2006

Ave palavra

por Haquira Osakabe

Resumo

Há em toda língua um aspecto agregador, consensual, centrado na comunicação, e outro inovador, como a poesia, domínio do imponderável. A tensão entre os dois, no quadro heterogêneo e múltiplo do mundo de hoje, deveria fazer da polêmica a tendência discursiva típica. Mas não é o que acontece, se considerarmos os casos dos Estados Unidos e do Brasil, por exemplo. No primeiro, apesar da presença de muitas etnias diferentes, impôs-se um consenso de identidade que significa na prática um “branqueamento” das diferenças, sustentado na ideia de utilidade para o cidadão (durante guerra do Iraque, não se discutia sua questão ética, mas o que se ganhava e perdia com ela). Não havendo espaço para a emergência de um discurso crítico, restrito a vozes isoladas, somente fatores imponderáveis (como foram o 11 de setembro e o furacão Katrina) podem trazer à tona uma palavra nova de espanto e de incerteza. No caso brasileiro, houve a esperança de um discurso de vozes plurais depois da ditadura, mas ela sofreu um redirecionamento político com a aliança consensual entre os maiores partidos (inclusive o PT, quando assumiu o governo) em torno do mercado. Esse pragmatismo equivocado fez que conservadores se apropriassem do discurso anterior do PT e, com o apoio da mídia, fabricassem um novo consenso que alia a imagem do governo e seu partido à corrupção. Nesse quadro, em que os acusados perderam a bandeira ética e os acusadores não têm condições efetivas de assumi-la, há o risco de extinção do discurso crítico introduzido pelas esquerdas, uma palavra inovadora só podendo agora vir das margens destituídas de poder.


Algumas considerações prévias:

  1. O tema desta palestra me foi sugerido pelo coordenador do ciclo durante nossas conversas, ainda na fase preliminar de sua organização.

Na ocasião, preocupava-me o desaparecimento da figura do intelectual tal como a descrevia já na década de 1980 Russell Jakoby em seu Os últimos intelectuais,[1] e preocupava-me sobretudo o fato de que, sem o exercício do diálogo crítico, estivéssemos assistindo à liquidação dos projetos de uma transformação humana e social que poderiam criar as bases de uma sociedade menos desigual. Mas o ciclo O silêncio dos intelectuais acabou por coincidir com um momento particularmente patético de nossa história, em que a percepção mais geral e teórica do tema sucumbiu a uma urgência de tal forma pesada que foi inevitável reorientar a discussão do tema proposto em direção a uma reflexão muito mais concreta do que eu tinha previsto. Durante dois meses, depois de um explicável desacerto moral diante da avalanche de denúncias que desabou sobre o governo e o Partido dos Trabalhadores, fiquei por conta de tentar organizar aquilo que me parecia resultado de uma convergência dramática de fatos que, tornados públicos, necessariamente, por força de sua consistência, inviabilizariam a permanência do atual governo no país. A reorientação de que falei acima fez-se como resultado de um exame diário sistemático dos principais veículos de informação nacionais. Somente de posse de alguma clareza, comecei a redigir o texto que foi lido pela primeira vez no Rio de Janeiro em 27 de setembro. Apresento-o acrescido de notas de rodapé, nas quais incluo material novo, de referência, e também algumas matérias de apoio que me serviram durante o período de redação.

  1. Fiz uma primeira revisão do texto para levá-lo à última das conferências, a ser realizada em Brasília. Lembro que iniciei a redação do ensaio em 3 de agosto último, dia do primeiro comparecimento do deputado José Dirceu a uma sessão pública no quadro das atuais CPIs. Por alguma fatalidade, a palestra de Brasília estava marcada para o dia 23, dia previsto para a votação pela cassação do ex-ministro, votação adiada mas depois cumprida, com os resultados já conhecidos. A retomada final deste texto, no entanto, foi feita no dia 27 de março de 2006, data que marca mais um passo nesse processo cujos resultados cumprem à risca as previsões que fiz desde a primeira versão deste trabalho.
  2. Entre a primeira redação deste ensaio e suas várias retomadas, um número de Caros Amigos[2] trouxe uma longa entrevista da Marilena Chaui. Muito do que eu disse aqui está ali dito de modo muito mais claro e mesmo convincente. Marilena chega às suas conclusões pela conjugação de duas vias: a análise da história interna do PT e o papel da mídia no contexto da atual “crise” política. Fiquei apenas no plano da mídia e invoquei da história do PT apenas dados conhecidos de seus programas.

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Não é exagerado considerar o século XX o século da linguagem. Este fato se deve à grande contribuição trazida pelo gênio de Saussure e também às investigações inovadoras provenientes da filosofia analítica, na figura de Ludwig Wittgenstein. Mas, sobretudo, não se devem esquecer também as contribuições saídas da Fenomenologia que, em contraponto à visão científica da Linguística, levantaram questões particularmente decisivas, sobretudo no que concerne à compreensão da importância da linguagem poética.

A que se deveria esse grande interesse pelo campo da linguagem, ou, melhor ainda, que ordem de problemas proporia ao homem moderno esse fenômeno, a ponto de torná-lo um dos mais fecundos e intrigantes campos de indagação do mundo contemporâneo?

Será em Saussure que iremos encontrar os principais ingredientes para esboçar uma resposta a essa pergunta.[3] A dimensão social da linguagem é o principal deles. Para explorarmos melhor esse ponto, passemos em revista alguns pontos básicos de sua teoria: o primeiro deles é a noção de sistema linguístico. Recorde-se que Saussure, ao propor essa noção, teria partido de uma constatação aparentemente óbvia e ingênua: o caráter determinante da linguagem como instrumento de comunicação. Para explicar o modo pelo qual ela exerce essa função, Saussure levantou como hipótese a existência de elementos linguísticos básicos e irredutíveis, combináveis entre si através de operações gerais que estariam ao alcance de qualquer falante. Seria esse sistema que permitiria ao homem sua efetiva integração dentro de uma determinada comunidade. Um segundo ponto da teoria saussuriana, e que nos interessa de perto, é o procedimento de assepsia implicado na sua noção de sistema, que teria como efeito direto a exclusão dos fenômenos variáveis, particulares e individualizados considerados não pertinentes ao sistema. Nessa visada, fica patente que o papel essencial da atividade linguística estaria na capacidade de unir os indivíduos em uma comunidade homogênea, dando relevo a uma espécie de poder agregador da palavra, sustentando sua função socialmente identificadora. A essa confessa primazia dos aspectos gerais do fenômeno linguístico pode ser relacionada uma espécie de separação moral de funções: o que é de natureza agregadora é da ordem do sistema, e o que se deixa para fora dele seria da ordem da dispersão ou da dissolução, ou desintegração. Consideremos que os campos que ficaram fora da cidadania linguística concernem aos usos ou aos processos de individuação, e que em boa parte têm sido contemplados por domínios como a estilística, a poética e a retórica. O florescimento do estruturalismo nas ciências humanas, em grande parte como decorrência da aceitação da linguística enquanto ciência matriz ou ciência-piloto, deveu-se a uma espécie de convicção de que finalmente a compreensão geral do fenômeno da palavra estava prestes a fazer-se dentro de critérios característicos do pensamento científico, como a regularidade, a homogeneidade e a previsibilidade. No entanto, passado já quase meio século do auge dos projetos estruturalistas, percebe-se que a grande questão que esteve subjacente aos debates sobre a linguagem e que tem como fulcro um confronto permanente entre sua vocação generalizante e a natureza fugidia dos fenômenos humanos, e em particular da linguagem, essa questão permanece praticamente intocada. E aqui, presidindo o núcleo daquela fugacidade essencial, estaria a palavra poética. Isolada como resultado de desvio ou individuação imponderável, foi ela consagrada como central em uma filosofia como a de Heidegger, e isso não por acaso.[4] A pergunta que parece subjazer à reflexão desse filósofo parece ser similar àquela já formulada anteriormente por Schopenhauer e que se opõe diametralmente à questão subjacente à teoria saussuriana. Saussure, ao aceitar o dado empírico de que os homens compõem pelo uso da linguagem uma comunidade homogênea, como lembrei acima, teria formulado a seguinte pergunta metodológica: como a linguagem permite aos homens comunicarem-se, compondo a comunidade em que vivem? A pergunta a que Heidegger parece ter tentado responder se encaminharia para outra instância que não a da comunicação. Assim, polarizando com a função comunicativa, o filósofo nos fazia vislumbrar uma outra preocupação, à qual parecia alheio o papel da linguagem: a da formulação do conhecimento. Mas, ao contrário disso, para responder a essa pergunta, Heidegger iria conferir à linguagem um papel fundante na sua filosofia. Mais ainda, concederia por isso mesmo um papel central àquilo a que denominaríamos “palavra poética”. E aí temos um perfeito contraponto entre linguística saussuriana e a filosofia heideggeriana. De um lado temos a Língua, geral e previsível, e de outro a poesia, domínio do mutável e do imponderável.

Essa contraposição de base constitui um dos espaços especulativos que sustentam ainda as reflexões contemporâneas sobre a linguagem ou sobre a palavra.

A partir daqui será possível começar a discussão do tema proposto para esta palestra — o poder da palavra —, que será desenvolvida de modo a contemplar de alguma forma o tema geral deste grande ciclo — O silêncio dos intelectuais.

Retomando o que foi dito, a simples separação entre o uso social e o uso individual da palavra remete aos dois papéis contraditórios e curiosamente complementares da linguagem já anunciados acima: o poder de agregação, de comunhão, e o poder de desagregação, ou dissolução. Ou o poder de coerção e o poder da libertação. Ou, ainda, o da estabilidade e instabilidade.

Sempre sinalizáveis como marcas morais, entendamos esses papéis do seguinte modo: não há em princípio uma forma de neutralizar a tensão entre essas polaridades que se assinalam positiva ou negativamente, pois a relação de convivência entre elas determina sempre que a um peso negativo corresponda um positivo, e vice-versa. Assim, vejamos: ao uso social, associamos o poder agregador, o poder coercitivo e o poder de estabilização. Ao uso individual associamos, consequentemente, o poder desagregador, o poder de libertação, ou ainda o poder da desestabilização. Procuremos ultrapassar esse dualismo. Consideremos que a linguagem, pensada na sua dinâmica, compreende os referidos polos para a sua sobrevivência. Precisa de elementos gerais e estáveis para que a comunicação se estabeleça, e, ao mesmo tempo, precisa de elementos particulares e instáveis a fim de que ela não se confine ao domínio da repetição, do lugar-comum, ao vazio de significações. No entanto, fica muito longe a ideia de um equilíbrio permanente entre essas polaridades: o desequilíbrio nesse caso é da natureza da linguagem viva e dá base para que ela tente sempre se superar. Entremos num exame mais detalhado dessa questão do desequilíbrio, reiterando que tanto ele pode fazer-se com propensão à estabilidade quanto à instabilidade. Há consequências notáveis para esse fato. Se um uso da língua pende à estabilidade, ele favorece em primeiro lugar ao processo comunicativo, já que se dispõe como um elemento socialmente definidor. Uma comunidade jamais será compactamente identificada se não estiver construída numa sólida organização dos seus meios de expressão e comunicação. As políticas de definição e de afirmação das línguas nacionais, por exemplo, se fazem com base nisso. Trata-se da ativação típica de mecanismos que extrapolam o plano da linguagem, mas que derivam de uma consciência da importância do poder comunicativo da palavra. Um exemplo bem a propósito desse fato, no caso da língua portuguesa no Brasil, pode ser recuperado na política de ensino da língua durante os primeiros anos do século XX, quando se assumiu um modelo declaradamente nacionalista de educação.[5] A pedagogia linguística que se pode aferir de autores como Olavo Bilac e Coelho Neto, e que se sincretiza na expressão “língua pátria”, formulou-se segundo a hipótese de uma identidade cultural compacta. Esse ensino implicava a adequação dos educandos a um modelo definido de linguagem, em que julgamentos ligados à correção linguística não admitiam dúvidas. E quais foram as consequências daquela política? Simplesmente elas acentuaram comportamentos de linguagem na base da mimetização de usos estabelecidos e prestigiados pela tradição dita culta. Isso poderia levar a uma morte da Língua por conta do esvaziamento de sua vitalidade, não fosse a própria língua muito mais rebelde e muito menos controlável do que poderiam prever os manuais e as prescrições.

No sentido oposto, pode-se pensar a tendência à instabilidade que decorre da individuação da linguagem. Se, do lado oposto, a língua por excesso de estabilidade tende a cristalizar-se, por outro lado, por excesso de instabilidade, ela tende a pulverizar-se. A chamada perda da comunicabilidade decorrente de uma formulação hermética é um exemplo patente disso. Tanto alguns casos ligados à patologia linguística quanto algumas realizações experimentais ou de vanguarda decorrem dessa formulação, quando a palavra se torna obscura e perde seu vigor significativo, pulverizando-se pelo excesso de  estranhamento.

Como se pode ver, os dois extremos convergem para uma anulação do poder da linguagem, quer pela cristalização, quer pela pulverização. Nesses extremos, a linguagem desaparece, ou perde seu poder, torna-se simulacro de si mesma. E somente fatores complementares podem atribuir-lhe o estatuto de linguagem. Polêmicas à parte, há que se salientar um fato da maior importância nessa convergência dos extremos em direção à perda do poder da palavra. Exatamente aí nesse ponto é que se situa a disponibilidade da linguagem para sua refacção contínua, preservando a sua vitalidade.

2

É a partir desse quadro que podemos pensar a intervenção dos fatores aparentemente externos, mas estruturalmente essenciais, que determinam os vários usos, as várias funções e a disposição efetiva do poder da linguagem. Esses fatores têm a ver com o que se denomina “condições da produção discursiva”, que, como uma estruturação coesa, abrangem tanto processos de generalização como de individuação.[6] No caso particular desta palestra, interessa de perto refletir inicialmente sobre uma das polaridades acima apontadas: o poder de coerção e o poder de libertação, polaridades que hoje, mais do que nunca, no mundo contemporâneo e no Brasil de nossos dias, justificam-se e evidencia-se dramaticamente.

Comecemos pelo poder de coerção. Em qualquer agrupamento cuja vitalidade se pretenda perpetuar, esse poder tende a acentuar-se através da mobilização de fatores cuja natureza difere conforme circunstâncias, mas cujo papel já a antiga retórica havia definido com muita clareza. Trata-se dos dispositivos institucionais que decorrem das relações já dadas entre os interlocutores (sujeito e ouvinte), neste caso assumindo uma natureza coletiva e não individual.[7] Pois bem, no mundo contemporâneo, sobretudo naquilo que poderíamos considerar sociedades abertas, ou, em termos mais técnicos, democráticas, essa relação institucional seria necessariamente heterogênea e múltipla, já que pressuporia, enquanto tal, a multilateralidade das relações e a consequente diversidade de significações. Diríamos que nesse caso a tendência discursiva típica seria a polêmica, por conta do próprio modo de vigência desse tipo de sociedade. Isso permitiria separar sociedades democráticas e sociedades autoritárias. No entanto, não é dessa forma que, pelo menos, contemporaneamente, a coisa se estabelece. Que me seja permitido considerar dois casos que conheço relativamente bem: Estados Unidos e Brasil.

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Um dos motivos de maior espanto para o estrangeiro que chegue aos Estados Unidos é a homogeneidade da matéria informativa. À falta de informação sobre o que se passa fora do país, acrescente-se a insistência de um mesmo recorte de realidade determinando a compreensão dos fatos nacionais. Tal fato se dá na mídia em geral, radiofônica, televisiva ou escrita. E sobre isso não há necessidade de nos estendermos. O que conta aqui é o espantoso acordo, ou consenso, que existe entre os mais diferentes órgãos de divulgação, de modo a fornecer informações consideradas úteis a leitores, teoricamente divididos entre democratas e republicanos, mas que circulam dentro de um mesmo e estreito universo de alternativas.[8] Se não, vejamos o que se passa em relação à atual guerra no Iraque. Embora vá paulatinamente aumentando o número dos que são contrários à ocupação que já dura mais de dois anos, o quadro dentro do qual se tenta situar os leitores não ultrapassa o plano da conveniência. É conveniente para os americanos a atual guerra? Ou, em outros termos, quanto ganhamos ou perdemos com essa guerra? Raramente se coloca uma questão de ordem ética, e os órgãos que se posicionam criticamente em relação a isso são representativamente nulos. As opiniões dissidentes situam-se majoritariamente no plano de manifestações individualizadas, como, aliás, é o caso dos que se colocaram criticamente a contrapelo das demagógicas manifestações contra os atentados de 11 de setembro. Susan Sontag, Noam Chomsky e Edward Said são nomes avulsos cuja influência se faz no espaço exíguo de umas poucas universidades (raríssimos e fechadíssimos canais de televisão paga) e que só têm repercussão maior no exterior. Essa situação confirma a sombria previsão de Russell Jakoby n’Os últimos intelectuais enunciada há quase trinta anos. O autor referia-se ao paulatino desaparecimento do intelectual no cenário norte-americano, fenômeno para ele decorrente sobretudo do confinamento da inteligência dentro dos limites das exigências de uma universidade cada vez mais voltada aos padrões da eficácia. Eu acrescentaria que hoje, além desse fator, digamos, ligado à sobrevivência da produção dos saberes, um outro, complementar e decisivo, se coloca no sentido de dissolver a possibilidade de um conhecimento interferente e crítico, como é o que se atribuiria àquele que emana da intelectualidade.[9] É o que vamos ver a seguir.

É possível datar de finais dos anos 1960 o clima de grande diversificação de ideias a que aquele país promissoramente assistiu, através de movimentos de afirmação das diferenças, tais como Gay Power, Black Power, Flower Power, indubitavelmente o de maior força o Black Power. E não há dúvida de que naquele momento a diversidade política e cultural tinha raízes na crise de expectativas e nas incertezas da Guerra do Vietnã. No entanto, aquilo que era promessa de uma transformação mais substancial do modo de pensar americano deu lugar a um processo de apaziguamento ou amenização das tensões até chegar ao momento atual. O que ocorreu até aqui tem a ver com a revitalização da ordem capitalista decorrente da evolução interna que definiu o chamado neoliberalismo, na era da pós-modernidade. Poderíamos interpretar esse processo como decorrente de uma certa flexibilização na grade de possibilidades dessa nova sociedade. Eu começaria por considerar um dado muito evidente no plano simbólico e que tive oportunidade de observar nas últimas vezes em que estive na Califórnia, estado caracterizado por uma diversidade racial impressionante. Em todos os noticiários locais, sem exceção, âncoras e comentaristas dividem-se parcimoniosamente em quatro categorias: negros, asiáticos, hispânicos e, obviamente, brancos supostamente americanos. Simbolicamente, isso significa que a palavra que emana do poder da mídia está também parcimoniosamente dividida nas principais etnias do estado, ou que a igualdade das oportunidades se faz presente inclusive no domínio da palavra. Analisando ainda aquilo que é mostrado com forte insistência, vemos em primeiro lugar que o inglês falado por todos os figurantes é o inglês-padrão dos brancos e que o modelo estético de todos mimetiza o dos brancos. Assim, a impressão de uma autêntica democracia racial, com o reforço das diferenças, esbarra num processo assimilador extremamente poderoso, responsável por uma espécie de branqueamento das diferentes etnias. Não será difícil perceber que nesse processo de homogeneização está uma das raízes da compacta similaridade dos discursos da mídia, da sua aversão à diversidade de informação, e, sobretudo, de sua aversão à intervenção de qualquer padrão que remeta a uma ética e a uma crítica mais contundente. Em outras palavras: há um processo insidioso que se formula como uma promessa de integração e ao qual se rendem as diferenças. A identidade americana, por qualquer que seja a razão, constitui um padrão que se construiu como valor fundamental (o da cidadania americana), a partir do qual o mundo moral e simbólico se organiza. O que conta em termos gerais são os padrões da conveniência, da eficácia, formulados com base em um superior interesse do cidadão norte-americano. Assim, se uma dinâmica social e econômica introduz na cena política uma impressionante gama de diferenças, o possível poder desarticulador que emanaria dessas diferenças se desmonta por conta de um poder maior, que é o da homogeneização necessária à afirmação da noção de cidadania. Trata-se do caso típico em que um poder decisivo e unificador rarefaz e pulveriza as possibilidades transformadoras decorrentes das condições sociais. Em outros termos, a força estabilizadora impõe-se através de uma maciça conjugação de fatores que se determinam a partir daquele único e poderoso elemento simbólico, a cidadania americana, que para a grande massa de excluídos, os imigrantes, representa mais do que a possibilidade simbólica dessa cidadania, a possibilidade concreta da sobrevivência legal. Esse processo deixa muito longe as fórmulas de autoafirmação das chamadas minorias. Tudo isso, que aparentemente se situaria num plano superficial, traduz um vigoroso processo através do qual se vende o passaporte para a cidadania. Nesse sentido, as discussões multiculturalistas esbarram num paradoxo. A afirmação da cidadania cultural das chamadas minorias cumpre duas funções: de um lado, limpa a consciência dos setores mais esclarecidos e, de outro, confere às minorias a ilusão de pertença. Assim, o processo de branqueamento que em princípio poderia ser atenuado pela integração das diferenças absorve por um processo complementar, que é o da condescendência, qualquer impulso de uma inclusão transformadora. Resulta dessa exposição que a grande estabilidade interna nos Estados Unidos, que se revela, por exemplo, no equilibrado jogo de alternância de poder e sobretudo na proximidade discursiva entre os dois grandes partidos políticos locais, deve-se a um processo de depuração de diferenças e da insinuação de um padrão discursivo que emana de um só e determinante valor. Assim, quando fala mais alto uma ameaça, uma causa nacional, esse padrão se faz valer poderosamente, as diferenças se resolvem através do encantamento das fórmulas de louvação das virtudes e dos padrões do modo de vida americano. Penso que fica patente que a linguagem cumpre aí, de modo dominante, sua função agregadora, subsidiando a formação de um consenso que à força de sua persistência acaba por se constituir como um grande lugar-comum, que impede pelo seu poder coesivo a emergência do discurso crítico. Nesse sentido, falar em desaparecimento dos intelectuais ou de seu silêncio parece ser a mesma coisa, já que a sua identidade decorre de que seu papel prioritário seja justamente anticonsensual e antiunanimista.

No entanto, tudo isso pode se desmontar e mostrar de repente o que se oculta por detrás de toda essa aparente tranquilidade. No recente episódio do furacão Katrina, que arrasou a cidade de Nova Orleans, as impressionantes fotos da cidade destruída e da multidão faminta, na sua maioria esmagadora de negros, mostram o poder do não assimilável e do indisfarçável. Saques e violência eclodiram no lastro da marginalidade que, de repente, evidencia seu efeito devastador. Por vezes, sinais de uma potencial rebeldia colocam em alerta a segurança não de um sistema político, mas de um padrão simbólico que se pretendeu perfeito e definitivo. E aqui chegamos ao ponto crucial dessas considerações: a perfectibilidade do padrão simbólico. No nosso caso, a perfectibilidade da palavra que emana de um “saber” social. O que caracterizaria essa perfectibilidade? Sem dúvida, é o ideal acabado da vida média americana: o conforto material, a inserção na paisagem pacífica dos jardins domésticos, cães, lagos e parques. E, sobretudo, a certeza da inviolabilidade desse padrão. Nesse sentido, episódios como a explosão do edifício do governo federal em Oklahoma, em 1995, e a destruição das torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, que colocaram em xeque essa certeza, só fizeram revigorar esse padrão, já que, como se lembra, se contrapunham à legitimidade das forças que o sustentavam. A resposta em plano nacional agregou diferentes forças em torno de algo que providencialmente foi muito além dos esforços humanitários. Uma onda de nacionalismo feroz congregou-se para proteger, dentro de uma pátria abstrata, mais do que os cidadãos, um ideal de vida, constituído num consenso opressor. E as vozes dissonantes, pouquíssimas naquele momento, foram devidamente estigmatizadas como antiamericanas, como o são quaisquer atividades de pensamento crítico que porventura ousem se manifestar.

Nesse sentido, o atual episódio do furacão Katrina desarma completamente esse discurso, já que denuncia de uma só vez o caráter falacioso desse padrão: oculta sob a tranquilidade de uma vida sem sustos, sem surpresas, e sobretudo sem contradições, desvenda-se a outra América. Um fato que chamou a atenção na ocasião foi a constante afirmação da imprensa de que estariam sendo vistas cenas de um país de Terceiro Mundo. Isso nos remete novamente à questão do padrão que se desmonta. Dizer que as cenas de Nova Orleans remetem ao Terceiro Mundo tem na verdade uma dupla implicação: ou o padrão norte-americano não é tão inviolável assim, ou simplesmente esse mundo que a América não suporta ver não pertence ao mundo da América. A espantosa demora na tomada de providências urgentes indica que o Estado norte-americano só está preparado para as situações que concernem a seus cidadãos consagrados como tais. Não acompanhei de perto as reações da imprensa sobre a questão, mas, pelo que pude ler nas repercussões em jornais brasileiros, a indignação nesse caso tem sido equivalente ao espanto: como pode o Estado mais poderoso do mundo (a invasão do Iraque constantemente invocada) ser incapaz de socorrer seus cidadãos? Mas, a outra pergunta, menos declarável, é se a grande massa atingida tem esse estatuto de cidadãos.

Fica claro que a palavra unificadora, a ordem americana, o civismo das bandeiras constantemente plantadas pelas casas, não consegue absorver o que se fermenta à revelia dela. Os noticiários falaram de violência e saques, numa espantosa coincidência com o que ocorre em outras partes do mundo. O Estado de S. Paulo de 3 de setembro aponta para as possíveis razões dos saques, que para nós não trazem novidade nenhuma: fome, marginalidade, inexistência de princípios reguladores. E a palavra de Bush, ordenando tolerância zero (atirar para matar) em relação aos saqueadores, demonstrava com clareza que a metáfora dos campos de extermínio para tal situação não é exatamente uma metáfora. Igualam-se no tratamento inimigos de guerra e cidadãos famintos. Lembro da declaração de uma cidadã de Oklahoma por ocasião do atentado ao edifício federal: Oklahoma era o melhor lugar do mundo para morar, mas agora mudou tudo. Uma moradora de Nova Orleans afirma igualmente: nasci aqui e sempre tive orgulho disso, agora tudo mudou. Há, apesar das diferenças, uma analogia irônica nesses dois depoimentos: uma nuvem ameaçadora passou a toldar para sempre a paisagem pacífica que compõe o ideal americano. E essa nuvem não é a do terrorismo, e não é também a das catástrofes da natureza: é o da falibilidade do padrão, denunciada pelas duas situações. Há algo da ordem da desagregação que turva a tranquilidade do modelo americano. Enfim, o discurso consensual sustentado pelo ideal de vida americano, aquele que deriva da força agregadora da palavra, parece correr algum perigo. Em outros termos, à revelia da perfeição da palavra pacificamente agregadora que emana do ideal médio americano, esboça-se a palavra nova, convulsiva, nascida da incerteza e do espanto. O que pode essa palavra? Retornam os intelectuais através dela? Como pode a palavra fazer emergir a pluralidade de que dela emana? Tudo isso são questões que sustentam as esperanças daqueles que desconfiam dos consensos e das unanimidades.

4

Passemos agora à situação brasileira, examinando o que também no plano das representações ocorre por aqui. Antes disso, convém lembrar que, no período sombrio da ditadura militar, tivemos também um padrão definidor e único que se pautava sobre uma noção pesadamente nacionalista, patrioteira, cuja lembrança nos remete à atual situação americana e à unanimidade de seu modelo e seu discurso. Tanto assim que nunca se forçou como naquela época entre nós a configuração simbólica de uma nação feliz. Esse discurso artificialmente consensual passou, e o país conheceu momentos de intensa esperança numa luta que chegou a reunir vozes plurais, movimentos de natureza distinta e também a definição de um regime político que se pretende pluralista. O período da abertura e a coincidência com a emergência de inúmeros movimentos identitários, o vigor das propostas políticas renovadas, numa saudável tentativa de superar os modelos de luta dissolvidos pelo regime militar, trouxeram de fato ares novos de que a luta pelas diretas foi o momento culminante. Mas era inevitável que, superado o período da luta comum contra a ditadura, o aparecimento de cisões e conflitos internos levasse ao confronto entre os que propunham a grande novidade. E a formação de partidos novos decorria dessas cisões, a meu ver saudáveis. O que ocorreu, paralelamente, no entanto, foi um espantoso redirecionamento político com o reforço inequívoco e majoritário das forças de direita e sua polarização com partidos de esquerda, dentre eles o próprio PT. Sem entrar nos detalhes políticos desse processo, constatamos já anteriormente às últimas eleições presidenciais uma certa indistinção de áreas de representação, com o partido agora governista tendendo a mostrar-se mais como uma nova alternativa conservadora do que como uma força identificada com propósitos transformadores definidos. As vozes dissonantes foram se isolando nos pequenos partidos e a grande militância plural e atuante acabou confinada numa posição de inutilidade. Diríamos, de silêncio. Em termos da cúpula nacional, um esboço de bipartidarismo, mas em termos da base, uma sensação de desapropriação, ou, melhor dizendo, a incômoda sensação de ter sido desalojada de seu próprio lugar e de sentir esquecida sua palavra. Contra a pluralidade das bases, firmou-se essa espécie de aproximação consensual entre os maiores partidos, inclusive o PT, em torno de um discurso que tem dado prioridade à prudente preservação do mercado. Este é o primeiro consenso, a primeira palavra acabada contra a qual nenhum setor dominante se coloca. Diante da sua solidez monolítica, toda palavra crítica passou a ser considerada inoportuna. Até os primeiros meses do ano passado, tudo transpirava calma. Afinal, nenhuma ameaça de convulsão social, nenhuma ameaça de crise institucional, com a política econômica em plena afirmação de sucesso. Foi com surpresa que o país foi tomado de assalto pela situação que há mais de meio ano parece ocupar a cabeça dos chamados dirigentes da nação, situação ou oposição. E tudo isso é perfeitamente formulável nos termos em que situamos a questão da posse da palavra, delineada nos primeiros momentos desta exposição: não se vive uma crise da palavra ou da linguagem pela tensão entre modos discursivos distintos. Nada disso parece ocorrer neste momento: e um lado, o discurso governista, antes ancorado no sucesso diante de um mercado poderoso, hoje se reduz à própria inviabilidade, ou esvaziamento, ou desapropriação. De outro, o discurso da oposição, que sabiamente se apropriou do discurso até ontem atribuído sobretudo ao PT, assumiu as formulações acusatórias e moralizantes que antes caracterizavam as vozes desse partido.[10] Lembremos, no entanto, que o mote da corrupção e da ética, sobre o qual o Partido dos Trabalhadores construiu uma imagem aparentemente sólida, tornou-se com o tempo, dentro do próprio PT, uma espécie de palavra de ordem, lugar-comum, chavão. Aqui, convém explicar a diferença entre essa palavra consolidada e repetida e aquela palavra insipiente, mais fundada na indignação e no sentimento de diferenciação, que caracterizou as lutas dos primeiros tempos anunciados na abertura política. Em outro lugar,[11] cheguei a fazer o elogio da “palavra imperfeita”, aquela que se manifesta no próprio momento em que é gerada e que, portanto, tem como estofo uma experiência em acontecimento. A essa, eu contrapunha a palavra formulada, assentada sobre um processo de racionalização e de normatização, que tem a ver com várias exigências da vida pública: o padrão linguístico dominante, a adequação conceitual, a adequação com a função pública etc. Pois bem, eu diria que a palavra original do PT, nascida ainda num momento de indefinição de rumos políticos, e sobretudo tendo em vista o próprio domínio geográfico e social de seu nascimento (meio operário da periferia de São Paulo), espantava pela novidade, pela consistência empírica de seus argumentos.

O improviso, a expressão mais direta das emoções, e, sobretudo, aos olhos de uma intelectualidade, uma aparente incongruência conceitual, muito distante dos discursos partidários de esquerda que já haviam chegado ao limite de sua própria formulação — tudo isso marcava uma novidade e tinha o vigor dessa novidade. Pois bem. Se o tempo tem como um de seus frutos a serenidade ou a maturidade, ele também pode trazer o envelhecimento. Em sua expansão e crescimento, o PT organizou-se, adequou-se às novas conquistas e aos novos papéis, tornando-se uma forte alternativa de poder, no entanto já bem distante de propostas de rupturas drásticas que estariam embutidas nos discursos iniciais. A palavra ajustou-se e aproximou-se de formulações próximas dos chavões tradicionais e vigentes: a plataforma denominada “Carta ao povo brasileiro” era uma patente comprovação dos resultados dessa trajetória. No entanto, ainda a separar esse discurso do das forças conservadoras, havia um forte elemento diferenciador: a crítica moral. Ora, como afirmam os manuais tradicionais de oratória e retórica, um dos fatores fundamentais da persuasão é de ordem extratécnica: trata-se da credibilidade da imagem do orador diante do seu público. Embora, no plano de seu projeto econômico, o PT se aproximasse das forças conservadoras, no plano de sua compleição moral ele ainda mantinha o vigor de sua novidade, o que lhe conferia uma sólida imagem de confiança entre a classe média e os setores populares. A atual situação decorre exatamente de sua fragilização no plano dessa imagem. Minhas considerações levam em conta o resultado das relações estreitas entre os agentes políticos e a grande imprensa, já que esta não apenas é a expressão e o registro do discurso dos primeiros, mas também um agenciador cabal das lutas políticas.

Nesse sentido, algumas novidades devem ser incluídas na sábia aparelhagem teórica que herdamos dos antigos, como Aristóteles e Quintiliano. Devem elas contemplar a complexificação do mundo contemporâneo em matéria de constituição, expansão e impregnação dos discursos políticos, tendo a imprensa um substancial papel nesse caso. Isso porque, mais do que nunca, a palavra e sua posse, articulada pela aparelhagem dos órgãos de divulgação, representa um poder incisivo não tanto pela consistência do que divulga, mas pelo modo como articula a própria divulgação. De resto, seu poderio não está alheio às preocupações financeiras. A imprensa não tem olhos externos nem fala do ponto de vista de uma propalada objetividade. Cabe aos agentes políticos encarar menos ingenuamente essa questão, ao invés de considerar se vítimas ou contemplados gratuitamente por sua suposta magnanimidade. Dito isso, retornemos àquilo a que chamei fragilização da imagem moral do governo Lula e do PT. Até onde nos é permitido entender o presente momento, fica muito difícil pensar em uma situação provocada pela descoberta pontual de um caso de corrupção que envolveria em um primeiro momento a Casa Civil. O episódio Waldomiro Diniz em 2004, precocemente deflagrado naquela ocasião, já indicava que, passado o espanto da lua-de-mel entre o governo e as camadas mais representativas da sociedade, aí incluindo até alguns veículos de comunicação, a oposição iria endurecer seu papel atacando dois núcleos do governo: sua Casa Civil, comandada por José Dirceu, e a própria imagem pública construída sobre a tradição de sua postura ética.[12] Ora, o que ocorreu com a instalação das várias CPIs foi um golpe perfeito: de uma só vez desmontou-se o edifício da ética petista, com o auxílio óbvio de setores do partido, e também se colocou em xeque uma tendência partidária dominante, a meu ver, a única com domínio dos instrumentos políticos vigentes no quadro da atual política brasileira: a agressividade, a truculência e a própria tolerância moral.

Falo do Campo Majoritário. Verdade seja dita: se não se pode negar a eficiência dessa tendência, responsável inclusive pelos rumos que tomou o governo Lula, muito mais eficiente tem sido a oposição nesse trabalho minucioso de desconstrução de uma história e de uma imagem cuja importância histórica corre o risco de se esvaziar. Não estou de modo algum afirmando a inocência sobretudo do Campo Majoritário e da política pragmática por ele definida. Quero simplesmente dizer que esse pragmatismo equivocado da ala dominante do PT permitiu aos setores mais atrasados da política brasileira a apropriação de seu discurso e de sua história, exatamente porque na base de sua estratégia de poder teria jogado com os mesmos e tradicionais expedientes: compra de votos, tráfico de influência, caixa dois de campanha política. O processo que ocorreu é notável e muito elucidativo. Retomo a exigência retórica da compatibilidade entre a imagem do orador e o conteúdo da persuasão. Durante anos o PT sustentou a bandeira da inovação política propondo como objetivo de seus propósitos uma melhor distribuição de renda, a redução consequente das desigualdades através de uma ordem política transparente, esta última condição para a consecução de seus próprios objetivos. Os objetivos sociais, que lhe valeram sempre a pecha de ingênuo, ou os objetivos morais, que lhe valeram a denominação de arcaico, nunca chegaram a se impor com unanimidade, mas tiveram sua importância e chegaram a constituir em seu conjunto uma contribuição original ao país. E com tropeços e atropelos o PT chegou ao governo do país. A manutenção daquela imagem de integridade seria a condição para a consolidação de seu vigor e de seu programa. Mas a história cobra desse partido pelas concessões que fez um preço tão alto quanto foi a contundência e a relevância de seu papel na política do país. E esse preço não tem nada de corretivo ou moralizante. Ao contrário, beira de uma só vez o ridículo e a farsa. Veja-se que o PT é acuado diariamente por denúncias pontuais e diariamente figuras tradicionalmente ligadas a políticas nada dignas pontificam rancores éticos. A situação é inversa à que vimos assistindo por anos a fio. Personagens que sempre figuraram com muita tranquilidade no quadro das políticas mais paternalistas e comprometidas com interesses pouco confessáveis posam hoje de grandes moralistas, ciosos de uma função que nunca exerceram. Se isso chega a ser patético, mais patético vem a ser o fato de que essa reversão puramente retórica não chegue nem mesmo a ser posta em dúvida pela grande imprensa. Muito ao contrário. E nisso chegamos a um ponto nada cômico, nada risível. Se a chamada oposição contou e conta com uma estratégia nada amadorística no planejamento de sua luta, a sua articulação com a imprensa está no miolo dessa estratégia, no sentido de fabricar outro consenso, aquilo que alia à imagem desse governo e seu partido a mancha da corrupção. É esse o consenso que está sendo criado, confundindo propositadamente um projeto político com uma política equivocada.[13] Falei anteriormente do discurso consensual que caracteriza o dia-a-dia político dos americanos e falei do valor fundamental que sedimenta esse discurso (o cidadão americano, o ideal médio americano, a coisa pública que se deve defender em seu nome). Pois bem, se temos atualmente um discurso uníssono que conjuga partidos majoritários de oposição e a mídia local, qual será o teor desse discurso, e em nome de que valor se propõe essa outra espécie de consenso? Esse discurso, como se depreende dessas considerações, tem um teor moralizante e se fundamenta no lema “ética na política” proclamado por todos os políticos e por todos os editoriais e editorialistas, sem exceção. Desde o impeachment de Collor, passando pela CPI do Orçamento, pela compra de votos pela reeleição, e pelo escândalo do painel das votações, esse era um dos lemas caros da grande esquerda. Hoje, os que se aliavam em torno dos procedimentos denunciados àquela hora assumem para si aquele mesmo lema. À sombra dessa cruzada moralizadora juntam-se em um consenso devastador desde PFL até o recém-constituído PSOL.

No caso dos Estados Unidos, vimos que o valor que fundamenta o consenso é o chamado bem do cidadão norte-americano. No nosso caso, passa muito longe a conclamação de um valor de igual quilate. A “ética na política”, tal como vem aparecendo com insistência nos discursos parlamentares e da mídia, tem uma motivação que não é um valor, mas sim um combate, já que a oposição não pode falar a partir de um valor (a retidão moral) a que nunca atribuiu importância. O que está em questão por debaixo de todos os discursos é um julgamento que pretende a desqualificação ou deposição de um governo, e jamais o restabelecimento de uma ordem política baseada em mecanismos transparentes de constituição e atuação. A cobrança da ética a que assistimos é uma questão que tem a ver com o outro e não consigo mesmo. Passa muito longe dos atuais porta-vozes dessa cruzada o interesse pela coisa pública em que todos somos concernidos. Falta a seus discursos a legitimidade que lhe seria conferida com a perfeita harmonia entre a sua própria imagem e o sentido de sua palavra. E aí vemos por que esta chamada crise patina na lama que a originou: se os acusados perderam a bandeira da ética, os acusadores não têm condições efetivas de assumi-la. Isso talvez explique o prolongado período de vigência desse processo, com as ameaças de impeachment, de um lado, e de acordo, de outro. Assim, fica impossível acreditar que desse processo sairá uma solução salvadora, e muito menos uma reforma política decente. Fica muito claro assim por que afirmei acima que a atual situação, desde a própria ascensão do PT à condição de governo do país, não se caracteriza por uma verdadeira crise, com todas as implicações dessa afirmação. Em primeiro lugar, digamos, há um consenso a partir do critério da governabilidade e do respeito ao mercado. Em segundo lugar, porque, aproveitando a ocasião, a oposição não formulou um discurso novo, simplesmente tomou de assalto o discurso pronto do adversário. Os discursos são exatamente os mesmos, embora se alterem seus agentes, da mesma forma com que os jogos são os mesmos. Esse fenômeno que harmoniza atualmente oposição e boa parte da imprensa forma, como o indiquei antes, um consenso poderoso e perigoso, já que sob a bandeira de um falso moralismo; o que está em questão é o projeto de extinção sumária do discurso crítico com que as esquerdas se introduziram no quadro de possibilidades da política brasileira.[14] Não se trata apenas da desmontagem de um partido, mas de um projeto geral que congrega os setores mais conservadores do país. As palavras de um dos próceres do conservadorismo estão aí para que ninguém se equivoque sobre esse processo que se abate sobre o país sob a aparência de uma briga pela hegemonia política, mas que, na verdade, recai como um alerta sobre o ícone mais representativo da história da esquerda no país. A novidade, desvendada pelas denúncias, mais afeta história dessa esquerda do que a deste governo. Aqui, sim, pode-se falar legitimamente em crise. Quando a militância e muitos de seus fundadores e simpatizantes foram diretamente surpreendidos pela contundência das acusações, foi impossível fugir da sensação de pasmo e de depressão.[15] Mas, a  meu ver, é justamente nesse caldo de depressão, espanto e revolta que vemos a possibilidade de a situação transformar-se, podendo nascer daí algo que justifique a grandeza desse espanto, primeira reação ao processo de letargia e silêncio em que tem vivido a intelectualidade e a grande militância desde os tempos do governo de FHC. Lembro aqui as palavras de um personagem do romance americano Ragtime. Ao referir-se à violência de um conflito racial nos anos 1920, ele dizia que naquele momento sentira aquela espécie de tremor subterrâneo que prenuncia as grandes transformações. Em alguns momentos minha geração chegou a sentir avizinhar-se aquele tipo de tremor. Maio de 68 foi um deles. A abertura política na luta contra a ditadura foi outro. Mas o que nos foi dado viver nos últimos tempos foi a plenitude do contrário: o realismo impedindo o sonho, consolidando a palavra prudente, a palavra agregadora, a frase feita, e este duplo consenso que nos perturba: o da servidão às exigências de um mercado (o requisito da eficácia) e aquele outro que alia as forças conservadoras de nossa política aos interesses de uma imprensa com vocação totalitária. Quando a oposição, a direita, montou toda essa estratégia contra o governo e também contra uma tradição que durante anos o PT veio construindo, ela mal podia perceber que estaria contribuindo para uma percepção mais clara do que está por detrás desse atual embate. De uma só vez, o quadro moral da cena política mostra-se compactamente consolidado, com as diferenças desaparecendo e, com isso, desaparecendo também a possibilidade de surgimento no interior desse quadro da palavra inovadora, aquela que chegue para romper lugares-comuns, e consensos introduzir no contexto, o vigor que nos libere da camisa-de-força a que se reduz o duplo consenso de que falei acima. É para isso que saudamos essa palavra, com a expressão que dá título a esta palestra. Devo insistir que ela vem dos lugares destituídos de poder, das margens da grande cena. Só ela já vive uma lógica de sobrevivência digna em tempos de exclusão: o PT, o governo, as esquerdas terão de aprender com ela outra ordem ética que emerge da informulação. Daquela experiência, para nós, quase insondável que vem da margem.

Notas

[1] Russell Jakoby, Os últimos intelectuais, São Paulo, Trajetória Editorial/Edusp, 1990 (ed. em inglês, 1987).

[2] Caros Amigos, ano IX, no 104, São Paulo, Ed. Casa Amarela, novembro de 2005.

[3] Ver Ferdinand Saussure, Cours de linguistique générale, Paris, Payot. 1978. Ver também o comentário de Claudine Haroche, Paul Henry e Michel Pêcheux ao modelo saussuriano “La Sémantique. La coupure saussureenne — langue, langage, discours”, em Langages, no 24, Paris, Larousse, 1971.

[4] A grande referência para a minha compreensão da obra de Heidegger é o livro de Benedito Nunes Passagem para o poético, São Paulo, Ática, 1986. Ver particularmente o excurso ao capítulo XI e o capítulo XV.

[5] A coletânea de textos históricos sobre a língua portuguesa, publicada por Edith Pimentel, O português do Brasil. Textos críticos e teóricos, vols. 1 e 2, São Paulo, Edusp, 1981, documenta de modo claro as questões relativas à língua portuguesa nesse período.

[6] Há atualmente um grande número de excelentes referências sobre esse domínio, denominado “Análise do discurso”. No que interessa a esta análise, os pontos fundamentais a que me atenho derivam da distinção entre enunciado e enunciação, este último conceito sendo fundante no processo de construção, explicitamento ou ocultamento do papel dos sujeitos na produção e veiculação discursiva. O trabalho de Dominique Maingueneau Approche à la linguistique de l’énonciation, Paris, Hachette, 1979, é condição para a compreensão crítica de qualquer linha teórica nesse campo.

[7] A recente retomada da retórica, sobretudo pelos pesquisadores do Setecentos, mostra o vigor do modelo retórico mesmo depois do seu declínio a partir do Romantismo. Além dessa tendência, relembro aqui o vasto trabalho de Chaim Perelman e o grupo de Bruxelas, ligados à Nouvelle Rhétorique. Ver em particular o trabalho seminal desse autor e de Lucie Olbrechts-Tyteca, Traité de L’argumentation. La nouvelle rhétorique, 2a ed., Bruxelas, PUB, 1970.

[8] Essas observações devem ser atenuadas sobretudo com a discussão gerada pelo poder devastador do furacão Katrina. Manifestações críticas diferentes têm sido finalmente levadas a um público maior por causa do que acabou sendo revelado por essa catástrofe.

[9] Eu acrescentaria às reflexões de Russell Jakoby o conjunto de conferências proferidas em Londres por Edward Said, publicadas no Brasil sob o título Representações do intelectual — As conferências Reith de 1993, São Paulo, 2005.

[10] A Folha de S.Paulo, de 20 de novembro de 2006, publicou uma entrevista com o sociólogo Cândido Mendes, que fala em uma espécie de moralismo lacerdista da classe média que agora deixa de apoiar o governo Lula. Parodiando, mas nem tanto, pode-se dizer que o discurso da oposição evoca claramente um moralismo udenista que acabou fascinando setores do próprio PT e da esquerda do país.

[11] Remeto aqui a um antigo ensaio, “A palavra imperfeita”, em Remate de Males,revista do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, Campinas, 1987.

[12] Acrescento aqui também o Ministério da Fazenda, na pessoa de Antônio Pallocci, considerado o responsável pelo êxito da política econômica do governo.

[13] A reportagem feita por Marina Amaral para Caros Amigos no número dedicado à corrupção, São Paulo, Ed. Casa Amarela, setembro de 2005, comprova com todas as letras a profissionalização dos procedimentos da atual oposição. Estranho é que, diante da gravidade da matéria, nenhum órgão de imprensa e nenhum político tenha se manifestado a respeito do caso que, este sim, justificaria uma CPI sobre os interesses financeiros em jogo nessa relação xifópaga entre mídia e atual oposição.

[14] Merece atenção esse procedimento de transformação do governo e seu partido em um governo e um partido iguais aos outros. Se essa equiparação já era possível de vislumbrar nas várias tentativas de acordo que vêm caracterizando o governo e o PT desde sua ascensão, ela fica agora comprovada por denúncias falsas ou não, transformando um quadro de lutas promissoras em um simples conflito de interesses.

[15] Eu acrescentaria hoje outra crise, talvez mais grave ainda: a crise institucional. O espetáculo grotesco, misto de farsa e cinismo, em que se tornaram o Congresso e as CPIs, a quebra de quaisquer protocolos de civilidade e respeito a princípios minimamente reguladores visando ao decoro e aos limites da objetividade e respeito institucional, tudo isso mostra finalmente a grande farsa em que constitui o regime político-judiciário do país. Um grupo de juristas independentes vem tentando trabalhar essa questão com o objetivo de restaurar um mínimo de dignidade para os poderes públicos do país. Recomendo a leitura do volume CPI, Os novos comitês de salvação pública, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2002, bem como de todo o material que esse grupo vem produzindo. Lamentavelmente, aquilo que os juristas apontavam como verdadeiras apropriações indevidas da legislação jurídica, por parte dos parlamentares, o uso político de um instrumento de equilíbrio sistemático das práticas dos poderes públicos, já ocorria quando o PT era oposição, mas num estágio, digamos, amadorístico. Tudo o que os juristas apontaram na ocasião mostra-se escancarado para o Brasil todo. Essa crise é, de fato, a grande crise brasileira. Agradeço a Betch Cleinman (Rio de Janeiro), que se dedica atualmente a esse ramo importante do jornalismo (o jornalismo jurídico), pela valiosa indicação.

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