1999

Cartas à segunda escolástica

por Antonio Alcir Bernárdez Pécora

Resumo

A Companhia de Jesus, desde os seus primeiros anos, utilizou a escrita como forma predominante de comunicação, ação e registro. Por meio das cartas o governo-central da Companhia de Jesus mantinha contato com os missionários alocados em diversas partes do mundo. A presença ostensiva da carta no corpo da Companhia evidencia que sua função está pensada ao menos segundo três aspectos decisivos: o da informação, o da reunião de todos em um e, enfim, o da experiência mística ou devocional.

O primeiro aspecto, o da informação, fica logo claro quando se sabe que a correspondência é muitas vezes o único meio de relato dos sucessos passados nas várias frentes da ação jesuítica espalhada ao longo do vastíssimo novo mundo. Nessa perspectiva, é notável o esforço jesuítico em narrar os acontecimentos que se dão bem diante dos missionários, mas cuja possibilidade de interpretar como dotados de sentido ou verdade demanda enorme esforço de vontade e inteligência que devem ser sintetizados na escrita.

O segundo aspecto manifesta-se quando os acontecimentos enfeixados em linhas de informação reforçam igualmente a rede espiritual dos irmãos dispersos no mundo, de cuja solidariedade de ação e unidade de propósito dependem a sobrevivência do corpo inteiro da Companhia e a eficácia global de sua intervenção na história, enquanto co-autora da Providência. Contudo, esse corpo único, em que todos agem como um só, ainda não se compreende verdadeiramente enquanto a unidade não se traduz como experiência mística, isto é, como êxtase da participação na plenitude de uma vida espiritual, que, no limite, exige a perda do cuidado de si. Nesse ponto, as letras enviadas de toda parte do mundo constituem­ se, ao mesmo tempo, como particulares e como exemplares, quer dizer, como referência histórica única e como alegoria espiritual comum: como escrita humana análoga às divinas escrituras. As cartas cumprem aqui a função de atualizar a missão apostólica e a palavra de Deus.

Para santo Inácio, com o dever de consolar, mostrar os avanços da fé e narrar as ações apostólicas dos jesuítas pelo mundo, as missivas não poderiam ser deixadas ao acaso dos humores ou da intensidade dos sentimentos espirituais dos padres. Escrevendo para serem lidos por muitos outros, os padres deveriam elaborar criteriosamente as cartas.

Inspirada na tradição formal da ars dictaminis, as cartas jesuítas obedeciam normas que orientavam a prática epistolar.  As cinco partes principais do “como escrever” dos jesuítas são: salutatio, captatio benevolentiae, narratio, petition e conclusio.

Nesse sentido, as cartas escritas pelo padre Manuel da Nóbrega, de vários pontos do Brasil, a diferentes pessoas em Portugal, Roma ou no próprio Brasil, no período de 1549 a 1560, são exemplares e seguem rigorosamente a estrutura formal jesuítica.


Há um aspecto das cartas jesuíticas sobre o qual quase nada se disse, e não por irrelevância. Refiro-me à estrutura formal delas e sua ligação com a longa tradição da ars dictaminis, isto é, a arte de escrever cartas. A respeito, no Brasil, conheço apenas um artigo de João Adolfo Hansen,[1] de modo que escrevo aqui um pouco em continuação a ele, sobretudo acrescentando o viés renascentista e jesuítico de suas questões formais e especificando alguns pontos do debate teológico típico presente na invenção retórica dessas cartas. Há um ponto, contudo, a esclarecer desde logo. Ao tratá-las enquanto manifestação de um gênero – e, portanto, de uma tradição formal particular, na qual, não por acaso, tem enorme interesse o próprio santo Inácio -, não pretenderia acrescentar mais um aspecto a explorar-se nas cartas jesuíticas, ao lado daqueles apontados por historiadores, antropólogos e filósofos, que as tomam seja como testemunhos de fatos ou conflitos ideológicos da primeira fase da colonização do Brasil, seja como relatos mais ou menos parciais que informam sobre a natureza ou a vida do indígena, seja mesmo como elemento de reflexão ética ou pensamento teológico-jurídico a propósito dos títulos da “conquista”. Interessa-me mais ressaltar certa implicação epistemológica dessa abordagem formal das cartas jesuíticas: o de que elas não são absolutamente uma tábua em branco impressionada. Por acontecimentos vividos pelos missionários – nem objetivamente, como representação ou notícia da gente e terra do Brasil; nem subjetivamente, como impacto sentimental ou expressivo dessa notícia em certa mentalidade católica europeia. As cartas, no verossímil que proponho, devem ser vistas, antes de mais nada, como um mapa retórico em progresso da própria conversão. Isso significa afirmar que são produzidas como um instrumento decisivo para o êxito da ação missionária jesuítica, de tal modo que as determinações convencionais da tradição epistolográfica, revistas pela Companhia e aplicadas aos diversos casos vividos, mesmo os mais inesperados, sedimentam sentidos adequados aos roteiros plausíveis desse mapa.

As cartas trocadas a partir do Novo Mundo vão, por assim dizer, construindo o caminho que, depois, anacronicamente, pensamos existir antes ou independentemente da andança delas. Assim, o que quero dizer, e esforço-me para demonstrá-lo, é que as cartas não testemunham, nem significam nada que a sua própria tradição e dinâmica formal não possa acomodar. Bem ao contrário, os seus conteúdos mais complexos, como o índio ou o jesuíta, ou, ainda melhor, o índio do jesuíta são funções estritas dessa acomodação histórica do gênero. Para começar a descrever tal ajuste, será conveniente trazer aqui, brevemente, algumas de suas determinações mais antigas, e entretanto ainda pertinentes na análise do uso que os jesuítas fazem da arte de escrever cartas, no século XVI.

l. A “ARS DICTAMINIS”

O longo processo de constituição de uma teoria, ou melhor, de uma preceptiva exclusiva da escrita de cartas, de acordo com os estudos de James Murphy, tem um marco precoce na obra de C. Julius Victor, no século IV. Sabe-se que a sua Ars rhetorica continha breves apêndices a propósito de formas não abrangidas pela teoria regular, a saber: o sermo, isto é, o discurso informal, conversacional, que deveria ser elegante sem ostentação, breve, com eventuais provérbios oportunos, mas jamais declamatório; e a epistola, com os tipos básicos das cartas negotiales (oficiais, com matéria argumentativa séria, em que é possível escrever com erudição ou polêmica, além de usar linguagem figurada) e familiares (cujas principais virtudes são a brevidade e a claridade).[2] Nas cartas seriam particularmente importantes as diferenças decorrentes das posições sociais de autor e destinatário: se se escreve a superior, a carta não pode ser jocosa; a igual, não descortês; a inferior, não orgulhosa. Da mesma forma, as saudações e as despedidas devem manifestar diferenças de grau de amizade ou posição social.[3]

Em termos sistemáticos, a ars dictaminis e seu estilo de ritmo em prosa, o cursus, tiveram seu centro, ao final do século XI, no convento beneditino de Montecassino, em torno de Alberico de Montecassino e Juan de Gaeta (que veio a se tornar o papa Gelásio II). Dictaminum radii, de Alberico, dá mais importância ao emprego da retórica no escrever do que no falar, dirigindo-se mais ao scriptor que ao orator. Admite para o discurso escrito uma divisão basicamente ciceroniana, com exórdio, narração, argumentação e conclusão. Centra-se, entretanto, no exórdio e nas “cores” (as figuras ou ornatos da elocução), que têm a função de fazer com que o público fique “atento, dócil e bem-disposto” (attentio, docilitas, captatio benevolentiae).[4] No início da carta, Alberico distingue entre a salutatio (lugar em que são consideradas as pessoas, o propósito e o tema – respectivamente, distinguindo-se se o autor da carta e seu destinatário estão no mesmo nível, se são amigos ou inimigos ou quais são os modos adequados às intenções do autor ou ao tema) e o exordium propriamente dito.[5] O mesmo Alberico, no Breviarum de dictamine, especifica o dictaminem como o tipo “prosaico” da arte epistolar (em oposição ao “métrico”).

A partir do início do século XII, o centro de estudos epistolares passa a ser Bolonha. Adalberto Samaritano escreve Praecepta dictaminum (1111-8) e apresenta-se já, como mostra James Murphy, com o status de dictador profissional, não eclesiástico. Em seu tratado, a saudação varia segundo a pessoa com que trate, gerando diferentes tipos de cartas, a saber, sublimis, mediocris ou exilis[6]. Outro autor importante, Hugo de Bolonha, escreve Rationes dictandi prosaice (1119-24), no qual especifica dois tipos básicos de dictaminem: o prosaico, em que vai concentrar-se, e o métrico (cuja composição guarda medida por pés, por número de sílabas e rima, ou combina prosa e verso). As saudações, sempre em terceira pessoa, definem-se segundo três categorias de pessoa (superior, igual, inferior) e são um dos lugares para se obter a boa vontade do leitor. Além delas, a carta admite mais três partes: exórdio (cuja função é predispor o leitor para o que se segue), narração (que faz o relato do fato) e conclusão.[7]

Ainda em Bolonha, o anônimo Rationes dictandi (1135), republicado recentemente por Murphy, define a composição escrita como “a exposição por escrito de certa matéria, seguindo a ordem devida”.[8] Tais composições podem ser métricas (com pés e duração), rítmicas (com número regular de sílabas) e prosaicas, as quais guardam uma ordem contínua (proson) e apropriada (isto é, de acordo com as regras gramaticais). As composições prosaicas podem seguir uma forma-padrão, chamada de “formato básico aprovado” (per recta constructionem), construída de modo a atingir até os menos educados; ou uma forma variável, “segundo ascircunstâncias” (per appositionem), que é um método aconselhável apenas para escritores mais experientes.

Em qualquer caso, as composições admitem cinco partes fundamentais: salutatio (que é expressão de cortesia, manifestação de um sentimento amistoso em relação ao destinatário, independentemente do nível social), benevolentiae captatio (que é “uma certa ordenação das palavras para influir com eficácia na mente do receptor”), narratio (que é o “informe da matéria em discussão”, podendo ser simples (assunto único) ou complexa (várias matérias); referir o passado, o presente ou o futuro), petition (que é o discurso pelo qual “tratamos de pedir algo, sendo que as petições são de nove espécies: suplicatória, didática, cominativa, exortativa, incitativa, admonitória, de conselho autorizado, reprovativa e direta) e, finalmente, conclusio (que é a parte em que se resumem as “vantagens e desvantagens dos temas tratados”, para que “fiquem impressos na memória do destinatário”).[9] O conjunto dessas partes certamente tem ainda como referência de disposição as seis partes da oratio de Cícero, submetidas contudo ao crivo do que se supôs ser conveniente ao discurso escrito informal.

Posteriormente, no que toca às formulações do gênero, distingue-se a escola francesa de Orléans, que aproxima o dictaminem da ars grammatica, e sugere o uso do proverbium e das sententiae nos exórdios. Particularmente importante para o interesse desse trabalho na carta jesuítica é o Compendium rhetorice (1332), escrito por um cisterciense anônimo. Nele, a ars dictaminis é relacionada com as doutrinas da ars praedicandi e, em especial, com a figura do exemplum, em que a “citação de algo feito ou dito no passado, com o nome de seu autor” — como se especifica nas figuras de sentença definidas na Rhetorica ad Herennium (N, XLIX, 62) —, [10] é também formulação de um modelo universal, exemplar, edificante da matéria em questão. Ademais, as formulações de Orléans relacionam a carta com o uso da alegoria, em que o processo clássico de permutação (vale dizer, do emprego da palavra em que, por meio de seu sentido usual, dá-se a entender algo diferente dele) mescla-se à técnica de interpretação das Escrituras, em seus três sentidos espirituais, além do literal: o alegórico propriamente dito (que diz respeito ao que “deve entender-se ou crer-se”), o anagógico (que refere “o que há de desejar-se”) e o tropalógico (que especifica “o que há de fazer-se em boas obras”).[11]

Ainda antes do anônimo cisterciense, mas conhecendo já os pontos acentuados na formulação francesa do dictaminem, Bene de Florença redige o Candelabrum (c. 1220), tratado dividido em cinco livros básicos, e estudado atentamente por Charles S. Baldwin. O primeiro deles define a compositio como disposição ornada das palavras (ordinatio verborum equabiliter perpolita), que exige um ritmo distinto da fala comum: o cursus. A composição pode ser, em primeiro lugar, apta, vale dizer, artística, quando se produz harmonia entre as palavras num arranjo uniforme, e supõe o emprego do cursus, com alternância de vogais e consoantes no início e fim das palavras; além disso, guarda regras específicas de cadência e exige como principal habilidade a disposicão de unidades rítmicas num movimento global. A composição também pode ser natural, que é mais própria para explanações, reduzindo-se o artístico à obtenção de uma ordem natural e elegante. Por último, e esta é a espécie que interessa mais de perto à correspondência jesuítica, a composição pode ser casual, isto é, buscar um arranjo de palavras verossímil em relação à verdade da fé, de modo que a liberdade se sobreponha ao cuidado artístico. Como ressalta Charles Baldwin, o florentino preceitua a composição casual como particularmente adequada para utilização em manuais e, sobretudo, em comentários às Escrituras efetuados por “santos homens”, de acordo com os ensinamentos de Paulo, resumidos em 1 Cor. 4, 20: “O reino de Deus não consiste nas palavras mas na virtude”.[12]

O segundo livro do Candelabrum é dedicado às figuras tradicionais de ornato, seguindo basicamente a mesma relação da Rhetorica ad Herennium. No livro III, Berre propõe três tipos de dictamen: em prosa (sermo communis ou solutus), métrico (com emprego de pés determinados) e rítmico (com número regular de sílabas e rima). Dos três, interessa aqui apenas o primeiro, que Bene julga ser o de maior utilidade. Atribui-lhe como primeira parte principal a salutatio, que aconselha vir sempre na terceira pessoa e determinada pela relação de dignidade entre o remetente e o destinatário, de modo a ajustá-los entre si num processo que chama de collatio personarum.[13] O livro IV trata das outras quatro partes, já sedimentadas em Bolonha; primeiramente, o Exordium, que realiza a introdução ao relato dos fatos e tem a função de tornar o destinatário receptivo, favoravelmente disposto (captatio benevolentiae) e atento; a simpatia do leitor pode ser obtida mediante referência do escritor a si mesmo, ao seu oponente, ao próprio leitor ou à ocasião. De acordo com a matéria de que trata a carta, o exordium pode ser direto (principium) ou indireto (insinuatio); sua dicção deve ser fluente e observar a correção gramatical, sem que resulte disso uma composição demasiado estudada, que fuja muito ao usual ou ganhe aspecto pomposo. Ao exórdio, segue-se a narratio, que conta os fatos e deve ser concisa, clara, plausível (brevis, dilucida, verisimilis); depois, a petitio, e, por último, a conclusio, que principalmente dá satisfação das expectativas levantadas. O livro V apenas resume os anteriores.[14]

II. A NOVA EPISTOLOGRAFIA

Os dictatores medievais italianos têm os humanistas como sucessores na discussão da arte epistolar. A questão básica sobre a qual incide a passagem da preocupação tradicional para aquela que se poderia generalizar, possivelmente mal, como renascentista, refere o reforço da oposição entre a carta formal (contentío) pensada pelo dictator medieval e a carta familiar (sermo) praticada pela tradição clássica antiga. Esta, enquanto objeto manifesto de uma arte de escrever, tinha sido tratada apenas por Demétrio, no De elocutione[15]. Aí, o gênero da carta é proposto como próximo ao do diálogo, devendo ser breve, mas deixando entrever o caráter daquele que a escreve; em resumo, trata-se de uma “exposição de matéria simples em termos simples”.[16]

Como é sabido, a descoberta das cartas de Cícero por Petrarca levou à moda de imitação clássica que culminou no ciceronianismo do início do XVI, longamente estudado por Marc Fumarolli.[17] Autores, contudo, como Poliziano ou Bembo defendiam um modelo bem mais eclético, em que se emulasse não apenas Cícero, mas também Plínio, Símaco, Sidônio Apolinário etc. O nome fundamental desse período de transição para uma “nova epistolografia” é Coluccio Salutati, cujo humanismo, segundo Judith R. Henderson, revela-se na “habilidade retórica”, em seus “argumentos de raciocínio cerrado”, no uso dos “exempla históricos” e, enfim, em sua “flexibilidade de adaptação à situação dramática de cada carta”.[18]

Em termos gerais, os manuais italianos do século XV (entre eles, Novum espístolarium, de Giammario Filelfo; De componendis et ornandis epistolis, de Giovanni Sulpizio de Veroli; Rudimenta grammatices, de Nicolà Perotti; Opusculum scribendí epistolas, de Francesco Negro) concebem a carta, seguindo a prática da tradição clássica, como “conversação entre amigos ausentes sobre seus assuntos próprios”.[19] Negro vai defini-la, exemplarmente, como oratio pedestris.[20]

Examinando a questão entre os contemporâneos de Erasmo, num período de disseminação do humanismo por toda a Europa, Henderson observa que a tendência deles é reafirmar a carta como gênero adequado à conversação amigável (logo, a ser escrita em sermo e não em estilo oratório), que exige sobretudo brevidade. Nesse sentido preciso, Heinrich Bebel (Commentaría epistolarum conficiendarum) julga impróprias as cinco partes tradicionais da carta, argumentando que o exórdio é próprio apenas da oratio, e que nem toda carta requer narratio ou petitío.[21] Os seus propósitos são “persuadir ou dissuadir, declarar nossa amizade, exortar à virtude ou deter o vício”: poucos preceitos e bons modelos antigos resolvem a boa carta e não os manuais medievais.[22] Em relação à salutatio, Bebel propõe, em oposição a eles, que o nome do escritor venha antes daquele do destinatário, mesmo se este lhe for hierarquicamente superior; que o destinatário seja sempre referido no singular (portanto, que se use o tu e não o vós); que se empreguem fórmulas simples, não demasiado ornadas; e, enfim, que as pessoas recebam títulos simples e não epítetos grandiosos.[23]

Já a posição do próprio Erasmo em relação à ars dictaminis é um tanto mais complexa, e certamente não permanece a mesma ao longo de seus escritos, como o demonstra com evidência Judith Henderson. Os rascunhos iniciais de Opus de conscribendis epistolis, escrito em Paris, entre 1495 e 1499, revelam sua aceitação da nova epistolografia. Entre esses textos, está a Brevissima formula (e. 1498), no qual Erasmo reafirma a carta como sendo um colloquium (sermo) entre amigos ausentes. Assim, a sua escrita deve ser espontânea e pouco elaborada, e, quanto à pureza e propriedade de estilo, devem ser obtidas mediante exercícios de escrita, revisão do texto e estudo de autores antigos (cita sobretudo Cícero, Plínio, Poliziano; reserva Sêneca para estudantes mais maduros). Ainda de acordo com a epistolografia “neoclássica”, considera que a divisão em cinco partes fixas nem sempre é apropriada, sendo imprescindível apenas labor, método e disciplina; de resto, admite três espécies de cartas, tomadas da retórica, a saber: demonstrativa, deliberativa e judicial.[24]

No Libellus de conscribendis epistolis (possivelmente de 1501 ou 1502), Erasmo compara escrever com “sussurrar num canto com um amigo”, e não com “gritar num teatro”; nesse sentido, julga que “a grandiloquência teatral é indecorosa na carta familiar”.[25] Considera ainda nem sempre ser necessário o exórdio, e distingue entre cartas simples e mistas;

nestas, a estrutura formal segue uma ordem cronológica ou lógica sugerida pela matéria, não as divisões fixas da ars dictaminis.[26] Já no Opus de conscribendis epistolis (1522), como mostra Henderson, a sua posição parece bem menos crítica em relação aos medievalistas do que aos neoclassicistas ciceronianos. Estes apenas admitiam cartas breves (quando, para Erasmo, elas apenas podem ser medidas em relação à própria matéria e ao tempo disponível dos correspondentes); escritas em estilo humilde (exigência que Erasmo igualmente refuta, afirmando que matérias graves exigem estilo de mesma natureza); que fosse fluente, isto é, sem as articulações da contentio, e composto com palavras usadas por muitos. A isso tudo, Erasmo apõe a perfeita adequação do gênero epistolar a matérias muitas e diversas, de modo que seu estilo deveria necessariamente ser flexível.[27] Seguindo Quintiliano, propõe que o “melhor estilo” é sempre “o que mais se adapta a matéria, tempo, lugar e público”,[28] sendo que o purismo dos “macacos de Cícero” apenas produzia o enfraquecimento da carta como “instrumento educacional e de reforma religiosa”.[29] Certamente, é no cerne dessa posição flexível, de adaptação das partes às necessidades da matéria e ao propósito da carta, que a compreensão jesuítica dela tem que ser pensada. É o que se tentará a seguir.

III. A CARTAJESUÍTlCA

1. AS “CONSTlTUIÇÕES”

Uma breve passagem pelas Constituciones, que regulam todo o funcionamento da Companhia de Jesus, dá-nos uma visão impressionante da importância que toma a correspondência na maneira que a Companhia tem de conceber-se como corpo e de atuar em favor da fé católica. Desde os anos de noviciado até o exercício dos principais cargos de governo, passando naturalmente pelos ministérios e missões, tudo é lugar onde a arte epistolar encontra funções bem definidas e relevantes a cumprir. Embora o texto espanhol das Constituciones apenas ganhe edição oficial em 1558, elas circulam e nascem de reflexões bem anteriores, das quais a Formula del Instituto, redigida em 1539 e aprovada em bula papal de 1540, fornece já uma versão bastante adiantada.

Assim, na “terceira parte principal”, a propósito de atos capazes de “conservar e aproveitar” os jesuítas que estão em período de “provação”, o seu capítulo primeiro, relativo à “conservação no que toca a alma” e ao “aumento das virtudes”, reza que, na refeição, para que esta se estenda à alma, deve-se ler livro pio, ou pregar, ou ler cartas de edificação.[30] Na “quarta parte principal”, que refere procedimentos para “instruir em letras e em outros meios de ajudar aos próximos”, o capítulo décimo sétimo prescreve para “oficiais ou ministros da universidade” que o “síndico geral dos estudos” deve escrever ao geral, a cada ano, e duas vezes ao provincial, para que de tudo se inteirem e todos procedam como devem (§ 504). O parágrafo 507 do mesmo capítulo adverte que as cartas devem ser enviadas fechadas para que um não saiba o que o outro escreve.[31]

Na “sétima parte principal”, que diz respeito a procedimentos devidos entre “os já admitidos no corpo da Companhia para com os próximos”, o capítulo segundo, que trata “das missões do superior da Companhia”, obriga a que os missionários mantenham avisado o superior por carta, para se conhecer se conviria permanecer mais em uma missão ou em outra, conforme se vissem os frutos dela (§ 626).[32] Outro parágrafo do mesmo capítulo (§ 629) determina que o superior deve dar instrução escrita aos que envia em missões, indicando-lhes modos e meios de proceder para o fim pretendido; deve ainda manter muita comunicação por cartas, sendo informado de todos os sucessos, para que possa aconselhar com presteza a ação mais conveniente.[33] Na “oitava parte principal”, que trata do que é útil para unir os jesuítas “repartidos com sua cabeça e entre si”, o capítulo primeiro refere o “que ajuda na união dos ânimos”; dentro desse propósito, o parágrafo 673 especifica ser especialmente favoráveis a ele as cartas trocadas entre inferiores e superiores, a fim de que saibam uns dos outros; recebam novas informações das várias partes em que se encontram; e, sobretudo, obtenham consolação e edificação mútua em Cristo. O parágrafo 674, por sua vez, determina que prepósitos locais ou reitores devem escrever ao prepósito provincial a cada semana, assim como o provincial ao geral; se estiverem em reinos diversos, as cartas devem seguir ao menos um vez por mês, com retribuição de igual frequência.[34] O parágrafo 675 estabelece que, para comunicação a todos das coisas da Companhia, ao início de cada quadrimestre, devem-se escrever ao provincial uma carta em vulgar e outra em latim, apenas com “coisas de edificação”, cujas cópias devem ser enviadas ao geral e a outros da província e fora dela.[35]

Finalmente, na “nona parte principal”, que diz respeito “à cabeça e governo” da Companhia, o capítulo sexto, que trata do que “ajudará o propósito-geral para bem fazer seu governo”, expressa a obrigação de o geral manter a observância estrita das Constituciones, informando-se do que se passa em todas as províncias, e escrevendo assiduamente aos provinciais a propósito do que pensa das coisas que lhe comunicam, fazendo sempre que se proceda como convém (§ 790).

A presença ostensiva da carta no corpo da Companhia evidencia que sua função está pensada ao menos segundo três aspectos decisivos: o da informação, o da reunião de todos em um e, enfim, o da experiência mística ou devocional. Com efeito, o primeiro deles fica logo claro quando se conhece que a correspondência é muitas vezes o único meio de relato dos sucessos passados nas várias frentes da ação jesuítica espalhada ao longo do vastíssimo novo orbe. Nessa perspectiva, é notável o esforço jesuítico de capturar em letra comunicável acontecimentos que se dão bem diante dos missionários, mas cuja possibilidade de interpretar como dotados de sentido ou verdade demanda enorme esforço de vontade e inteligência, o mais das vezes sintetizados no dever da escrita. O segundo aspecto manifesta-se justamente aí, quando os acontecimentos enfeixados em linhas de informação reforçam igualmente a rede espiritual dos irmãos dispersos no mundo, de cuja solidariedade de ação e unidade de propósito dependem a sobrevivência do corpo inteiro da Companhia e a eficácia global de sua intervenção na história, enquanto co-autora da Providência.

Contudo, esse corpo único, em que todos agem como um só, ainda não se compreende verossimilmente enquanto a unidade não se traduz como experiência mística, isto é, como êxtase da participação na plenitude de uma vida espiritual, que, no limite, exige a perda do cuidado de si. Nesse ponto, as letras enviadas de toda parte do mundo constituem se, ao mesmo tempo, como particulares e como exemplares, quer dizer, como referência histórica única e como alegoria espiritual comum – numa palavra: como escrita humana análoga às divinas escrituras. As cartas cumprem aqui a função de atualizar a missão apostólica e a palavra de Deus, e tanto melhor o fazem quanto mais incendeiam escritor e leitor numa mesma febre de fé, que os irmana em tremendas experiências devocionais. Por tudo isso, não há exagero algum no padre Ignacio Iparraguirre, editor das cartas de santo Inácio, quando afirma que elas são “como um comentário aos Exercícios e às Constituições[36] e que, lidas, produzem “gozo e alegria” incontáveis, deixando “os irmãos banhados em alegria de ouvir”, em que mesmo “uma só palavra os consola tanto”. No sentido contrário, alguma demora nas cartas de santo Inácio é tomada pelos irmãos como “um castigo”, em que eram privados “do leite da consolação costumeira”.[37]

2. CORRESPONDÊNCIA INACIANA

Isso posto, antes de interpretar as cartas jesuíticas escritas do Brasil – aliás, pela sua complexidade, penso em concentrar-me aqui apenas nas de Manuel da Nóbrega -, convém examinar as cartas escritas pelo próprio santo Inácio tematizando os modos adequados de escrevê-las. Uma espécie de metaepístola inaciana pode ser pensada a partir, por exemplo, de uma carta que escreve a seu irmão sanguíneo Martín Garcia, de Paris, em junho 1532. Aí, afirma não ter escrito antes com mais frequência por não ter certeza ainda de que suas cartas pudessem “causar algum serviço e louvor a Deus”.[38] A partir de então, parece ter-se dissipado o escrúpulo, de modo que a carta adquire para ele uma função crescentemente devocional.

Muito importante é também a carta que Inácio escreve ao padre Pedro Fabro, então missionário na Alemanha, de Roma, em dezembro de 1542. Comunica-lhe aí a sua determinação de que, ao escrever, os padres fizessem uma “carta principal”, que “se pudesse mostrar a qualquer pessoa”, inclusive “pessoas principais” de Roma, que sempre manifestavam muito interesse em conhecê-las. Especifica ainda ser obrigatório que essa carta principal “guardasse ordem”, não trouxesse “coisas impertinentes” e desse “edificação” a quem a lesse; vale dizer, ela deveria ser escrita tendo em mente exclusivamente o “serviço de Deus e aproveitamento do próximo”. O seu estatuto, nesse caso, é o mesmo de outras “obras espirituais”, como “sermões, confissões, exercícios”. No entanto, santo Inácio reserve para os “anexos” (hijuelas) da carta principal os comentários mais detalhados sobre a saúde corporal dos missionários, os negócios mais particulares ou atinentes à vida interna da Companhia etc.[39]

As suas determinações – válidas com força de lei, como é absoluta a da obediência entre os jesuítas – obrigam ainda que a principal seja escrita uma vez e depois reescrita, com correções, “fazendo de conta que todos a hão de ver”. Isso inscreve, explicitamente, no próprio ato da escrita da carta a consciência do seu efeito nos ânimos dos seus leitores virtuais. A razão que santo Inácio dá para essa preocupação é a de que “o que se escreve é ainda mais de cuidar que o que se fala”, sobretudo “porque a escrita fica e dá sempre testemunho, e não se pode assim bem emendar ou glosar tão facilmente como quando falamos”. Já os anexos admitem que cada um escreva, como diz, “à pressa da abundância do coração, concertado ou sem concerto”, e ainda “alargando-se” à vontade, o que não se sofre na principal,[40] que, como ficou expresso, é sempre para “mostrar e edificar”, para “proveito espiritual e consolação das almas”. Alerta santo Inácio ainda que o aspecto trabalhoso dessa prática de reescrever não absolve de cumpri-la integralmente, dando exemplo de si mesmo, que escreve a todos, enquanto a maioria deles não tem senão a ele para escrever. Menciona especificamente que, no momento em que escreve ao padre Fabro, acaba de enviar 250 outras cartas, a todas as partes do mundo.[41]

Uma carta ao padre Nicolás Bobadilla, enviada de Roma, em 1543, é também admirável do ponto de vista metaepistolar, que interessa aqui. Bobadilla, antigo companheiro de santo Inácio, discordara com veemência da determinação do geral sobre o modo correto de escrita das cartas, afirmando que a ordem de reescrevê-las conduziria ou à hipocrisia ou a um esmero de linguagem tão dificultoso quanto alheio às obrigações da fé. Inácio rebate ambas as suspeitas, afirmando que de modo algum pretendia seja a falta de “sinceridade”, seja a correção de “todos os estômagos” pelo seu, o que julgava “impossível”. Não quer, como diz, que “quem tenha uma frase escreva outra”; nem que “quem tenha um grau de habilidade escreva em dois”. A correção que exige, e confirma, deve ser entendida e praticada como “diligência” em que cada um dá de si o melhor do que tem “em Cristo”, ou, numa outra fórmula, em que cada um “satisfaz ao outro” segundo o melhor que pode, e não como afetação de dar algo que não lhe é próprio ou devido. Reafirma que o que não é “para proveito espiritual das almas” – como, por exemplo, informes de “novidades, enfermidades, necessidades e coisas semelhantes” – pode ser relatado “à vontade, em anexos, ou em outras cartas por si”.[42] Santo Inácio também refuta a consideração de Bobadilla de que a reescritura seja “perda de tempo em coisas de “tão pouca substância”, afirmando que o seu propósito é concertar as coisas de modo a “dar a cada um o manjar segundo o gosto” e arranjá-las todas “para o bem”.[43]

Há ainda uma carta célebre de Inácio, conhecida como “Da perfeição”, dirigida de Roma aos “irmãos estudantes de Coimbra”, em maio de 1547, que também vem a propósito lembrar quando se trata de levantar uma preceptiva jesuítica da epistolografia. No momento em que refere “o modo de exercitar o zelo no tempo dos estudos”, reserva o parágrafo 9 aos “santos desejos e orações”, e afirma que ambos são experiências que necessariamente têm que ser conferidas em particular, e que, por isso, bem poderia dispensar-se de escrever parte de suas instruções. Contudo, afirma, ao “escrever largo”, o que busca é a “consolação” junto aos irmãos.[44]

Ao padre Gaspar Berze, missionário na Índia, Inácio manda escrever, em fevereiro de 1554, por intermédio de seu secretário, o padre Palanco, pedindo-lhe que atenda a “pessoas principais” de Roma que desejam ler, com edificação, algo sobre a cosmografia das regiões, as estações, e outras curiosidades várias que “pareçam extraordinárias”, como “animais e plantas não conhecidos” etc. Justifica o pedido dizendo que não há mal em tal “molho” ou “tempero” (salsa), muito próprio “para o gosto de alguma curiosidade que costuma haver nos homens”; considera também que esse tipo de notícia possa vir tanto na carta principal como em anexo. Reafirma, contudo, que, como são cartas que se mostram a gente de fora da Companhia, convém que se detenham menos em coisas particulares dela do que nas mais gerais, de modo que se enviem cartas distintas sobre uma e outra coisa. As que disserem respeito a assuntos internos, em qualquer caso, podem servir de edificação para as pessoas da Companhia e devem vir sozinhas.[45]

Há ainda uma carta extraordinária de Inácio a propósito do tipo de elocução que há de se empregar nas cartas jesuíticas: foi escrita ao padre Roberto Claysson, de Roma, em março 1555. Nela, Inácio recrimina duramente o estilo empregado pelo padre em suas cartas, muito doutas e ornadas, e que precisamente devido ao demasiado adorno e lima deixa de lado o “estilo conveniente” (que identifica com o conceito clássico de prépon). Considera que uma coisa é a “eloquência, atrativo e gala da linguagem profana”, outra, bem distinta, é aquela que cabe ao “religioso”. Neste, o estilo conveniente deve assemelhar-se ao uso dos adornos e atavios recomendáveis para uma “matrona”, que sempre deve “respirar gravidade e modéstia”. A elocução entre os jesuítas deve possuir uma facúndia “grave e madura” e jamais “exuberante e juvenil”, e isso “sobretudo nas cartas, onde o estilo deve ser, por si, conciso e trabalhado”. Assim, quando tiver que ser copioso, que o seja “mais por abundância de ideias que de palavras” Adverte a Claysson ainda que, da forma como tem escrito, ele não se atreve a mandar a suas cartas a outros sem “suprimir e limar” muita coisa.[46]

Parece evidente por essas observações que o decoro proposto por Inácio para a escrita jesuítica é semelhante ao da composição casual, fundamentada na regra paulina de que a virtude opõe-se às “palavras inchadas de orgulho”.[47] Assim, os ornatos da elocução postulam sempre seus próprios limites de aplicação e submetem-se aos critérios de uma disposição ordenada, gramaticalmente correta, cujos efeitos adequados de estilo ajustam a gravidade do assunto à simplicidade das palavras como fiança da fidedignidade do relato e verdade da fé. Nesse sentido, assim como a carta principal tem na publicação de matéria edificante para pessoas estranhas à Companhia a imagem original de seu auditório, que passa a funcionar necessariamente como baliza da reescritura do seu relato, observa-se também que esse procedimento se articula com a construção de argumentos favoráveis ao caráter do escritor- as provas morais de que fala Quintiliano, retomando Aristóteles[48] compreendido sobretudo como a demonstração de sua autoridade virtuosa para produzir o discurso da edificação.

IV. AS CARTAS DE NÓBREGA

Conhecido o movimento acumulado de significações que a própria forma das cartas efetua, pode-se tentar examiná-la nos termos particulares daquelas escritas pelo padre Manuel da Nóbrega (1517-70), de vários pontos do Brasil, a diferentes pessoas em Portugal, Roma ou no próprio Brasil, no período de 1549 a 1560.[49] Para que isso se faça de acordo com o modelo histórico da ars dictaminis, penso ser oportuno dividi-las, para análise, nas partes principais da disposição referidas, a saber, salutatio, captatio benevolentiae, narratio, petition e conclusio.

1. “SALUTATIO”

Trata-se, como se viu, da primeira parte do exórdio. Alguns exemplos podem tornar claro o modo como Nóbrega a entende e pratica. Ao padremestre Simão Rodrigues, escreve: “A graça e amor de Nosso Senhor Jesus Christo seja sempre em nosso favor e ajuda. Amen”.[50] Ao dr. Navarro, seu mestre em Coimbra: “Gratia et pax Domini Nostri Jesu Christi sit semper nobiscum. Amen”.[51] A Tomé de Sousa, o governador da Bahia com quem veio para o Brasil em 1549: “A paz e amor de Christo Nosso Senhor seja sempre em seu continuo favor e ajuda. Amen”.[52] Ao infante cardeal d. Henrique: “A paz de Christo Nosso Senhor seja sempre em continuo favor e ajuda de Vossa Alteza”.[53] A el-rei d.João III: “A graça e amor de Christo Nosso Senhor seja com Vossa Alteza sempre. Amen”.[54] Ou: “Nosso Senhor Jesus Christo dê muita graça e consolação a Vossa Alteza sempre. Amen”.[55] Ou ainda: “A graça e consolação do Espirita Santo seja com V. A. sempre. Amen”.[56]

Por vezes, a saudação vem ainda mais abreviada, como: [Aos padres e irmãos de Portugal:] “A paz e amor de Christo, &c.”.[57] Ou: [Ao padre Ignacio de Azevedo:] “A summa graça, &c.”.[58] Raramente se alarga um pouco, como na carta que envia aos “moradores de S. Vicente”: “Muito amados em Jesus Christo irmãos, aquelle Nosso Senhor, que já se nos vai á dextra de seu Padre, tenha por bem enviar-nos seu Santo Espirito, amen”.[59]

Fica perfeitamente claro nesses exemplos que Nóbrega entende a saudação sobretudo como aplicação de uma fórmula piedosa, repetida com poucas variações notáveis, seja qual for o lugar hierárquico do destinatário. De qualquer modo, pode-se notar que ocorre uma variante quando a fórmula é empregada para leigos ou para superiores eclesiásticos que não fazem parte da Companhia e quando o é em relação aos irmãos jesuítas: para os primeiros, paz, graça ou consolação são invocadas em favor dos destinatários apenas, como desempenho de zelo espiritual e humildade; para os segundos, a fórmula sempre se aplica inclusivamente, isto é, como pedido de que o favor divino recaia sobre um “nós”, que reafirma desde logo a “união” que rege o corpo jesuítico.

Mas, atendendo ainda à questão do emprego repetido de fórmulas, é preciso considerar que, entre os jesuítas, como fica patente no uso que o próprio Inácio faz nos Exercícios espirituais, esse recurso está associado à condensação das fórmulas preparatórias, que presidem todas as meditações propostas e as normas reguladoras de todas as ações. O propósito delas está associado à confirmação do desejo de seguir o princípio e fundamento religioso que ordena determinada ação, na qual se inclui seguramente o próprio ato de escrita da carta em questão.

2.”CAPTATIO BENEVOLENITAE”

A segunda parte inicial que cabe examinar é a que os tratados chamam de captatio benevolentiae, a qual reúne os procedimentos que buscam a disposição favorável do leitor para o que se há de seguir. Aqui, ao contrário do que ocorre na saudação, são amplos e diversificados os recursos efetuados por Nóbrega. Entre os mais recorrentes, sem dúvida está o de representar-se sistematicamente com humildade face aos demais irmãos da ordem. Assim, por exemplo, diante da citação de “frutos” da missão, que atribui à diligência dos irmãos, só a si mesmo não louva, apresentando-se como “membro inútil” e cheio de pecados: “Todos são bons e proveitosos, sinão eu que nunca faço nada; e assás devoção há, pois meu mau exemplo os não escandalisa”.[60] Por vezes, a humildade cumpre-se mesmo como desempenho da auto-humilhação: “[…]fico espantado de ter sido para esse fim eleito, sendo eu a escoria de toda a Universidade; […]”[61]. Outras vezes, efetua-se tendo como contraponto não propriamente os irmãos, mas o próprio valor e fama da Companhia como um todo, em que apenas ele destoa: “É feito muito fructo, gloria ao Senhor, por meio destes dois pobres, ou, por melhor dizer, por meio de vossas orações e pela fama da Companhia, a qual é cátida em muita veneração. Em somente verem que somos membros della (posto que eu podre e prouvesse a Nosso Senhor que não cortado) isto faz em todos abalo, a emendar-se de suas vidas”.[62]

Outro procedimento da captatio de Nóbrega, mais do que esperada entre jesuítas, é a que refere como causa de toda ação não a vontade pessoal, mas o cumprimento da obediência devida ao superior e à Companhia: “Saberá Vossa Paternidade como a estas partes me mandaram os padres e irmãos que viemos, e até agora vivemos sem lei nem regra mais que trabalharmos de nos conformar com o que haviamas visto no collegio […]”.[63]

A própria escrita da carta, por vezes, apresenta-se como efeito de uma ordem a que trata de obedecer prontamente: “O anno passado de 1559 me deram uma de Vossa Alteza em que me manda que lhe escreva e avise das cousas desta terra, que elle deve saber. E pois assim m’o manda, lhe darei conta do que Vossa Alteza mais folgará de saber, que é da conversão do gentio […]”.[64]

Outro recurso da captatio traz para o primeiro plano as dificuldades terríveis da missão, e as reinterpreta como “fezes do cálix” da salvação do gentio, em que a fé traduz-se, por vezes, não apenas como aceitação voluntária da morte, mas como desejo mesmo do martírio. Para dar um exemplo em negativo do procedimento, pode-se levantar aquele em que Nóbrega comenta, como providenciais, o que julga ser atos concomitantes de castigo e de graça presentes na morte do bispo d. Pero Fernandes Sardinha, que havia sido comido pelos índios:

[…l nisto me ajude Vossa Mercê a louvar a Nosso Senhor em sua providencia, que permittiu que fugindo elle dos gentios e da terra, tendo poucos desejos de morrer em suas mãos, fosse comido d’elles, e a mim que sempre o desejei e pedi a Nosso Senhor, e mettendo-me nas occasiões mais que elle, me foi negado. O que eu nisso julgo, posto que não fui conselheiro de Nosso Senhor, é que quem isto fez, porventura quiz pagar-lhe suas virtudes e bondade grande, e castigar-lhe junctamente o descuido e pouco zelo que tinha da salvação do gentio.[65]

Em outra direção, é importante observar também que boa parte da efetuação da captatio associa-se à reflexão sobre os sentidos atribuídos ao próprio ato de escrever a carta, em que esta, por exemplo, constrói os seus relatos como condição da partilha comum de alegrias e tristezas vividas isoladamente nas missões, mas tendo, cada uma delas, um peso ou valor específico na economia da salvação:

Este quadrimestre de janeiro até abril relatará cousas que muito aos de cá nos hão consolados, e outras que nos hão entristecido; porque á maneira de lavradores nos havemos que se vêm suas sementeiras ir bem, se alegram, e si tempo contrario lhes succede, se entristecem: de um e de outro será Vossa Paternidade informado, para que lhe caiba parte das consolações e assim das consolações de seus filhos, para que, apresentando tudo a sua divina majestade em seus sacrifícios e orações, negoceie com a divina misericordia o que cumpre a estes seus filhos desterrados, e para este povo que em Christo e para Christo se começa a criar.[66]

A carta concebida, pois, enquanto participação afetiva e experiência mística constitui-se, na captatio benevolentiae, como o campo próprio de estreitamento amoroso entre os membros da Companhia: “As novas que de nós ha que escreverei a V. R. e a nossos dilectissimos padres e irmãos para que, como verdadeiros membros se alegrem no Senhor comnosco de nossa consolação e se compadeçam tambem comnosco de nossas tristezas e trabalhos”.[67]

O desejo da consolação é contraposto inclusive à ideia de um motivo informativo a justificar a redação da carta. Há momentos em que Nóbrega alega como causa da escrita a própria imaginação de seus interlocutores, que, enquanto imagens a balizar o que se escreve, prefigura vicariamente o encontro real entre eles a efetivar-se depois da morte. As partilhas consolatórias e devocionais funcionam, pois, como antecipações místicas, vividas em torno da interlocução epistolar: “Porque me quero consolar escrevendo-vos, charissimos irmãos, escrevo esta e não por ter novas que vos escrever, porque vossos irmãos que cá estão têm este cuidado. De cá vos estou contemplando e pelos cubículos visitando e com o coracão e somente em os ceus vos desejo ver e lá vos aguardar. E isto porque o Senhor Jesus Christo é bom e vós, charissimos, muitas vezes lhe rezaes por mim. Porque, segundo crescem meus peccados e descuidos, ja tudo se perdera si tantos Moysés não tiveram de continuo cuidado de mim.”[68]

Tais são os principais recursos de captação da benevolência do leitor aplicados por Nóbrega. É fácil ver que se compõem de acordo com as exigências inacianas de um propósito predominantemente devocional na carta principal. Há mesmo um momento em que a captatio preenche explicitamente o lugar da exortação mística. Nesse caso, o favor do leitor, buscado a partir de provas do caráter humilde, obediente e piedoso do escritor, é solicitado igualmente pela experiência da unidade de todos em Cristo, de tal forma que aquilo que atualmente se vai escre vendo na carta é postulado como cumprimento da escritura sagrada: “Obrigou-me o amor que em o Senhor Nosso vos tenho a escrever estas regras a todos, já que com cada um particularmente não posso cumprir: porque como a todos eu tenho escriptos em meu coração com o sangue do Novo Testamento, que o Cordeiro, poucos dias ha crucificado, derramou por toda a cidade de Jerusalém com grande e egual amor por todo o mundo, assim também me pareceu bem com todos juntamente me alegrar, escrevendo a todos, pois o amor é todo um, e a todos igual”.[69]

O que se deixa escrever na carta, mais que um conteúdo, é a comunicação instantânea de um fogo de caridade e amor, que move o leitor e, por meio dele, é capaz de converter o indígena: “[…] porque, posto que eu a todos não escreva, com todos fallo muitas vezes, e em minha alma os converso, e ás vezes, passeando com elles por essas ruas, e em minhas pobres orações e sacrificios, cada um tem o seu quinhão; queira o Senhor, por quem é, acceitar meus desejos, os quaes são fazer-vos Nosso Senhor taes quaes eram os da primitiva Egreja; porque, si ahi não houver grande fogo de charidade, como será possível encenderem-se os corações do gentio?”.[70] Neste caso, de modo lapidar, a captatio pode adotar francamente o vocabulário metafórico da combustão mística, em que cabe ao leitor arder em fogo de glória: “[…] com estas cousas, e outras muitas que o mesmo espírito da vida sabe mui bem ensinar nos corações, onde entra, queria eu que de tal maneira ardesseis em charidade que até os matos se queimassem com elle”.[71]

3. “NARRATIO”

A terceira parte da carta reúne os procedimentos da narratio; em termos breves, como se viu, trata-se, nela, de construir um relato do ocorrido à pessoa ausente. No caso das cartas de Nóbrega, o primeiro aspecto notável é que esse relato estabelece um “estado de coisas”, constituído no passado e continuado até o presente, momento em que cabe pensar as formas da intervenção jesuítica nessa situação dada, de modo a transformá la. Nesse sentido, a narração é sobretudo uma descrição ou composição de um quadro temático em que os acontecimentos selecionados atuam no conjunto como exemplos de situações repetidas, que referem menos ocorrências verdadeiramente únicas do que cenas exemplares, típicas, capazes de evidenciar determinada prática ou costume longamente estabelecido.

O ESTADO DE COISAS NO BRASIL

Para começar pelo estudo dos quadros temáticos mais simples que são compostos como diagnóstico da situação geral em que se encontra o Brasil, pode-se tomar o da “terra”, em cuja pintura a tendência é equivocar sentidos geográficos com os de “natureza” ou “potência” civilizacional e cristã do Novo Mundo. Nesse aspecto, o quadro é invariavelmente figurado de maneira positiva; por exemplo, aplicando-se ao caso a tópica, lançada por Caminha, de que a nova terra é sempre fértil: “Eu um bem acho nesta terra que não ajudará pouco a permanecerem depois na fé, que é ser terra grossa, e todos têm bem o que hão mister, e a necessidade lhes não fará prejuízo algum”.[72]

Ademais, uma fertilidade estendida às mulheres: “E digo que todas casarão mui bem, porque é terra muito grossa e larga, e uma planta que se faz dura dez annos aquella novidade, porque, assim como vão apanhando as raízes, plantam logo ramos, e logo arrebentam”.[73]

Mas o melhor exemplo é o seguinte, em que o quadro inteiro das virtualidades positivas se desenha e articula para favorecer o cristão, desde o lugar de implantação da cidade, a disposição dos índios para ajudar, a terra fértil, os bons ares, a extensão do território, o clima refrescante e temperado, a diversidade e delícia dos frutos, os bons peixes, até a beleza dos montes, a diversidade da fauna e da flora etc.:

Desde logo se fez a paz com o gentio da terra e se tomou conselho sobre onde se fundaria a nova cidade, chamada do Salvador, onde muito ainda obrou o Senhor, deparando logo muito bom sitio sobre a praia em local de muitas fontes, entre mar e terra e circumdado das aguas em torno aos novos muros. Os mesmos índios da terra ajudam a fazer as casas e as outras cousas em que se queira empregai-os; pode-se já contar umas cem casas e se começa a plantar cannas de assucar e muitas outras cousas para o mister da vida, porque a terra é fértil de tudo, ainda que algumas, por demasiado pingues, só produzam a planta e não o fructo. É muito salubre e de bons ares, de sorte que sendo muita a nossa gente e mui grandes as fadigas, e mudando de alimentação com que se nutriam, são poucos os que enfermam e estes depressa se curam. A região é tão grande que, dizem, de tres partes em que se dividisse o mundo, occuparia duas; é muito fresca e mais ou menos temperada, não se sentindo muito o calor do estio; tem muitos fructos de diversas qalidades e mui saborosos; no mar egualmente muito peixe e bom. Similham os montes grandes jardins e pomares, que não me lembra ter visto panno de raz tão bello. Nos ditos montes ha animaes de muitas diversas feituras, quaes nunca conheceu Plínio, nem delles deu noticia, e hervas de differentes cheiros, muitas e diversas das de Hespanha; o que bem mostra a grandeza e belleza do Creador na tamanha variedade e belleza das creaturas.[74]

Contudo, quando o quadro da potência da terra cruza com o dos costumes das gentes que nela vivem, o quadro positivo entra em colapso completo; trata-se agora de marcar uma longa sucessão de enganos e vícios, de pecados mortais; de prantos derramados sobre a terra originariamente boa. Assim, a categoria dos “moradores cristãos” é quase exclusivamente qualificada de modo negativo, no interior de uma situação que se julga ainda inalterada ou sem frutos. De maneira quase absoluta, Nóbrega considera-os maus exemplos para os índios, verdadeiros “estorvos da conversão”, seja por incentivar o canibalismo e as guerras contínuas entre as tribos, sob pretexto de política defensiva; seja por sua condição de adúlteros, amancebados, e pelas várias espécies de enganos, trapaças, blasfêmias e escândalos praticados, de que os mais notáveis são o descuido da alma do servo; o ódio geral ao índio; a escravização sem justa causa; a preguiça e a sensualidade, maior que a dos nativos; a impossibilidade da comunhão, uma vez que a confissão lhes está proibida pelos muitos pecados mortais em que vivem; o abandono no sertão dos filhos que têm com as índias; o roubo das roças indígenas; a farsa da justiça que não reconhece o indígena como testemunha do crime; afora a própria desobediência civil e a murmuração geral que fazem contra as disposições do governador, o quê, tudo resumido, revela um retrato do português muito diferente do que se pinta nas crônicas antigas, e onde avulta sobretudo a covardia. Eis algumas cláusulas lançadas nas narrações que compõem esse duríssimo diagnóstico a propósito das ações dos portugueses no Brasil: “Sómente temo o mau exemplo que o nosso christianismo lhe dá, porque ha homens que ha sete e dez annos que se não confessam e parece-me que põem a felicidade em ter muitas mulheres”.[75] Ou, de maneira mais contundente: “[…] comquanto não sejam induzidos pelos christãos que aqui vêm com o exemplo ou com a palavra ao conhecimento de Deus, mas antes os chamam cães e fazem-lhes todo o mal. E toda intenção que trazem é de os enganar, de os roubar, e por isso permittem que vivam como gentios sem a sciencia da lei e têm praticado muitos desacatos e assassínios, de sorte que quanto mais males fazem vident obsequium se proestare Deo e assim é de todo perdido nesta terra o zêlo e a charidade para com as almas que tanto ama o Senhor”.[76]

Com efeito, quase não há carta em que a tópica do mau exemplo dos cristãos não apareça, algumas vezes amplificada pelo recurso do silêncio, isto é, pelo anúncio de casos tão abomináveis que o decoro próprio das cartas impediria contar quais fossem:

E dahi vem o pouco credito que gozam os christãos entre os gentios, os quaes não estimam mesmo nada, sinão vituperam aos que de primeiro chamavam santos e tinham em muita veneração e já tudo o que se lhes diz acreditam ser manha ou engano e tomam a má parte. Esses e outros grandes males fizeram os christãos com o mau exemplo de vida e a pouca verdade nas palavras e novas crueldades e abominações nas obras. Os gentios desejam muito o commercio dos christãos pela mercancia que fazem entre si do ferro e disto nascem da parte destes tantas cousas illicitas e exorbitantes que nunca as poderei escrever, e não pequena dôr sinto n’alma, maxime considerando em quanta ignorancia vivem aquelles pobres gentios e que pedem o pão de Deus e da santa fé, sem haver qui frangateis.[77]

Uma contraposição exemplar entre os dois aspectos examinados, isto é, a sã natureza da terra e a corrupção em que se acham os cristãos, pode ser lida na seguinte passagem: “Esta terra, como escrevi a Vossa Reverendíssima, é muito sã para habitar-se e assim averiguamos, que parece a melhor que se possa achar, pois que desde que aqui estamos nunca ouvi dizer que morresse alguem de febre, mas sómente de velhice, e muitos de mal gallico […]”.[78]

O mau costume dos cristãos toma a sua forma mais intensamente negativa quando Nóbrega refere o modo de vida dos clérigos de outras ordens, em que tudo, sem exceção, parece contrário à religião e à eficácia da pregação: são maus exemplos para todos e descrédito da fé católica; absolvem levianamente moradores em pecado mortal; cobram pelo ofício da missa; não pregam, nem convertem. Eis um desses relatos que funcionam, nas cartas, como caso e paradigma ostensivos:

A Vossa Reverendíssima direi uma cousa mais para se lastimar do que se escrever; um sacerdote da religião, communicado do Diabo, levou um dia o principal de uma aldeia ao seu adversario para fazei-o matar e comer, o que não querendo pôr em pratica o adversaria, allegando que para tal effeito quizera apanhai-o na guerra e não por astucia, o sacerdote começou a incitai-o chamando-o vil e pusillanime por não matar o seu inimigo, tanto que o fez e o comeu, sem outro proveito daquelle religioso sinão que teve não sei que pouca de fazenda. Eguaes casos frequentes vezes acontecem e por isto digo que quanto mais longe estivermos dos velhos christãos que aqui vivem maior fructo se fará.[79]

Em termos gerais, a denúncia da venalidade dos sacerdotes é ainda associada à concupiscência e, mesmo, a uma justificação herética da mancebia e da escravidão, esta, inclusive, produzida mediante assaltos injustificados às aldeias: “Os clerigos desta terra têm mais officio de demonios que de clerigos; porque, além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de Christo, e dizem publicamente aos homens que lhes é licito estar em peccado com suas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados, pois que são cães, e outras coisas semelhantes, por escusar seus peccados e abominações, de maneira que nenhum Demonio, temo agora que nos persiga, sinão estes”.[80]

Pois bem, se a carta constrói uma narração em que a terra é sempre potencialmente boa e os cristãos do Brasil costumeiramente ruins, essa mesma divisão básica e antagônica entre natureza sã, por um lado, e maus costumes, por outro, aplica-se conjuntamente à caracterização do grupo temático do “indígena”. Teologicamente, a distinção é decisiva para a sustentação da relevância da pregação missionária, pois significa que o índio não é servo, nem precito por natureza: apenas más práticas e pecados arraigados afastam-no de sua própria disposição original para a sociedade, o bem, Deus. Significa, pois, que a conversão ocupa o primeiro lugar nas ações cristãs no Novo Mundo, quando se trata de reconduzir o selvagem, por meio da doutrina e da fé, a sua natureza verdadeira, ora baça e desconhecida dele próprio.[81]

No conjunto dos “maus costumes” dos índios, sistematicamente constituído pelas cartas de Nóbrega, encontram-se, entre as tópicas de maior ocorrência, aquelas a propósito de práticas “contra natura”, como as do canibalismo, da poligamia, e da nudez, principalmente. Encontram-se também tópicas políticas, como as referentes ao contínuo estado de beligerância entre as tribos, à vida em discórdia (efeito suposto da falta de prudência, conselho, e sujeição ao afeto da ira e da vontade de vingança) e as que lamentam a ausência de lei comum e de rei único (suposta a melhor ordenação política da monarquia centralizada e a maior facilidade da conversão do corpo a partir da cabeça). Compondo igualmente a cena dos costumes ruins, estão as tópicas doutrinárias, relativas à falta de fé e ignorância de Deus, ao desconhecimento da Glória salvífica e da condenação infernal etc. E há ainda as tópicas que dizem respeito aos pecados e fraquezas a que são particularmente propensos os índios: a sensualidade, a brutalidade; o alcoolismo; a inconstância das suas crenças; o nomadismo (que os fazem atear fogo a uma aldeia inteira da noite para o dia, de modo que o pregador já não encontra amanhã o povoado que deixara na véspera); tudo evidenciado na tópica de longa fortuna da incompletude da língua indígena, a que faltam as letras necessárias para a reta ordenação política e religiosa:[82] “Trabalhei por tirar em sua língua as orações e algumas praticas de Nosso Senhor e não posso achar língua que m’o saiba dizer, porque são elles tão brutos que nem vocabulos têm”.[83]

Ou ainda, acentuando concomitantemente a falta indígena e o esforço engenhoso do missionário para superá-la pela perífrase: “Têm mui poucos vocábulos para lhes poder bem declarar nossa fé. Mas, comtudo, damos-lh’as a entender o melhor que podemos, e algumas cousas lhes declaramos por rodeios”.[84]

Práticas más, porém, não são o mesmo que má natureza – nessa diferença, como se viu, reside o fundamento teológico da conversão e da intervenção jesuítica. Assim, Nóbrega levanta um segundo conjunto de tópicas que visa demonstrar as disposições favoráveis dos índios à adoção da fé católica: guardam obediência aos padres; são fáceis de senhorear; mostram docilidade e desejo de aprender; têm admiração e curiosidade pelos ofícios e cantos sacros; na maior parte são veniais seus pecados, guardando vida moral e lei natural em muitos aspectos; mostram ter memórias longínquas da fé, como as relativas ao dilúvio ou à passagem de são Tomé pela América, mesmo que adulteradas ou incompletas; não adoram, nem conhecem Deus contrário ao cristão etc. A conhecida metáfora que resume essas virtualidades positivas do índio é a que o retrata como um “papel branco”, sobre o qual se pode escrever com facilidade o melhor para a fé e a monarquia: “Poucas lettras bastariam aqui, porque tudo é papel branco, e não ha que fazer outra cousa, sinão escrever á vontade as virtudes mais necessarias e ter zelo em que seja conhecido o Creador destas suas creaturas”.[85] Quer dizer, a metáfora do papel branco afiança a inexistência de resistência natural no índio à assimilação da fé, devendo o cuidado da conversão estar posto apenas na conservação dos novos costumes adquiridos: “O converter todo este gentio é mui facil cousa, mas o sustental-o em bons costumes não pôde ser sinão com muitos obreiros, porque em cousa nenhuma crêm e estão papel branco para nelles escreverá vontade, si com exemplo e continua conversação os sustentarem”.[86]

Mas também é curioso notar como, em tais redescrições metafóricas, a arte jesuítica de escrever cartas e a prática da conversão revelam-se símiles entre si: uma escrita que inscreve na alma um lugar devocional que estreita a relação entre próximos. Pois exatamente o que o papel branco da alma do índio revela é que não se pode concebê-lo como “outro”, categoria necessariamente excludente aqui, mas sim como “próximo”, bastando para o reconhecimento disso que se removam dessa alma as camadas de maus costumes que dificultam a visão de sua brancura original, naturalmente disposta aos caracteres cristãos.

OS MÉTODOS DE CONVERSÃO

Até agora, tratou-se de uma narratio que construía um “estado de coisas” do Brasil, atestado pelos jesuítas que aqui vieram. Contudo, a narrativa jesuítica não é nunca apenas relato de fatos passados ou diagnóstico de uma situação inalterável, mas é sobretudo relato de expectativas de uma história futura, quer dizer, narração de práticas ou projetos de intervenção da Companhia de Jesus nas coisas do Brasil, de modo a dispô-las segundo o mandato divino e a colher nelas os frutos católicos esperados. Nesse caso, o grupo temático dos índios, com sua qualificação dupla de virtualidade boa e costume ruim, não pode ser dissociado, em sua configuração básica, deste outro grupo, o dos próprios jesuítas, que está pressuposto aí como ato caritativo no qual reside toda a esperança de dissolver a dualidade ou a impiedade de uma natureza ainda irrealizada. A conversão, desse ponto de vista, é, antes de mais nada, conversão do índio a si mesmo, a sua própria natureza original, adiada pelo longo hábito de seus pecados.

A via amorosa

Compreende-se, assim, que as cartas propõem um estado de coisas que é, também, justificação de um movimento a imprimir-se nelas para que encontrem a via de efetuação de sua potência. Historicamente, o primeiro movimento proposto pelas cartas de Nóbrega esboça um método de conversão assentado basicamente numa via que chama amorosa. Supõe, entre outras práticas, a visita e a pregação desarmada dos padres nas aldeias; o exemplo de vida dos missionários e a existência de uma justiça eclesiástica capaz de coibir os abusos dos sacerdotes de outras ordens; a pregação sistemática aos índios adultos; o ensino de leitura e escrita do português, e de doutrina religiosa aos pequenos; o esforço de aprendizado das línguas indígenas e de tradução de textos doutrinais e orações cristãs; a realização de festas, procissões e ofícios, com seus cantos, rezas, disciplinas e ministério dos sacramentos; a separação dos índios já batizados dos demais, para que não recaiam nos antigos costumes gentios; o castigo exemplar dos conversos que pratiquem atos contra natura ou injuriosos à religião cristã etc.

Essa mesma via amorosa da conversão suscita algumas questões doutrinárias, como a de saber se é legítima a confissão mediada por intérpretes, na qual pode ocorrer algum engano na tradução das palavras do sacerdote ou do confitente; se não faz injúria à fé os índios assistirem missas lado a lado com cristãos, batizarem-se e participarem de outras práticas religiosas, mantendo-se nus; se é adequado o aproveitamento de instrumentos, músicas e costumes festivas indígenas para maior eficácia da pregação cristã. Nóbrega, em consonância com as posições predominantes entre os jesuítas, não parece ter problemas em responder afirmativamente a todas essas questões, as quais explicita nas cartas sobretudo a partir da posição contrária do bispo Fernandes Sardinha. Há ainda outra questão formulada por ele, mais complexa, e que, nesse momento, justamente começa a receber um tratamento teológico sistemático nas formulações dos doutores espanhóis da chamada Segunda Escolástica: trata-se de saber se, do ponto de vista da doutrina, admite-se “cativeiro justo” dos indígenas por motivo de práticas contra natura, como se consideravam as da antropofagia, da poligamia, da nudez etc.

ANEXO 1: VITORIA

Balizada em termos doutrinários pelas formulações do decano da escolástica do Século de Ouro, Francisco de Vitoria (1483-1546), a tendência predominante na ortodoxia católica é responder negativamente à questão levantada por Nóbrega. Em suas duas releituras De indis, ambas de 1539, Vitoria considera as três possibilidades mais comumente aventadas de os bárbaros não terem domínio político de si mesmos, ou de suas propriedades, e refuta-as inequivocamente. A primeira delas, relativa a que sejam pecadores, Vitoria julga inepta, dado que mesmo “o pecado mortal não impede o domínio civil e domínio verdadeiro”;[87] entre outras razões, porque, nesse caso, seria demasiado “incerto e inseguro” saber “quais seriam os verdadeiros príncipes e senhores”.[88] A segunda, de que sejam infiéis, tampouco é “impedimento” para que sejam “verdadeiros senhores”,[89] já que, “segundo o direito divino, o herege não perde o domínio de seus bens”;[90] depois, nenhum confisco de bens é legítimo “antes da condenação”.[91] Quanto à terceira delas, que aventa a possibilidade de os índios serem “amentes” ou “idiotas”, igualmente não impediria que os gentios fossem verdadeiros donos de suas propriedades e de si mesmos; isso porque, “na realidade, não são dementes, apenas que a seu modo exercem o uso da razão”:[92] têm cidades, senhores, leis, artesãos etc. O fato de que “nos pareçam tão idiotas e broncos provém em sua maior parte da má e bárbara educação”.[93] A hipótese de que se pudesse aplicar a eles a categoria aristotélica de “servos por natureza”, como pretendiam alguns teólogos e humanistas do período, é também refutada por Vitoria, que, de resto, considera que

[…] não é, certamente, ideia de Aristóteles que os que tenham pouco engenho sejam por natureza servos e não tenham domínio nem de si, nem de suas coisas. Esta é a servidão civil e legítima que não faz a ninguém servo por natureza. Nem tampouco quer dizer o filósofo que seja lícito ocupar suas propriedades, reduzir a escravidão e levar ao mercado aos que a natura fez demasiado curtos e faltos de engenho. O que quer ensinar é que há neles uma necessidade natural de ser regidos e governados por outros, sendo-lhes muito proveitoso o estar submetidos a outros, como os filhos necessitam estar submetidos aos pais e a mulher ao marido.[94]

A partir daí, Vitoria examina o que chama “títulos não legítimos” de submissão dos bárbaros do Novo Mundo pelos espanhóis, quais sejam:

    1. imperador ser senhor do mundo (pois não o é por direito natural, em que “os homens são livres”, nem por direito divino, dado que não houve “senhor do mundo” nem “antes da vinda de Cristo”,[95] nem “depois” dela;[96] e tampouco há lei humana que outorgue tal império enquanto tal, e se outorgasse não teria jurisdição para isso; ademais, os que atribuem domínio universal ao imperador apenas admitem que seja “dono” por jurisdição, não podendo sê-lo por domínio de propriedade);[97]
    2. a autoridade do papa (pois “não é senhor civil ou temporal de todo o orbe”;[98] que ainda que tivesse tal autoridade, “não poderia transmiti-la aos príncipes seculares”; a sua “potestade temporal” está restrita ao que “seja necessário para administrar as coisas espirituais”);[99]
    3. o “direito de descobrimento” das províncias (pois só caberia domínio se não houvesse dono anterior, como há, uma vez que os bárbaros são delas “verdadeiros donos, pública e privadamente”);[100]
    4. a “obstinação” dos índios em não receber a fé de Cristo (pois “antes de ter qualquer notícia de Cristo”, não pecam por “infidelidade”, ou seja, quando há “ignorância invencível”[101] não pode haver pecado; e tampouco “estão obrigados a crer na fé de Cristo ao primeiro anúncio que se lhes faça dela”,[102] nem isso é “razão suficiente para que os espanhóis possam fazer-lhes guerra ou proceder contra eles por direito de guerra”).[103]

O quinto título ilegítimo refere justamente a última questão colocada por Nóbrega sobre os pecados contra natura. Para Vitoria – que, de resto, vai ser seguido nisso pelos principais autores da escolástica do século XVI -, canibalismo, sodomia, incesto etc. não podem justificar a escravidão dos índios, pois a jurisdição do papa restringe-se aos que já estão dentro do cristianismo; além disso, não é lícito ao papa, mesmo se fosse entre cristãos, destituir governos ou apartá-los de suas propriedades por força de seus pecados: “Se assim não fosse, como em qualquer província há sempre muitos pecadores, poder-se-ia a cada passo mudar os reinos”.[104]

O sexto título ilegítimo alega a “eleição voluntária”, por parte do índio, para tornar-se súdito do rei de Espanha (pois, considera Vitoria, para que fosse verdadeira, “deveriam estar ausentes o medo e a ignorância que viciam toda eleição”,[105] o que não ocorre); o sétimo e último título não legítimo supõe uma “doação especial” que Deus tenha feito dos bárbaros, em virtude de sua “perdição”, aos espanhóis (alegação que Vitoria descarta como temerária, já que reside em “profecia contra a lei comum e contra as regras da Escritura”;[106] depois, como escreve, ainda que “o Senhor houvesse decretado a perdição dos bárbaros, não se seguiria daí que aquele que os destruísse ficaria sem culpa”).[107]

Para Vitoria, os “títulos legítimos” para dominação dos bárbaros teriam que ser outros, a saber: 1) quebra do direito de “sociedade e comunicação natural”, o qual – de acordo com “o direito das gentes, que é direito natural ou do direito natural se deriva”[108] – estabelece que os mares e portos são “comuns a todos”,[109] de modo que os espanhóis têm o direito de atracar ou permanecer no território bárbaro, e ainda comerciar com os seus habitantes, desde que não causem “prejuízo a sua pátria”;[110] se forem impedidos com violência, os espanhóis podem defender-se e tomar todas as precauções que necessitem para sua segurança”[111]; 2) quebra do direito missionário, isto é, de “propagação da religião cristã” (pois “os cristãos têm direito de pregar e de anunciar o Evangelho nas províncias dos bárbaros”,[112] desde que isso seja feito sem dano); 3) direito de defesa dos índios já conversos, caso os demais “quisessem por força e medo torná-los à idolatria”;[113] 4) direito de intervenção papal para conservação da conversão, quando esta já atingisse “boa parte dos bárbaros”, podendo mesmo dar-lhes “príncipe cristão” e fazendo-os deixar “os outros senhores infiéis”;[114] 5) ação contra a “tirania dos senhores dos bárbaros ou das leis desumanas que prejudicam os inocentes”, com sacrifícios e morte de “inculpáveis”, apenas para “comer suas carnes”;[115] nesse caso, os espanhóis podem intervir para a defesa dos inocentes e obrigar a que deixem tais costumes, com emprego legítimo dos “direitos de guerra”;[116] 6) ocorrência de “verdadeira e voluntária eleição” e “consentimento” da “maior parte” dos índios para constituir como senhor a um príncipe cristão ;[117] 7) “por razão de amizade e aliança” (isto é, como ação militar de auxílio a aliados em “guerra justa”, de que·pode resultar domínio sobre as províncias vencidas);[118] 8) e último título legítimo, que Vitoria considera, contudo, hipotético e duvidoso: a “suposta idiotia ou rudeza” que alguns atribuem aos índios e que seria título lícito de sujeição caso todos fossem “amentes”; nesse caso, como “são nossos próximos”, “estamos obrigados a procurar-lhes o bem”, e governá-los fundados no “preceito da caridade”.[119]

O conjunto dessas tópicas, debatidas por Vitoria e posteriormente por outros autores dominicanos e jesuítas,[120] define o âmbito doutrinário e jurídico em se que se teorizam as práticas da conversão pela via que Nóbrega chama “amorosa”. Contudo, a sequência das cartas do jesuíta sinaliza um progressivo afastamento desse método inicial da conversão, de cuja eficácia tanto mais duvida quanto mais se alonga sua experiência do Brasil.

A via da experiência: a conversão por medo

Sobretudo a partir das chamadas “guerras dos índios”, no governo de Duarte da Costa (1553-7), de que as cartas dão como resultado efetivo uma geral submissão das aldeias mais próximas aos portugueses – com legitimidade ou não da causa, arduamente debatida entre os escolásticos espanhóis-, a posição de Nóbrega a respeito dos negócios indígenas distancia-se daquelas mais avançadas defendidas pelos teólogos da Segunda Escolástica. A tendência se acentua com a ação militar sistemática do novo governador Mem de Sá, que aplica aos indígenas severas punições por práticas condenadas pela religião, e, ao mesmo tempo, oferece proteção militar para a ação missionária dos jesuítas. A partir desse ponto sem retorno, a narration das cartas de Nóbrega organiza seus relatos de modo a postular, como condição do êxito da missão no Novo Mundo, a sujeição política do indígena, em oposição à ideia predominante anteriormente, de convertê-lo apenas pela pregação dos argumentos de fé – embora, antes mesmo do período final de Duarte da Costa, Nóbrega já aventasse alguma vez a hipótese dessa via mais dura e punitiva. Assim, na carta ao rei d.João III, escrita de São Paulo, em 1554, Nóbrega escreve a propósito das “crueis guerras” que travam entre si os índios da Bahia: “[…] e é agora o mais conveniente tempo para a todos sujeitarem e os imporem no que quizerem; e já que a terra estava honestamente segura e cheia de gente para se poder fazer, si os índios o quizessem contradizer, quanto mais que por certo se tem, que assim uns como os outros, que dentro daquella geração de dez ou doze leguas estão, lhes viriam bem, e folgariam acceitar qualquer sujei ção moderada, antes que viverem nos trabalhos que vivem […]”.[121]

Em 1557, as ações de Duarte da Costa mais frequentemente elogiadas por Nóbrega são aquelas em que o governador promove a punição exemplar dos indígenas que as cartas caracterizam como “feiticeiros”, os quais insistiam nas práticas antropofágicas e na recusa da doutrina cristã. Aí parecia residir a chave para alguns frutos notáveis da conversão: “[…] e sobre isso se ajuntou blasphemia da nossa doutrina, e desprezarem-na, o que sabido pelo governador, mandou prender ao feiticeiro e a outro que contra a doutrina fallava, estiveram presos sete ou oito dias, até que pelos rogos dos padres, os soltaram, de que ficaram todos amedrontados, que dahi por deante se começaram a encher as egrejas; favoreceu a isto muito mandar o governador por sua lingua prégar-lhes e auctorisar-lhes, que nós ensinávamos, de maneira que subitamente vimos o notavel proveito que nasceu de se castigar áquelle feiticeiro […]”.[122]

A via amorosa parece-lhe então menos eficaz, em relação aos índios – “gente servil”-, do que a que se faz “por medo”: “O governador vendo que succedia tão bem á prisão do feiticeiro e que tanto fructo disso sahiu, apposuit ut aprehenderentur alii malefactores, os que impediam a palavra do Evangelho do Senhor; do que resultou muito maior bem, e os indios se sujeitaram com isso mais, e se fizeram muito nossos obedientes; assim que por experiencia vemos que por amor é mui difficultosa a sua conversão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo […]”.[123]

Embora admita, de acordo com a formulação escolástica, que não há verdadeira conversão onde falta a livre eleição, Nóbrega considera que os filhos dos índios sujeitos, apartados das antigas práticas e crescidos no ambiente cristão, poderão adquirir plenamente o que nos pais dá como perdido:”[…] e posto que nos grandes por não concorrer sua livre vontade, presumimos que não terão fé no coração; os filhos creados nisto ficarão firmes christãos, porque é gente que por costume e criação com sujeição farão d’ella o que quizerem, o que não será possivel com razões nem argumentos”.[124]

Sem referir aqui o que Nóbrega formula fora do gênero da carta, que exclusivamente interessa a este trabalho – e, portanto, deixando de lado o Diálogo sobre a conversão do gentio, escrito no final da década de 1550, que vai nessa mesma direção -, várias outras passagens das narrativas epistolares glosam a contraposição entre os dois métodos de conversão, para afinal confirmarem a maior eficácia daquele que se aproveita do temor gerado pelo domínio sobre o selvagem, e cujo melhor exemplo parece-lhe ser o fornecido pelos castelhanos, de modo que pensa muitas vezes em mudar-se para as missões do Paraguai:

Des que fui entendendo, por experiencia, o pouco que se podia fazer nesta terra na conversão do gentio, por falta de não serem sujeitos, e ella ser uma maneira de gente de condição mais de féras bravas que de gente racional, e ser gente servil, que se quer por medo, e conjuntamente vêr a pouca ajuda e os muitos estorvos dos christãos d’estas terras, cujo escandalo e mau exem plo bastára para não se convencer, posto que foi gente de outra qualidade, sempre me disse o coração que devia mandar aos Carijós, os quaes estão senhoreados e sujeitos dos castelhanos do Paraguay e mui dispostos para se nelles fructificar com outras gerações que tambem conquistam os castelhanos, e junctamente com isto fazerem-me de lá instancia grande por muitas vezes […][125]

O emprego reiterado da tópica da servilidade da gente do Brasil, que a torna mais apta a aprender quando “senhoreada”, vale dizer, submissa ao governo cristão, à primeira vista, aproxima Nóbrega da posição de um autor como Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), cujo Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, escrito em 1547, circulou bastante, embora não tenha sido impresso,[126] por recusa do Consejo Real de las Indias e do Consejo de Castilla, que acataram os pareceres desfavoráveis dos teólogos das universidades de Alcalá e de Salamanca, os quais, como Vitoria e Las Casas, manifestaram-se geralmente contrários à escravidão indígena e à ideia de que se enquadrassem, como se viu, na catego ria aristotélica de “servos por natureza”.

ANEXO 2: SEPÚLVEDA

Para Sepúlveda, entre as causas justas da guerra, haveria que considerar o direito natural de submissão dos servos por natureza, de acordo com o seu “único princípio, a saber: que o perfeito deve imperar e dominar o imperfeito”, assim como a forma prevalece sobre a matéria, a alma sobre o corpo, a razão sobre a sua falta.[127] Em conhecida passagem, afirma: “Os que excedem aos demais em prudência e engenho, ainda que não em forças corporais, estes são, por natureza, os senhores; pelo contrário, os lentos e preguiçosos de entendimento, ainda que tenham forças corporais para cumprir todas as obrigações necessárias, são por natureza os servos, e é justo e útil que o sejam, e ainda o vemos sancionado na mesma lei divina. Porque está escrito no livro dos Provérbios: ‘O que é néscio servirá ao sábio'”.[128]

Nesse sentido, para cumprimento da lei natural em que o melhor domina o inferior, como adultos a crianças, homens a mulheres ou a ” monos”,[129]Sepúlveda considera as seguintes causas justas de guerra contra os bárbaros: 1) a resistência ao “império de príncipes e nações mais cultas e humanas”[130]– supondo-se por definição que as virtudes dos espanhóis (prudência, engenho, magnanimidade, temperança, humanidade e religião)[131]sejam muito superiores às dos “hombrecillos”,[132] entre os quais mal se encontrarão “vestígios de humanidade” (intemperança, leviandade, canibalismo, ferocidade, covardia, timidez, servi/idade de ânimo ).[133]Ademais, a sujeição aos melhores traz bem “muito maior” aos vencidos do que aos vencedores,[134] como a preparação dos ânimos para a fé cristã e o abandono de sua “ímpia religião” e “nefandos sacrifícios”;[135] 2) segunda causa justa: o desterro “pecados, impiedades e torpezas”[136] dos gentios, ofensivos a Deus, “que deu grandes e claríssimos indícios a respeito do extermínio destes bárbaros”;[137] nesse caso, o domínio sobre eles é legítimo como forma de castigo de seus pecados e meio de trazê-los à saúde espiritual. À posição escolástica de que a potestade papal não pode obrigar com leis cristãs e evangélicas aos pagãos, Sepúlveda contrapõe o argumento de que ela pode validar os meios de apartá-los dos crimes ímpios e trazê-los aos “costumes humanos e à verdadeira religião”;[138] 3) terceira causa justa: a obrigação de trazer o “próximo” à fé, como se lê na seguinte passagem do tratado de Sepúlveda: “E se qualquer homem particular está obrigado pela lei natural a cumprir este serviço, quanto mais devem-no estar o sumo sacerdote de Deus e vicário de Cristo e os príncipes cristãos que também, ainda que de outro modo, fazem as vezes de Deus na terra, sendo e chamando-se uns e outros pastores da igreja cristã?”.[139] 4) A quarta causa justa de guerra contra os bárbaros diz respeito à obrigação de assegurar o caminho dos pregadores. Sepúlveda sustenta-a com argumentos que guardam vários pontos em comum com as cartas de Nóbrega. Em particular, afirma que, dada a escassez de pregadores e a raridade dos milagres no Novo Mundo, a pregação evangélica deve “proceder com prudência e moderação”, o que equivale a dizer que ela apenas pode ser feita com êxito submetendo-se previamente os gentios ao domínio cristão: pacificando-os.[140]Assim, será útil acrescentar o medo à doutrina, para que se apartem de vez do culto de seus ídolos: “[…l não só digo que devemos conquistar aos bárbaros para que ouçam a nossos pregadores, senão que convém ajuntar à doutrina e às admoestações as ameaças e o terror, para que se apartem das torpezas e do culto dos ídolos […]”.[141]

Contudo, a aproximação de Nóbrega em relação a Sepúlveda apenas pode ter como argumento o método de ação missionária, não o fundamento doutrinário, que o próprio Sepúlveda tem dificuldade em conciliar com as formulações escolásticas. A servilidade de que fala Nóbrega resulta sempre do costume, supondo principalmente uma pragmática de conversão, e não a concepção teológica de que o índio seja essencialmente incapaz de inteligência da fé, falto de razão ou destituído de humanidade. Para Nóbrega, trata-se de constituir as bases da ação missionária eficaz imediata, no âmbito de um estado de coisas vicioso, cujos maus hábitos criam uma espécie de segunda natureza, esta sim, ruim, que é preciso atacar inclusive com a ação pronta e severa do governo civil, a fim de franquear a potência favorável que reside na primeira. Exatamente por isso, Nóbrega tende a negar, ou ao menos a ignorar, nas cartas, a maioria das consequências que mais interessa a Sepúlveda extrair da caracterização jurídica de uma situação de “guerra justa” contra os índios, a saber: o confisco de pessoas e bens dos vencidos;[142] a legitimidade da escravidão civil, que impede a morte do vencido e conserva a sociedade;[143] a distinção entre vassalos livres do império “civil” ou “régio” e servos bárbaros sujeitos ao império “heril”[144] etc. E mesmo o “repartimento” dos bárbaros submetidos aos cristãos “honrados” para que sejam educados em “costumes retos e humanos” e iniciados na religião cristã,[145] sistema aplicado pelos castelhanos e justificado pelas teses de Sepúlveda, Nóbrega julga inoportuno, em nome da mesma “experiência” do Novo Mundo. O mesmo critério prático que usa para defender o senhoreamento prévio do indígena, aplica igualmente para justificar sua preferência por mantê-los juntos dos padres e apartados dos moradores, nos aldeamentos jesuíticos:

Bem me pareceria a mim conquistar-se a terra e repartir-se os indios por os moradores obrigando-se a doutrina-los, que ha hi muitos que podem sujeitar, mas não ha hi homem que por isso queira levar uma má noite, e si o governador por segurança da terra quer fazer alguma cousa ou castigar algum indio todos lh’o estorvam e ninguem o ajuda; e agora que vêm os indios sujeitos sem custar sangue de christão nenhum, nem guerra (posto que da passada ficaram amedrontados); agora que estão juntos com egrejas para se doutrinarem; agora os querem repartidos, e assim não falta quem vá tirar nossos indios que temos juntos com muito trabalho e leval-os ás suas roças a viver; e muitos vão por fugir á sujeição da doutrina e viverem como seus avós e comerem carne humana como de antes.[146]

ANEXO 3: ACOSTA

Com efeito, a meu ver, os relatos de Nóbrega que justificam pela experiência a adoção de medidas civis de subjugação do índio são menos afins ao escopo do tratado de Sepúlveda que àquele dos escritos de José de Acosta (1539-1600), jesuíta espanhol e missionário no Peru. Em seu De procuranda indorum salute, de 1576, Acosta expõe os três métodos possíveis de pregação da fé de Cristo entre bárbaros, cuja justa proporção e conveniência é preciso examinar segundo o caso. O primeiro tomaria o que chama de via “apostólica”, pois segue o costume e o modo de agir dos próprios apóstolos de Cristo, em que a pregação entre os gentios faz-se sem nenhum aparato militar. Acosta admite ser esse método de “total equidade” superior a todos os outros, ainda mais que “as obras não discordam das palavras”,[147]mas considera-o também inaplicável aos bárbaros ocidentais: “Mas quem quiser seguir, em todos os seus pormenores, este método de evangelização com a maioria dos povos deste mundo ocidental, deve ser condenado por nada mais do que por sua extrema estupidez, e não sem razão. A própria experiência, testemunha acima de toda exceção, mostrou isso abundantemente”.[148]

A categoria da experiência missionária constitui-se aqui, como nas cartas de Nóbrega, em critério prático de eleição do método mais eficaz de evangelização, que não pode ser o apostólico ou amoroso, porque “estes povos, acostumados a viver como animais”, dão sinais de “pouca humanidade”, sem observância de “nenhum direito dos povos, pois nem sequer entre si conhecem as leis da natureza”.[149] Ademais, para Acosta, é inútil esperar a conversão dos índios por efeitos dos martírios dos missionários, pois para que tais efeitos existissem seria necessária a interpretação racional de seus atos de entrega voluntária, e eles apenas pensarão nos padres como um “manjar mais saboroso”.[150]1Também, diferentemente do apóstolos, os missionários não podem contar já com o “esplendor dos sinais”,[151] com os milagres, tanto porque são agora superiores em tudo aos gentios (razão, cultura, autoridade, engenho, erudição etc. ),[152]como porque já não guardam a mesma fé, nem têm os mesmos méritos dos primeiros cristãos.[153]

O segundo método de pregação referido por Acosta restringe-se aos povos já sujeitos aos príncipes cristãos, sendo sobretudo útil para a “colonização” de territórios já ocupados, não para a “exploração” de novos territórios e nações. Nele, “duas coisas” são decisivas: “primeira, não se opor de maneira alguma à jurisdição civil dos príncipes”[154] (isto é, por “razões de consciência e de interesse”, não continuar discutindo “títulos de guerras passadas”, seja por ser impossível a “restituição”, seja porque isso traria perigo e injúria à fé); “segunda, perseverar religiosamente” na atividade eclesiástica, de modo a que, “sem nenhuma ofensa ou escrúpulo”, se possa “pôr a foice nesta grande colheita”.[155]

O terceiro método de evangelizar – anunciado por Acosta como um “novo método”, adaptado ao “novo gênero de homens” encontrado nas terras ocidentais – propõe que a pregação a novas nações seja acompanhada de tropas e soldados para defesa da vida dos missionários, dados os costumes brutais dos índios: “Pois os bárbaros, como que compostos de natureza humana e de fera, por seus costumes não parecem tanto homens como monstros humanos, de modo que com eles se deve estabelecer um relacionamento que seja em parte humano e liberal, em parte duro e violento, enquanto for necessário, até que, superada a sua ferocidade nativa, comecem pouco a pouco a se amansar, disciplinar e humanizar”.[156]

Para Acosta, “se há alguma esperança de salvação dos bárbaros”, ela está neste tipo de expedição, em que há “união de soldado e missionário”.[157] Os títulos pelos quais os cristãos podem fazer expedições nos reinos dos bárbaros são os do direito natural, segundo o qual “a qualquer um é lícito se dirigir para onde quiser” e aí promover o comércio, sendo, ao contrário, ilícito excluir da terra um “estrangeiro pacífico”;[158] e os do direito divino missionário, fundado em Me. 16, 15 e já comentado em relação a Vitoria. Justifica-as igualmente o beneficio do bárbaro, atraído à vida social e às leis naturais, isto é, ao governo e ao ensino dos mais sábios com vistas a sua salvação, mas nunca o reconhecimento de qualquer “escravidão natural”.[159] Em suma, como o explica Acosta, trata-se de “curar o veneno do costume perverso com o antídoto de outro costume”.[160]

A via da experiência narrada por Nóbrega combina aproximadamente os dois últimos métodos referidos por Acosta. Através de uma política de aliança com os governadores, os índios subjugados por guerra são tratados como vassalos do rei e submetidos à justiça temporal, tornando-se, por exemplo, sujeitos a pena de morte por prática de canibalismo ou a prisão por impedimento do direito missionário. Contudo, o fim último da ação política apenas pode ser o de torná-los aptos para a doutrina, o que obriga a mantê-los aldeados e afastados tanto dos não con versos como dos moradores cristãos:

[…] a ordem que desejamos era fazerem ajuntar ao gentio, este que está sujeito em povoações convenientes, e fazer-lhes favores em favor de sua conversão e castigar nelles os males que forem para cas tigar e mantel-os em justiça e verdade entre si, como vassallos d’el rei, e sujeitos á Egreja, como nesta parte são, e fazer-lhes tambem justiça nos aggravos, escandalos dos christãos, o que se faria bem, si a Justiça secular e ecclesiastica fosse mais zelosa, como convém á honra de Nosso Senhor e bem commum da terra; e d’esta maneira podiam ir cada dia ganhando gente e sujeitando-a ao jugo da razão.[161]

Tal é o que, como escreve Nóbrega, “começamos de ver a olho por experiencia”.[162]

4. “PETITIO”

Do ponto de vista da ars dictaminis, como se viu, é importante considerar que a narratio tem como função específica – naturalmente integrada aos fins jesuíticos da carta, de informação das várias frentes de atuação, de reforço do espírito de corpo e de prática devocional – também a sustentação eficaz da petitio, isto é, o pedido ou solicitação de providências ou medidas à autoridade competente. Entre essas solicitações, insistentemente repostas nas cartas, as mais recorrentes são aquelas relativas ao envio de mais padres (com virtudes, pois as letras não estariam entre as necessidades imediatas dos índios); à nomeação de um vigário geral ou bispo, que estabelecesse no Brasil a ação de uma justiça eclesiástica, ou de inquisidores para examinar a ação e os pontos de doutrina pregados pelos padres de outras ordens; à nomeação de um governador zeloso e prudente, que favorecesse a conversão; ao envio de mulheres para casar (órfãs ou, mesmo, “erradas”); à publicação de provisão real para nomeação de comissão com poder de restituição dos índios “salteados”, ou de provisão que explicitasse aos moradores que a alforria não era decorrência necessária da permissão de casamento de escravos; à edição de breve papal autorizando o livre levantamento de altares pelos jesuítas, bem como pedido de envio de documento oficial de licença aos jesuítas para confessar e absolver; à concessão de uma bula de indulgências especial para as possessões do ultramar. Também há petitio para transformação da “casa de meninos” em colégio; para construção e dotação deles; para criar ajuntamentos de índios em povoações convenientes (que exigiriam assim um menor número de padres); e ainda petições de óleos, batistérios, capas, ornamentos vários para os altares, campainhas, cálices, vinho, farinha; livros e orações; parecer de letrados sobre questões doutrinais da conversão etc. Mas, como disse, em qualquer caso, toda carta que se escreve constitui-se também como penhor que obriga o destinatário a respondê-la, da parte do mundo onde estiver, e a cumprir o ciclo de estreitamento de laços devocionais em torno do corpo místico da Companhia de Jesus. Assim, Nóbrega solicita, por exemplo: “Folgariamos de ver novas do Congo; mande-nol-as Vossa Reverendissima”.[163] Ou: “Muito desejo saber a vantagem que achais da confissão continuada, a qual conhecereis da emenda da vida, com o qual rogo a Nosso Senhor me queira consolar, vindo-me disso boas novas, e folgaria muito que muitos me escrevessem mui particularmente; porque, posto que eu a todos não escreva, com todos fallo muitas vezes, e em minha alma os converso, e ás vezes, passeando com elles por essas ruas, e em minhas pobres orações e sacrificios, cada um tem seu quinhão […]”.[164] Ou ainda, manifestando o desagrado pela falta de assiduidade da correspondência, primeira regra a guardar-se nela: “Agora não ha que escrever, porque temos já escripto muito e de nada temos visto resposta, e em muitas cousas estamos suspensos, por tardar tanto o recado que esperamos”.[165]

É importante observar também que a petição não ocupa apenas um lugar fixo nas cartas, mas permeia toda a narração e, na quase totalidade delas, participa da sua conclusão, seja como retomada de um pedido já expresso antes, seja como enunciado do “remédio” para o que antes se deu a conhecer. A seguir, pois, cabe passar os olhos pelos principais procedimentos da conclusio aplicados por Nóbrega.

5. “CONCLUSIO”

Entre as partes constantes da conclusão mais usual em Nóbrega, a que aparece em primeiro lugar é, em geral, justamente uma nova aplicação de petitio. A solicitação mais comum, então, é a de mais padres para a missão do Brasil, seguida pela de orações capazes de atenuar a falta ou demora deles, e ainda de sustentar na devoção comum as distâncias e dificuldades passadas pelos jesuítas separadamente: “Isto vos quiz dizer assim em breve para que vejaes, charissimos, quanta necessidade cá temos de vossas orações. Non solum nobís natí estís: um corpo somos emJesu Christo; si lá não sustentardes, este vosso membro perecerá”.[166]

Também é usual que Nóbrega combine na conclusão os pedidos de vinda de padres, de orações dos irmãos, de bênção do superior e de graça divina, de modo a que o lugar devocional criado na conclusio acentue a malha hierárquica e mística constituída pela Sociedade de Jesus: “Queira Deus Nosso Senhor que pata cá venham muitos irmãos plantar esta sua vinha e nos dê tambem graça abundante e força para servir a Sua Majestade e sem dizer mais nada sobre isto, pedindo a benção de Vossa Re verendíssima nos recommendamos ás orações de todos os padres e carissimos irmãos nossos em Jesus Christo”.[167]

Da mesma forma, muitas vezes a conclusão da carta pode prever um pedido de graça divina para as novas terras, mediado sobretudo pelo fervor dos cristãos: “[…] o repartidor, que d’onde quer espira, e que repartiu muito aos apostolas, reparta tambem com essa terra seu quinhão, porque querendo elle e querendo vós ouvil-o, tenho por certo que alegrareis a cidade de Deus com o ímpeto do rio de lagrimas, e com a emenda de vossos peccados, e por mim rogareis todos ao Senhor, pois vol-o digo com entranhas de amor, e muito mais o desejo”.[168]

Ajustado ou não à petitio, é preciso considerar o lugar retórico da bênção, que está presente em quase todas as conclusões, reafirmando-se com ele, analogamente às fórmulas da salutatio, tanto o espírito de corpo da Companhia como o sentido místico original da missão apostólica. Os exemplos mais simples são do tipo: “Pedimos sua benção “.[169] Ou: “Lance nos a todos a benção de Christo Jesu Dulcissimo”.[170] Ou ainda: “E assim fico pedindo a benção do Pae e Mestre em Jesus Christo Senhor Nosso”.[171] Há ainda outros procedimentos relevantes de conclusão em Nóbrega. Em geral, associado ao quadro de dificuldades enfrentadas pelos missionários, o jesuíta não deixa faltar à rede devocional o lugar da sociedade civil e, exemplarmente, o do rei: “A nossa egreja, que fizemos, se nos cahe; porque era de taipa de mão e de palha, agora ajuntarei estes senhores mais honrados que nos ajudem a reparal-a, até que Deus queira dar outra egreja de mais dura, si a Vossa Reverendíssima parecer bem fallar nisso a el-rei; sinão os padres que vierem farão outra; que virão com fervores, que dure outros tres annos, porque nossas mãos já não poderão fazer outra, sinão si fôr daqui quinhentas leguas pelo sertão”.[172]

Por vezes, a conclusio formula-se exatamente como um pedido em favor da iluminação e graça do soberano: “Cesso pedindo a Nosso Senhor lhe dê sempre a conhecer sua vontade santa para que, cumprindo-a, seja augmentada sua fé catholica para gloria do nome santo de Jesu Christo Nosso Senhor qui est benedictus in saecula”.[173]

Um outro procedimento constante da conclusão é o que se pode considerar como efetuação de um remate da narratio, seja resumindo as obrigações e resoluções últimas tomadas pelos padres; seja informando as mais recentes ações empreendidas tendo em vista os acontecimentos relatados, ou mesmo manifestando o próprio fim das notícias conhecidas pelo narrador: “Depois de tomada a fortaleza deu o governador em uma aldêa de índios e matou a muitos, e não pôde fazer mais porque tinha necessidade de concertar os navios que das bombardas ficaram mal aviados, e fazel-os prestes para se tornarem, o que veiu fazer a esta capitania de S. Vicente, onde eu fico por assim o ordenar a obediencia; o que mais houver para escrever, o provincial, que agora é o padre Luiz da Grã, o fará da Bahia”.[174]

Os protestos de obediência, como na salutatio, são frequentes na conclusio, e inserem-se nas tópicas mais relevantes da constituição do organismo hierárquico da Companhia de Jesus, obrigatoriamente reafirmado pelas cartas: “Mande Vossa Reverendíssima quem de todos nós tenha cuidado, ensinado, ensaiado e amestrado no que de cá devemos de fazer em tudo”.[175]

Manifestação de esperanças de bom governo civil, ou de término de construção de casa, de colégio, de igrejas ou de reparos nelas, boas expectativas de entradas no sertão, e, principalmente, em todos esses casos, afirmação do desejo ou da confiança na possibilidade iminente de conversão são outro procedimento constante da conclusão. A esperança, aqui, senão o otimismo, como se viu pelas determinações inacianas, são verdadeiramente técnicos em relação à carta jesuítica. O futurom- ou talvez, com mais rigor, a graça do futuro – é sempre a maior fiança da empresa nas novas terras, através da realimentação presente da disciplina da vontade e da prática devocional comum: “Deus queira que o verdadeiro thesouro e as verdadeiras joias, isto é, as almas suas que estão nas trevas, comecem a ver a luz como esperamos que será, mediante a sua misericórdia”.[176]

As cartas são parte não pequena da efetiva produção da esperança, como já se viu, o que é inclusive acentuado nas conclusões delas: “Com as novas e cartas que recebemos nos alegramos muito no Senhor. Queira elle sempre augmentar o fervor com que se obra, pois é por seu amor: e grande cousa é a lndia e o fructo della, e eu em muito tenho tambem o que se cá fará, si vós vierdes, charissimos. Lá converter-se-ão muitos reinos e cá salvar-se-ão muitas almas, e das mais perdidas que Deus tem em todas as gerações”.[177]

Compreende-se, assim, que as conclusões das cartas usualmente prometam a sua continuidade ou queiram assegurar a sua não-interrupção: “Isto é o que em breve, charissimos irmãos meus, vos posso informardes da terra; como vier a mais conhecimento das outras cousas que nella ha, não o deixarei mui particularmente de fazer”.[178]

Para que se dê conta da empresa catequética das terras novas, exige se uma ininterrupta série de notícias a respeito delas e de suas principais personagens. Largueza de terras e abundância de linhas constituem-se mutuamente: “As mais novas da terra e da nossa cidade os irmãos escreverão largo e eu tambem pelas naus quando partirem”.[179] E sempre: “O mais se verá pelas cartas dos irmãos”.[180]

Mas tão importante quanto as cartas de “cá” são as que, para o desejo dos missionários, inevitavelmente tardam a vir de “lá”, e pelas quais sempre pedem nas conclusões: “Vossa Reverendíssima, pois que tem o zelo da Divina honra, nos ajude com as suas orações e escrevendo-nos o que Deus lhe faça sentir”.[181] Ou: “Isto e as mais duvidas que o anno passado escrevi, as quaes ainda me não satisfizeram […]”.[182]

Outras vezes, tardam mesmo as notícias das várias frentes missionárias nas capitanias demasiado distantes entre si: “De S. Vicente não são chegados navios nem temos novas que escrever; aguarda-se cada dia. Novas do Espírito Santo saberão pela copia que com esta vai”.[183]

Para encerrar com os procedimentos de conclusão, e ao mesmo tempo concluir este esboço de leitura das cartas de Nóbrega a partir das referências formais do gênero, tal como exercitado entre os jesuítas, convém examinar a última parte constante dela, isto é, valedictio, ou despedida. Em termos gerais, no caso das cartas de Nóbrega, podem ser identificados três procedimentos básicos. O primeiro repõe fórmulas de bênção ou recomendação análogas às da salutatio: “Nosso Senhor Jesus Christo dê a Vossa Alteza sempre a sua graça. Amen”.[184] O segundo procedimento está assentado em fórmulas eclesiásticas de despedidas, como: “Vale semper in Domino, mi Pater, et benedic nos omnes in Christo Jesus”.[185]1Ou simplesmente: “Valete, mi fratres”.[186] Ou ainda: “De V.R.P. servo no Senhor”.[187] Há por fim um terceiro procedimento conclusivo aplicado por Nóbrega, em que à despedida associam-se fórmulas de humildade típicas da captatio benevolentiae: “Indigno filho de Vossa Reverendíssima em Christo Nosso Senhor”.[188] E também: “Inutilissimo filho de V. R.”.[189]

Do conjunto das partes observadas neste exame das cartas, não é difícil ver, pois, que as cartas estão longe de ser efeito espontâneo das novas experiências dos padres em regiões desconhecidas dos europeus. A preceptiva epistolar inaciana, amparada na longa e profícua reflexão medieval e renascentista do gênero, de alguma forma previa ou esboçava retoricamente os contornos básicos de personagens, ações e caracteres que jamais haviam visto antes. A ideia rastreada ao longo deste percurso é bem simples: a de que o estudo desta arte específica poderá contar mais do que se tem imaginado sobre o constructo formal e histórico da aparente positividade ou naturalidade dos testemunhos que dão nascimento ao Brasil. Pois o parto exigiu muita tinta, muita papelada. Os traços dos brasis foram sendo encontrados proporcionalmente à muita andança das letras. Enfim, supõe se aqui que a construção da forma já faz parte da narrativa da história.

NOTAS

  1. O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil: Nóbrega – 1549-1558. Embora o texto tenha sido publicado posteriormente na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, tenho apenas uma versão impressa em sulfite, datada de maio de 1993.
  2. James]. Murphy, La retórica en la Edad Media. Historia de la teoria de la retórica desde san Agustín hasta el Renacimiento. México D. F.: Pondo de Cultura Económica, 1986. Cf. p. 203.
  3. Ibidem, p. 204.
  4. Ibidem, p. 213.
  5. Ibidem, p. 214.
  6. Ibidem, p. 222.
  7. Ibidem, p. 224.
  8. Cito a partir do texto do tratado publicado por Murphy em Three medieval rheto rical arts. Berkeley/Los Angeles: 1971.
  9. Ibidem, pp. 6-7; 16-9.
  10. Traduzo a passagem a partir da edição da Loeb (Cambridge/Londres: Harvard University Press/William Heinemann, 1989). Citação à p. 382.
  11. Cf.James J. Murphy, La retórica en la Edad Media, op. cit., p. 245.
  12. Utilizo a seleção do Candelabrum transcrita por Charles Sears Baldwin em Medieval rhetoric poetic. Nova York: The MacMillan Co., 1928. Citação às pp. 216-7.
  13. Ibidem, p. 220.
  14. Ibidem, p. 221-2.
  15. Cf.Judith Rice Henderson, em seu artigo “Erasmus on the art of letter-writing”‘, compilado por James Murphy no volume Renaissance eloquence. Studies in the theory and practice of Renaissance rhetoric. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 1983. A referência em questão ocorre à p. 334.
  16. Cito a partir do trecho da edição da Loeb ( On Style. Londres, 1932) de Demétrio, transcrita por J. R. Henderson.
  17. Em particular, cumpre referir o conhecido L’âge de l’éloquence. Rhétorique et res literaria de la Renaissance au seuil de l’époque classique. Paris: Albin Michel, 1980.
  18. Erasmus on the art of letter-writing, op. cit., p. 336.
  19. Ibidem.
  20. Ibidem, p. 337.
  21. Ibidem, pp. 340-1.
  22. Ibidem, p. 341.
  23. Ibidem, pp. 341-2.
  24. Ibidem, pp. 345-6.
  25. Ibidem, p. 347.
  26. Ibidem, p. 348.
  27. Ibidem, pp. 352-3.
  28. Ibidem, p. 353.
  29. Ibidem, p. 355.
  30. San Ignacio de Loyola, Constituciones. A citação refere o§ 252, à p. 499 das Obras completas. 4ª edição revisada. Madri: La Editorial Catolica, 1982. Biblioteca de Autores Cristianos.
  31. Ibidem, p. 550.
  32. Ibidem, p. 582.
  33. Ibidem, p. 582-3.
  34. Ibidem, p. 592.
  35. Ibidem, p. 592-3.
  36. Introducción às cartas de santo Inácio, em Obras completas, op. cit., p. 633.
  37. Ibidem, p. 634.
  38. Santo Inácio de Loyola. Cartas e instrucciones, em Obras completas, op. cit., p. 648.
  39. Ibidem, p.685.
  40. Ibidem, p. 686.
  41. Ibidem, p. 686-7.
  42. Ibidem, p.695.
  43. Ibidem, p.696-7.
  44. Ibidem, p. 726.
  45. Ibidem, p. 901.
  46. Ibidem, p. 969.
  47. Cf. 1 Cor. 4, 19.
  48. M. Fabio Quintiliano, Instituciones oratorias. Buenos Aires: Joaquín Gil, 1944. Cf. livro v, capítulo duodécimo: “Y ciertamente Aristóteles tiene por muy poderosa prueba el dicho dei hombre bueno, a la que sigue el de quien es tenido por tal” (op. cit., p. 262).
  49. Tal é o período recoberto pela edição que delas fazem Capistrano de Abreu e Valle Cabral, revista e republicada posteriormente por Rodolfo Garcia e Afrânio Peixoto, em 1931. As citações a seguir são feitas a partir da reedição de 1988, empreendida em conjun to pela Edusp e pela Editora Itatiaia, de Belo Horizonte.
  50. Ibidem, p. 71.
  51. Ibidem, p. 88.
  52. Ibidem, p. 191.
  53. Ibidem, p. 220.
  54. Ibidem, p. 123.
  55. Ibidem, p. 133.
  56. Ibidem, p. 144.
  57. Ibidem, p. 177.
  58. Ibidem, p. 147.
  59. Ibidem, p. 163.
  60. Nóbrega, op. cit., p. 86.
  61. Ibidem, p. 88.
  62. Ibidem, p. 119.
  63. Ibidem, p. 150.
  64. Ibidem, p. 220.
  65. Ibidem, p. 193.
  66. Ibidem, p. 156.
  67. Ibidem, p. 177.
  68. Ibidem, p. 118.
  69. Ibidem, p. 163.
  70. Ibidem, p.166.
  71. Ibidem, p. 167.
  72. Ibidem, p. 75.
  73. Ibidem, p. 80.
  74. Ibidem, pp. 89-90.
  75. Ibidem, p. 75.
  76. Ibidem, pp.107-8.
  77. Ibidem, p. 108.
  78. Ibidem, p.111.
  79. Ibidem, p.108.
  80. Ibidem, p.116.
  81. A questão, entre os jesuítas do Brasil, está longamente estudada no artigo que escrevi para a coletânea Tempo e história (São Paulo: Companhia das Letras, 1992). Situada em termos comparativos com a perspectiva huguenote de pregação aos índios, estudei-a em “Le sauvage américain entre calvinistes et catholiques”. ln: LaFrance-Amérique(XVIe XVIIIesiecles). Paris: Honoré Champion, 1998.
  82. A propósito da tópica da incompletude da língua indígena, remeteria ainda uma vez ao meu texto na antologia Tempo e história, em especial à parte intitulada “A dificulda de da língua” (op. cit., pp. 448-50).
  83. Nóbrega, Cartas…, op. cit., p. 72.
  84. Ibidem, p. 101.
  85. Ibidem, p. 94.
  86. Ibidem, pp. 124-5.
  87. “De los índios recientemente rescubiertos; Relección primera”. ln: Relectiones dei estado, de los indios y del derecho de la guerra. México: Porrúa, 1985. Citação à p. 29.
  88. Ibidem, p. 30.
  89. Ibidem.
  90. Ibidem, p. 31.
  91. Ibidem, p. 32.
  92. Ibidem, p. 35.
  93. Ibidem, p. 36.
  94. Ibidem.
  95. Ibidem, p. 39.
  96. Ibidem, p. 40.
  97. Ibidem, p. 42.
  98. Ibidem, p. 44.
  99. Ibidem, p. 45.
  100. Ibidem, pp. 47-8.
  101. Ibidem, p. 49.
  102. Ibidem, pp. 51-2.
  103. Ibidem, p. 52.
  104. Ibidem, p. 56.
  105. Ibidem, p. 57.
  106. Ibidem.
  107. Ibidem, p. 57-8.
  108. Ibidem, p. 60.
  109. Ibidem, p.61.
  110. Ibidem, p. 62.
  111. Ibidem, p. 64.
  112. Ibidem, p. 65.
  113. Ibidem, p. 68.
  114. Ibidem.
  115. Ibidem, p. 69.
  116. Ibidem.
  117. Ibidem.
  118. Ibidem, p. 70.
  119. Ibidem, p.71.
  120. Excelente apanhado dessas teses encontra-se no conhecido Colonização e Evangelho. Ética da colonização espanhola no Século de Ouro, do bispo de Munster, Joseph Höffner (2ª edição. Rio de Janeiro: Presença, 1977).
  121. Nóbrega, Cartas do Brasil, op. cit., pp. 145-6.
  122. Ibidem, p. 159.
  123. Ibidem.
  124. Ibidem.
  125. Ibidem, p. 174.
  126. Cf. “Juan Ginés de Sepúlveda y los problemas jurídicos de la conquista de América”, de Manuel García-Pelayo, estudo introdutório à edição do Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, publicado no México, pela Fondo de Cultura Económica, em 1987 (2ª reimpressão).
  127. Sepúlveda, Tratado sobre las justas causas .., op. cit., p. 83.
  128. Ibidem, p. 85.
  129. Ibidem, p.101.
  130. Ibidem, p.85.
  131. Ibidem, p. 101.
  132. Ibidem, p. 105.
  133. Ibidem, pp. 105-11.
  134. Ibidem, p. 204.
  135. Ibidem, p. 99.
  136. Ibidem, p. 111.
  137. Ibidem, p. 115.
  138. Ibidem, p. 125.
  139. Ibidem, p. 127.
  140. Ibidem, p. 141.
  141. Ibidem, p. 147.
  142. Ibidem, p. 159.
  143. Ibidem, p. 163.
  144. Ibidem, pp.171-3..
  145. Ibidem, p. 175.
  146. Nóbrega, Cartas…, op. cit., p. 209.
  147. José de Acosta, “De procuranda indorum salute”. In: Paulo Suess (coord.), A conquista espiritual da América espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992. A citação encontra-se na p. 564.
  148. Ibidem, p. 565.
  149. Ibidem.
  150. Ibidem.
  151. Ibidem, p. 567.
  152. Ibidem, p. 568.
  153. Ibidem, p. 570.
  154. Ibidem, p. 571.
  155. Acosta, “De procuranda…”, op. cit., p. 572.
  156. Ibidem, p. 573.
  157. Ibidem.
  158. Ibidem, p. 574.
  159. Ibidem, p. 575.
  160. Ibidem, p. 584.
  161. Nóbrega, Cartas…, op. cit., p. 173.
  162. Ibidem, p. 193.
  163. Ibidem, pp. 86-7.
  164. Ibidem, p. 166.
  165. Ibidem, p. 170.
  166. Ibidem, p. 121.
  167. Ibidem, p. 113.
  168. Ibidem, p. 168.
  169. Ibidem, p. 87.
  170. Ibidem, p. 76.
  171. Ibidem, p.96.
  172. Ibidem, p. 132.
  173. Ibidem, p. 127.
  174. Ibidem, p. 227-8.
  175. Ibidem, p. 142.
  176. Ibidem, p. 113.
  177. Ibidem, p. 122.
  178. Ibidem, p. 102.
  179. Ibidem, p. 75.
  180. Ibidem, p. 78.
  181. Ibidem, p. 96.
  182. Ibidem, p. 142.
  183. Ibidem, p. 190.
  184. Ibidem, p. 228.
  185. Ibidem, p. 78.
  186. Ibidem, p. 122.
  187. Ibidem, p. 96.
  188. Ibidem, p. 113.
  189. Ibidem, p. 190.

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