2011

Ave, Maria

por Michel Déguy

Resumo

“O cristão” foi um tipo de humanidade ao mesmo tempo subitamente inventado e lentamente formado ao longo de dez séculos. Não existe mais. Foi eliminado, e de maneira definitiva, quando a Alemanha cristã decidiu que uma parte da humanidade não deveria mais existir.

O que isso tem a ver com a razão?

Estaria na hora de prestar atenção na razão.

Todos têm a palavra razão na boca. O que é a razão? Se for a razão grega, isto é, o nascimento do logos, de um lado no “diálogo” (Sócrates), de outro na analogia e na reflexão sobre os alogoi: das matemáticas (Platão), ela é anterior ao cristianismo, com o qual originalmente nada tem a ver.

O que é razoável hoje vem da ciência. A razão e o ateísmo têm uma relação crescente e cada vez melhor. A Razão deve inventar seu ateísmo moderno. Ao apropriar-se da transcendência, — o movimento de elevação do humano (Baudelaire, Freud), a ultrapassagem (trans) das ferozes limitações e da confusão das “razões” clamadas por cada “sujeito” particular (indivíduo ou sociedade) para justificar seu interesse “vital” —, ela deve atravessar o limite, atualmente intransponível, da identidade.

A Razão e o Estado nada têm a ver entre si. O Estado é desrazão ou não razão. A Razão de Estado não merece seu nome — e a expressão não é mais que um álibi para encobrir crimes. A era hegeliana está encerrada. Nada permite dizer que a Razão e o Estado se juntaram, reconhecidos, esposados, indivisos, unificados.

O único ato de razão que esperamos do Estado é a laicidade.


Por que não somos mais cristãos (“Franceses, um esforço a mais!”[1]), seria longo demais para dizer… É uma história, um devir, um lento movimento de mudança, uma estranha e aventurosa retratação em versos sempre recomeçados. Digamos, com um paradoxo: trata-se de “despojar o velho homem”… que, “justamente”, é cristão. Não por um “retorno a”, com arcaísmos e antigas resistências revitalizadas, mas “sem retorno”, num movimento de invenção.

Tenho em minha mesa esta semana o Mantegna do Museu de Tours, aquele da prece no Monte das Oliveiras que se assemelha tanto à Transfiguração: os três discípulos adormecidos à distância e o Cristo na e sob a montanha, de olhos erguidos, enquanto um anjo azul que vem voando faz a ligação com o céu. Não há nada que eu ame tanto, e vou dizer por quê. Mas meu pensamento amoroso não é mais movido nem está orientado para a crença. E, se conservo minha piedade pela piedade, onde reconheço a pieta, todas as Pietàs da Itália, do piedoso Eneias à Virgem esmagada por seu filho, das lágrimas de Michelangelo às de Baudelaire (“voyant tomber les pleurs de sa paupière creuse”[2]), é sem devoção: a esta dou outro sentido, o da devotio em Dumézil e em Rimbaud. A crença retirou-se de todas essas referências e deferências; resta uma espécie de “intercessão” (talvez o que chamam “o melhor de nós mesmos”), que pede piedade por elas, por “nós”, e que pede isso… a ninguém. “Em minha alma e consciência”, como diz um personagem de Tchekhov, não creio.

“O cristão” foi um tipo de humanidade ao mesmo tempo subitamente inventado e lentamente formado ao longo de dez séculos. Não existe mais — se existiu alguma vez — a cristandade; mesmo René Girard constata que “o cristianismo fracassou”. O tipo foi eliminado, e de maneira definitiva, quando a Alemanha cristã decidiu que uma parte da humanidade não deveria mais existir. Era a Alemanha cristã, sim ou não? Sim. “Os alemães exterminaram os judeus da Europa”, sim ou não? Sim. Resultado: “Depois de Auschwitz”, não é tanto a arte (Dichtung) que se tornou impossível. É antes o cristão, que “terá vivido”. Não houve “cristãos” quando era preciso havê-los. Uma espécie de suicídio. De tanto fracassar em fazer o mundo se aproximar um pouco do “Reino” anunciado… É tarde demais!

A pintura no Ocidente pintou centenas de milhares de ícones que narram as cenas — em particular a da Ceia: estações da vida e da via-sacra recolhidas em perícopes[3] famosas.

Imaginem, de Lisboa a São Petersburgo, quando anoitece e são fechados museus, igrejas, palácios e templos, imaginem as milhares de Virgens na sombra que esperam nossos olhares amanhã; do Prado a Capo di Monte, de Monterchi a Cracóvia… Fechados.

Mas — para começar a prestar atenção no Vaticano de Bento XVI mas, digo eu, o que tudo isso tem a ver com a razão?

Um dia em Cuzco, lembro, ao entrar numa igreja dourada na encosta da cidade, vi e ouvi (ela berrava) uma andina ajoelhada junto a um jovem padre também nativo sentado no confessionário, confessando pecados que ele lhe extorquia com suas próprias imprecações, sob a efígie colorida de um São Jorge de gesso, a cavalo, massacrando com lança ou espada os antepassados comuns dos dois. O que tudo isso tem a ver com a razão?

A sra. Sarah Palin, evangelista exorcizada, que se prepara para chefiar a primeira potência mundial, crê que o Filho dessa Virgem criou o Colorado em seis dias; ela não crê em Darwin. Amanhã ela dirigiria a Terra…

Pessoas “razoáveis”, que esperam o retorno do Filho a Jerusalém (pelo mesmo Jardim das Oliveiras que evoquei no início), apoiam por todos os meios os “exércitos de Israel” que impedem o outro povo dessa terra de poder compartilhá-la. Enquanto isso, na Normandia ou na Borgonha, outras pessoas “razoáveis” edificam pagodes onde os Budas dourados de orelhas compridas preferem os moinhos de preces tibetanos aos rosários que não cessam de repetir “Ave, Maria, cheia de graça, bendito o fruto do vosso ventre…”.

Estaria na hora de prestar atenção na razão.

As teologias vêm das teogonias. Os teologemas saem dos relatos que os homens se faziam em “cidades antigas”. Relatos de gêneses, ou mitos, transportados ao longo dos séculos ou de milênios pelas crenças, são transformados em fatos e em verdades ou “dogmas” (aquilo que se deve acreditar; dokein, em grego…). Exatamente para impedir que tiremos da fábula sua “moralidade”, a saber, que fábulas transportam fatos espantosos (“milagres”) que os dogmas vão transpor mudando as crenças em fé, os teólogos e hierarcas afirmam e impõem que os pensamentos não provêm dos homens, mas do próprio “Deus” e seus profetas: “revelação(ões)”.

FIM DOS RUMORES MALEDICENTES

A sequência é: 1) histórias fabulosas, “mitos”, relatados pela Bíblia: Lot se une a suas filhas; Abraão tem esposas; Jacó, casado com as irmãs, engravida as servas […]; 2) Orígenes escreve: “Se alguém fica embaraçado acerca da união de Lot com suas filhas, das esposas de Abraão, das irmãs casadas com Jacó e das duas servas por ele engravidadas, eles dirão apenas que há mistérios que não compreendemos”[4]3) Para nós: “pensamento selvagem” que esperava seu leitor “estrutural” (Claude Lévi-Strauss). Nenhuma diferença entre os grandes (e pequenos) mitos que percorrem a terra humana há alguns milhares de anos (ver: “História das religiões”).

O entendimento do pontífice atual é “sintetizar” (em versão polêmica: “mixar”) os dois componentes, o reacionário fixista e o progressista evolucionista (Leão XIII e Pio IX contra João XXIII e João Paulo II); assim, daquilo que faz a Bíblia humana (compósita, histórica, remanejada, sem versão original editada pelo Céu), o papa tira… que ela é divina.

A Bíblia não é um simples livro, mas uma reunião de textos literários cuja redação[5] se estende por mais de um milênio, e seus diferentes livros não são facilmente identificáveis como constituindo um corpus unificado (…), a Palavra de Deus nos chega apenas através das palavras humanas; Deus nos fala somente na humanidade dos homens e através de suas palavras e de sua história. (Bento XVI, Le Monde, 14 ago. 2008)

O mesmo em relação à Música, que os Anjos, graças aos monges (Bento e Bernardo), ditaram do alto. “O Gloria é cantado uma primeira vez pelos anjos no nascimento de Jesus, e o Sanctus, segundo Isaías 6, é a aclamação dos serafins que se mantêm na proximidade imediata de Deus […]. Dessa exigência capital de falar com Deus e de cantá-Lo com as palavras que ele mesmo ofertou nasceu a grande música ocidental” (ibidem)[6].

Assim, um homem, um padre católico, um pontífice, vai a Lourdes[7], cidade francesa onde há dois séculos a mãe de Deus (e vejam bem o seguinte: uma judia teria dado à luz não um deus, velho mito, mas Deus, “criador das coisas visíveis e invisíveis”) teria ela mesma “aparecido” (o jornal Le Monde se vê constrangido em tomar com prudência a aparição) e falado, certamente em francês, talvez num patoá, a uma menina, pastora; e 18 vezes.

No seu caminho, o pontífice chama à Razão. Diante de um público seleto, ao mesmo tempo letrado e mundano, político e intelectual, ele lembra que esse é um caso de Razão; que a Razão sem a Fé (que é a crença voltada para tais acontecimentos e formada para recebê-los) não se sustenta; que há uma razão para a fé e uma fé para a razão.

Atualmente, qual a relação de tudo isso com a Razão? A bem dizer, não pode haver nenhuma. Razão, como todo vocábulo, tem um sentido atual, em exercício nos diálogos, nos costumes é nos escritos, que resulta de uma imensa história — um sentido histórico que se tornou incompatível com a acepção teológica pontifícia. Vocês pensam que uma mulher virgem deu à luz? Impossível para a mulher, vivípara. Isso não aconteceu. Isso “não acontece”, portanto não aconteceu e não acontecerá. Um “Senhor”? Senhor dos Exércitos, tradução da Bíblia.

Qual o sentido de tudo isso, eis a questão. Questão para o pensamento, e não apenas “historicamente”, como é para muitos humanos hoje. Cabe a eles nos dizer. Há 150 anos, os teólogos refinavam “a Imaculada Conceição”, enquanto Mallarmé burilava sua virgem Herodíades “entre todas as mulheres”. Mais tarde será “a Assunção”.

Certamente essa história é magnífica. Durante dez séculos a arte dos humanos “representou” a Mãe de Deus recebendo o Anjo (“Sou a serva do Senhore dando à luz no estábulo, logo cercado de reis, ovelhas, estrelas e belos serviçais. Depois, como velha mãe judia em lágrimas acompanhando o suplício do filho (ele tem 33 anos); reencontramo-la na Turquia, na casa do filho adotivo, “adormecendo” em vez de morrendo, de modo a ser levada ao céu incorrupta — onde Dante, por exemplo, tornará a vê-la em abril de 1300.

O jogador de futebol faz o sinal da cruz ao entrar em campo; a refém colombiana agradece a Nossa Senhora por ter velado por ela durante sete anos na selva; o motorista de táxi napolitano limpa o medalhão virginal que o protege dos acidentes. Luís XIII havia confiado seu reino a ela. Ônibus turísticos estacionam perto da casa turca onde Maria, Mãe de Deus, terminou seus dias cozinhando para João, antes de adormecer e subir ao céu (não há ícone mais estereotipado na Rússia). Os tanques russos invadem a Geórgia portando o mesmo ícone — ao qual os georgianos imploram a proteção.

“O que acreditava no céu/E o que não acreditava”, entoa um poema célebre de Louis Aragon. Os dois regimes de Crença de fato coexistem, perfeitamente paralelos, isócronos e estáveis. E nada vai mudar isso, até o Dilúvio final: eles não se encontram.

As observações da “Razão” nada podem contra a crença. É preciso crer para Crer. A crença se converte em Fé (a confiança com certeza etc.) para retornar às crenças conservadas (“relevadas”). A “prece” é o único traço de união entre o isolamento infinito da ínfima “subjetividade” e o “Universo infinito” que ela percebe com Pascal.

A prece não tem “eficácia” alguma. As mentalidades “razoáveis” sabem disso bem: basta constatar. De resto, como as implorações e os ex-votos são perfeitamente opostos (antes da batalha, os dois campos inimigos rezam cada qual por sua vitória.., e pela paz), elas se neutralizariam “em Deus” — que teria bastante dificuldade de satisfazer a todas. A irmã Emmanuelle agradece pelo tsunami enviado por Deus — que, assim, reduziu misericordiosamente a vida miserável de milhões de miseráveis. O papa, o rabino e o imã ordenam preces para a chuva — que a seca prolongada não escuta. Alguns deles lhe agradecem até mesmo por “ter permitido Auschwitz”.

Nenhum efeito sobre o curso das coisas (que caos seria!). A prece só tem um efeito: sobre a vida interior de quem reza e pode assim se tornar mais moderado. No entanto, a propaganda a favor da crença (os padres costumam falar de “propagação” da fé) faz acreditar o contrário. O futuro da ilusão favorece a ilusão do futuro, e vice-versa.

O “fiel” é padioleiro ou doador, monitor ou auxiliar benévolo, doador de sangue, carregador de arroz… — e não mais inquisidor, príncipe-bispo, prevaricador ou conversor pedófilo… A “baixa da fé” tem algo de bom.

Só resta desejar que a maioria prefira o benefício ao malefício — tornando-se sábios sem “crer”, e por razão; ou seja, racionais, mesmo sem terem lido Kant.

Todos têm a palavra razão na boca. O que é a razão? Se for a razão grega, isto é, o nascimento do logos, de um lado no “diálogo” (Sócrates), de outro na analogia e na reflexão sobre os alogoi: das matemáticas (Platão), ela é anterior ao cristianismo, com o qual originalmente nada tem a ver. Sócrates foi executado por impiedade.

O que é razoável hoje (“sabedoria prática” [phronesis], para completar com Aristóteles) vem da ciência. Quanto à fé cristã em Deus, que não é a crença, ela é “imitação de Jesus Cristo”, que, da encarnação à crucificação, ressurreição e ascensão, não oferece modelo algum, nem razoável nem racional. O ensinamento evangélico se baseia num relato, com milagres, cuja transcrição secular em “suma teológica” tenta manter a relação com a Razão dos filósofos, mas cujo depósito original é “loucura” (São Paulo).

Ao contrário, a razão e o ateísmo têm uma relação crescente e cada vez melhor. Ela (a Razão) deve inventar seu ateísmo moderno, região enorme onde tudo ainda se cala. Ao apropriar-se da transcendência — não o que se entendia com isso, mas o que é hoje pensável com essa palavra, com esse nome: o movimento de elevação do humano (Baudelaire, Freud), a ultrapassagem (trans) das ferozes limitações e da confusão das “razões” clamadas por cada “sujeito” particular (indivíduo ou sociedade) para justificar seu interesse “vital” —, ela deve atravessar o limite, atualmente intransponível, da identidade. (Meu refrão: a Razão tropeça na Identidade.)

“Náo temos lições a receber de ninguém'”, vociferam, por meio da voz furiosa de seus guias (führer, leader, conducator…), as multidões étnicas mais ou menos homogêneas ou “nações”: tal é o slogan da sua desrazão, que converte em Razão a busca do poder. Portanto, é disso que é preciso sair, se a hominização pode continuar e “o homem se ultrapassar” (Nietzsche): as lições que todo sujeito, pessoal ou coletivo, tem a receber de todos, em toda parte e sempre, são precisamente os conselhos da Razão.

Henri Tincq, comentando a visita do douto raciocinador Joseph Ratzinger (Le Monde, 11 de setembro de 2008), escreve: “Esse papa põe em cautela o homem contra toda submissão da fé à razão de Estado e da razão de Estado a uma fé”. Mas não se trata mais disso! Não há Razão de Estado. A Razão (mesmo “astuta”) e o Estado nada têm a ver entre si. Longe de desenvolver o reinado da Razão a golpes de astúcia numa era e numa área hegeliana de manifestação, o Estado é desrazão ou não razão. A Razão de Estado não merece seu nome — e a expressão não é mais que um álibi para encobrir crimes. A era hegeliana está encerrada. Nada permite dizer que a Razão e o Estado se juntaram, reconhecidos, esposados, indivisos, unificados.

O único ato de razão que esperamos do Estado é a laicidade. A razão está cada vez mais fora da religião e ela “precisa”, a partir da sua consciência de si, da sua justeza de julgamento ou justiça e de seus saberes modernos, tratar (lidar com) o fato das religiões: tolerância, sinônimo de laicidade, é o nome do conteúdo, ainda e sempre por inventar, para esse programa de relação com as crenças, a religiosidade, os deuses humanos.

O que é laicidade?

As convicções são mortíferas. Que o espaço público se torne um no god’s land, esse é o programa da “laicidade”. Porque a intolerância é instintiva: “eu” não suporto a exibição de uma crença “fundamental” que não compartilho, porque no fundo ela não me reconhece no meu ser e me condena a não ser (o que sou). Se preciso, ela me suprimiria do ser — isto é, do meu “direito à existência” (tão pouco assegurado). Logo: instauramos um vazio central para prevenir a possibilidade do assassinato do “outro”. Nenhum sinal exterior daquilo a que “eu” voto meu ser. Nada de cruz, de burca, de quipá. Marranismo[8] de sabedoria generalizada.
No entanto, o espaço público não pode ser efetivamente separado (purgado) do espaço privado. A questão está nos confins, nos limites e zonas de troca. A esfera privada é também exterior, o interior está do lado de fora. Prédios ou muros “privados” da outra confissão, das outras reuniões, existem — na rua, na cidade, na terra. O privado transborda. Toda zona é passível de conflito. A tensão, o respeito, o reinado público da diferença e suas disputas serão sempre perigosos: paz perpétua porque luta perpétua, de morte; rivalidade; duelos.

Nada do que a narração cristológica relata (“Vida de Jesus”) é crível. Mas, se aconteceu ou não, é algo que não importa mais. O testemunho da fé não é um testemunho dos fatos: a cadeia de confiança nos relatores, os notários dos fatos, acha-se interrompida desde mais de 19 séculos. A questão não é mais de credibilidade: quanto mais “inacreditável” (Lázaro morto há dois ou três dias, “ressuscitando” para jantar na casa de Marta; o Túmulo vazio de Jesus etc.), tanto mais deve ser acreditado (“quia absurdum”). Ou seja, tanto mais é interessante “o sentido que daí se tira”; que deve ser extraído como “relíquia”; que pode interessar uma humanidade “inteligente”, como figuração do seu destino, da sua “antropomorfose” continuada… não fosse a diversidade heterogênea das “Grandes Narrativas”… O filósofo católico Jean-Luc Marion convoca a um crer, certamente partilhado por muitos, mas impossível de o ser por uma “humanidade” mundializada num único mundo. Aquilo em que pode crer o pensamento humano, ao buscar sua “universalização”, não é exatamente o Deus das Nações, o Deus de uma “aliança” que é a hipotipose de um “povo” — Javé, Cristo, Alá… Nenhuma frase que tenha Deus por sujeito pode ter outro sentido senão parabólico, figurativo, simbólico — ou seja, no fim das contas retorna e cabe à humanidade em pluralidades (em “etnias”) que ela faz falar. Deus está oculto (Lutero).

Precisamos achar um jeito sem ele — sem Eles. Isto é, sem os credos religiosos, inassimiláveis (dissimilitudinis regio), exclusivos, mortíferos. Os Anjos, os “espíritos sublimes” da Corte celeste evocada por Joseph Ratzinger (ibidem)[9], não existem (mesmo se Kant retém sua não impossibilidade e a pintura os surpreende em voo). “Sublime” é a tentativa do espírito humano. A “busca interior de Deus” é a busca, pela inteligência humana, da sua santidade — contra o assassinato, a violação, a antropofagia. Primeiro houve o incesto e o parricídio, como conta a tragédia. O sacrifício vira o assassinato contra o assassinato. Em vez de seu próprio sangue derramado (Tiestes ou Clitemnestra), o sangue de vítimas substitutas. A humanidade se separa da animalidade — proibição do incesto e do “homicídio”: é a tragédia. A homeopatia sacrificial domestica a matança. Depois, é o drama “moderno” — digamos, “renascentista”. Os humanos (em clãs; como homófonos) se ocupam agora com traição e vingança, que formam os núcleos da ação (Shakespeare). Depois…

A descoberta do outro como mesmo é difícil, e a do mesmo como outro, ainda mais difícil: a tolerância é o nome do “futuro vigor”[10]. O século XXI será tolerante, ou… Mas seus éditos são intraduzíveis.

Tradução de Paulo Neves

Notas

  1. Título de um opúsculo do Marquês de Sade, inserido em A filosofia na alcova. (N.T.) 
  2. “Vendo cair as lágrimas de sua pálpebra afundada.” (N.T.) 
  3. Passagens da Bíblia lidas em cultos ou sermões. (N.T.) 
  4. Citado por Giorgio Agamben, Le règne de la gloire, Paris: Seuil, 2008, p. 8. 
  5. O conceito de “redação”, alheio ao que os escritores franceses desde Mallarmé chamam (mistério nas letras, ou das letras) escritura/escrever, permite distinguir, quase separar, a parte dos homens e a parte de Deus. O escriba, atento à revelação, “não escreve”, ele copia o ditado, “redige”. “As Escrituras” são essencialmente distintas da escritura, da literatura, do “livro por vir”. 
  6. Na mesma passagem, o pontífice cita Bernardo de Clairvaux citando Santo Agostinho, que “qualifica a cacofonia de um canto mal executado como uma queda na regia dissimilitudinis” . regime de semelhança é um belo critério a profanar em teoria crítica para diferenciar as artes poéticas. 
  7. Poderia ter ido à rue du Bac em Paris, onde é venerada e vendida a “medalha milagrosa”. 
  8. Eram chamados de marranos os judeus convertidos à força, os quais muitas vezes mantinham, em segredo, suas crenças originais. (N.T.) 
  9. “Acha-se expressa (no Salmo) a consciência de cantar em presença da corte celeste, portanto submetida ao compasso supremo: rezar e cantar para se unir à música dos espíritos sublimes, considerados como os autores da harmonia do cosmo, da música das esferas.” (ibidem) 
  10. Rimbaud, Le bateau ivre. (N.T.) 

    Tags

  • ação
  • anjos
  • ateísmo
  • Bíblia
  • crer
  • cristao
  • Deus
  • dogmas
  • espírito humano
  • estado
  • Grandes Narrativas
  • história
  • humanidade
  • identidade
  • intolerância
  • Jean Luc Marion
  • laicidade
  • Marranismo
  • marranos
  • mitologia
  • mitos
  • Montaigne
  • moralidade
  • mudança
  • museus
  • Nietzsche
  • papa
  • pensamento
  • prece
  • revelação
  • sublime
  • teogonia
  • traição
  • transfiguração
  • vingança