2011

Ciência e religião: crença contra crença?

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

O verbete croyance, da Encyclopédie, introduz uma distinção tipicamente iluminista entre a crença baseada no testemunho e a baseada no objeto.

A baseada no testemunho é o consentimento dado pelo espírito a uma proposição que retira sua força da autoridade de quem a enuncia, a exemplo da ressurreição de Cristo no terceiro dia, pois ela deriva sua credibilidade do testemunho dos apóstolos, que viram esse milagre, e do Novo Testamento, que relata esse testemunho, e cuja veracidade é por sua vez assegurada pela crença na Revelação, tal como ela se manifesta nas Escrituras. A crença baseada no objeto, ao contrário, é o assentimento dado pelo espírito a uma proposição que exprima de modo claro e distinto a relação de conveniência ou inconveniência entre o sujeito da proposição e seu atributo, a exemplo de “dois e dois são quatro”, pois nela se nota claramente a relação de conveniência entre o sujeito da cópula — duas vezes dois — e o atributo, quatro.

À primeira espécie de crença chama-se fé, adesão firme do espírito a uma proposição vivida subjetivamente como verdadeira. Mas como essa verdade não pode nem ser demonstrada more geométrico, nem comprovada empiricamente, ela depende inteiramente da autoridade de uma pessoa ou instituição; no caso do cristianismo, da Igreja, intérprete legitima da Revelação. Só as crenças da fé podem ser chamadas de crenças, no sentido próprio. A segunda espécie, a crença baseada no objeto, pertence ao domínio da ciência. Não se crê que a neve seja branca, tampouco que os três ângulos de um triângulo somem dois ângulos retos, pois essas proposições são tomadas por verdadeiras. Mas mesmo nesse caso pode-se falar em crença, num sentido fraco, porque também as proposições desse gênero exigem assentimento, como as crenças da fé, com a diferença de que a convicção dispõe então de fundamentos mais sólidos, porque se baseia na razão e na experiência, e não numa fonte cuja veracidade não é verificável.

Apesar de tal distinção remontar à Escolástica, os enciclopedistas tiraram proveito dela, num sentido que se pode facilmente supor. Tanto que tal verbete da Encyclopédie é o fundamento conceitual da cruzada antirreligiosa dos filósofos do século XVIII. Assim, o que houve foi uma luta entre a crença e a ciência, ou melhor, entre uma crença puramente subjetiva, fundada numa tradição pouco confiável e numa autoridade despótica, e uma crença objetiva, baseada seja na evidência lógico-matemática, seja na observação ou na experiência.

Essa distinção foi legada aos dois séculos seguintes, na forma de uma luta ininterrupta entre a ciência e a religião, cujos protagonistas, no campo racional e científico, são figuras tão heterogêneas como Renan e Taine, Marx e Engels, Spenser e Haeckel, e, no campo fideísta, os contrailuministas teocráticos, como Joseph de Maistre e Bonald, e os católicos ultramontanos, como Louis Veuillot e Lamennais, fiéis ao antimodernismo do Syllabus, de Pio IX, para não mencionar os grandes convertidos do século passado, Péguy, Bloy, Bernanos e Maritain, e no integrismo do cardeal Lefebvre.

Atualmente, tal oposição é caracterizada por dois radicalismos, um extremismo cientificista digno de Renan, e, nas três religiões monoteístas, um extremismo fundamentalista digno de Torquemada. Nesse novo contexto, não se trata tanto do conflito entre crença e ciência, mas de um religião que se torna científica, e de uma ciência que se torna religiosa. Em outras palavras, assistimos à coexistência de um fanatismo religioso que usa todas as armas da ciência e da técnica (como se observa no terrorismo islâmico) e de uma ciência que prega o ateísmo como se fosse uma guerra santa (cujo expoente máximo é Richard Dawkins).


Podemos definir a crença como a adesão do espírito a uma proposição considerada verdadeira. Há vários tipos de crença, conforme a natureza da proposição à qual damos nosso assentimento. Há crenças filosóficas, como a crença na razão e na perfectibilidade humana. Assim, podemos crer, como o solene personagem de Flaubert, Monsieur Homais, que o progresso material e moral da humanidade andarão sempre juntos, em direção a um futuro radioso de bem-estar e harmonia. Ou crenças políticas, como a que implica apoiar ou desaprovar uma ideologia, um regime, um governo ou um líder. Desse modo, podemos crer (ou não, porque a descrença é também uma crença) que o mundo marcha para o socialismo, ou que o capitalismo é o reino da liberdade e da abundância, ou que o governo de Chávez é a aurora de uma América bolivariana.

Mas gostaria aqui de dar destaque especial a dois tipos de crenças, em sua relação mútua: as crenças religiosas e as científicas.

Meu ponto de partida é o verbete croyance, da Encyclopédie. Parecendo repetir ideias que vinham desde a Escolástica, o enciclopedista introduz uma distinção tipicamente iluminista entre a crença baseada no testemunho e a baseada no objeto. A baseada no testemunho é o consentimento dado pelo espírito a uma proposição que retira sua força da autoridade de quem a enuncia. Por exemplo, a credibilidade da proposição segundo a qual Cristo ressuscitou no terceiro dia deriva do testemunho dos apóstolos, que viram esse milagre, e do Novo Testamento, que relata esse testemunho, e cuja veracidade é, por sua vez, assegurada pela crença na Revelação, tal como ela se manifesta nas Escrituras. A crença baseada no objeto, ao contrário, é o assentimento dado pelo espírito a uma proposição que exprima de modo claro e distinto a relação de conveniência ou inconveniência entre o sujeito da proposição e seu atributo. Por exemplo, na proposição “dois e dois são quatro” vemos claramente a relação de conveniência entre o sujeito da cópula — duas vezes dois — e o atributo, quatro.

O primeiro tipo de crença é o que o verbete chama fé, adesão firme do espírito a uma proposição vivida subjetivamente como verdadeira. Mas como essa verdade não pode ser demonstrada more geometrico nem comprovada empiricamente, ela depende inteiramente da autoridade de uma pessoa ou instituição — no caso do cristianismo, autoridade da Igreja, intérprete legítima da Revelação. Só as crenças da fé podem ser chamadas de crenças, no sentido próprio. O segundo tipo, a baseada no objeto, pertence ao domínio da ciência. Não cremos que a neve seja branca nem cremos que os três ângulos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos retos — sabemos que essas proposições são verdadeiras. Mas mesmo nesse caso podemos falar em crença, porque também as proposições desse gênero exigem nosso assentimento, como as crenças da fé, com a diferença de que nosso consentimento tem agora fundamentos mais sólidos, porque se baseia na razão e na experiência, e não em fontes cuja veracidade não temos o poder de controlar.

Há certa ambivalência nesse verbete. Ao distinguir crença de saber, ele está no veio central do pensamento iluminista, para o qual existe uma diferença de natureza entre uma convicção puramente subjetiva, fundada numa tradição pouco confiável e numa autoridade despótica, e uma convicção objetiva, baseada seja na evidência lógico-matemática, seja na observação e na experiência. Mas ao dar o rótulo de crença tanto à religião quanto à ciência, o verbete estava indiretamente dando munição a certo ceticismo, para o qual deveríamos suspender o julgamento tanto quanto às afirmações baseadas na fé quanto às derivadas da razão. Ora, logicamente, o ceticismo é incompatível tanto com a posição religiosa como com a antirreligiosa. Não posso dizer ao mesmo tempo que Deus existe (ou não existe) e que minha razão é incompetente para afirmar ou negar sua existência. Inconscientemente, o autor do verbete tentou mediar entre as duas posições: sim, quando digo que a lei da queda dos corpos é válida, estou exprimindo uma crença, do mesmo modo que estou exprimindo uma crença quando digo que Cristo ressuscitou Lázaro, mas não, essas duas crenças não são equivalentes, porque uma é sustentada por provas e a outra somente pela autoridade. Essa mediação conceitual reflete a mediação histórica que se deu na prática. Na época das Luzes, o dogmatismo antirreligioso conviveu muito bem com o relativismo cético, porque as duas correntes se uniram para condenar, ou submeter à suspensão do julgamento, as crenças da fé, e apenas elas. Essa convergência desapareceu em nossos dias. Hoje em dia a suspensão do julgamento é mais um recurso dos que querem negar a validade e a universalidade da razão leiga que dos que pretendem defender esses atributos. O ceticismo mudou de campo. Ele está em casa entre os antropólogos, para os quais não há nenhuma diferença essencial entre a crença primitiva nos espíritos e a crença da física moderna na existência de partículas subatômicas, já que todas essas entidades são invisíveis. Ele prospera, também, junto aos grupos religiosos que combatem Darwin dizendo que a evolução “é só uma teoria” — apenas uma crença — ou afirmam que a crença científica exposta por Darwin tem o mesmo estatuto que a crença bíblica num Deus criador.

A clareza da distinção entre as crenças baseadas na fé e as que vêm da Revelação encontra um primeiro obstáculo no fato de que nem todas as religiões aceitariam ser classificadas entre as que dependem exclusivamente da tradição e da autoridade.

A posição oficial da Igreja Católica, por exemplo, é de que a fé e a razão, parecendo opostas, são na verdade complementares. A verdade emana dessas duas fontes, e as duas se iluminam mutuamente. A recente encíclica papal Fides et ratio insiste nessa compatibilidade. Para João Paulo II, a inteligência pode levar-nos à fé — intellego ut credam —, para crer é preciso compreender. Mas o contrário também é verdadeiro. Para ter acesso a certos tipos de conhecimento que escapam ao que pode ser adquirido pela razão natural e pelos sentidos, precisamos recorrer à fé — credo ut intellegam.

Infelizmente essa bela reciprocidade é perturbada pela circularidade do argumento. A primeira parte do argumento — compreendo para que possa crer — é problemática, porque somente posso intellegere de modo competente se já acreditar, de saída, naquilo mesmo que se trata de investigar. Ora, a razão natural pode levar-me a um discreto deísmo, como o contido na hipótese voltairiana do Deus-relojoeiro, mas não a concordar com as proposições da fé que afirmam a existência de um só Deus em três pessoas ou anunciam que uma Virgem deu à luz. Para chegar à Trindade, aos milagres de Cristo e à sua ressurreição, temos que transcender a razão, ensaiando um acrobático “salto de fé”, como diria Kierkegaard. E a segunda parte do argumento — creio para que possa compreender — é igualmente falaciosa, porque a crença só ajuda o conhecimento quando o conhecimento que se quer obter for congruente, ab initio, com a crença que desencadeou o processo de busca da verdade. Se parto da crença numa religião monoteísta e providencialista, é evidente que só me parecerão válidos os conhecimentos compatíveis com essa crença. Em suma, a tese de que só posso crer se compreendo e só posso compreender se creio somente é verdadeira se aceitamos de início uma crença de nível lógico mais elevado, uma leibniziana metacrença que postule uma espécie de “harmonia preestabelecida” entre as verdades descobertas pela razão e as reveladas pela fé. Mas com isso cometemos o erro de lógica que os escolásticos chamavam petição de princípio, isto é, dar por demonstrado aquilo que se tratava justamente de demonstrar, a compatibilidade de princípio entre os dois campos, o da fé e o da razão.

Tertuliano pode não ter escrito as palavras que lhe são atribuídas — credo quia absurdum —, mas a frase em si não é absurda. O que a frase significa, numa formulação menos provocativa, é que o próprio da fé é crer, sem necessidade de compreender. Em todas as religiões, o primado da fé é indiscutível. Daí, em todas as ortodoxias, o papel central do Credo, que significa “creio” e resume as credenda, “as coisas em que devemos crer”.

O Credo católico foi redigido pelos Doutores da Igreja no Concílio Ecumênico de Niceia, em 325, formulado de modo a condenar o arianismo, que negava a divindade de Cristo e sua consubstancialidade ao Pai. Séculos depois, a Igreja do Ocidente provocou um cisma com a Igreja do Oriente ao introduzir sub-repticiamente nesse Credo uma expressão latina que dava igual dignidade ao Pai e ao Filho — a famosa cláusula filioque, que fez correr muita tinta e muito sangue. Os católicos acreditavam na transubstanciação, metamorfose real, e não simbólica, do pão no corpo de Cristo, enquanto os protestantes acreditavam na consubstanciação, doutrina que via na hóstia os dois ingredientes, o trigo e a carne de Cristo. Foi em torno dessas crenças, e não de teorias, que se perpetraram algumas das piores atrocidades da história.

Não há dúvida: historicamente, saber e fé quase sempre estiveram em campos muito diferentes, se não opostos, apesar da síntese aristotélico-tomista tentada durante a Idade Média e das belas palavras de João Paulo II de que “a fé e a razão constituem como as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”. O certo é que nenhum dos dois campos se notabilizou pela tolerância.

No campo religioso, a intolerância se manifestou, antes de tudo, sob a forma de hostilidade a religiões rivais ou ao ateísmo. A intolerância, nesse sentido, foi a regra pelo menos desde o advento do cristianismo, em contraste com o paganismo, em geral aberto aos deuses estrangeiros. As vítimas dessa intolerância foram, durante a Idade Média, os cátaros, quase inteiramente extintos em consequência da campanha contra os albigenses, os hereges em geral, que pagavam com a morte nas fogueiras da Inquisição o crime de sustentarem opiniões heterodoxas, e especialmente – os judeus, em particular os convertidos reincidentes, culpados de pertencerem a um povo deicida. As Cruzadas foram exemplos apavorantes de violência praticada em nome da religião: gritando Dieu le veut, os guerreiros de Cristo ensanguentaram a Terra Santa. No período moderno, as vítimas foram os protestantes massacrados pelos católicos, e vice-versa, como os protestantes perseguidos na França e os católicos perseguidos na Inglaterra. Além disso, as vítimas da intolerância eram elas próprias intolerantes. Calvet foi executado em Genebra, por ordem de Calvino. Os puritanos ingleses, atingidos pela intolerância anglicana, foram ser intolerantes na América, queimando bruxas em Salem e exterminando a população indígena com o mesmo zelo sagrado com que os hebreus bíblicos tinham exterminado os primeiros habitantes de Canaã.

Mas a religião foi intolerante, sobretudo, com a ciência, mesmo quando os cientistas eram crentes. Os inimigos não eram mais os ateus ou os que professassem religiões diferentes, mas os que sustentavam opiniões científicas que fossem, ou parecessem ser, incompatíveis com as Santas Escrituras. O conflito mais famoso, dentro dessa linha, foi o que opôs a Igreja à teoria heliocêntrica e levou ao processo contra Galileu. A Igreja Católica, inicialmente adversária do darwinismo, que parecia contradizer o relato bíblico sobre a criação do homem, acabou se reconciliando com a teoria da evolução, mas de modo geral as seitas fundamentalistas de hoje continuam de lança em riste contra Darwin.

No campo da razão profana, as paixões antirreligiosas foram igualmente tempestuosas. De modo geral, todos os filósofos da Ilustração combateram as Igrejas oficiais. Os materialistas, na linhagem de Holbach, Helvétius e La Mettrie, não aceitavam sequer um deísmo à Voltaire e à Rousseau, que acreditavam pelo menos na existência de um supremo arquiteto do universo. O lema de Voltaire — écrasez l’infâme — resume a luta contra o obscurantismo religioso. Kant transpõe a mesma ideia na forma aparentemente menos belicosa de um verso de Horácio — sapere aude, ousa fazer uso de tua razão. Para ele, a religião institucionalizada inibia e censurava o entendimento, submetia o espírito a uma tutela ilegítima, perpetuava o estado de minoridade do ser humano e paralisava, assim, o conhecimento.

De modo geral, esse modelo se manteve durante o século XIX: estimular o conhecimento significava libertar o homem dos grilhões religiosos.

É o que pensava Feuerbach, para quem a religião é a forma alienada da essência humana, e para quem o saber passa pela superação dessa consciência alienada, reconduzindo o espírito ao chão de onde brotou a ilusão religiosa, a “realidade rugosa” da vida material.

Marx partilhava a opinião de Feuerbach de que a religião é a simples projeção das carências reais. É “o suspiro da criatura oprimida, a emoção de um mundo sem coração, a expressão espiritual de condições sociais desprovidas de espiritualidade”. É certo que a crítica da ilusão religiosa não é uma tarefa política prioritária, porque o objetivo deve ser a transformação daquelas relações das quais a religião é um simples “perfume espiritual”. Mas não há dúvida de que para Marx a religião era a antítese da verdade científica. Por um lado, há a ciência do materialismo histórico, que dá acesso à realidade, descobrindo as leis do movimento do capital, e por outro há a religião, que impõe uma leitura mistificadora dessa realidade, mergulhando os atores sociais na falsa consciência, que funciona como o ópio do povo.

Freud é herdeiro direto dessa tradição. Ele usa para definir a crença religiosa o mesmo termo que Marx: ilusão. A diferença é que, para a psicanálise, a ilusão não provém das relações sociais, e sim da necessidade humana de produzir fantasias, a serviço da realização de desejo. A base da fantasia religiosa é a vontade inconsciente de prolongar a infância, levando o homem a crer num pai suprassensível capaz de tornar suportáveis os sofrimentos impostos pela natureza e por uma sociedade injusta. A religião é um obstáculo ao progresso científico, na medida em que oferece um atalho para alcançar pseudoverdades, em detrimento da via longa e tortuosa que conduz às modestas certezas da ciência. Assim, na melhor tradição das Luzes, Freud endossa a opinião de Heine de que devemos abandonar o céu aos anjos e aos pardais.

Mas, com o tempo, uma trégua se esboçou entre a religião e a ciência. As duas se tornaram mais tolerantes. A religião passou a ser uma simples questão de opinião, pela qual não valia a pena acender fogueiras. O processo de secularização levou ao “desencantamento” da natureza, abrindo espaço para a visão científica do mundo, e a religião foi sendo deslocada para a esfera do foro íntimo, perdendo com isso sua virulência destrutiva, enquanto a ascensão do Estado liberal criou uma instância neutra capaz de assegurar a coexistência pacífica das várias crenças.

Mas há indícios inquietantes de que esse modus vivendi pode estar com os dias contados. Nos dois campos estão surgindo tendências extremistas que podem colocar em xeque o armistício alcançado. No campo da fé, a ameaça é o fundamentalismo. No campo da razão secular, é o cientificismo.

Em meados do século XIX um jornalista francês, François Buloz, editor da Revue des deux mondes, rejeitou um artigo de caráter religioso alegando que “Deus não era um assunto de atualidade”. Isso era verdade em sua época. Mas, como jornalista sensível a todas as novidades, Buloz seria hoje mais prudente. Não recusaria um artigo sobre o tema, porque a leitura dos jornais lhe mostraria que a religião ficara de novo atual, em sua variante mais maligna: a fundamentalista.

Não vou repetir o que já disse em um dos nossos ciclos anteriores sobre a gênese, a natureza e a abrangência do fundamentalismo. Quero apenas reiterar que é uma patologia social que hoje assola a humanidade inteira e contamina as três religiões monoteístas. Os três fundamentalismos têm vários traços em comum. Todos eles pregam uma volta às origens. Os crentes devem respeitar literalmente os preceitos dos textos sagrados — Corão, Torá, Velho e Novo Testamento. Os costumes devem ser reformados à luz da respectiva lei — a shar’ia para os muçulmanos, a halacha para os judeus e a moral puritana para os cristãos. Apagam-se as fronteiras entre a esfera privada e a pública. O ideal do Estado leigo entra em eclipse e renasce a visão teocrática do mundo. E o que é mais grave: os três fundamentalismos são violentos, ou comportam correntes que advogam e praticam a violência. Lembrarei também que entre as causas do fundamentalismo há um fator conjuntural e, esperemos, transitório: a guerra no Oriente Médio. A guerra estimula a fuga para posições irracionais, quando todas as vias racionais parecem estar bloqueadas. É um processo circular, em que o fanatismo nos dois campos frustra a paz e a ausência total de perspectivas para uma paz durável exacerba as paixões religiosas. Mas há também fatores estruturais, alguns dos quais são específicos, valendo somente para algumas sociedades, e outros são genéricos, aplicáveis a todas as variantes do fundamentalismo. Entre os específicos, podemos apontar os que se aplicam, por exemplo, ao fundamentalismo islâmico e ao fundamentalismo “pentecostal” brasileiro, como a anomia resultante do processo de industrialização, a dissolução dos vínculos tradicionais de solidariedade, a discriminação étnica, a marginalidade social e a perda de prestígio do marxismo enquanto religião leiga. Entre os fatores genéricos, válidos para todas as modalidades de fundamentalismo, estão a dificuldade de inserção na economia, numa fase em que o capitalismo tem características fortemente excludentes, e a desorientação diante do desaparecimento dos valores tradicionais, em consequência do processo de globalização.

No outro campo, o racionalista, está surgindo um extremismo científico aproximadamente comparável ao fanatismo religioso. Digo aproximadamente porque só um amor excessivo pela simetria poderia levar-nos a equiparar a crença numa Revelação inverificável, que continuaria intacta mesmo que todos os indícios apontassem numa direção oposta, com a crença nas descobertas da ciência, baseadas em provas empíricas e refutáveis por novas evidências. Mas não se trata de comparar o teor de verdade da religião com o da ciência, porque os dois campos funcionam em registros totalmente diferentes, e sim de contrastar dois sistemas de crenças, estes sim comparáveis, porque funcionam exatamente no mesmo registro: o da ideologia. Em sua forma ideológica, a crença na religião desemboca no fundamentalismo, e a crença na ciência deságua no cientificismo.

O fundamentalismo proclama a primazia do sagrado sobre a vida secular, do mesmo modo que o cientificismo proclama a supremacia da ciência e a considera aplicável a todas as esferas da vida. Um dos apóstolos do cientificismo na França, Taine, exprimiu admiravelmente essa atitude quando afirmou que a virtude e o vício são dois produtos, como o açúcar e o vitríolo. Como toda ideologia, o cientificismo é extracientífico por definição, porque a idolatria de si própria não faz parte do repertório da ciência.

Entre os alvos preferenciais do cientificismo está a religião. Outro grande representante do cientificismo na França, Ernest Renan, consagrou toda a sua vida a mostrar, com ajuda da filologia e do método histórico, que a crença religiosa não podia se sustentar à luz da ciência. Antigo seminarista, Renan guardou sempre um fundo de respeito pelo culto católico, mesmo depois de perder a fé, mas de algum modo encontrou uma solução pessoal para seus dilemas espirituais, transferindo para a ciência sua antiga devoção. Nesse sentido, nunca se considerou um renegado, e sim um apóstolo do progresso, da humanidade e da ciência. Num livro de juventude, O futuro da ciência, redigido em 1848, o autor escrevia que “a ciência é uma religião” e tem, “como as coisas religiosas, um valor de todos os dias e todos os instantes”. O livro só foi publicado em 1890, dois anos antes da morte do autor, mas ao fazer o balanço de suas convicções de mocidade, ele retoma sem hesitar sua crença no valor religioso da ciência. Nesse balanço, Renan diz:

Experimentei a necessidade de resumir a nova fé que substituíra em mim o catolicismo destruído… Minha religião será sempre o progresso da razão, isto é, a ciência… A ciência fornecerá ao homem o único meio de melhorar a sua sorte… O homem formado segundo sua disciplina vale mais, afinal, que o homem instintivo das eras da fé… Ele é mais esclarecido, comete menos crimes, é menos sublime e menos absurdo. Dir-se-á que isso não compensa o paraíso que a ciência lhe tira. Mas não empobrecemos ninguém quando lhe tiramos valores duvidosos e notas falsas.

O cientificismo antirreligioso que hoje retorna à cena não tem as mesmas delicadezas que complicaram o agnosticismo de Renan.

Penso, sobretudo, em Richard Dawkins, o mais midiático dos novos ateus. Certamente bateu no endereço errado quem foi procurar no autor de The God Delusion as angústias espirituais de um Pascal ou de um Kierkegaard. Dawkins é um biólogo duro e puro, na melhor tradição, não diria de Darwin, mas daquele que foi chamado o buldogue de Darwin, Thomas Huxley. Dawkins combate a religião em nome da seleção natural, como Voltaire a combatia em nome da lei da gravidade. À luz do evolucionismo, a crença em Deus é um delírio, pois se baseia num livro sagrado que contradiz cada uma das leis da natureza. A contradição é óbvia se interpretarmos a Bíblia num sentido literal, como querem os criacionistas. Basta dizer que, segundo os melhores cálculos dos exegetas das Escrituras, o homem não teria mais de seis mil anos desde sua criação, enquanto segundo a ciência o Homo sapiens teria surgido há pelo menos duzentos mil anos; a Terra, que para a ciência existe há quatro ou cinco bilhões de anos, tem no máximo dez mil anos para os grupos religiosos partidários da teoria da “young earth”.

Mas Dawkins não poupa sequer a variante mais sofisticada do criacionismo, que não busca mais seus argumentos diretamente na Bíblia, e sim na teoria do intelligent design, ou “desígnio inteligente” — a constatação de que existe no mais humilde dos seres vivos uma “complexidade irredutível” que exclui a possibilidade de que sua formação seja aleatória. A maravilhosa perfeição do olho de uma mosca e sua adaptação milagrosa ao meio provam, além de qualquer dúvida, a existência de um “projetista” divino e tornam irrisória a tese de que sua origem se deva ao acaso. Trata-se do argumento teleológico de São Tomás de Aquino, ligeiramente rejuvenescido pelo teólogo anglicano William Paley. Obviamente os criacionistas não sabem disso, mas não é de ignorância histórica que Dawkins os acusa, e sim de ignorância científica. Eles simplesmente não leram, ou não entenderam, a teoria de Darwin. Ele jamais atribuiu a evolução ao acaso, e sim à seleção natural. As espécies se formam e evoluem gradativamente, ao longo de milhões de anos, porque a seleção natural favorece as mutações que se revelem mais bem-sucedidas em termos adaptativos. O olho perfeito da mosca não é a realização de um projeto divino a priori, e sim o resultado a posteriori (mas não aleatório) de uma longa série de variações evolutivas.

A teoria do desígnio foi inventada para dar uma resposta baseada no senso comum, e não na Revelação, ao enigma da criação. O raciocínio é o seguinte: percebemos uma ordem e uma intencionalidade em todos os seres vivos, demonstrando que eles foram projetados; ora, tudo o que foi projetado supõe um projetista; esse projetista é Deus. O problema é que o senso comum não se satisfaz com esse silogismo. Ele vai além, e pergunta: se Deus projetou os seres vivos, quem projetou Deus? Ou seja, pretendendo explicar um mistério, o criacionismo introduziu um mistério maior ainda, enredando-se numa regressão infinita, em vez de reconhecer que o mistério original — a ordem finalista que parece reger o mundo da vida — já havia sido explicado, no essencial, por Charles Darwin. Em suma, uma estratégia argumentativa inventada pelos criacionistas com o objetivo de fazer do senso comum um aliado acaba sendo desqualificada pelo próprio senso comum.

Mas Dawkins não se satisfaz, evidentemente, com essa contraofensiva do senso comum e vai buscar munição no evolucionismo. A ideia de uma inteligência criadora que projetou o mundo da vida é indefensável à luz da evolução, porque uma inteligência desse tipo só existe como produto final de um longuíssimo processo evolutivo. Ela vem no final, e não no princípio, e portanto não pode ter projetado coisa nenhuma.

Dawkins acha que a força persuasiva de sua argumentação pode ir além da biologia. Se o desígnio inteligente foi expulso do mundo da vida, ele pode ser expulso também da cosmologia, completando com isso o trabalho de demolição de Deus. Pois, como se sabe, a existência de um plano divino era demonstrada tradicionalmente não só pela teleologia que reinava no mundo da vida como pela harmonia e grandeza incomensurável da mecânica celeste. Vivendo numa galáxia composta por cerca de trinta bilhões de planetas e num universo povoado por cem bilhões de galáxias, não é difícil ficar esmagado, como Pascal, com o silêncio infinito do espaço sideral”, ou partilhar a reverência de Kant pelo céu estrelado acima de nós”. Mas Dawkins quer expulsar Deus também desse último refúgio e acompanha com entusiasmo o trabalho dos seus colegas dos departamentos de física e astronomia, que em suas vertiginosas especulações sobre a origem e o funcionamento do universo, ou multiverso, segundo uma teoria hoje em voga, partilham plenamente esse projeto. Mas, como biólogo, Dawkins pensa em algo mais próximo de sua própria disciplina. Ele sonha com um princípio que prestasse à cosmologia serviços semelhantes ao que a seleção natural prestou à ciência da vida: mostrar, com elegância e economia de meios, que não existe desígnio inteligente no cosmos, como não existe no mundo da vida, o que faria de Deus, nos dois planos, uma complicação supérflua.

Dawkins tem um fervor militante que não se encontra em meros ateus. Como Voltaire, ele quer écraser l’infâme, com a diferença de que para Voltaire a infâmia estava localizada apenas nas Igrejas, deixando intacta a crença num supremo criador, enquanto para Dawkins infame é a própria crença em Deus, mesmo num Deus deísta, que não intervém nos assuntos humanos. Ele destrói um a um os argumentos usados para provar a transcendência divina, como aquele derivado da arte, para o qual a beleza transcendente da música de Mozart e Beethoven provaria a existência de Deus. Argumentos desse gênero, diz nosso irreverente biólogo, provam a existência de Mozart e Beethoven, não a existência de Deus. É verdade que a música desses gênios é sublime, mas ela continuaria sendo sublime quer Deus existisse, quer não. De resto, completa Dawkins, com um cinismo que Voltaire teria apreciado, quem tem Mozart e Beethoven não precisa de Deus. É quase uma paráfrase da citação de Heine, feita por Freud: “Quem tem a arte e a ciência, este tem religião; quem não tem a arte e a ciência, que este tenha religião”.

Mas onde Dawkins é mais voltairiano é em sua ferocidade contra o Deus do Velho Testamento. Ele “é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento e orgulhoso; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo”.

O livro de Dawkins provocou uma tempestade de insultos previsíveis, vindos daquele campo fundamentalista que ele devastara com tanta competência; o mínimo que se dizia era que Deus deveria fulminar sem maiores delongas o autor sacrílego, para que ele pudesse começar logo a cumprir no inferno sua pena eterna. Mas gerou também objeções inesperadas, vindas da esquerda.

Refiro-me a Terry Eagleton, um respeitado teórico marxista, que publicou em 2006, no London Review of Books, uma resenha do livro de Dawkins. Eagleton criticou Dawkins por sua total ignorância teológica. Ler o que ele escreve sobre teologia, diz Eagleton, é como ler alguém que, pretendendo dissertar sobre biologia, usa como única fonte um livro de divulgação sobre passarinhos ingleses. O que pensa ele sobre as diferenças entre São Tomás de Aquino e Duns Scotus, ou sobre as opiniões de Eriugena e Moltmann no que diz respeito à subjetividade e à graça? Nunca saberemos. Eagleton suspeita mesmo que Dawkins jamais ouviu falar desses autores. A consequência dessa ignorância é que ele tem da religião uma visão totalmente falsa, baseada nos estereótipos mais vulgares. Ou seja, a religião é para ele exatamente o que é para os fundamentalistas dos Estados Unidos, com a diferença de que Dawkins a denuncia e o eleitor de Bush a aprova.

Mas uma teologia não fundamentalista, afirma Eagleton, é algo de muito diferente. Ela compreende a crucificação como símbolo da injustiça e a ressurreição como a esperança numa vida melhor. Ela repudia todas as formas de intolerância e de fanatismo, mas não perde nunca de vista os aspectos positivos da religião e não se esquece dos milhões de seres humanos que dedicaram sua vida ao bem dos outros, em nome do Cristo, de Buda ou de Alá. Vendo a religião em toda parte, como os fanáticos puritanos, Dawkins deixa de ver a base social e econômica dos conflitos. Por isso, ele jamais criticou o capitalismo global, gerador do ódio e da humilhação que nutrem o fundamentalismo: para ele, basta que a ciência destrone definitivamente a religião para que desapareçam os antagonismos.

Em 2009, Eagleton publicou um livro intitulado Reason, Faith and Revolution: Reflections on the God Debate, em que ele aprofunda suas objeções a Dawkins e as estende a outro crítico da religião, Christopher Hitchins, chegando ao ponto de juntar os dois nomes num só, que ele chama Ditchkins. Essencialmente, ele acusa Ditchkins” de ignorância teológica e de reacionarismo político (segundo Eagleton, Hitchins teria apoiado a invasão do Iraque). A ignorância teológica faz com que os dois autores vejam a fé e a razão como termos antitéticos, o que obscurece o fato de que não há ciência sem fé na ciência. O credo ut intellegam, da tradição teológica cristã, alude a esse papel cognitivo da fé: não há conhecimento possível sem um interesse apaixonado, induzido por uma fé ardente, naquilo que se procura conhecer. Toda argumentação, diz Eagleton, move-se no âmbito de algum tipo de fé, atração ou predisposição. E o reacionarismo político os leva a ignorar o substrato material de toda religião. Idealista até a medula, “Ditchkins” acha que é a fé religiosa que move os fundamentalistas islâmicos, ignorando os conflitos que se dão na base econômica. Com isso, ele superestima o poder da fé, tornando-se semelhante aos radicais islâmicos — e ao papa.

Qual o balanço desse debate? Seria injusto equiparar os dois extremismos, o religioso e o científico.

Não há como conviver civilizadamente com o fundamentalismo. Ele impede o homem de pensar por si mesmo, desativa sua razão e simplifica realidades complexas. Esse tríplice déficit corresponde exatamente ao perfil dos alucinados que se despedaçam e despedaçam pessoas inocentes, que querem provocar conflagrações apocalípticas para acelerar a segunda vinda de Cristo e que declaram guerra ao mundo para assegurar a vitória do Eixo do Bem.

Se a violência é intrínseca ao fundamentalismo, esse não é o caso do cientificismo, que afinal é baseado na ciência, por mais deformada que ela seja. Nunca se ouviu falar em nenhum grupo que praticasse atos de terrorismo em nome de Newton ou de Einstein. É verdade que sem a ciência não teríamos nem armas nucleares, nem químicas, nem biológicas, mas não foi o cientificismo que destruiu Hiroshima, e sim uma decisão política baseada na mesma lógica da guerra que levou Arquimedes a usar seus conhecimentos científicos para incendiar a frota romana.

Mas admitida essa diferença entre os dois extremismos, é preciso reconhecer que sob certos aspectos eles estão se aproximando. Cada polo está tendendo a assimilar-se ao outro. O fundamentalismo está ficando científico e o cientificismo assume características religiosas.

O fundamentalismo dá as costas à modernidade cultural e política, mas não à modernidade científica. Osama bin Laden é engenheiro. A trajetória dos aviões que abateram as Torres Gêmeas foi calculada com precisão matemática, sem o que o trabalho de destruição ficaria incompleto.

O cientificismo, por sua vez, desde a origem teve algo de religioso, como vimos a propósito de Renan. Assim, Comte criou uma religião da humanidade, e Einstein, deslumbrado com a “estrutura magnífica” do universo, declarou-se “um descrente profundamente religioso”. A dar crédito ao livro fascinante de um físico brasileiro, Marcelo Gleiser — Criação imperfeita —, existem traços de religiosidade até mesmo na convicção por parte de alguns cientistas de que estamos às vésperas de uma “teoria de tudo”, uma teoria final que demonstre a unidade da matéria, por maior que seja sua diversidade aparente. Essa atitude, para Gleiser, é uma espécie de monoteísmo científico, derivada da crença religiosa de que todos os fenômenos estão interligados por terem uma só origem, Deus. É claro que a “religião” desses pensadores é metafórica, pois exclui a crença em entidades, forças e processos sobrenaturais. Mas o zelo missionário de um Dawkins, por exemplo, tem evidentes analogias com a mentalidade religiosa. Ele é um entusiasta do ateísmo, no sentido que a palavra “entusiasta” tem em grego: estar possuído por Deus. Em graus diferentes, os dois extremismos constituem riscos para a democracia — riscos reais, no caso do fundamentalismo, e potenciais, no caso do cientificismo. O fundamentalismo rejeita qualquer fronteira entre a vida privada e a esfera pública, entre a sociedade e o Estado, e com isso abre o caminho para a teocracia, para uma política de Deus, cujos dirigentes naturais são aiatolás, rabinos ou pastores, e não representantes eleitos pelo povo.

A consequência lógica do cientificismo, levado às últimas consequências, seria confiar o poder a uma casta quase sacerdotal de reis filósofos, no sentido de Platão — não mais uma teocracia, como no fundamentalismo, mas uma logocracia, ou epistemocracia, o governo dos cientistas. Desde o século XVIII, La Mettrie já previra um governo exercido pelos médicos. Hoje podemos pensar numa biocracia, o exercício do poder pelos biólogos. Sua missão seria produzir em laboratório o homem novo que o marxismo sonhara produzir a partir da práxis social — uma nova espécie, mais inteligente, mais resistente a certas doenças e talvez sem o gene da violência. Alternativamente, a missão dos biocratas seria reorganizar a sociedade segundo uma nova estratificação, de caráter aristocrático, em que o topo da pirâmide seria, como em qualquer aristocracia, ocupado pelos aristoi, pelos melhores — os indivíduos geneticamente perfeitos.

A escolha entre os teocratas e os logocratas é deprimente. Se fosse preciso mesmo escolher, confesso que preferiria ficar com os logocratas, por mais alucinado que seja o tipo de racionalismo que eles defendem. Demência por demência, eu me sentiria ligeiramente mais seguro em companhia dos que pretendem repor nos altares a deusa Razão que junto aos que preferem curar as enfermidades da alma pelo exorcismo. Mas apenas ligeiramente. Para ser sincero, prefiro não escolher, ou pelo menos ampliar meu leque de opções.

Se é verdade que o traço comum aos dois extremismos é seu caráter real ou potencialmente antidemocrático, é óbvio em que direção devemos caminhar: criar condições para que nem a religião nem a razão secular evoluam num sentido autoritário. Isso significa “desideologizar” os dois campos, tirando-os do céu platônico das essências incorruptíveis e reconduzindo-os à cidade dos homens: uma religião sem fundamentalismo e uma razão leiga sem cientificismo.

O fim do fundamentalismo exige uma intervenção radical nas circunstâncias sociais e políticas que o provocaram. Isso significa, no plano conjuntural, uma solução política para o conflito no Oriente Médio, que alimenta, num processo circular e cumulativo, os três fundamentalismos monoteístas. E no plano estrutural, impõem-se medidas que compensem o esvaziamento existencial resultante da industrialização acelerada e a desorientação diante da perda de valores locais, em consequência do processo de globalização.

O fim do cientificismo passa por medidas de caráter educativo e curricular que facilitem a interdisciplinaridade, dando aos cientistas naturais acesso amplo às ciências humanas e às disciplinas humanísticas. Nisso, não há como negar razão a Eagleton: um conhecimento mais profundo de literatura, de filosofia e de teologia talvez ajudasse cientistas como Dawkins a administrar melhor seu narcisismo, deixando de ver-se como os únicos representantes da racionalidade profana e dos valores civilizados.

Em conclusão, não há espaço, no mundo moderno, nem para a intolerância fundamentalista, venha ela de Teerã, de Jerusalém ou de Washington, nem para a intolerância cientificista, mesmo quando ela vem de Oxford ou de Harvard.

Uma vez dissipadas as nuvens da ideologia, a religião não fundamentalista e a razão não cientificista poderão interagir, num processo de aprendizado mútuo. Como diz o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas, para que haja um debate democrático, com plena participação de todas as correntes de opinião, cabe aos crentes “traduzir” seus argumentos contra o aborto, por exemplo, na linguagem secular dos direitos humanos, em vez de se apoiarem na Bíblia ou nas Encíclicas papais. Os não crentes devem também fazer um esforço de aproximação, tornando-se sensíveis aos potenciais semânticos da tradição religiosa, que muitas vezes se perdem quando transpostos para a linguagem profana. É o que acontece, por exemplo, quando o pecado se converte em mero delito, e quando desaparecem os conceitos de promessa, de perdão e de ressurreição, para os quais não há equivalentes leigos. Daí a importância de uma sociedade civil que Habermas chama de pós-secular, capaz de haurir da religião, mesmo quando dela se afasta, os recursos de sentido que se tornam cada vez mais escassos numa sociedade dominada pelo mercado.

Se não há mais lugar, numa sociedade pós-secular, nem para os legionários de Deus nem para os cruzados da ciência, há lugar, sim, para um diálogo permanente entre os crentes e os descrentes. Idealmente, os ateus deveriam aprender a ouvir os crentes. E os crentes, mesmo sem acreditarem no Deus de Voltaire, deveriam ter condições de endossar a oração com que Voltaire concluiu sua defesa da tolerância:

Não é mais para os homens que eu me volto, mas para vós, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos…, não nos destes um coração para nos odiarmos, e mãos para nos degolarmos; fazei que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida penosa e passageira; fazei que as pequenas diferenças entre as roupas que vestem nossos frágeis corpos, entre todas as nossas línguas insuficientes, entre todos os nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões insensatas, entre todas as nossas condições, tão variadas a nossos olhos, tão iguais diante de vós, que todos esses pequenos matizes que diferenciam os átomos chamados homens não sejam sinais que os exponham ao ódio e à perseguição… Possam todos os homens recordar-se de que são irmãos! Que eles tenham horror da tirania exercida sobre as almas! […] Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos detestemos, não nos despedacemos no seio da paz, e empreguemos o breve segundo de nossa existência para abençoar igualmente, em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, vossa bondade, que nos concedeu esse segundo.

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