Biopoder, biopolítica e o tempo presente

por Antônio Cavalcanti Maia

Resumo

No momento mesmo em que os Estados Unidos lançaram as bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki o mundo mudou. O célere avanço tecnológico e seu uso, sobretudo nos campos da biomedicina e da informática, atualizaram o que Heidegger chamava de “A questão técnica”. Não por acaso foi na Alemanha mesmo que começou o que se pode chamar de cultura do pessimismo, cujo livro fundamental foi – e ainda é – “A dialética do esclarecimento” de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Ele que, a partir da instrumentalização da razão, radicaliza noções da teoria marxista. Mais: dissocia progresso e liberdade. Ao que tudo indica, vive-se, desde então, na jaula de aço que Weber havia previsto.

A partir de 1970, o estudo da “técnica” seria outro, pois a ele se dedicaria Michel Foucault. O resultado disso seriam, sobretudo, “A genealogia do poder”, “Vigiar e punir” e “Vontade de saber”.

Em tais livros, Foucault trata da administração dos corpos, ou seja, de como, desde o fim do século XVIII, com o estabelecimento de estruturas político-tecnológicas sólidas (e a passagem da medicina privada para a coletiva) e, em consequência disso, de vidas sociais coesas, os governos não só sujeitam os corpos a trabalhos, rituais e gestos, como os marcam, controlam, supliciam, adestram, mutilam, constrangem, arruínam, em movimentos de que o poder não só é causa como consequência. Já com a explosão demográfica no mesmo período, surge, em outra escala, outra administração, em plena atividade até hoje: a da vida em sua totalidade, repartida, separada, reunida. A partir de índices de natalidade, mortalidade, estimativas demográficas e pirâmides etárias e sociais, o que passa a haver, na prática, é a normatização, que, no limite, reproduz a antiga potência de morte do soberano sob o disfarce de ações governamentais, assim como campanhas públicas.

Exemplo máximo disso é o panóptico, ou seja, o estabelecimento de uma arquitetura que em tudo induz à submissão de um espírito por outro, como se vê em escolas, hospitais, prisões, casas de correção, hospícios, fábricas etc. Como se vê, por toda parte – por meio de artefatos tecnológicos –, hoje. E isso porque já se divisa, com as reformas genética e antropotecnológica (particularmente, o nascimento opcional, a seleção pré-natal etc.), um novo horizonte evolutivo – como nota Peter Sloterdeijk.


L’œuvre de Foucault se ré-enchaîne avec les grandes œuvres qui ont changé pour nous ce que signifie penser.

Gilles Deleuze, Foucault

 

O crescimento exponencial da presença da tecnologia na vida da espécie humana, nas últimas décadas — sobretudo nos domínios da biotecnologia e da informática —, atualiza um dos tópicos centrais da reflexão teórica novecentista; grosso modo, descrita em um vocabulário heideggeriano sob o título “A questão da técnica”. Marca constitutiva das cogitações filosóficas a partir da década de 1930, cujos efeitos mais dramáticos são visualizados nas obras de Orwell e Huxley, a manifesta apreensão de setores significativos da intelligentsia ocidental com o descontrolado desenvolvimento da tecnologia impôs-se como um leitmotiv do pensamento europeu desde o entreguerras.

Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o pesadelo do holocausto nuclear mobilizou as energias críticas daquelas pessoas mais interessadas pelas problemáticas atinentes ao futuro da espécie. Esse horizonte de preocupações desempenhou papel determinante, por exemplo, no Kulturpessimismus expresso em uma obra capital do discurso filosófico contemporâneo: A dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Radicalizando a crítica ao capitalismo elaborada pela tradição do marxismo ocidental, subsumindo-o ao espraiar incontrolável da razão instrumental — processo inaugurado no alvorecer da racionalidade ocidental na Grécia, atingindo seu paroxismo nos regimes totalitários — e incorporando o diagnóstico weberiano da “jaula de ferro”, pelo qual se desatou a ideia iluminista que associava o progresso técnico ao crescimento das liberdades, os membros da Escola de Frankfurt sintetizaram uma perspectiva impregnada do espírito de nosso tempo.

A partir da década de 1970, desenvolveu-se uma outra vertente no cenário de ideias contemporâneas, mobilizada por impulso crítico semelhante, porém em maior sintonia com as novas realidades do mundo da tecnologia e suas repercussões no cenário político hodierno; a genealogia do poder de Michel Foucault. Identifica e descreve o biopoder nas suas duas dimensões; por um lado, a administração parcelarizada dos corpos, revelada por uma anatomia política em que o corpo humano é tratado como máquina (em especial através dos mecanismos articulados pelo poder disciplinar); por outro, a gestão global da vida, posta em funcionamento mediante uma biopolítica da população, na qual o corpo humano é considerado elemento de uma espécie (sofrendo a incidência, basicamente, das práticas de normalização). Essa forma de análise, elaborada a partir das investigações históricas desenvolvidas por Foucault, revela um importante nível de funcionamento das iníquas relações políticas nas sociedades contemporâneas, já que as suas pesquisas genealógicas propiciaram uma espécie de dissecação dos aspectos desumanizadores da sociedade técnico-científica contemporânea. Tal abordagem enseja uma frutífera grade de inteligibilidade à dinâmica das transformações contemporâneas no Ocidente, em especial ao apontar que temos,

portanto, desde o século XVIII (ou em todo caso desde o fim do século XVIII), duas tecnologias de poder que são introduzidas com certa defasagem cronológica e que são sobrepostas. Uma técnica que é, pois, disciplinar; é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso, compensar seus efeitos. É uma tecnologia que visa portanto não ao treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, algo como uma homeóstase; a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos. Logo, uma tecnologia de treinamento oposta a, ou distinta de, uma tecnologia de previdência; uma tecnologia disciplinar que se distingue de uma tecnologia previdenciária ou regulamentadora; uma tecnologia que é mesmo, em ambos os casos, tecnologia do corpo, mas, num caso, trata-se de uma tecnologia em que o corpo é individualizado como organismo dotado de capacidades e, no outro, de uma tecnologia em que os corpos são recolocados nos processos biológicos de conjunto.[1]

Neste artigo, tendo em vista a temática geral do seminário “Homem máquina”, é oportuno apresentar alguns aspectos desse enfoque iniciado por Foucault e complementado e desenvolvido por um grupo de intelectuais, que, entre outras características, salienta o impacto no campo político dos avanços tecnológicos e perscruta o modo como se relacionam vida, corpos, estratégias de poder e desenvolvimento do capitalismo. Saliente-se, também, traço constitutivo desta démarche: nem um olhar nostálgico, assombrado por uma suposta harmonia perdida que estaria presente na sociedade europeia pré-moderna, nem a identificação da história recente com uma narrativa na qual reconhecemos apenas a sucessão de malvadezas do capital.

A estrutura deste artigo desenrolar-se-á em duas partes: a primeira, mais extensa, apresenta resultados das investigações do filósofo francês na década de 1970, com a identificação do biopoder; a segunda examina duas formas de atualização dessa discussão; por um lado, uma querela recente do debate filosófico de ideias, suscitado por questões envolvendo a engenharia genética e tendo como protagonista Peter Sloterdijk — cujo comentário acerca da enorme polêmica provocada por sua conferência Regras acerca do parque humano merece destaque: “De resto, nunca lamentei tanto a morte prematura de Foucault como nesses dias, porque no fundo esse é o seu tema, que hoje reaparece de modo tão deformado: o tema das biopolíticas e do poder sobre a vida. Sua maravilhosa lucidez e seu poder de análise nos fazem falta, hoje mais do que nunca”;[2] por outro, o criativo desenvolvimento e a apropriação das investigações do filósofo do biopoder por um grupo de autores identificados com a perspectiva de Gilles Deleuze — Félix Guattari, Antonio Negri, Michel Hardt e Giorgio Agamben (cabe aqui, também, sublinhar a lição deste último: “Tratar-se-á, antes de tudo, de tentar ler juntamente as últimas reflexões — aparentemente tão sombrias — de Foucault sobre o biopoder e sobre os processos de subjetivação e as de Deleuze — aparentemente tão serenas — sobre ‘uma vida…’ como imanência absoluta e beatitude”).[3]

A BIOPOLÍTICA (PODER DISCIPLINAR E BIOPODER)

 

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário: que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou ideologia, mas começa no corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica.

Michel Foucault, Microfísica do poder.

Rio de Janeiro: Graal, 1979.

 

A preocupação com a identificação e análise do processo pelo qual se dá a tomada do poder sobre os corpos, na sociedade ocidental, ocupou o centro das pesquisas de Foucault a partir de 1972-3. A sua analítica procurara retraçar a trajetória das diversas tecnologias de poder que se desenvolveram no Ocidente, a partir do final do século XVI, até constituírem a sofisticada estrutura política que envolve o homem contemporâneo. Esses diversos processos, que acarretaram uma progressiva organização da vida social, por meio de meticulosos rituais de poder que têm como objetivo o corpo, deram-se através do que Foucault caracterizou como biopoder. Privilegiou o estudo dessa questão nos dois livros da década de 1970, Vigiar e punir e a Vontade de saber, cumprindo um dos projetos avançados no texto programático dessa fase do seu trabalho, “Nietzsche, a genealogia e a história”, no qual afirma: “A genealogia […] está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado, e a história arruinando o corpo”.[4]

No início de Vigiar e punir lê-se: “[…] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais”.[5] Por conseguinte, devemos ter em mente que a genealogia do poder focaliza o corpo como um objeto privilegiado de análise e preocupação. Como explicita seu mais próximo colaborador, François Ewald:

A genealogia é física e microfísica do poder. Se ela descobre os corpos de poder, ela os vê sempre aplicados sobre outros corpos. Sobre o que um corpo poderia agir senão sobre um outro corpo? A genealogia adota o ponto de vista dos corpos, aquele do supliciado, adestrado, marcado, mutilado, decomposto, obrigado, constrangido; aquele dos corpos que se repartem, que se separam e que se reúnem. A lei de exercício do poder é aquela do corpo a corpo, de corpos que se aplicam sobre outros corpos para educá-los, fabricá-los; de corpos que resistem a esta aplicação. A genealogia descreveu os efeitos: produção de almas, produção de ideias, de saber, de moral, ou seja, produção de poder que se reconduz sobre outras formas. O poder é ao mesmo tempo causa e efeito.[6]

A atuação do poder sobre os corpos denominada de biopoder deve ser percebida nas suas especificidades; vale dizer, sob essa denominação, designam-se principalmente dois níveis de exercício do poder: de um lado, as técnicas que têm como objetivo um treinamento “ortopédico” dos corpos, as disciplinas e o poder disciplinar; de outro lado, o corpo entendido como pertencente a uma espécie (a população), com suas leis e regularidades. O primeiro nível de análise se encontra tratado predominantemente em Vigiar e punir, quanto ao outro, na Vontade de saber esboçam-se os princípios dessa pesquisa, retomados, posteriormente, nos cursos do Collège de France de 1977-8. Pasquale Pasquino e Alexandre Fontana destacam, numa questão endereçada a Foucault na entrevista “Verdade e poder”, esses dois planos trabalhados na analítica do poder:

Ter-se-ia, por um lado, uma espécie de corpo global, molar, o corpo da população, junto com toda uma série de discursos que lhe concernem e, então, por outro lado e abaixo, os pequenos corpos, dóceis, corpos individuais, os microcorpos da disciplina. Mesmo que se esteja no início de pesquisas neste ponto, poder-se-ia dizer como se vê a natureza das relações (caso existentes), as quais são engendradas entre estes diferentes corpos: o corpo molar da população e os microcorpos dos indivíduos.[7]

A identificação destes dois níveis — corpo molar da população e microcorpos dos indivíduos — marca também uma diferenciação no tratamento de Foucault no tocante ao poder. Observa-se que, embora essas tecnologias de poder estejam profundamente articuladas e entrelaçadas no mundo contemporâneo, funcionando de forma complementar, possuem elas, por um lado, origens distintas e, por outro, vão sendo paulatinamente identificadas ao longo do trabalho de Foucault na década de 1970. Assim, desde o momento em que o corpo passa a assumir posição de relevo no seu trabalho, em 1973, até a publicação de Vigiar e punir, em 1975, o destaque residiria no poder disciplinar. A partir da publicação da Vontade de saber, em 1976, abriu-se uma outra área de pesquisa, focalizando o corpo molar da população. Nesse momento, Foucault fala da biopolítica ou do biopoder.[8] Posteriormente, este último termo será empregado em um sentido mais amplo, subsumindo também o poder disciplinar, já que em ambos os casos os objetos de atuação do poder são o corpo e a vida humana (se bem que atingidos de maneira distintas).

Ao constatar que “houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder”,[9] Foucault procurou identificar as formas e os procedimentos múltiplos pelos quais se deu essa “ocupação” dos corpos pelo poder. Por conseguinte, a constituição de um arsenal teórico que possibilitasse a análise e, também, a identificação do nível em que se dá esse encontro poder/corpos marcaria as preocupações de Foucault em 1974, especialmente a partir do final de 1973, temas estes tratados com mais detalhes em Vigiar e punir. Seu desiderato se situou na busca de exposição, entre outras coisas, dos mecanismos, táticas e dispositivos progressivamente utilizados pelo poder ao longo da Era Moderna e de como diversos desses mecanismos, com certas transformações, permaneceram, até os nossos dias, integrando a enorme parafernália de relações de poder que envolve a vida nas sociedades contemporâneas. Entre esses mecanismos se encontram as disciplinas, isto é, “esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade”.[10] A partir do fim do século XVII, ao longo do século XVIII, e, especialmente, no início do século XIX, desenvolveu-se e estruturou-se toda uma nova tecnologia de aproveitamento/utilização da força dos corpos. Tal tecnologia seria organizada, basicamente, em torno da disciplina, isto é, “o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo de ônus reduzida como força política, e maximizada como força útil”.[11]

Ligadas aos imperativos econômicos e políticos de uma nova ordem que se impunha, as disciplinas — técnicas já conhecidas na civilização ocidental, por exemplo, nos conventos, nas oficinas e nas legiões romanas — passaram a ser utilizadas maciçamente. Fábricas, escolas, hospitais, hospícios, prisões, entre outras instituições fundamentais à vida da sociedade industrial capitalista, estruturaram-se tendo como lógica de funcionamento as técnicas e táticas oriundas desse processo de disciplinarização. Assim, evidencia-se a articulação, nessa conjuntura, de uma nova relação entre o poder e os corpos, como o próprio Foucault explica:

o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte

do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Formam-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia-política”, que é também igualmente uma mecânica do poder, está nascendo […] A disciplina fabrica assim corpos submissos, exercitados, corpos “dóceis”.[12]

Nesse momento de sua obra, há o privilégio da análise das técnicas de poder centradas sobre o corpo, como que o tratando como máquina, adestrando-o, amplificando a sua utilização, aperfeiçoando a extração do trabalho, integrando-o ao novo circuito da produção instaurado a partir do século XVIII. Nesse sentido, as análises de Vigiar e punir, em especial ao destacarem a questão do pan-optismo, isto é, “o princípio geral de uma nova ‘anatomia-política’, cujo objeto e fim não são as relações de soberania, mas as relações de disciplina”,[13] marcam a emergência de uma nova forma de atuação do poder sobre os corpos: o poder disciplinar. O panóptico representa o modelo por excelência — utilizado nas prisões, fábricas, escolas, hospitais etc. — dessa tecnologia de poder que se impõe ao longo do século XIX, tendo “por pura função impor uma tarefa ou uma conduta qualquer a uma multiplicidade de indivíduos, desde que ela seja pouco numerosa e o espaço limitado, pouco extenso”.[14] Quanto ao panóptico, proposta de organização espacial detalhadamente elaborada por Jeremy Bentham, representante quintessencial do utilitarismo anglo-saxônico:

[…] Panopticon. Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder de espírito sobre o espírito; uma espécie de instituição que deve valer para escolas, hospitais, prisões, casas de correção, hospícios, fábricas etc. O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia, segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nela nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de venezianas, de postigos semicerrados de modo a poder ver tudo, sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser utilizada por uma série de instituições. O Panopticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos — utopia que efetivamente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo. Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo.[15]

A atuação do poder disciplinar apresenta aspectos distintos da maneira como se articulava o poder político na Idade Média, quando “o poder funcionava essencialmente por meio de símbolos e taxas. Sinais de lealdade ao senhor feudal, ritos e cerimônias, entre outros, e taxas, na forma de impostos, pilhagens, guerras etc.”[16] Diferentemente, na época clássica começou a se estruturar uma tecnologia de poder repousada em outras bases — e só plenamente desenvolvida no final do século XVIII. A tecnologia que funciona em torno do poder disciplinar se sustenta mais em uma ação sobre os corpos e seus atos do que sobre os produtos retirados da terra; fundamental é colocar em operação mecanismos possibilitadores de uma extração de tempo e trabalho dos corpos, relegando a um segundo plano as velhas formas de atuação que tinham na extração imediata de bens e riquezas seu objetivo primordial. Esse novo tipo de poder se exerce supondo mais um sistema minucioso de coerções materiais do que a figura de um príncipe soberano.

Por fim, para que se possam perceber melhor as características da disciplina, cabe destacar que ela “[…] nem é um aparelho, nem uma instituição: ela funciona como uma rede que os atravessa sem se limitar a suas fronteiras; é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder”.[17] Assim, a disciplina se exerce em uma série de espaços do corpo social, tendo como princípios básicos os seguintes aspectos: a) ela é uma arte de distribuição espacial dos indivíduos; b) a disciplina exerce seu controle não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento; c) é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos; d) funciona por meio de um controle minudente do tempo.

Eis que, se essa discussão sobre a relação do poder sobre os corpos e a caracterização do poder disciplinar estão nitidamente presentes no período de 1974-5, com o lançamento da Vontade de saber, em 1976, pode-se falar de uma mudança. A partir de então, Foucault abandona a ideia do poder disciplinar, mas a articula com uma outra tecnologia, objeto de análises dos anos subsequentes, o biopoder, que se distingue do poder disciplinar em alguns aspectos, entre eles o fato de que essa nova forma de poder considera “uma outra função […] gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade desde que ela seja numerosa (população), e o espaço estendido ou aberto”.[18] Com efeito, Foucault elaborou o conceito de biopoder para designar o poder de administrar, controlar e formar as populações (nisso estavam incluídos a educação, a assistência, a saúde, os transportes, a securitização de diversos aspectos da vida social etc.), posto em funcionamento sobretudo em paralelo à emergência do Estado do bem-estar social.

Embora o objetivo das análises ainda seja o corpo, o é, agora, em outra dimensão: o corpo molar da população, o homem-espécie. Como ele afirma, no final de Vontade de saber (distinguindo o poder disciplinar do biopoder):

O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos; a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população […] A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida.[19]

Dessa forma, a partir da articulação da existência de um novo objeto à atuação do poder — a população, com suas regularidades: taxa de natalidade, mortalidade, longevidade etc. —, estrutura-se toda uma nova tecnologia do poder, que se dá com “a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder no campo das técnicas políticas”.[20] Esclareça-se, contudo, que essa nova tecnologia não implica o abandono da ideia e da utilização do poder-disciplinar; pelo contrário, as duas — poder-disciplinar e biopoder — integram-se para um controle/gestão mais efetivo dos corpos. Apenas novas áreas e uma nova forma de atuação do poder nas sociedades ocidentais são postas a nu pela análise genealógica com a noção de biopoder. A preocupação da análise dessa realidade é marcante nos anos de 1975 a 1978. Se temos somente uma breve descrição do biopoder no quinto capítulo de Vontade de saber, os cursos do Collège de France nesse período fornecem indicações sobre essa problemática. Pois neles é exposta a tese de ter havido “uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico, ou, pelo menos, uma certa inclinação ao que se poderia chamar de estatização do biológico”.[21] É de se destacar a caracterização por parte de Foucault desse novo âmbito de análise da dimensão política da sociedade, de uma “biopolítica da espécie humana”. Difícil contestar a afirmação de que, apesar de “vinte anos de distância, este curso [o dos anos 1975-6] nada perdeu de sua atualidade e urgência”.[22] O desvelamento da dimensão biopolítica de funcionamento do poder operado pelas pesquisas genealógicas não descura a relação dessa dimensão com o domínio econômico, já que “os traços biológicos de uma população tornam-se fatores relevantes para a administração econômica e torna-se necessário organizar ao seu redor um aparato que vai afirmar não apenas a sua sujeição mas também o crescimento constante de sua utilidade”.[23] Contudo há uma mudança de ênfase no trabalho de Foucault, posto que o nível de atuação do poder focalizado — diferentemente do poder disciplinar — se apresenta em outro plano. Nesse momento o objeto de análise passa a ser a forma de poder que “se situa e exerce no nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população”.[24] População que é, a partir do século xix, tratada diferentemente da forma como vinha, até então, sendo objeto de intervenções políticas estatais:

Assim, começa a aparecer […] o problema da população. Esta não é concebida como um conjunto de sujeitos de direito, nem como um grupo de braços destinados ao trabalho; ela é analisada como um conjunto de elementos que de um lado se aproxima do regime geral dos seres vivos (a população depende então da espécie “humana”: noção nova à época, distinta da noção de “gênero humano”), e, de outro, pode dar lugar às intervenções concentradas (por intermédio das leis, mas também das mudanças de atitude, da maneira de fazer e de viver que podem ser obtidas pelas “campanhas”).[25]

Entretanto merece ser sublinhado o fato de Foucault não afirmar, em momento algum, que a população surgiu como objeto de atuação do poder somente no século XVIII.[26] Há testemunhos da existência de políticas públicas visando à regulamentação da dinâmica populacional já na Antiguidade clássica e em Roma — por meio de leis que estimulavam o casamento, de isenção de impostos para famílias numerosas etc. Porém, no Século das Luzes — sobretudo na segunda metade e principalmente ao longo do século XIX, acompanhando, como já destacado, a emergência do Estado do bem-estar social, com suas peculiares formas assumidas na Europa —, a população começa a ser estudada, analisada e esquadrinhada por uma série de políticas que têm como suporte as ciências do homem que se constituem nesse século, como a demografia e a medicina social. Tais políticas procuram estabelecer controle e gestão mais efetivos dos membros de uma população, diferenciando-se das políticas que até então tinham como escopo atingi-la — as quais, em geral, se caracterizavam por uma atuação dispersa, sem continuidade e deixando vários recantos desse conjunto intocados. Precisando as origens e características dessa tomada do corpo molar da população como objeto de poder:

Qual é a base para esta transformação? Genericamente, pode-se dizer que ela se relaciona com a preservação e conservação da “força de trabalho”. Mas, indubitavelmente, o problema é mais amplo. Ele indiscutivelmente se refere aos efeitos político-econômicos da acumulação de homens. O grande crescimento demográfico do século XVIII na Europa Ocidental, a necessidade de coordenação e de integração ao aparato de produção e a urgência de controlá-lo, com mecanismos de poder mais sofisticados e adequados, possibilitaram a emergência da “população” (com suas variedades numéricas de espaço e cronologia, longevidade e saúde), que ela emergisse não só como problema, mas como um objeto de observação, análise, intervenção, modificação etc. Um projeto de tecnologia da população começa a ser desenhado: estimativas demográficas, o cálculo de pirâmides etárias, diferentes expectativas de vida e níveis de mortalidade, estudos das recíprocas relações entre crescimento da população e crescimento da riqueza, medidas de incentivo ao casamento e procriação, desenvolvimento de formas de educação e treinamento profissional.[27]

Outro elemento importante à compreensão da configuração política instaurada pelo regime do biopoder é a sua integração com uma dimensão epistemológica. No regime do biopoder funciona uma série de práticas discursivas que seguem o modelo do exame. Ora, como de hábito, as análises políticas de Foucault caminham a par de uma investigação no campo da epistemologia das ciências humanas e sociais. Se no regime da soberania, eminentemente marcado pelo poder disciplinar, tem-se o modelo do inquérito, na era do biopoder o modelo par excellence é o exame. Por um lado, sem a existência de minuciosos registros — advindos da vigilância à qual foram submetidos os indivíduos nas instituições organizadas segundo o modelo do panóptico — não existiria a massa organizada de dados que possibilitou o emprego do exame; por outro, a norma, como padrão a partir do qual diversos aspectos da vida social passaram a ser avaliados, só pôde emergir quando a população passou a ser encarada não só como objeto de poder mas também como fonte de saber.

As reflexões sobre a norma, o exame e o biopoder não foram desenvolvidas a ponto de estruturarem uma concepção sistemática da articulação desses elementos. A mudança operada no percurso final de Foucault — a direção de suas pesquisas, voltada para a Antiguidade, resultou na publicação dos dois últimos volumes da História da sexualidade, O uso dos prazeres e o Cuidado de si, um pouco antes de sua morte, em 1984 — deixou inconclusa essa área de seu trabalho. Se a morte prematura não lhe tivesse cortado a palavra, provavelmente teria elaborado mais essas pesquisas. Quem desenvolveu a integração de tais elementos, em uma história filosófica das sociedades industriais, foi seu assistente no Collège de France, François Ewald. Isso se deu, basicamente, em seu monumental Estado providência e nos desenvolvimentos expostos na segunda parte (“Foucault e a norma”) do livro Foucault, a norma e o direito. O programa da obra Estado providência, situada na confluência das perspectivas histórico-sociológica e filosófica, é a descrição do regime básico no qual funciona a política a partir de meados do século XIX na França: a biopolítica, com a série Estado providência/norma/direito social. Tal “[…] obra se inscreve voluntariamente em um programa de descrição da biopolítica. Ela desenvolverá um aspecto mais particular das políticas de seguros e sua instrumentalização jurídica”.[28] Segundo Ewald, no regime da biopolítica, a preocupação principal do poder é produzir forças, fazê-las crescer e ordená-las. Nesse regime, que no âmbito jurídico tem como momento emblemático a lei de responsabilidade civil francesa de 1898, há uma mudança significativa no campo legal. Diferentemente do início do século XIX, a era das codificações (representada pelo código civil napoleônico), cuja forma por excelência de produção legislativa era a lei — comando geral e abstrato, fruto da elaboração racional do legislador, regra de observância obrigatória por todos —, observou-se, a partir do terceiro quartel do século XIX, a emergência da norma, denotando a erosão do paradigma jurídico liberal. A norma,[29] cujo principal lugar de expressão jurídica foi o direito social (direito do trabalho, direito previdenciário e normas relativas aos acidentes de trabalho), só pôde ser estabelecida com a utilização de elementos estatísticos, da definição de regularidades observadas no corpo social (como casamentos, suicídios, crimes, acidentes). Há uma estrita colaboração dos gestores da burocracia estatal com os demógrafos e toda a sorte de especialistas (médicos, psiquiatras, sanitaristas, entre outros). Em relação à norma:

Ora, no princípio do século XIX irá dar-se uma singular alteração nas relações entre a regra e a norma. Norma já não será um outro nome para maneira de as produzir e, sobretudo, um princípio de valorização. É certo que a norma designa sempre uma medida que serve para apreciar o que é conforme à regra e o que dela se distingue, mas esta já não se encontra ligada à ideia de retidão; a sua referência já não é o esquadro, mas a

média; a norma toma agora o seu valor de jogo das oposições entre o normal e o anormal ou entre o normal e o patológico.[30]

A noção de norma, referida ao padrão da média, marca um estilo de racionalidade posto em funcionamento com a emergência do Estado do bem-estar social. A proliferação de políticas públicas visando à melhoria das condições eugênicas das populações — tão em voga a partir da metade do século XIX na Europa — funcionou como um esforço em busca da estandardização, do controle e da estabilidade social. A incitação à normalização fomentada pelo poder disciplinar e pelo biopoder caracteriza indelevelmente a Modernidade europeia. Correlato a essa plêiade de fenômenos, no domínio dos discursos científicos, observou-se, segundo uma das teses mais radicais de Foucault, um imbricamento entre poder e saber, isto é, a par do espraiamento das tecnologias de poder, deram-se a constituição e a organização de diversas ciências humanas (criminologia, sociologia e psicologia — conforme exposto em A verdade e as formas jurídicas). O modelo do exame[31] constituiu elemento crucial nessa articulação entre o mundo social e os discursos com pretensão de verdade sobre ele erguidos.

O exame articula-se em torno da norma e das práticas políticas nas quais ele é utilizado. Daí a tese de Foucault da relação constitutiva das ciências humanas com as práticas de isolamento vigiado.[32] Afinal, o exame, um saber de vigilância, estabeleceu-se a partir de um controle dos indivíduos ao longo de sua vida, e “esta é a base do poder, a forma de saber/poder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação, como no caso do inquérito, mas ao que chamamos ciências humanas: psiquiatria, psicologia, sociologia etc.”.[33] Importa observar que a articulação entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas — relações econômicas, sociais e políticas — postas em funcionamento no regime da biopolítica vincula-se intrinsecamente à emergência do Estado do bem-estar social na Europa do final do século XX. A densificação da malha de relações de poder perpassando o tecido social acompanha um outro estágio de desenvolvimento da acumulação capitalista. Se tais políticas contribuíram, por um lado, à domesticação do capitalismo, por outro, implementaram mais insidiosos e sutis mecanismos de controle
social. A análise foucaultiana demonstra cabalmente esse caráter dilemático das transformações jurídico-políticas correlatas aos processos sociais deslanchados pela Modernidade europeia.

Essa discussão sobre o biopoder sofre uma inflexão a partir de 1978, com o início das pesquisas atinentes às estratégias de racionalidade política, postas em funcionamento desde a emergência do Estado moderno no século XVII, tratadas sob a rubrica da governamentalidade — já apontando para a mudança mais radical presente nos últimos anos da vida de Foucault, com a passagem das questões relativas ao governo dos outros àquelas concernentes ao governo de si (expostas nos dois últimos volumes da História da sexualidade). Tal perspectiva se abre com a seguinte afirmação: “O curso tratou da gênese de um saber político e colocou no centro de suas preocupações a noção de população e os mecanismos suscetíveis de assegurar a sua reprodução”.[34] Uma outra vertente de desenvolvimento das pesquisas de Foucault acerca do biopoder — que hoje talvez apresente mais pertinência do que as análises do Estado do bem-estar social — é a exposta por seu principal colaborador nos Estados Unidos, Paul Rabinow. Antropólogo de formação, juntamente com Hubert Dreyfus, um dos principais intérpretes do pensamento heideggeriano nos Estados Unidos, produziu obra de referência acerca do filósofo francês (contando com dois textos do próprio), Michel Foucault: para além do estruturalismo e da hermenêutica.[35]

No final da década de 1980, Rabinow iniciou um original programa de investigação em importantes centros de decifração do código genético humano. Em uma espécie de etnologia dos laboratórios de pesquisa de ponta na área de biotecnologia, acompanhou atentamente o vertiginoso crescimento nas atividades científicas que envolvem a estrutura mais primordial da vida. Nos Estados Unidos trabalhou, em primeiro lugar, na Cetus Corporation, uma empresa de biotecnologia localizada em Berkeley, na Califórnia, onde foram realizadas pesquisas pioneiras acerca da polymerase chain reaction, “uma extravagantemente flexível tecnologia para a acurada e rápida ampliação exponencial das precisas sequências do DNA”[36] e, posteriormente, no laboratório de sistemas moleculares da Roche. A sua outra “pesquisa de campo” realizou-se no Centro de Estudos de Poliformismo Humano, em Paris. Nesse laboratório de ponta, o mapeamento do genoma — diferentemente do realizado nos Estados Unidos, a partir de interesses privados — tem sido financiado por fundos públicos e mais preocupado com as consequências ético-políticas de tais avanços tecnológicos. Essas investigações, que não poderão ser resumidas aqui, indicam um quadro preocupante no que tange às vertiginosas transformações operadas no âmbito da engenharia genética, posto que as ciências da vida e as tecnologias a elas correlatas atravessam, em nossos dias, um estágio de evolução sem paralelo na história do desenvolvimento das tecnologias. No diapasão das análises formuladas por Rabinow, tem-se o alerta de um dos intelectuais brasileiros mais atentos a esses recentes desdobramentos, Laymert Garcia dos Santos:

A decifração do código genético não se dá como uma ação desinteressada, e sim visa à manipulação. Ora, a manipulação efetuada pela engenharia genética consiste na desarticulação e rearticulação de processos infra-moleculares, no rompimento das barreiras entre as espécies e, dentro de cada espécie, na alteração, embaralhamento e artificialização das sequências genéticas, na produção de seres inéditos, monstruosos, como a mulher-farmácia, animais transgênicos, bactérias que comem petróleo, tomates que resistem ao tempo e não apodrecem. Decifração e manipulação do código genético são complementares e configuram uma intervenção cujas consequências são imprevisíveis, para muitos ambientalistas e cientistas, inclusive biólogos moleculares. Os especialistas em biossegurança chegam até a considerar a produção de organismos pela engenharia genética mais perigosa do que a fabricação da bomba atômica, porque não se sabe como esses organismos interagem com outros e com os ecossistemas, e não existe a possibilidade de se controlar a sua proliferação e o seu impacto em caso de acidente.[37]

AS ATUALIZAÇÕES DA QUESTÃO DO BIOPODER:
SLOTERDIJK E AS REGRAS PARA O PARQUE HUMANO

One thing is equally clear: piety, moralism, or nostalgia will not set things straight?[38]

Paul Rabinow, Essays on the anthropology of reason.

Princeton University Press

Um outro vetor dessa discussão acerca do biopoder irrompeu na Alemanha, no final de 1999, envolvendo uma das mais acirradas polêmicas observadas no cenário intelectual europeu das últimas décadas. Tal celeuma teve como origem a conferência de Peter Sloterdijk Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, na qual formulou duas preocupantes questões: primeiro que “[…] há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve”,[39] segundo que,

se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma genética das características da espécie — se uma antropotecnologia futura avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e à seleção pré-natal —, nestas perguntas, ainda que de maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte evolutivo.[40]

A celeuma originou-se quando o jornalista Thomas Assheuer, do hebdomadário Die Zeit, editado em Hamburgo, denunciou as provocativas indagações de Sloterdijk como verdadeiros sofismas irresponsáveis e dotados de um tom quase fascista. Ao defender-se dessas acusações, Sloterdijk afirmou que tal jornalista teria agido sob a batuta de Jürgen Habermas, sugestionado, entre outras razões, pela semelhança entre as repreensões de Assheuer e um tipo de objeção, endereçada aos autores pós-modernos, formulada por intelectuais simpáticos à teoria crítica da sociedade da Escola de Frankfurt. Tanto o discurso de Sloterdijk como o dos pós-modernos são percebidos como “irrupção da fala do sofista, do discurso polivalente, ensaísta, sedutor, nefasto, francês, irresponsável”.[41] As declarações de Sloterdijk, atribuindo a Habermas críticas não assumidas a seu trabalho, motivaram uma enorme atenção em torno de tal discussão, ensejando um “[…] affaire Sloterdijk nos meios de comunicação alemães e nos jornais franceses, com epicentros em Israel e no Brasil (bastião de um habermasianismo mundializado), e tal affaire deu lugar a um debate amplo e bastante agitado acerca do que está em jogo e dos riscos das novas biotecnologias”.[42] Peter Sloterdijk, possivelmente a figura mais iconoclástica do cenário de ideias contemporâneo teutônico, despontou na década de 1980 com sua polêmica Crítica da razão cínica — que “pode, de fato, ser lida como um pastiche pós-moderno da Dialética do Esclarecimento, um pastiche, entretanto, que retém a memória de dor e raiva da ciência melancólica de Adorno e se solidariza com a rejeição de um mundo patriarcal no qual a razão se tornou uma ferramenta estratégica para a dominação da natureza interna e externa”.[43] Caracterizando suas intervenções filosóficas por uma dimensão eminentemente provocadora, inspira-se, em muitas delas, em Nietzsche, designado por ele mesmo como “mestre do pensamento perigoso”.

Proveniente da geração seguinte àquela de Habermas, o trabalho filosófico de Sloterdijk — assumidamente referido aos fundadores da Escola de Frankfurt, Adorno[44] e Horkheimer — já vem também marcado pela recepção da fulgurante constelação do pós-estruturalismo francês das décadas de 1960 e 1970, sobretudo na sua dimensão de diagnose do tempo presente. Nesse sentido, o pensador alemão, em sua polêmica com Habermas, faz questão de afirmar; “No mais tardar em 1980, eu percebi que o caminho francês da filosofia, especialmente o de Gilles Deleuze e Michel Foucault, permitia uma abertura maior para as questões do presente do que o caminho de Frankfurt”.[45] Nesse sentido, Sloterdijk situa-se em consonância com um largo grupo de intelectuais contemporâneos, via de regra subsumido ao rótulo de pós-moderno, influenciado pela “esquerda desejante” da década de 1970, isto é, “Foucault, Deleuze, Lyotard: três pensadores ‘nômades’, deliberadamente marginais, e que compartilham, entretanto, a mesma concepção ‘afirmativa’, ‘energética’ e pluralista da prática filosófica”.[46] O autor da Crítica da razão cínica, ao discorrer sobre as prementes questões impostas pelo enorme avanço da engenharia genética e os angustiantes dilemas acerca das relações entre os limites organismo/máquina, postas

em xeque pela ciência moderna, fez questão de, ao intitular a sua conferência Regras para o parque humano, referir-se ao famoso texto de Heidegger Carta sobre o humanismo. Tal menção, por um lado, justifica-se pela indispensável consideração à obra deste no que diz respeito a qualquer questionamento sério acerca dos destinos da tecnologia; afinal, o autor de Ser e tempo, com a sua peculiar vontade de questionar o que normalmente não é questionado, abriu uma original grade de inteligibilidade à compreensão do papel da tecnologia no mundo contemporâneo, por outro lado, necessariamente causaria polêmica, posto que uma reflexão sobre cogitações acerca da possibilidade de uma seleção experimental genética, visando a políticas eugênicas, estabelece, sobretudo na Alemanha, inafastáveis relações com o nazismo.

As investigações de Heidegger acerca da tecnologia, tendo como texto emblemático “A questão da técnica” (conferência pronunciada em 1948 e publicada em 1953), iniciam-se em meados da década de 1930. Impactadas pelo texto de Ernst Jünger, A mobilização total, opera-se uma inflexão na obra de Heidegger, determinando um dos temas principais de suas reflexões até sua morte, no início da década de 1970. Não poderia aqui fazer justiça à sofisticada e complexa argumentação de Heidegger acerca desse conjunto de questões, que envolvem uma crítica à metafísica da subjetividade e ao papel constitutivo da técnica nos destinos da civilização ocidental, mas saliente-se que esses esforços se inscrevem em um projeto que desde seu alvorecer procura resgatar a compreensão acerca do homem fora do cerco objetivista das ciências ou substancialista da metafísica. Uma longa passagem de Sérgio Paulo Rouanet propicia um delineamento dessa problemática:

Assistimos em nossos dias a uma guerra sem quartel contra o sujeito, o homem e o humanismo.

Na origem dessa guerra está sem dúvida a crítica da modernidade de Heidegger. Para ele, todos os males da época moderna vêm da instauração da subjetividade humana como fundamento e centro do mundo. Foi o grande Putsh cartesiano que colocou o homem na posição de Deus e inverteu o pensamento grego, para o qual, longe de ser onipotente, o homem era parte de uma natureza concebida como cosmos, como ordem substancial e hierarquizada, significativa em si mesma, que atribui aos seres humanos, como a todos os outros seres e coisas, o lugar que lhes é próprio. Com o advento do sujeito soberano, a natureza se transforma em material inerte que só do homem pode receber sua significação. Só o que é representável à consciência do sujeito é real, e a totalidade do real é definida como representável. Pelo princípio da razão — nihil est sine ratione — tudo o que existe pode em direito ser explicado pela razão, e com isso o sujeito assegura seu domínio cognitivo sobre a natureza. Mas a moderna metafísica da subjetividade não é apenas teórica e especulativa, ela também está associada a um projeto prático, mobilizando a vontade, mais que a razão. Com isso, o sujeito não se limita a conhecer o real. Ele controla e transforma. No início, essa vontade de transformação ainda está ligada a algum fim externo, como a felicidade ou a liberdade. Ainda é vontade de alguma coisa. Com o tempo, a vontade passa a incidir sobre si mesma — converter-se na vontade de potência, de Nietzsche, ou, como prefere Heidegger, na vontade-de-vontade, busca do poder pelo poder.[47]

O projeto de Sloterdijk se utiliza de Heidegger, mas de uma maneira não sectária, fugindo de uma certa “sacralização” não rara entre os admiradores dessa figura central do pensamento do século XX. Poder-se-ia dizer que seu irreverente projeto filosófico vincula-se a uma espécie de esquerda heideggeriana em sintonia com um leque de críticas à civilização ocidental — ao patriarcalismo, à espoliação da natureza e à alienação conscientemente induzida pelos meios de comunicação de massa nas sociedades de massa —, endossadas pelos grupos pacifistas, ecologistas e feministas, tributárias dos movimentos contraculturais das décadas de 1960 e 1970. Sloterdijk sublinha que não pode ser esquecido que o “esperto homenzinho de Messkirch”[48] — não obstante a pujança de sua crítica e reprovação aos estilos da civilização ocidental — cresceu “em uma cultura tribal […] e agrária”.[49] Entretanto, não pode deixar de considerar a perspectiva heideggeriana, matriz de muitas das análises do mundo contemporâneo e — convergente, neste aspecto, com as análises de Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento — crítica à sociedade burocrática, repressiva, disciplinadora e consumista do mundo ocidental.

Original e pouco ortodoxo o trabalho de Sloterdijk, principalmente ao combinar um diagnóstico filosófico assumidamente inspirado por Adorno com elementos da perspectiva de um dos mais insignes oponentes do mestre de Frankfurt. Tal ousadia é reconhecida por Ute Guzzoni, ao afirmar: “Sloterdijk quer se mover em direção a uma forma de pensamento que, em certo sentido, combina a Gelassenheit heideggeriana com a teoria crítica de Adorno”.[50] Difícil imaginar tal combinação, afinal um dos vetores característicos das análises de Adorno é a categórica afirmação, cuja pertinência não poderia aqui avaliar, de que a vinculação entre o pensamento de Heidegger e o nazismo não é episódica.

A Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, funcionou como um dos pilares da principal obra de Sloterdijk, a Crítica da razão cínica, cuja apropriação do webero-marxismo interdisciplinar da Escola de Frankfurt deu-se integrada às análises de Deleuze e Guattari — tão de acordo com os movimentos contraculturais da década de 1970, da qual Sloterdijk foi um conspícuo representante. Interessante a forma como este compreende o impulso filosófico subjacente à filosofização do marxismo implementada pela Escola de Frankfurt, reconhecendo que “a teoria crítica foi a tentativa de assumir a herança da dialética sem tecer fantasias de vitorioso”.[51] Toda essa problemática aberta a partir dos desenvolvimentos da engenharia genética despertou a atenção do mais formidável crítico de Heidegger na cultura alemã: Jürgen Habermas. Um ano antes da conferência Regras para o parque humano, Habermas já tinha se pronunciado tateantemente, no início de 1998, em três breves artigos publicados em jornais alemães (um no Süddeutsche Zeitung e dois no Die Zeit[52]) acerca dos problemas — e algumas consequências jurídicas — postos pelo avanço da engenharia genética. Toma como partida a seguinte indagação: “É inevitável a normalização de avanços técnicos que antes de tudo nos deixam indignados por razões morais?”. Sobretudo no que concerne à questão da clonagem, como se posicionar a partir de uma crítica que, reconhecendo o incontornável pluralismo de doutrinas compreensivas do mundo presentes na Modernidade tardia, procura tecer argumentos de natureza racional, condenando a “cópia não por razões religiosas”? Reivindicando uma tese polêmica, Habermas sustenta que “a repulsa arcaica que sentimos em face de um fiel retrato clonado tem um núcleo racional”. Ademais, assevera: “Não tenho a impressão de que temos respostas corretas às questões morais e jurídicas sobre a técnica genética e a medicina reprodutiva. Unicamente a biologia por si só não pode nos dar respostas”. E alerta: “A bioética não nos deve conduzir por trilhas biologicistas”.

Mesmo não podendo exaurir essa complexa temática — mas reconhecendo que a repercussão assumida pela polêmica entre Habermas e Sloterdijk denota o grau de preocupação despertado por estes últimos avanços da tecnologia não só entre os intelectuais mas também entre o público esclarecido —, constata-se: tal discussão não pode descurar do fato de que a motivação subjacente às recentes descobertas da engenharia genética atende muito menos ao interesse do grande público do que aos interesses dos grandes conglomerados econômicos.

AS ATUALIZAÇÕES DA QUESTÃO DO BIOPODER:
A CONSTELAÇÃO DELEUZIANA — DA SOCIEDADE
DISCILPLINAR À SOCIEDADE DE CONTROLE

II a souvent été mal compris, ce qui ne le gênait pas, mais le troublait. II fasait peur, c’est-à -dire qu’il empêchait par sa seule existence l’impudence des imbéciles. Foucault remplissait la fonction de la philosophie definie par Nietzsche, “nuire la bêtise”.

Gilles Deleuze, Pourparler.
Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.

O biopoder, poder que se aplica globalmente à população, à vida e aos vivos, foi objeto das cogitações de Foucault no breve período de 1975 aos fins de 1977. Logo depois a inflexão operada na obra do filósofo francês, nos últimos anos de sua vida, passando das questões atinentes ao governo dos outros àquelas concernentes ao governo de si, o fez deixar de lado esse âmbito de pesquisas. De início, elas foram exploradas, como já foi destacado, por seus dois colaboradores mais próximos — François Ewald e Paul Rabinow. No entanto, logo depois, essa questão do biopoder e da biopolítica passou a receber um desenvolvimento por parte de Gilles Deleuze e, posteriormente, por Antonio Negri e Michel Hardt.

No caso de Deleuze, isso se deu em seu livro acerca de Foucault, datado de 1986, e em outros pequenos textos, máxime “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, de 1990. Elucidando uma distinção dentro do conceito de biopoder:

Primeiramente, do lado do próprio poder, retorno às duas direções de vp [Vigiar e punir]: de um lado, caráter difuso e parcelar dos microdispositivos, mas, de outro lado, também diagrama ou máquina abstrata cobrindo o conjunto do campo social. Parece-me que a relação entre essas duas instâncias da microanálise permanecia como um problema em vp. Creio que a questão muda um pouco em vs [Vontade de saber]: aqui, as duas direções da microanálise serão sobretudo as microdisciplinas, de um lado, e, de outro, os processos biopolíticos.[53]

Depois estabelece uma diferenciação pertinente entre os padrões de racionalidade postos em funcionamento pelos diferentes arranjos nas relações de poder e as estruturas políticas analisadas por Foucault. À época da soberania, típica do Antigo Regime, o poder se expressa como uma capacidade básica de ter o direito sobre a vida e a morte dos súditos; após a Revolução Francesa, sobremdo a partir de Napoleão, tem-se o poder disciplinar; por fim, desde a segunda metade do século XIX e até os nossos dias, o biopoder, referido à norma e caracterizador da sociedade de controle. Assim:

Quando o diagrama de poder abandona o modelo de soberania para fornecer um modelo disciplinar, quando ele se toma “biopoder”, “biopolítica” das populações, tutor e gestor da vida, é sem dúvida a vida que surge como novo objeto do poder. Então, o direito renuncia cada vez mais àquilo que constituía o privilégio do soberano, o direito de fazer morrer (pena de morte), mas permite com isso não poucas hecatombes e genocídios: não por um retorno ao velho direito de matar mas, bem pelo contrário, em nome da raça, do espaço vital, das condições de vida e de sobrevivência de uma população que se julga melhor, e que trata o seu inimigo já não como o inimigo jurídico do antigo soberano, mas como um agente tóxico ou infeccioso, como uma espécie de “perigo biológico”.[54]

O principal desenvolvimento operado por Deleuze, interpretando construtivamente as investigações de Foucault acerca do biopoder, encontra-se na articulação dessa problemática com a caracterização de nosso tempo presente pela ideia de que “ ‘controle’ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo”.[55] Ou seja, aos mecanismos postos em funcionamento no tempo das disciplinas e dos espaços de enclausuramento típicos da Modernidade, sobrepõem-se as novas malhas de sujeição, potencializadas pelo desenvolvimento da tecnologia cibernética. Assim, “[…] as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo que vamos deixando pouco a pouco de ser; e a nossa atualidade desenha-se em dispositivos de controlo aberto e contínuo, muito diferente das recentes disciplinas fechadas. Foucault concorda com Burroughs quando este anuncia que o nosso futuro será um futuro controlado e não já disciplinado”.[56] Dessa maneira, os instrumentais forjados por Foucault para analisar as características e os problemas da vida política contemporânea foram atualizados por Deleuze. Dito de outra forma, o que aquele prenunciava, pouco antes de sua morte, em 1984, acerca dos desdobramentos das estratégias de poder implementadas no regime do biopoder é retomado por este, vis-à-vis o exponencial crescimento das tecnologias no campo da informática — e o correlato desenvolvimento dos mecanismos de vigilância e controle — observado já desde o final da década de 1980. Entretanto, nessa retomada, Deleuze percebe um futuro menos sombrio, dotado de possibilidades de resistência e transformação — por exemplo, as apontadas no diagnóstico de Negri e Hardt —, que aquele vislumbrado por Foucault — nesse particular mais próximo do tom por vezes apocalíptico de Adorno[57] e Heidegger.

Perceber que o modo crucial de funcionamento das estratégias de poder necessárias à manutenção da estabilidade social na sociedade contemporânea se justifica por um exercício da autoridade em sociedade que se apresenta como “tutor e gestor da vida”; eis uma contribuição capital da análise biopolítica, ampliando a compreensão da dinâmica política contemporânea. Todavia, as categorias de biopoder e biopolítica só passam a constituir elemento fulcral de uma análise mais abrangente do estado atual de nossa sociedade em tempos de globalização na obra Império,[58] de Michel Hardt e Antonio Negri. Nela se reconhece que o império “é a forma de poder que tem por objetivo a natureza humana, portanto, é biopoder”.[59] O império funciona de acordo com o regime da sociedade de controle, entendido como “[…] uma intensificação e uma generalização da disciplina”.[60] Note-se que o uso feito por Hardt da noção de biopolítica é menos “fiel” às investigações de Foucault do que o empreendido por Deleuze. Como aponta Peter Pál Pelbart:

Hardt propõe então ao mesmo tempo adotar e inverter o uso feito por
Foucault do termo biopoder. Biopoder não só como o poder sobre a vida
exercido desde cima, mas também o poder de criação da vida, ou seja,
produção das subjetividades coletivas, de sociabilidade, de formas de vida
emergentes. No mesmo sentido vai Toni Negri, ao defender um conceito
de biopolítica menos estático do que em Foucault, onde a subjetividade
aparece ainda excessivamente neutralizada, segundo ele. Daí sua insistên-
cia no “biopolítico produtivo”, isto é, na dimensão produtiva e positiva do
biopolítico enquanto produção social de subjetividade.
[61]

Por fim, essas análises desenvolvidas por Deleuze, Negri e Hardt reforçam a interpretação destacada por Foucault de que a biopolítica funciona num regime mais sutil, flexível e insidioso, no campo social, do que aquelas relações de poder até então descritas pela análise marxista — na qual se garantia o privilégio absoluto da dimensão do trabalho como central à compreensão das relações políticas em sociedade —, análise, em geral, não atenta às especificidades do regime biopolítico, em que as tecnologias geradoras das fronteiras da vida humana e da qualidade biológica das pessoas assumem um papel crucial na dinâmica da vida política hodierna.

CONCLUSÃO

E, como acontece sempre, os mais altos expoentes de uma época, os que mais fundo penetraram nos seus sedimentos, adquiriram o poder profético de ver para além dela, quer dizer, de prever o que as deslocações ínfimas, sedimentares produzirão posteriormente como movimentos macroscópicos.

José Gil, Diferença e negação em Fernando Pessoa.

Rio de Janeiro; Relume Dumará.

Como não ver em todos os debates atuais sobre bioética, convocando o moral, o jurídico e o político, em todos os projetos de elaboração das leis, uma confirmação dos laços que o poder estabelece com os corpos de seus cidadãos e a consolidação de um biopoder, sobretudo em um momento em que o “[…] excesso de biopoder aparece quando a possibilidade é técnica e politicamente dada ao homem, não só de organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar — no limite — vírus incontroláveis e universalmente destmidores”?[62]

Na medida em que o crescente campo de problemas da bioética — aberto pelo instaurar da racionalidade biopolítica — está vinculado a uma modelização econômica da saúde com uma indústria farmacêutica que conhece uma onda sem precedente de concentração, um agribusiness que levanta problemas maiores se pensarmos sobre aqueles relativos à vaca louca ou às plantas transgênicas, como não estabelecer um vínculo entre essa temática do biopoder e as discussões acerca da delimitação entre público e privado? Afinal, a nossa era se distingue, em um aspecto, radicalmente, de todas as estruturas políticas que a precederam: “O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política sua vida de ser vivo está em questão”.[63] Nesse sentido, é iluminadora a reflexão de Agamben:

A política clássica fazia uma distinção muito nítida entre zóe e bíos, entre vida natural e vida política, entre homem como simples ser vivo, que tem o seu lugar na casa, e o homem sujeito político, que tem o seu lugar na polis. Pois bem, nós não sabemos mais nada acerca disso tudo. Nenhuma distinção nos é possível entre zoé e bíos, entre nossa vida biológica de seres vivos e nossa existência política, entre o que é incomunicável e mudo e o que é dizível e comunicável. Nós, como já escreveu Foucault, somos animais cuja política coloca em jogo sua própria vida de seres vivos. Viver num estado de exceção que tornou-se a regra tem significado que nosso próprio corpo biológico tornou-se distinto de nosso corpo político, que as experiências que nós dizíamos anteriormente políticas sejam bruscamente relegadas em nosso corpo político e que as experiências privadas se apresentem subitamente fora de nós, como corpo político.[64]

Ora, os avanços da engenharia genética, a possibilidade de clonar seres humanos, bem como a disseminação de alimentos transgênicos em nosso planeta não são questões do âmbito privado: não podem estar submetidos apenas aos interesses da Monsanto e de um punhado de transnacionais do domínio da indústria química e farmacêutica (como Aventis, AstraZeneca, Novartis, DuPont, Dow Chemical e La Moderna). São hoje, no regime biopolítico, questões públicas e devem receber a maior atenção possível no âmbito dos debates nos espaços públicos democráticos das sociedades contemporâneas. E a prudência sugere que devemos enfrentá-las, por um lado, despidos de qualquer visão sistematicamente pessimista, e, por outro, privados de qualquer ingênua ilusão progressista (tão comum em irrefletidas mensagens nos meios de comunicação de massa). Em suma: nem tecnofobia, nem tecnolatria.

No tocante à engenharia genética, os riscos abertos pelos desenvolvimentos da biotecnologia instam os intelectuais a refletir sobre as consequências éticas das formas presentes de conhecimento e do âmbito de liberdade dos pesquisadores e cientistas. É claro que numa sociedade pluralista torna-se fundamental o reconhecimento de uma margem de desacordo razoável acerca das possíveis utilizações que essa enorme revolução tecnológica enseja ao ser humano. Com efeito, a mudança de fronteira entre aquilo que é da ordem do acaso — como têm se dado até os nossos dias as modificações genéticas ocorridas nos seres vivos — e aquilo que é da competência da escolha disponibilizada pelas novas tecnologias abre no horizonte da espécie questões inauditas. Possivelmente, o caminho para o enfrentamento desses problemas implica debate público e regulação. Afinal, “olhando para o futuro possível da natureza humana nos tornamos conscientes da necessidade de regulação”.[65] Quanto a nós, brasileiros, as discussões relativas às mudanças no campo da clonagem e da “produção tecnológica” de seres humanos interessam como a todos aqueles preocupados com o futuro da humanidade; no entanto, a capacidade de influência e intervenção do público mobilizado é ínfima. Essas questões só poderão receber as influências e controle dos espaços públicos sensibilizados na cultura norte-atlântica, nos quais estão ocorrendo tais transformações tecnológicas. Todavia há um importante âmbito dessas modificações que nos concerne diretamente: a utilização de sementes geneticamente modificadas. Embora o governo brasileiro tenha, recentemente, autorizado a utilização dessas sementes, esta se deu sem uma prévia discussão democrática, atenta às suas consequências. A introdução dos métodos de engenharia genética na agricultura — sobretudo na busca de sementes resistentes à peste e aos herbicidas — causou uma reação do público na Europa e nos Estados Unidos sem precedentes na história da tecnologia, reação e mobilização que passaram praticamente despercebidas aos meios de comunicação de massa no Brasil, despertando apenas a atenção de alguns organismos não-governamentais e de determinados círculos intelectuais.[66]

Enfim, se os problemas relativos à engenharia genética, como a clonagem, encontram-se, no tocante a seu deslinde, além da capacidade de influência da opinião pública mobilizada de países periféricos, as questões atinentes aos organismos geneticamente modificados no campo das sementes agrícolas nos concernem diretamente — afinal, não podemos esquecer que o Brasil é o segundo maior produtor de grãos do mundo. Enquanto os Estados Unidos já adotaram largamente as sementes transgênicas — contrariamente às políticas agrícolas europeias, nas quais esses produtos estão banidos —, o caminho trilhado pelo Brasil pode representar uma espécie de fiel da balança no destino da utilização dessa tecnologia.

Uma nota esperançosa, no que tange às possibilidades de controle político do desenvolvimento da biotecnologia, na esteira da argumentação de Jeremy Rifkin na conclusão de seu livro O século da biotecnologia: a valorização dos genes e a reconstrução do mundo,[67] encontra-se na seguinte comparação: há uma geração, o espraiamento da energia nuclear parecia ser um elemento incontornável em nosso futuro. Hoje em dia, graças, principalmente, à conscientização ecológica e à mobilização política, somente países com ambições militaristas investem em tal alternativa energética. Quiçá mobilização semelhante possa ocorrer, modificando as tendências hoje observadas no desenvolvimento da biotecnologia.

As decorrências do instaurar do biopoder como determinante da forma de estruturação do poder político nas sociedades contemporâneas constituem um horizonte de problemas postos ao futuro da espécie, Se a dramaticidade de tais problemas tende a gerar em muitos uma apatia — causada, na maioria das vezes, pelo sentimento de impotência diante do turbilhão de transformações tecnológicas hodierno e de suas consequências sem precedentes — e um certo desânimo no enfrentamento de questões dessa magnitude, devemos ter em mente o dito de Deleuze acerca desse horizonte: “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.[68]

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Vandana Shiva, Biopirataria, a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001.

Notas

[1] Michel Foucault, “Aula de 17 de março de 1976”, in Em defesa da sociedade, curso no Collége de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 297.

[2] Peter Sloterdijk, entrevista a Folha de S.Paulo. Caderno Mais!, domingo, 10 out. 1999, p. 5.

[3] Giorgio Agamben, “A imanência absoluta”. In Éric Alliez (org,), Gilles Deleuze, uma vida filosófica, São Paulo: Editora 34, 2000, p. 190.

[4] Michel Foucault, Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 22.

[5] Michel Foucault, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 28.

[6] François Ewald, “Anatomie et corps”. Critique. Paris: Les Éditions de Minuit, nº 343, 1975, p. 1237.

[7] Michel Foucault, “Verdade e poder”, in Microfísica do poder, op. cit., p, 124.

[8] Uma sintética definição do biopoder foi cunhada por Habermas no seu Discurso filosófico da Modernidade (onde o filósofo francês se apresenta como o principal opositor/interlocutor do herdeiro da Escola de Frankfurt): “Para a formação moderna do poder, que deve o nome de biopoder ao fato de penetrar profundamente no corpo reificado e de se apoderar de todo o organismo pelas vias sutis da objetivação científica e de uma subjetividade gerada pelas tecnologias de verdade, biopoder é o nome dado àquela forma de socialização que elimina toda espontaneidade natural e transforma a vida das criaturas como totalidade num substrato da sistematização do poder” (Jürgen Habermas, Discurso filosófico da Modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990, p. 267).

[9] Michel Foucault, Vigiar e punir, op. cit., p. 125.

[10] Ibid., p. 126.

[11] Ibid., p. 194.

[12] Ibid., p. 126.

[13] Ibid., p. 183.

[14] Gilles Deleuze, Foucault. Paris: Les Éditions de Minuit, 1986, p. 79.

[15] Michel Foucault, A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, Departamento de Letras, 1974, p. 69.

[16] Michel Foucault, “The politics of health in the Eighteenth century”, in Power/knowlegde. Nova York: Pantheon Books, 1980, p. 125.

[17] Roberto Machado, “Por uma genealogia do poder”, in Michel Foucault, Microfísica do poder, op. cit., p. 194.

[18] Gilles Deleuze, Foucault, op. cit., p. 79.

[19] Michel Foucault, História da sexualidade IA vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 131.

[20] Ibid., p. 133.

[21] Michel Foucault, Em defesa da sociedade, op, cit., p. 286.

[22] Alexandre Fontana & Mauro Bertani, “Situação do curso”, in Michel Foucault, Em defesa da sociedade, op. cit., p. 347.

[23] Michel Foucault, The politics of health in the Eighteenth century, op. cit., p. 172.

[24] Michel Foucault, A vontade de saber, op. cit., p. 129.

[25] Michel Foucault, excerto do curso do Collège de France, 1977-8, pp. 447-8.

[26] Como explica Foucault: “Certamente o problema da população sob a forma: ‘seremos nós muito numerosos, não suficientemente numerosos?’, há muito tempo colocado, há muito tempo que se dá a ele soluções legislativas diversas: impostos sobre os celibatários, isenção de impostos para as famílias numerosas etc. Mas, no século XVIII, o que é interessante, em primeiro lugar, é uma generalização destes problemas: todos os aspectos da população começam a ser levados em conta (epidemias, condições de habitat, de higiene etc.) e a se integrar no interior de um problema central. Em segundo lugar, têm-se, correlatos a este problema, novos tipos de saber: aparecimento da demografia, observações sobre a repartição das epidemias, inquéritos sobre as amas-de-leite e as condições de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de aparelhos de poder que permitiam não somente a observação, mas a intervenção direta e manipulação de tudo isto. Eu diria que neste momento começa algo que se pode chamar de poder sobre a vida, enquanto antes só havia vagas incitações descontínuas para modificar uma situação que não se conhecia bem” (grifo meu) (Michel Foucault, Microfísica do poder, op. cit., p. 275).

[27] Michel Foucault, Power/knowlegde, op. cit., p. 171.

[28] François Ewald, LÉtatprovidence. Paris: Bernard Grasset, 1986, p. 27.

[29] Quanto às cogitações de Foucault acerca da norma, indiscutível a influência das reflexões de um de seus mestres, Georges Canguilhem, em O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. É claro que essa vinculação foi destacada e explorada por François Ewald.

[30] François Ewald, Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993. p. 79.

[31] Quanto aos modelos do inquérito e do exame, desenvolvi considerações acerca dessa fase de transição do trabalho de Foucault — entre a epistemologia das ciências humanas e a teoria social, no período de 1970 a 1973 — no texto “A genealogia de Foucault e as formas fundamentais de poder/saber: o inquérito e o exame”, in Michel Foucault, da arqueologia do saber à estética da existência. Rio de Janeiro; Londrina: Nau Editora; CEFIL, 1998.

[32] Habermas salienta a radicalidade dessa tese em Discurso filosófico da Modernidade, op. cit, p. 231. Quanto à dimensão epistemológica das investigações de Foucault — que não são objeto de discussão neste artigo —faz-se necessária a menção ao exame, matriz epistemológica das ciências sociais salientadas nas suas investigações genealógicas. O exame é um elemento fundamental no quadro geral do pensamento no qual a norma e o biopoder se instauram como racionalidades imprescindíveis à estruturação do Estado do bem-estar social. Nesse sentido, as teses de Foucault em relação à influência das matrizes políticas das ciências — o inquérito e o exame — têm de ser diferenciadas, de vez que as ciências da natureza (como reconhece Foucault) “[…] escaparam obviamente à malha de práticas das quais provêm” (Jürgen Habermas, Discurso filosófico da Modernidade, op. cit, p. 248). Como Habermas observa mais adiante, na p. 256, “as ciências humanas devem, pela sua forma, representar um amálgama de poder e de saber — formações de poder e de saber constituem uma unidade indissolúvel”. Por conseguinte, a análise genealógica constitui uma formidável empresa de desmascaramento de determinadas ciências humanas, pondo em suspeita a sua neutralidade e objetividade. Assim, as suas pesquisas históricas contribuíram para uma compreensão diferente de problemas relativos à epistemologia das ciências humanas.

[33] Michel Foucault, A verdade e as formas jurídicas, op. cit, p. 70.

[34] Michel Foucault, excertos do curso do Collège de France, de 1977-8, p. 75.

[35] Hubert Dreyfus & Paul Rabinow, Michel Foucault, beyond structuralism and hermeneutics. Brighton: The Havester Press, 1982.

[36] Paul Rabinow, “Preface”, in Essays on the anthropology of reason. Princeton, Nj:Princeton University Press, 1996, p. XI.

[37] Laymert Garcia dos Santos, “Código primitivo — código genético: a consistência de uma vizinhança”, in Éric Alliez (org.), Gilles Deleuze, uma vida filosófica, op. cit., pp. 417-8.

[38] Nessa observação, contida na p. 138 do texto “Severing the ties: fragmentation and dignity in late modernity”, Rabinow refere-se aos problemas decorrentes do espraiamento do biopoder na vida contemporânea, máxime aqueles concernentes à engenharia genética.

[39] Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano, uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 45.

[40] Ibid., p. 47. Saliente-se, como destaquei na introdução (ver nota 2), que em uma das entrevistas acerca dessa querela há referência explícita de Sloterdijk à lamentável ausência de Foucault em um momento de impasse quanto às avaliações das perspectivas abertas com a descoberta de, praticamente, um novo continente virgem a partir dos avanços da biotecnologia.

[41] Peter Sloterdijk, “Vivre chaud et penser froid (Entretien Peter Sloterdijk-Éric Alliez)”. Multitudesbiopolitique et biopouvoir. Paris: Exils, m 1, mar. 2000, p. 65.

[42] Ibid., p. 68.

[43] Andreas Huyssen, “Foreword: the return of Diogenes as a postmodern intellectual”, in Peter Sloterdijk, Critique of cynical reason. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987, p. XV.

[44] Como sintetiza o filósofo espanhol Fernando Savater: “Sin embargo, o más bien gracias a ello, Crítica de la razón cínica es una de las obras más provechosas e inteligentes aparecidas en Alemania durante los últimos diez anos. Se inscribe con fuerza en la mejor traza de la teoria crítica frankfurtiana — proviene de Adorno, sobre todo —, pero purgándola de sus resabios menos defendibles: puritanismo estético, condena de toda positividad por muy provisional e ironicamente que presente su apuesta, veneración inconfesa y finalmente mártir de la dialéctica marxista. En cambio, conserva y potência sus mejores características: rechazo dei proyecto mismo (ino digamos de sus supuestas realizaciones históricas!) de la filosofia como teoria científicamente total, capaz de agotar la imprevisibilidad y la sublevación permanente de la vida contra las formas definitorias que sele imponen; resguardo insobornable de la seriedad dei dolor de los indivíduos frente a las globalizaciones historicistas que lo dan por necesario y hasta por
meritorio; declaración permanente y múltiplemente argumentada de que lo que es, es todo, pero no es todo lo que debe ser” (Eernando Savater, “Presentación de la edición espanola”, in Peter Sloterdijk, Crítica de la razón cínica. Madri; Taurus, 1989, p. 8).

[45] Peter Sloterdijk, entrevista a Folha de S.Paulo, op. cit., p. 6.

[46] Christian Delacampagne, História da filosofia no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 256.

[47] Sérgio Paulo Rouanet, “A coruja e o sambódromo”, in Mal-estar na Modernidade, ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 62. Destaque-se também a continuação desse longo trecho, na página seguinte: “É o mundo da técnica convertida num fim em si, o mundo da instrumentalização absoluta. No horizonte da modernidade e como consequência da onipotência da técnica está o totalitarismo, pois só um regime totalitário, através da supervisão de todas as esferas do real, da concentração de todo o poder decisório e da organização racional e burocrática de todas as atividades sociais, poderá satisfazer as exigências de um universo inteiramente tecnificado. Assim, atrás do Estado totalitário está a técnica, e atrás da técnica está a metafísica do sujeito. Vale dizer, atrás da violência, da destruição da natureza, do totalitarismo e da guerra está o homem, esse homem a quem a modernidade conferiu um poder desmedido,
antes atribuído a Deus — a onisciência —, através de uma razão cujo desdobramento não conhece limites de direito, e a onipotência, através da técnica. Donde as reservas de Heidegger ao humanismo, para ele uma ideologia equivocada, que vê a grandeza do homem em sua condição de sujeito do saber e da técnica, em sua capacidade de ‘senhor do Ente’ ”.

[48] Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano-, uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, op. cit., p. 21.

[49] Peter Sloterdijk, “Tournant et révolution: discours sur la pensée heideggerienne du mouvement”, in L’heure du crime et le temps de Voeuvre d’art. Paris: Calmann- Lévy, 2000, p. 127.

[50] Ute Guzzoni, “Reason — a different reason — something different than reason? Wondering about the concept of a different reason in Adorno, Lyotard and Sloterdijk”, in Max Pensky, The actuality of Adorno, critical essays on Adorno and the postmodern. Albany: State University of New York Press, 1997, p. 25.

[51] Tal citação encontra-se, sem referência, no livro de seu amigo Rüdiger Safransky, Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000, p. 483.

[52] Esses três artigos, recentemente publicados em português, têm os significativos títulos: “Escravidão genética? Fronteiras morais dos progressos da medicina da reprodução” (publicado originalmente no Süddeutsche Zeitung), “Não é a natureza que proíbe clonar. Nós mesmos devemos decidir” e “A pessoa clonada não seria um caso de dano ao direito civil” (publicados no Die Zeit). In Jürgen Habermas, Constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001, respectivamente, pp. 209-12, pp. 213-6, pp. 217-20. Todos os trechos citados neste parágrafo pertencem ao conjunto desses três pequenos textos.

[53] Gilles Deleuze, “Desejo e prazer”. Peter Pál Pelbart & Suely Rolnik (orgs.), Cadernos de Subjetividade. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, número especial, jun. 1996, pp. 23-4.

[54] Gilles Deleuze, Foucault, op, cit., pp. 124-5.

[55] Gilles Deleuze, “Controle e devir”, in Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 220.

[56] Gilles Deleuze, “O que é um dispositivo?”, in O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996, p. 93.

[57] No tocante às relações entre Foucault e a primeira geração da Escola de Frankfurt — sobretudo Adorno —, desenvolvi considerações em “A questão da Aufklärung: mise au point de uma trajetória”, in Guilherme Castelo Branco & Vera Portocarrero (orgs.), Retratos de Foucault. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2000.

[58] Michel Hardt & Antonio Negri, Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2000, em especial pp. 23-43 — capítulo intitulado “A produção biopolítica”.

[59] Michel Hardt, “A sociedade mundial de controle”, in Éric Alliez (org.), Gilles Deleuze, uma vida filosófica, op. cit., p. 358.

[60] Ibid., p. 369.

[61] Peter Pál Pelbart, A vertigem por um fio\ políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, p. 27. Em outro texto recente, Pelbart afirma com propriedade: “Prolongando uma intuição foucaultiana sobre o biopoder, os autores [Negri/Hardt] assinalam que agora o poder não é apenas repressivo, restritivo, punitivo, mas ele se encarrega positivamente da produção e da reprodução da própria vida, organizando a totalidade das atividades da população (bastaria evocar o exemplo das revistas semanais brasileiras, e suas recomendações de automonitoramento de saúde física e psíquica, verdadeiros manuais de auto-ajuda para a vida sexual, alimentar, neuronal, mas também afetiva, econômica, social etc.). É a dimensão biopolítica da sociedade de controle. Quando o poder se torna inteiramente biopolítico, o conjunto do corpo social é abraçado pela máquina do poder, integrando suas múltiplas dimensões e atingindo o próprio bíos social” (Peter Pál Pelbart, “O Império contra-ataca”. Caderno Idéias. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 ago. 2001, p. 1).

[62] Michel Foucault, Em defesa da sociedade, op. cit., p. 303.

[63] Michel Foucault, História da sexualidade I: A vontade de saber, op. cit., p. 134.

[64] Giorgio Agamben, Moyens sans fins, notes sur la politique. Paris: Bibliothèque Rivages, 1995, p. 149.

[65] Jürgen Habermas, “On the way to liberal eugenics? The dispute over the ethical self-understanding of species”. The Program in Law, Philosophy and Social Theory. Nova York: NYU School of Law, outono 2001 (mimeo), p. 57.

[66] Nesse sentido, por exemplo, a publicação de Hermetes Reis de Araújo (org.), Tecnociência e cultura, ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade,1998, onde se lê, na p. 17: “As manipulações genéticas independem de uma ambientação do entorno geoclimático das plantas onde elas se aplicam. […] Estas alteram as formas de cultivo, a extração de componentes, possibilitam ainda sua recombinação com espécies animais e determinam sua inserção no mercado. Fatores que, se, por um lado, podem contribuir para a solução de problemas alimentares de países do Terceiro Mundo, por outro, podem significar consequências dramáticas para estes mesmos países, já que a introdução das inovações tecnológicas da engenharia genética possibilita um controle ainda maior do mercado mundial das exportações agrícolas”. Extremamente elucidativas a esse respeito as análises de Vandana Shiva, Biopirataria, a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001. No prefácio, desmonta-se a falácia presente na argumentação dos defensores da utilização das sementes transgênicas, ou seja, demonstra-se que os meios tecnológicos hoje disponíveis na agricultura, sem organismos geneticamente modificados, são capazes de saciar a fome do planeta. Esta é muito mais uma questão político-econômica do que técnica. As sementes transgênicas servem para aumentar os lucros das multinacionais e das monoculturas exportadoras.

[67] Jeremy Rifkin, O século da biotecnologia-, a valorização dos genes e a reconstrução do mundo. São Paulo: Makron Books, 1999.

[68] Gilles Deleuze, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, in Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 220.

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