidade, a tragédia, como paradoxo da existência, é a maneira concreta de viver essa impossibilidade. E vivê-la no mundo que, como ambiente existencial, mundo humano, deixa de ser o cosmo ordenado e passa a ser o lugar de manifestação da contradição essencial.

Mas se aceito a contradição entre exigência absoluta e condição relativa de existência, aceito também a incomensurabilidade dos termos envolvidos nessa relação entre o homem e o absoluto. O fato de que a exigência de absoluto é posta a partir do próprio absoluto não diminui a importância do fato de que é o próprio homem que põe, para si e para o mundo, uma tal exigência. Isso acentua o paradoxo, e faz do próprio homem, como um dos termos do paradoxo, um ser paradoxal em si mesmo. Como pode a vontade humana, relativa, finita e corrompida, querer o infinito? E como pode a liberdade dessa vontade finita visar a algo que ultrapassa o âmbito em que a princípio ela deveria exercer-se?

O problema da vontade em Pascal exige que mencionemos algo sobre a complexa questão da relação entre vontade humana e graça divina, bem como a posição assumida por Pascal e pelos jansenistas na polêmica com o molinismo. A posição jansenista, que Pascal descreve como sendo a dos “discípulos de santo Agostinho”, é, em resumo, a seguinte:[4] No momento da criação, estando Adão em “estado de inocência”, Deus tinha uma vontade geral e condicional de salvar todos os homens, desde que estes o quisessem e fizessem para isso uso da graça suficiente que lhes havia concedido. Tal graça suficiente não fazia com que Adão perseverasse infalivelmente no bem. Com efeito, ele pecou, fazendo do seu livre-arbítrio um instrumento de mau uso da graça suficiente. Com isso atraiu sobre si e sobre a humanidade a justa ira de Deus, estando assim todos condenados. Mas, por misericórdia, Deus teve a vontade de salvar uma parte dos homens, dentre a massa dos condenados, e para isso enviou Jesus Cristo, que pelo seu sacrifício mereceu a graça eficaz, de que podem desfrutar aqueles que Deus elegeu para salvar. A esse grupo de predestinados são chamados outros, que entretanto não perseveram, por sua própria vontade, a qual nesse caso não é auxiliada pela graça eficaz que Deus concede aos predestinados. Haveria portanto três grupos: os que estão desde sempre condenados e não chegam jamais à fé, e pelos quais Jesus Cristo não se sacrificou; os que chegam à fé mas não perseveram: Pascal diz que Cristo morreu por eles mas não pela salvação deles; e finalmente os eleitos, por cuja salvação Cristo morreu. No entanto, Pascal acrescenta a essa divisão algo que para nosso assunto é o mais importante: “Que todos os homens do mundo estão obrigados L.] a crer que fazem parte do pequeno número dos eleitos para a salvação dos quais Jesus Cristo morreu, e a pensar o mesmo acerca de todos os homens que vivem na terra, por piores e mais ímpios que sejam, enquanto lhes restar ainda um momento de vida, deixando para o segredo impenetrável de Deus o discernimento entre eleitos e reprovados”.[5] Observemos três pontos: 1) Adão possuía uma graça suficiente para perseverar no bem, mas não poderia fazê-lo necessária e infalivelmente. Era, portanto, livre para pecar, e o fez, o que significa que tampouco deveria pecar necessariamente. 2) 0 pecado ocasionou a corrupção da natureza humana e consequentemente o enfraquecimento da vontade, de modo que Deus concedeu aos que predestinou para a salvação urna outra graça, chamada eficaz, que fortalece a vontade de não pecar e possibilita a salvação. 3) Graça e perseverança possuem íntima relação, visto que a perseverança sem a graça não chega ao resultado salvífico. Não há portanto como sabei; acerca de si mesmo e dos outros, se essa relação se completará “enquanto lhes restar ainda um momento de vida”. Razão pela qual devemos crer (estamos “obrigados” a isso) que todos os homens fazem parte do pequeno número de eleitos.

Aparentemente existe aí uma contradição. Se há um pequeno número de eleitos, por que estamos obrigados a crer que todos os homens, “por piores e mais ímpios que sejam”, fazem parte desse pequeno número? 0 motivo aventado no texto é que não podemos penetrar nos desígnios de Deus. É o mais óbvio. Mas podemos supor também que a salvação, a reunião com Deus, o resgate da natureza humana corrompida pelo pecado original, seria aquela incorporação do infinito no finito que brota como exigência profunda da nossa condição trágica. Não seria essa exigência que nos obrigaria a pressupor que todos seremos salvos, embora saibamos, pela doutrina, que somente um pequeno número efetivamente o será? Não será essa oscilação entre o reconhecimento da nossa miséria e da nossa corrupção, pelas quais não merecemos a salvação, e a graça de Deus como dom gratuito que pode nos tocar e salvar, que subjaz à obrigação de crer na salvação, e de nela apostar tudo? É bem verdade que a salvação, como resgate da natureza humana, não significa a realização da exigência de absoluto no mundo, mas no plano da eternidade, e assim ela não poderia ser realmente considerada superação do paradoxo. Mas não seria essa possibilidade de realização da integração ao absoluto pelo Juízo Final a confirmação de que o paradoxo é insuperável no mundo, e de que a nossa condição intramundana somente oferece como perspectiva de absoluto a crença ou a aposta em algo que estaria além do mundo? Seria essa a justificativa pascaliana para escolher livremente a crença, no sentido de apostar no infinito?

Talvez a questão fique melhor configurada se atentarmos bem para a expressão usada por Goldmann para definir a atitude de Pascal: recusa intramundana do mundo. Se é bem verdade que nossa condição é inelutavelmente intramundana, e que nenhum grau de ascetismo fará com que o homem possa deixar sua condição, por outro lado também é verdade que se trata de uma recusa. E a singularidade da vivência pascaliana do paradoxo está toda em viver no munClo e recusá-lo ao mesmo tempo, ou melhor, estar no mundo na forma da recusa ou da negação desse próprio mundo. No que concerne à questão da liberdade, o paradoxo se recoloca de forma mais intensa. Não tenho a liberdade de abandonar o mundo, a não ser escondendo-me dele, o que é uma maneira de escamotear o paradoxo. E se pretendo exercer a liberdade de recusar o mundo a partir do próprio mundo, de dentro dele, isso somente ocorrerá a partir de uma consciência profunda da contradição inerente ao próprio sujeito, e que o torna “capaz” de duas atitudes contraditórias entre si, porque ele mesmo é um ser contraditório, e é o dilaceramento interno que o condena (mais do que o “capacita”) a uma existência paradoxal. Pois a liberdade originária, que fez com que o homem, que possuía a graça suficiente para não pecar, pecasse, permanece, mas a vontade que se associa a essa liberdade está enfraquecida e curvada sob o peso do pecado, e requer a graça eficaz para perseverar no bem, a partir da pressuposição de que pode contar com a misericórdia divina. A liberdade de pecar incorporou-se ao homem pela corrupção, e como que apossou-se de sua alma. A liberdade de não pecar, contrapartida desse arbítrio corrompido, existe, mas muito mais como um sinal reminiscente da primeira natureza do que como uma efetividade presente. Ela se mostra, contudo, na liberdade de perseverar. Ora, como a corrupção da alma e a corrupção do mundo se correspondem, a perseverança no bem, na esperança de que Deus nos tenha agraciado, envolve a recusa do mundo, que representa um grande desvio para a alma em direção à sua salvação. É dessa maneira que estar no mundo recusando-o é a única forma de corresponder à graça presumida. É a única forma de reaproximar-se do Deus distanciado: fazendo da distância infinita a rota indefinida dessa reaproximação de um Deus oculto. Sem ver claro em Deus, sem ver claro no mundo, sem ver claro em si, a alma pode contar apenas com a contradição que a define, porque ao menos um dos termos dessa contradição a faz desejar e exigir o absoluto. Por isso a condição tragicamente dividida do homem é a sua única possibilidade de aspirar a uma reintegração da identidade perdida. Esta possibilidade manifesta a insuficiência constitutiva na medida em que a aspiração se dissolve no horizonte negativo da irrealização humana e da inacessibilidade dos desígnios de Deus. Trata-se, portanto, de uma esperança nascida do desespero e de uma crença nascida da incerteza. Daí o apelo patético ao libertino para que aposte no infinito, isto é, no “silêncio eterno” e no terror, porque só nessa paisagem enigmática poderá talvez o homem encontrar alguma chance de recolher os pedaços de sua subjetividade.

Assim a liberdade, embora se enraíze na perfeição originária, torna-se na condição atual a expressão de uma subjetividade desunida de si mesma. E isso porque a primeira manifestação da liberdade, a primeira decisão livre a partir da qual o homem procurou discernir o seu futuro, foi o afastamento de Deus e o alheamento da imagem divina impressa na sua alma. A inquietação a partir daí provocada, que deveria operar o retorno do homem para Deus, perverteu-se no gozo demoníaco do exílio voluntário em que a alma corrupta se compraz, cada vez mais aprofundando a sua liberdade para o mal. É por isso que a vivência radical do paradoxo exige que a memória da grandeza perdida se associe sempre à consciência da miséria que o homem abraçou livremente. E assim nenhum pensamento, nenhuma esperança, nenhum gesto do homem podem se dar fora do contexto trágico da sua condição.

Adão, Jesus Cristo.

Se vos unem a Deus, é em virtude da graça, não da natureza. Se vos rebaixam, é

[por penitência, não por natureza.

Assim, essa dupla capacidade…

Não vos encontrais no estado de vossa criação.

Como esses dois estados se acham abertos, é impossível que não os reconheçais. Segui vossos movimentos, observai-vos a vós mesmos, e vede se não encontrais aí os caracteres vivos dessas duas naturezas. Tantas contradições se achariam em assunto simples? (Fr. Laf 149/Br. 430)

A polaridade Adão/Jesus Cristo está presente em vários fragmentos. Cada um dos termos possui duas significações. Adão significa primeiramente a inocência e a graça suficiente para não pecar, ou seja, a primeira natureza; mas significa também aquele pelo qual o pecado veio ao mundo, a corrupção da natureza. Jesus Cristo é, em primeiro lugar Deus, fonte da perfeição e da graça; mas significa também — e em Pascal essa conotação é decisiva — o mediador, aquele pelo qual a salvação veio ao mundo, o homem-Deus sacrificado na cruz. É por isso que mesmo Adão em estado de inocência não estava unido a Deus por sua simples natureza, mas em virtude de ter sido Deus o criador dessa natureza, em princípio boa, e, assim, uma graça concedida. Por isso mesmo, o pecado não proveio da simples natureza, mas da liberdade de que desfrutava Adão para desviar a sua natureza para o mal. Assim como a união primitiva com Deus dependia da graça suficiente, inerente à natureza criada por Deus, assim a salvação depende da graça trazida por Jesus Cristo. Assim como a felicidade da primeira união com Deus podia ser descrita como graça, a infelicidade de que o homem desfruta no estado de pecado só pode ser vivida como penitência. O estado de graça é o estado de grandeza; o estado de penitência é a condição de miséria. Na condição humana eles são inseparáveis: “Assim essa dupla capacidade […]”. O homem só pode conhecer algo de si reconhecendo-se nessa dupla capacidade, que corresponde a “duas naturezas”, as quais se apresentam a nós com “caracteres” igualmente “vivos”. Esse conhecimento é parcial e obscuro devido às “tantas contradições” que constituem o homem, que está, portanto, bem longe de poder ser captado como aquela entidade “simples” que Descartes julgou encontrar.

A natureza do homem considera-se de duas maneiras: uma segundo o seu fim, e então ele é grande e incomparável; outra segundo a multidão, como se julga a natureza do cão e do cavalo, ao ver sua corrida e seu animum arcendi; e então, o homem é abjeto e vil. Eis as duas vias que levam a julgar esse assunto diversamente, e que fazem tanto discutir os filósofos! (Fr. LaE 127/Br. 415)

O homem possui uma natureza “grande e incomparável” “segundo o seu fim” porque a finalidade do homem é Deus, uma vez que Deus criou o homem, em última instância, para si (Deus). Mas o homem é abjeto e vil quando aplica a parte sensível de sua natureza (animum arcendi) para afastar-se de Deus, rebaixando-se à condição das bestas. É, portanto, em relação à sua natureza como grande e incomparável que o homem é também abjeto e vil. Os animais, que não possuem essa duplicidade, não fazem do animus arcendi ocasião para tornarem-se abjetos e vis: simplesmente possuem um lugar, único e demarcado, no conjunto natural dos seres. O homem não ocupa um lugar, mas oscila entre o lugar privilegiado de única criatura não apenas criada mas destinada a Deus e o lugar abjeto da besta que se tornou pelo pecado e pela concupiscência. São esses dois lugares ocupados ao mesmo tempo que fazem do homem um ser paradoxal e incompreensível. Mas o único saber de si consiste em deparar-se com essa incompreensibilidade: ela é o centro da lição de Pascal sobre o homem. E é nesse sentido que ele julga ter compreendido mais acerca do homem do que os filósofos que o definiram por apenas um desses pólos opostos, e assim constituíram acerca do mesmo objeto teor4is que são incompatíveis entre si, julgando “diversamente” uma diversidad que está paradoxalmente unificada.

Se ele se gaba, rebaixo-o.

Se ele se rebaixa, gabo-o.

E o contradigo sempre.

Até que compreenda

Que é um monstro incompreensível. (Fr. Laf 130/Br. 420)

Esta “lição antropológica” não pode ter como finalidade o conhecimento do homem, tal como o propõem as filosJfias de estrito racionalismo, como Descartes, ou como supõem as descrições parciais de Epiteto e Montaigne. Pois o que Pascal visa é negar as afirmações peremptórias que enaltecem a grandeza ou lastimam a miséria. É no entremeio dessas negações que pode nascer uma “compreensão”. Mas Pascal não é um filósofo do meio-termo como Aristóteles. O que ele deseja não é estabelecer o justo meio entre grandeza e miséria, mas mostrar que as duas dimensões estão absolutamente ligadas, de tal modo que descuidar qualquer uma delas é perder de vista o homem. A compreensão nasce da contradição (“E o contradigo sempre./Até que compreenda”), mas essa “compreensão” jamais será a solução do problema do homem, porque o que há para compreender é a incompreensibilidade: o “monstro” de duas naturezas. A compreensão acompanha, pois, o caráter contraditório do que há para ser compreendido: ela é a compreensão de que o homem é incompreensível. É um “conhecimento” que só pode ser elaborado por um pensamento trágico, aquele que põe diante de si o paradoxo em toda a sua radicalidade, e permanece suspenso diante dele. Esse percurso, que poderíamos denominar antropoteo-lógico, teria o objetivo de recuperar por outras vias, algo como uma ideia universal de homem, abalada pelas injunções históricas que mencionamos no início? A resposta poderia ser afirmativa, se nos guardarmos de compreender no sentido teórico a noção pascaliana de homem. Mas tudo indica que Pascal considera que a religião cristã, da maneira como ele a concebe, é a única que pode dar conta das contradições inerentes à condição humana, não porque as justifica, mas porque as apresenta nos artigos de fé e na corroboração histórica da verdade dessa fé.

Dessa maneira Pascal se coloca numa posição contrária tanto ao naturalismo dos libertinos quanto ao otimismo racionalista dos cartesianos, recusando o realismo insuficiente dos primeiros e o idealismo exacerbado dos segundos. Com isso ele acompanha a recusa jansenista de aceitar uma acomodação entre a natureza e a graça. Tanto o conhecimento empírico do libertino quanto a introspecção dos idealistas não atingem o núcleo contraditório do problema do homem.[6] O homem é um ser paradoxal que pelo lado da grandeza se supera (“o homem ultrapassa infinitamente o homem”), mas essa superação se constitui em outro paradoxo, pois o que deveria ser atingido por ela está irremediavelmente comprometido pela distância que separa o homem de Deus. Estar diante do infinito, desejá-lo, é sinal de grandeza e é ao mesmo tempo motivo de terror. “0 silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.” (Fr. Laf 201/Br. 206) Para Pascal, o infinito se estende em duas direções, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno (Fr. Laf. L99/Br. 72). De forma análoga se poderia dizer que o infinito se estende pelos espaços além do homem e pela dimensão plural, confusa e indefinida que se abre dentro do homem, porque o Eu é uma entidade ilocalizável em meio à multiplicidade de estados e afetos. Esse espaço abissal, em que o homem vaga à procura de si e de Deus, é também o solo movediço da liberdade. Uma profundidade que não fundamenta, porque comprometida com o caráter monstruoso que configura as feições da condição humana. Esta é a razão pela qual a liberdade só pode exercer-se no contexto instável em que a condição humana se apresenta tragicamente. Aquela que seria a nossa escolha fundamental, a da salvação, está pendente dos desígnios inacessíveis de Deus. Nossas escolhas mundanas estão comprometidas com um jogo de paixões que não dominamos. Por isso temos de recusar o mundo, ocasião da inevitável gratuidade de nossas opções, inteiramente vinculadas à mais completa contingência, mas a contrapartida dessa recusa da finitude não é a positividade do infinito nem a presença do absoluto. Só resta ao homem, portanto, entregar sua liberdade ao Deus absconditus, pela mediação do Cristo que trouxe a graça de Deus, entendendo a graça não como um critério de escolha, mas como uma certeza do coração, cultivada na caridade, de que não seremos abandonados por Deus se, vivendo em nós a recusa de nós mesmos, nos entregarmos inteiramente a ele.

 

[1] Cf., a esse respeito, A. Koyré. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Florense, 1896. L. Verga. “Libertinos e jansenistas”, em S. Rovighi (org.), História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 1999.

[2] Cf, a respeito, a tese de doutoramento de Moacyr Novaes.

[3] L. Goldmann. Le Dieu caché. Paris: Gallimard, 1959, p. 176.

[4] Cf E. Pascal. Dettx pièces imparfaites sur la grâce et le Concile de lkente. Paris: Ed. Lafuma, Vrin, 1947. 0 mesmo texto está nas Oeuvres Complètes, com o nome de Écrits sur Ia Grâce. Paris: Ed. Lafuma, Seuil, 1963.

[5] E. Pascal. Deux pièces…, p. 31.

[6] Cf., a respeito, P Bénichou. Morales du Grand Siècle. Paris: Gallimard,1948, pp.126-54.

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