2009

Autocontrole: em direcão a um novo homem?

por Joëlle Proust

Resumo

Uma ICMF (Interface Cerveau-Machine en boucle Fermée) é um dispositivo que permite a um animal ou a um humano controlar um robô ao qual é corticalmente conectado por um jogo de eletrodos. Em uma série de experiências, Miguel Nicolelis e seus colaboradores mostraram que uma macaca poderia aprender a controlar um robô ao qual estava corticalmente conectada por um ICMF. Para manobrar o robô, para alcançar bebida e comida fora de seu alcance, o animal deve descobrir, de maneira prática, qual pensamento pode ativar o robô, à distância. De maneira prática e não teórica, porque um animal não sabe o que é um pensamento e, evidentemente, não pode teorizar sobre as relações entre seu cérebro e o robô.

A experiência de Nicolelis mostra claramente que a ação sobre o entorno ( por um organismo adulto e já treinado à ação) não põe em jogo de maneira essencial os seguimentos corporais nem a compreensão teórica do mecanismo.

Outros trabalhos feitos sobre o homem levam a conclusões análogas. Certos tetraplégicos podem produzir um texto simplesmente orientando o olhar sobre as teclas que deseja tocar. Trabalhos em curso poderiam permitir aos pacientes agir mentalmente para chegar ao mesmo resultado; muitos pacientes, parcialmente paralíticos, já aprendem a estimular eletricamente com a demanda dos próprios músculos e com a ajuda de uma interface cérebro-máquina.

Esses trabalhos levam a reconhecer que a volição, isto é, um ato mental, é constitutiva da ação, enquanto o movimento é apenas uma das maneiras de introduzir uma mudança intencional. Destacam-se também da ação mental todos os atos metacognitivos que têm por objetivo avaliar e ajustar em permanência (em função das necessidades do momento) as necessidades mentais do agente. Tais ações são também constituídas de uma volição, que assegura a realização da mudança projetada e dá ao agente a consciência de ser a origem dessa mudança.

O estudo e a exploração sistemática das capacidades de regulação mental são suscetíveis de modificar em profundidade o seu humano. Não apenas estendendo consideravelmente suas capacidades de controle do entorno pelo domínio mental de dispositivos de interface, mas também desenvolvendo suas capacidades de auto-avaliação e de inibição, e, enfim, estimulando sua reflexão sobre os valores que presidem as escolhas de objetivos individuais e coletivos.


A persistência da ideia de dignidade universal do ser humano tem a ver com a natureza da natureza humana.

F. Fukuyama, 2002, p.156

Cento e vinte anos depois da publicação de Assim falava Zaratustra, raros são os filósofos e os cientistas que se arriscam a falar do futuro da humanidade. Não existem, porém, mais dúvidas de que, num futuro próximo, poderemos escolher nossas capacidades mentais e físicas, remediar nossas deficiências e modificar nosso potencial genético. Poderemos. Mas será que vamos querer? Daremos autorização para isso, e para quem? Para responder a essas perguntas de maneira justificada (embora nada garanta a priori que essas respostas justificadas, mesmo sendo negativas, obriguem às escolhas que serão feitas), é essencial que indaguemos sobre a natureza da humanidade e voltemos, portanto, a perguntar o que a define.

Façamos duas considerações sobre o método nesse tipo de pesquisa: não podemos refletir seriamente sobre esse assunto com base em impressões subjetivas, nem de maneira monodisciplinar. Para um especialista em robótica ou em manipulação genética, é grande a tentação de especular sobre o futuro da humanidade; mas, nesse caso, a competência monodisciplinar está fadada ao fracasso; a avaliação das probabilidades de evolução da nossa espécie só pode ser feita com uma informação precisa e controlada sobre os parâmetros do devir das sociedades humanas: o conforto material, a demografia, a mortalidade, o nível de analfabetismo e os recursos humanos e físicos que estão numa complexa relação de coevolução. A avaliação prospectiva, portanto, é um problema altamente complexo; ela exige a colaboração de especialidades que vão desde as ciências da terra até a economia, da geografia humana à astrofísica e às neurociências, com inevitáveis discordâncias entre especialistas, conflitos de método entre as disciplinas e poucas chances de se ter nas mãos o conjunto das variantes em jogo. Talvez seja por isso que os estudos de prospectiva, aliás, cada vez mais raros, sejam feitos na escala das intervenções de médio prazo e, em geral, não ultrapassem um período de 25 anos.
O presente artigo tem objetivos mais modestos. Primeiramente, proceder a um reconhecimento do “espaço do problema”: o que está acontecendo com as relações entre posições designadas respectivamen­ te pelos termos “humanismo”, “pós-humanismo”, “transumanismo”? Existe uma definição positiva, fundamentada cientificamente, que permita caracterizar o corte eventual entre o último humano e o primeiro “pós-humano”? Em seguida, gostaríamos de atualizar o balanço da evolução das técnicas que podem afetar o devir da humanidade. Ficaremos centrados nas técnicas destinadas a modificar as aptidões sensoriais e cognitivas, deixando para outros o cuidado de explorar o papel, não menos crucial, das tecnologias genéticas na evolução da espécie. Essas técnicas afetam em profundidade nossa integridade mental e corporal? Nossa avaliação prospectiva será diferenciada. Veremos que as tecnologias sensoriais cognitivas contribuem para modificar a imagem do corpo adequado e, globalmente, estreitar a união entre o agente e seu meio ambiente. Elas levantam problemas potenciais inegáveis que tentaremos identificar e hierarquizar. Elas podem servir a diversas finalidades, inclusive opostas, desde a liberdade de desenvolver suas próprias capacidades mentais de modo singular e especializado até a sujeição do indivíduo a fins socialmente determinados. Concluiremos nossa reflexão nos perguntando se a evolução das técnicas de ampliação cognitiva, tal como está acontecendo, caminha no sentido de uma ultrapassagem do humano. Diremos que a hipótese da ultrapassagem é solidária à concepção tradicional, fixista, do humano. Uma concepção dinâmica da evolução biológica e cultural esclarece melhor o incrível desenvolvimento das capacidades humanas desde a pré-história. As técnicas de ponta podem até nos surpreender, mas elas não nos permitem invocar a passagem iminente, ou já esboçada, para a pós-humanidade. Essa conclusão não nos dispensa de refletir coletivamente sobre as perspectivas de hibridação com componentes não biológicos.

1. O espaço do problema: humano, humanismo e pós-humanismo

A especialização biológica

O primeiro reflexo é definir a humanidade como uma espécie biológica: primata, apta a manejar ferramentas e dotada de linguagem. Aquilo que distingue o Homo sapiens sapiens, do tipo que chamaremos aqui de Homo sapiens sapientior, deve ser declinado em termos biológicos que permitam falar de uma nova espécie? Em biologia, chamamos de especiação o processo evolutivo através do qual novas espécies vivas aparecem naturalmente. A especiação é feita em velocidades variáveis, mas leva um tempo considerável, da ordem de centenas de milhares de anos. Toda evolução, toda especiação, se realiza num contexto físico e social determinado; contrariamente ao que a leitura nietzschiana de Darwin possa fazer pensar, uma espécie não emerge geralmente para se superar; a especiação resulta de pressões seletivas novas ou mais especializadas que levarão a preservar certas mutações que acabarão, ao final de algum tempo, com a interfecundidade entre indivíduos da espécie de origem.

Entre a variedade de cenários possíveis, emergem dois grupos de casos frequentes. No primeiro caso, o da especiação “alopátrica”, as populações divergem na sua evolução porque estão isoladas geograficamente. Se um grupo de homens conseguisse colonizar um outro planeta, e vivesse ali sem contato com o grupo de origem, esse grupo poderia vir, depois de milênios, a formar uma nova espécie. No segundo caso, o da especiação simpátrica, as populações divergem sob a influência de pressões seletivas particulares próprias a certas ecoesferas. Por exemplo, as orcas se subdividiram em duas populações não interfecundas, as residentes e as nômades. É pouco provável que a humanidade conheça esse tipo de evolução por causa da recombinação genética elevada ligada à globalização das trocas.

Seleção artificial

Não é, portanto, no sentido clássico da biologia da especiação que a interrogação sobre o futuro da nossa espécie tem um sentido, atualmente. Mas a possibilidade de aplicar ao homem a seleção artificial muda tudo. Mesmo que o genoma seja constantemente mesclado, podemos, tecnicamente falando, selecionar numa população indivíduos com as características desejadas, para que eles se reproduzam; ou, então, modificar diretamente o patrimônio genético dos indivíduos, para que eles se beneficiem de novas propriedades que, por sua vez, poderão ser herdadas. Já estamos fazendo essas transformações nos vegetais e nos animais, em criações ou em laboratórios. Um macaco geneticamente modificado nasceu num laboratório em 2001.[1] O que está em jogo nesse trabalho é descobrir tratamentos para a doença de Alzheimer ou certos tipos de câncer. A aplicação das técnicas de manipulação genética no homem é atualmente limitada, pelos conselhos de ética, aos casos repertoriados de doenças genéticas graves. A existência da técnica também permitirá, num futuro próximo, fabricar seres humanos geneticamente modificados, que talvez não se reproduzissem com o ser humano. Poderíamos então falar de uma pós-humanidade, no sentido biológico do termo. Observemos, porém, que, mesmo que esses seres modificados só pudessem se reproduzir entre si, essa seria apenas uma das suas propriedades; eles poderiam permanecer humanos por outras características, como a aparência, o nível de inteligência, as emoções, etc. Parece evidente que os indivíduos geneticamente modificados continuarão a viver com indivíduos não modificados, compartilharão sua vida cotidiana e suas aspirações.

A pergunta pertinente não é querer saber em que medida a seleção genética artificial nos conduz a uma nova espécie. Não é em termos de especiação que a pergunta do pós-humanismo merece ser feita. Pela seguinte razão: a especiação é definida pela interfecundidade. Mas a interfecundidade é apenas uma das dimensões do reconhecimento do humano. Uma outra dimensão está ligada à natureza das representações que consolidam a humanidade como tal. Nossa espécie representa para si mesma o seu futuro e, em certo sentido, é definida pelas representações daquilo que a constitui. Como observaram os filósofos que se interessaram por essa questão, como Nietzsche e Sloterdijk, ou ainda Francis Fukuyama, na nossa epígrafe, a representação daquilo que são a humanidade e seu futuro não é unicamente descritiva; ela comporta uma dimensão crítica e normativa.

A dimensão normativa; do humanismo ao pós-humanismo

Todos concordam que considerações normativas (e emocionais) estão na origem da escolha dos parceiros, independentemente das considerações de fecundidade biológica. Podemos imaginar que dois grupos saídos do Homo sapiens possam divergir, não porque não sejam biologicamente interfecundos, mas porque se tornaram cultural e emocionalmente estranhos um ao outro, porque criam os filhos de acordo com regras e objetivos diferentes etc. Um continua a seguir a vida característica de Homo sapiens sapiens; o outro adere a uma forma de vida radicalmente nova, que ele se esforça para transmitir aos seus descendentes; mudar de vida implica literalmente que o espírito-cérebro mude de funções; entendemos por isso que ele se desenvolva através da seleção de certas competências, e que faça as regulagens apropriadas. Uma regulagem é um modo particular de intervenção recorrente sobre o mundo (pensem na diferença entre aquelas que caracterizam a vida do caçador, do coletor, do pastor, do agricultor, do operário da fábrica, do banqueiro, do pesquisador). Voltaremos mais adiante a essas diferenças interpretando-as através da hipótese do “espírito ampliado”. Observemos, por enquanto, a ligação entre aquilo que os sociólogos chamam de habitus, isto é, as formas de vida e o desenvolvimento mental e cerebral. Devemos, portanto, nos interessar mais por aquilo que condiciona essas formas de vida do que pela inter­ fecundidade, se quisermos compreender a evolução da humanidade.

Transição entre modos; de vida: a plasticidade cerebral é a disposição prévia, e não um resultado

O que faltou aos caçadores-colhedores para que aprendessem a ler não foi o cérebro adaptado, foi o meio cultural adaptado, entendendo-se por isso um sistema em que o tempo reservado ao estudo já está determinado desde a infância, quando estão presentes os dispositivos sociais de aprendizado da leitura, e em que os livros ou outros suportes da escrita (de acordo com as técnicas disponíveis) são abundantes e duráveis, em que, finalmente, e acima de tudo, a divisão social do trabalho dá valor e pertinência a esses aprendizados. Esse conjunto de técnicas e de dispositivos economicamente motivados, por mais que pareça externo ao indivíduo, contribui para tornar possível certo tipo de competência e de motivações associadas. Há, portanto, um sentido profundo no qual o normativo (saber ler e colocar a leitura ou, mais geralmente, a aquisição do saber coletivo, no centro do desenvolvimento do indivíduo) depende daquilo que existe: estruturas materiais físicas e sociais estáveis (um sistema de ensino, um sistema compartilhado de escrita, instituições de reprodução e impressão – e de conservação desses escritos – bibliotecas), que compõem com os cérebros individuais sistemas de controle adaptativos distribuídos.
Cada transição entre as grandes fases do desenvolvimento huma­ no desde a pré-história implica, portanto, “mudar de corpo”, entendendo-se por “corpo” o sistema de disposições para a ação que resulta de aprendizados sensório-motores especializados. De um modo geral, as funções mentais e sensoriais que permitem que todas as espécies se mantenham unidas, de forma dinâmica, ao seu meio ambiente protetor e nutridor são sensíveis ao meio ambiente físico e social e, muitas vezes, são o efeito desses. O meio ambiente é, de fato, fonte de pressões seletivas; o cérebro, por ser plástico, pode se adaptar sem dificuldade, pelo seu crescimento seletivo, a essas novas circunstâncias.

Se a plasticidade é a regra do desenvolvimento humano, e explica que o mesmo genótipo possa ter sido usado para necessidades sociocogitivas tão diversas, em que condições devemos falar de pós-humanidade? Falar de pós-humanidade supõe que uma transição particular se apresente como uma transformação mais radical, que será uma exceção no devir da espécie. É preciso demonstrar que as mudanças exigidas por essa transição ultrapassam os recursos da espécie sapiens sapiens. As novas conexões devem ter se mostrado incompatíveis com os objetivos e os valores da espécie. Aquilo que justifica falar de mudança radical de orientação, no discurso pós-humanista, não pode depender da plasticidade cerebral, presente desde a origem da espécie.

O que compreendemos exatamente por pós-humanismo?

O pós-humanismo é um sistema de valores apresentado como aquele que deve substituir os valores do humanismo. É dessa forma que Nietzsche critica, no Assim falava Zaratustra, a domesticação do homem sob o lema do humanismo, e propõe uma outra forma de criação do homem para chegar ao super-homem. A reivindicação pós-humanista é compatível com o diagnóstico nietzschiano sobre as fraquezas do humanismo consideradas impossíveis de serem ultrapassadas; os diagnósticos divergem, determinando várias formas de pós-humanismo. O que é questionado, geralmente, não é a reivindicação, central no humanismo, da dignidade e do valor, iguais em todos os homens. É, isso sim, sua inaptidão para garantir que essa reivindicação se traduza nos fatos. Ainda uma vez, é bom compreender a origem do problema. Vejamos duas problemáticas bem diferentes.

Na sua Carta sobre o humanismo (1946), Martin Heidegger apresenta duas razões para essa inaptidão, ligadas ao fato de que o humanismo é “agente do não pensamento”. De um lado, o humanismo é fundamentalmente continuísta, pois define o homem como animal racional. De acordo com Heidegger, a natureza humana não pode ser definida numa ótica zoológica, nem biológica. Pelo fato de que o homem é, antes de tudo, dotado de linguagem, ele está, segundo Heidegger, em ruptura com a animalidade. Por outro lado, o humanismo tem uma confiança não crítica na ciência e na técnica. O fato, destacado por Heidegger, de que a técnica humana esteja, finalmente, a serviço da violência e da dominação dos homens é um dos argumentos mais correntemente dirigidos contra o humanismo. Com mais frequência, as técnicas encorajam mais do que combatem a violência dos comportamentos, o apetite sexual desenfreado e incontrolável, a distribuição desigual das riquezas, a comunicação enganosa e a manipulação dos cérebros. O humanismo é ainda acusado de não ter previsto as consequências do desaparecimento progressivo das referências culturais ou religiosas tradicionais. A tecnologia é apresentada como a expressão direta do “querer animal”. Vemos como os dois temas heideggerianos concordam: o humanismo, sob o domínio do fascínio da técnica, ela própria ligada ao querer animal, torna-se cúmplice de horrores cometidos sob o pretexto do bem-estar da humanidade.

Em uma comunicação intitulada Regras; para o parque humano, o filósofo alemão Peter Sloterdijk propõe a revisão do diagnóstico de Heidegger. Segundo ele, o problema não está na tese continuísta, mas no fato de que essa tese não é assumida nas suas consequências essenciais: “o que o humanismo não pensa” não é sua relação com a linguagem, mas, ao contrário, sua própria animalidade. Devido à sua relação privilegiada com seu nicho ecológico, o homem sedentário é domesticado pela própria casa, ao mesmo tempo em que ele domestica o animal (criando e treinando). Sloterdijk aponta um tema comum aos pós-humanistas: é o meio ambiente sociotécnico que constrói a espécie. O humanismo favoreceu um meio ambiente dominado pela divisão do trabalho entre letrados e iletrados; “criou entre eles um fosso intransponível que quase fez deles duas espécies diferentes”. Na opinião de Sloterdijk, não é apenas pela educação literária que poderemos conseguir civilizar e educar o homem, mas por meio de uma antropotecnologia, entendendo-se por isso um conjunto de técnicas, genéticas ou não, explicitamente desenvolvidas para educar, “domesticar” o homem, diminuir os comportamentos violentos e favorecer a cooperação entre os homens. O pós-humanismo em Sloterdijk se apresenta como a busca do esforço clássico de educação, mas através de novos meios: utilizando todas as novas técnicas agora disponíveis, até mesmo e inclusive a modificação artificial do potencial genético.

Pós-humanismo e transumanismo

A posição de Sloterdijk pode ser classificada de pós-humanista e de transumanista, duas posições que, na verdade, têm muita coisa em comum. O que as distingue é mais uma questão de estilo e geografia, o pós-humanismo florescendo na Europa enquanto o transumanismo é norte-americano. O transumanismo é menos centrado numa crítica filosófica sobre a natureza e o alcance do humanismo do que na esperança do desenvolvimento técnico (em engenharia genética, nanotecnologias, robótica e realidade virtual) para ultrapassar os limites ligados à evolução biológica (velhice, sofrimento, reprodução, etc.). Os autores influentes dessa corrente, como Nick Bostrom, David Pearce, Ray Kurzweil e Hans Moravec, são, geralmente, pesquisadores em informática ou em robótica, cujo objetivo é “melhorar” a constituição física, emocional ou cognitiva dos humanos, e até mesmo preparar a substituição dos humanos por robôs – preservando certas características humanas. Eles evocam o transumano como sendo o estágio futuro, mas que já pode ser detectado em pesquisas isoladas, nas quais as neurotecnologias e a internet combinadas permitirão reconfigurar as funções mentais e o próprio cérebro.

A pesquisa do especialista em informática Kevin Warwick ilustra bem esse tipo de orientação. Seu projeto Cyborg pretende, como indica a palavra, promover a fusão do ser orgânico com a máquina. Um ser humano “implantado”, dispondo de um estimulador cardíaco, de um implante coclear, de uma prótese articulatória, já é o esboço de um cyborg. Mas o verdadeiro cyborg não é apenas um agente cuja realização física é híbrida; é um espírito que deve a um sistema artificial parte de suas “retroações”; dizendo de outra maneira, é um ser que utiliza extensões artificiais do seu sistema nervoso para interagir com o meio ambiente. Kevin Warwick, professor de informática na Universidade de Reading (Inglaterra), implantou em si mesmo, em 2002, um microprocessador nos nervos medianos do braço esquerdo; esse microprocessador, ligado a um rádio emissor, permite colocar seu sistema nervoso – ou melhor, o subsistema motor controlado pelos nervos do seu braço esquerdo – em relação com um ou vários computadores, conectados ou não pela internet, ou com um outro ser humano. Warwick realizou, com grande difusão pela mídia, a ligação do seu próprio braço, como fonte de atividade e receptor de sensibilidade, com a mão de um robô. Ele próprio se instalou, na ocasião, na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos; uma conexão de internet ligou-o a um robô que estava na sua universidade, em Reading, na Inglaterra. O objetivo do espetáculo era anunciar ao mundo (aos jornalistas que irão divulgar a notícia) que Warwick sente na ponta de seus próprios dedos, em Columbia, a forma dos objetos manipulados pelo robô em Reading, de acordo com suas intenções de ação, em Columbia. Ele pode também “deixar” o robô formar a intenção de mexer um de seus dedos. Warwick, em seguida, tentou se conectar neuronalmente a uma outra pessoa, através de microprocessadores: a atividade neuronal de um propaga-se, a partir de então, pelo sistema do outro, no caso sua esposa Irena, quer eles se achem longe ou perto um do outro. Warwick chamou de “teclepatia” essa nova forma de telepatia que permite uma comunicação direta da informação de sistema nervoso para sistema nervoso. Segundo Warwick, a tecnologia teclepática poderia se tornar indispensável no futuro, constituindo a forma principal de comunicação humana.

2. Os avanços neurotecnológicos: do balanço à avaliação prospectiva

As experiências barrocas de Kevin Warwick são uma pequena mostra das possibilidades inéditas oferecidas pelo novo domínio da neuroinformática. Como dissemos anteriormente, concentraremos nosso interesse mais particularmente nas técnicas destinadas a modificar ou a ampliar a captação sensorial da informação ou o tratamento cognitivo feito pelo cérebro. Deixarei então de lado as técnicas de manipulação e também o uso de psicotrópicos. A escolha desse domínio não é apenas ditada pela limitação das minhas próprias competências; ela está no âmago da ideia subjacente do pós-humanismo: podemos aumentar as capacidades naturais e corrigir as perigosas tendências dos humanos com o uso de técnicas apropriadas, invasivas (penetrando no sistema nervoso) ou não. Esse conjunto de técnicas desenvolveu-se consideravelmente nos últimos 15 anos, mas é ainda pouco conhecido do grande público porque os protótipos custam caro e a aplicação é especializada (da recuperação à engenharia militar). Esse setor, porém, tem implicações potenciais imensas para o devir dos indivíduos e das sociedades.

Os sistemas de substituição sensorial

O primeiro conjunto de técnicas visa a fornecer a indivíduos privados de uma modalidade sensorial a informação que essa modalidade permite normalmente obter, num formato que eles sejam capazes de decodificar. Tomemos o exemplo da escritura braille. Essa escritura transforma as palavras escritas em palavras que serão tocadas pelos dedos, permitindo ao deficiente visual ler um texto tão facilmente quanto uma pessoa de visão normal. Observemos que a escritura e a leitura já supõem a codificação dos estímulos sonoros pelos estímulos visuais. Mas os escritos possuem o inconveniente de não ser modificáveis: o deficiente visual só pode ler os textos convertidos em sinais táteis. O princípio de um sistema de substituição sensorial, tal como foi desenvolvido por Paul Bach-Y-Rita (1998) e sua colaboradora Eliana Sampaio, é fornecer ao individuo deficiente uma maior autonomia diante do conjunto de informações. A aparelhagem da qual ele dispõe permite efetuar automaticamente a conversão da informação de uma modalidade, da qual ele não dispõe, em uma outra, da qual ele dispõe. Para que isso seja feito, um sistema de substituição sensorial comporta captadores que recolhem os sinais na modalidade defeituosa, por exemplo, uma câmera a tiracolo; um sistema de acoplagem transforma esses sinais em estímulos interpretáveis pelo indivíduo, que os percebe, por exemplo, sob a forma de ondas sonoras ou estímulos táteis. Depois de utilizar o interior das coxas, ou o abdômen, utiliza-se frequentemente hoje a língua, muito mais inervada. A informação visual é então transformada em informação somatossensorial pela conversão dos pixels visuais da imagem transmitida pela câmera em pontos de uma tela vibrotátil colocada em contato com a pele (nas costas, no abdômen ou na testa). Munido dessa aparelhagem, o deficiente visual aprende rapidamente a identificar os objetos à sua volta e a localizá-los. Essa tecnologia de suplemento sensorial foi aplicada por Eliana Sampaio ao bebê deficiente visual: ela pôde demonstrar que esse suplemento apresentava imensos benefícios para o desenvolvimento cognitivo e o amadurecimento socioemocional dos bebês, prevenindo o aparecimento de problemas similares ao autismo.

O que explica esses benefícios é que o bebê deficiente visual, que normalmente só teria do mundo uma imagem auditiva, tátil e olfativa, pode ter acesso, na superfície da sua pele, a uma representação do espaço à sua volta, a objetos e pessoas diferenciados. Não seria exagero dizer que o sistema de substituição visuo-tátil (SSVT) permite que um cego “veja” o mundo. O que mostra que a informação tratada permanece virtual é que ela não compete com a informação proprioceptiva que o indivíduo pode receber na região onde está o aparelho. Por causa da fraca resolução da tela tátil (no atual estado da técnica), o indivíduo equipado “vê” mais ou menos como uma pessoa de visão normal percebe objetos na neblina. Sabemos bem que o cego que utiliza a bengala para obter um eco e representa o mundo para si a partir dessa base sonora não percebe a ponta da bengala nem as vibrações do seu ouvido: ele percebe auditivamente os objetos que o cercam. É o que acontece também com o deficiente equipado com um sistema de substituição visuo-tátil (SSVT): ele “vê” os objetos do mundo exterior – não os estímulos da sua pele. Aliás, ele pode interagir com o mundo exterior: arremessar uma bola e até mesmo realizar minuciosas tarefas de montagem eletrônica.

Quem, entre aqueles que possuem uma visão normal, não está convencido de que a visão é uma fonte de infinitas e variadas felicidades? Pois bem, o que Paul Bach-Y-Rita descobriu merece ser pensado, no âmbito de uma reflexão sobre as neurotecnologias: a visão de substituição não oferece automaticamente a seus beneficiários o prazer prometido. O desconforto sentido pela maioria dos pacientes depois da operação de uma catarata congênita já deixava prever isso. Alguns cegos operados preferem voltar a seu mundo de exploração auditiva em vez de evoluir num universo visual em que nada é emocionante ou atraente. Nos dois casos, ver depois de uma operação ou “ver” por substituição pode não suscitar nenhum prazer, o que provoca por sua vez uma forte decepção. Contrariamente à firme convicção daquele que vê normalmente, não basta receber uma informação para achá-la atraente. Sem um atrativo, a percepção deixa de ser ativa, e logo será abandonada. Para gostar de ver, para gostar de ouvir ou de tocar, é preciso ter aprendido a fazê-lo numa idade na qual as emoções colorem as sensações. Um bebê cego equipado desde cedo com um SSVT gostará de “ver”. O dado perceptivo só nos parece ser naturalmente o que ele é – objetos coloridos para serem contemplados, formas e texturas para serem acariciadas, sonoridades deleitáveis – porque aprendemos primeiro a apreciar essas qualidades.

Novas aplicações dos sistemas de substituição sensoriais estão em estudo para permitir que os cirurgiões guiem seus gestos, segundo uma trajetória pré-planificada, nas zonas de intervenção que não são acessíveis à visão (Robineau et al., 2007). Outras são utilizadas para transformar a informação auditiva em informação tátil (Brainport, e Paul Bach-Y-Rita). Outras, finalmente, de interesse militar, consistem em melhorar a qualidade da visão natural, graças à extração da informação térmica ou por infravermelho; os estímulos podem ser transmitidos de forma tátil ou afetar diretamente um implante da retina para melhorar a visão noturna.

Resumindo muito, três condições devem estar reunidas para que possamos desenvolver num indivíduo novas competências para substituir uma capacidade deficitária. É preciso, primeiramente, que esteja presente a “plasticidade cerebral”. Entendemos por isso a capacidade do cérebro de modificar sua própria organização, isto é, modificar ao mesmo tempo sua fisiologia e sua anatomia. Isso é possível 1) por neurogênese, cuja existência foi posta em evidência em certas estruturas, como o hipocampo, o bulbo olfativo e o cerebelo; 2) por supressão seletiva das células inativas; e, finalmente, 3) pela reorganização das sinapses. Esses três tipos de disposição permitem ao sistema nervoso adaptar-se às necessidades de interação com o mundo e, particularmente, internalizar as formas de respostas adaptadas. A segunda precondição está ligada à existência de retroações confiáveis e recorrentes. A retroação é o efeito de retorno das consequências de um comando sobre o próprio comando. Por exemplo, a visão do objeto, ou de uma das propriedades recorrentes características da ação, associa­ se ao modelo que o indivíduo forma da ação. O aprendizado de uma competência consiste sempre em dominar as diferentes formas possíveis de feedback e a maneira de ajustar a ação para chegar, em cada caso, ao seu objetivo. Os diferentes tipos de feedback representam um papel-chave nas comparações a serem efetuadas entre o resultado esperado e o resultado observado. Veremos que todos os dispositivos neurotécnicos devem imaginar retroações apropriadas para estender ou remodelar as capacidades cognitivas existentes. A última precondição é a emoção que anima necessariamente um indivíduo assim que ele é motivado a agir. Como vimos no caso de certos indivíduos cegos, o indivíduo deve ter prazer em agir para que a ação seja inscrita no repertório e o feedback seja utilizado. Essa condição constitui uma proteção contra as tentativas de manipulação dos indivíduos que usam o aparelho. Não se pode fazer qualquer coisa com o cérebro de um indivíduo: ele deve aceitar o aprendizado e ter prazer nisso.

Os sistemas de substituição neuromotores

Os sistemas de substituição sensorial usam a plasticidade cerebral para desenvolver e explorar equivalências intermodais, visando restituir ou oferecer a um indivíduo privado de uma modalidade perceptiva o acesso a uma informação útil ou vital que essa modalidade fornece normalmente. Do mesmo modo, os sistemas de substituição neuromotores visam conseguir restituir uma forma de mobilidade a um indivíduo que não a tem mais, e até mesmo lhe conferir formas de mobilidade supranumerárias relativas à anatomia natural. Um artista australiano, Stelarc, foi um dos primeiros a medir o caráter relativamente contingente das funções existentes do corpo humano. Ele realizou vários tipos de intervenção no próprio corpo, no âmbito da body art. Ele acrescentou a seu corpo um terceiro membro, chamado “a Mão”. Trata-se de um manipulador robótico comandado por sinais eletromiográficos captados pelos músculos do ventre e das coxas. Stelarc apresentou, há pouco tempo, um espetáculo no qual ele manipula um exoesqueleto de seis patas controlado por seu próprio corpo. Sua crença parece tipicamente transumanista. “Esse corpo biológico com essa forma particular e essas funções particulares torna-se inadequado no contexto tecnológico das máquinas de alta precisão. O que não significa que possamos viver sem ele. Mas o corpo poderia, por exemplo, ser tecnologicamente aumentado ou geneticamente melhorado, ele poderia ser reprogramado ou redesenhado” (Libération, 12 de outubro de 2007).

O artista Stelarc deseja reprogramar o corpo. O cientista Nicolelis acrescenta um grau de liberdade a mais, ao mostrar que o corpo e a máquina são instrumentos equivalentes para o cérebro. Da mesma forma que uma equivalência perceptiva resulta do acoplamento adequado entre as modalidades sensoriais, uma equivalência motora pode resultar do acoplamento adequado entre a vontade e o resultado da ação. Vejamos isso mais de perto.

Numa série de experimentos conhecidos, Miguel Nicolelis e seus colaboradores, especialistas em neuroengenharia da Universidade de Duke (Nicolelis et al., 2000), demonstraram que um pequeno macaco noturno, o douroucouli, podia aprender a controlar um robô ao qual ele estava corticalmente conectado (regiões frontais e parietais) por um conjunto de eletrodos (esse dispositivo constitui “uma interface cérebro-máquina em looping fechado”; ICMf).[2] Como o animal faz para manobrar o robô de maneira a obter a comida e a bebida que estão fora do seu alcance? Ele tem que descobrir, de maneira prática, qual “pensamento” pode ativar o robô a distância. De maneira prática, não teórica, pois o animal não “sabe” o que é um pensamento e, evidentemente, não pode teorizar sobre as relações entre seu cérebro e o robô.[3]

Observemos que, nessa estranha situação, os braços não servem para nada, e que o animal logo para de mobilizá-los. Numa ICMf, é preciso agir de maneira estritamente mental para mudar o mundo. Os pesquisadores observam, aliás, que não há nenhuma atividade “coberta”[4] nas áreas motoras do cérebro desse indivíduo da experiência, atividade que manifesta, normalmente, a existência da intenção, da preparação ou da imaginação de uma ação corporal. Essa ausência de atividade mostra que o animal conseguiu mudar sua maneira habitual de agir.

Como ele consegue fazer isso? Na ausência de qualquer feedback proprioceptivo (visto que nenhum movimento foi efetuado pelo animal), a visão dos efeitos de seus pensamentos sobre o robô fornece os únicos dados exploráveis para produzir “comandos” eficazes. Para utilizá-los, ele deve ser, de certa forma, reprogramado. A própria facilidade com que ele chegou a esse resultado evoca, no homem, a simplicidade com a qual o automobilista se integra com a sua máquina, isto é, sente-a como um corpo supranumérico, assim como o terceiro braço de Stelarc.

A fascinante experiência de Nicolelis mostra que a ação sobre o meio ambiente (feita por um organismo adulto e já treinado para a ação) pode ser efetuada sem a mobilização dos membros. Neurotecnologias exploraram essa ideia de várias maneiras para finalidades protéticas. Sabemos que certos tetraplégicos que conservaram a mobilidade ocular podem produzir um texto apenas orientando seu olhar para as teclas que eles querem apertar. Existe, porém, uma categoria de pacientes, vítimas da síndrome do encarceramento (locked-in syndrome), que não podem mexer os olhos. Eles poderão, a partir de agora, se tiverem acesso à tecnologia neuroinformática, agir mentalmente para conseguir comunicar seus pensamentos, concentrando-se mentalmente nas letras apresentadas na tela.

As duas técnicas atualmente utilizadas fazem parte da continuidade da pesquisa de Nicolelis. O primeiro tipo de técnica é invasivo: eletrodos de silicone implantados permanentemente no córtex motor e pré-motor enviam a “vontade” para uma interface cérebro-máquina, que a transmite para um membro robótico ou para a tela de um computador. Cerca de trinta pacientes puderam aprender dessa maneira a se comunicar com aquilo que está a sua volta, enquanto outros treinaram para controlar mentalmente uma prótese neuromotora (ou PNM), isto é, um agente robótico exterior (Hochberg et al., 2006). Essas técnicas, ao mesmo tempo que permitem ao paciente reencontrar a ligação com aquilo que está à sua volta, ou recuperar uma autonomia mínima, têm o inconveniente de exigir uma intervenção cirúrgica e provocar uma necrose dos tecidos em volta dos eletrodos.

A segunda técnica é não invasiva: o cérebro dos pacientes não é objeto de nenhuma intervenção cirúrgica, o que evita os danos que a presença permanente de corpos estranhos provoca nos tecidos. A informação mental pertinente é extraída com a ajuda de um capacete, capaz de identificar a atividade neuronal diferencial que o paciente produz em dado momento. Os trabalhos mais avançados nesse domínio utilizam os capacetes EEG, repartindo de 64 a 250 eletrodos na superfície do couro cabeludo para extrair sinais cerebrais pertinentes da densidade cortical sobrevinda das diversas frequências observadas. O esforço mental do paciente é aqui muito mais considerável, visto que ele deve concentrar sua atenção exclusivamente naquilo que ele deseja fazer: trata-se de criar um sinal suficientemente denso em frequências corticais para ser decodificado pelo EEG. A Hitachi deve brevemente comercializar um outro tipo de sistema não invasivo, chamado de optical topography: essa técnica permite discernir zonas cerebrais nas quais existe maior irrigação sanguínea, graças a uma luz próxima do infravermelho. Essas medidas permitem, como no caso precedente, extrair a informação sobre a atividade cerebral para controlar um robô ou a epilepsia. Diferentemente das técnicas invasivas, os métodos não invasivos exigem um aprendizado bem longo, um uso diário e uma boa capacidade de concentração. Elas são cansativas demais para que o indivíduo possa utilizá-las permanentemente.

As técnicas de suplementação neuromotora parecem cair, sem ambiguidade, na categoria dos progressos incontestáveis. Graças a elas, indivíduos condenados ao encarceramento num corpo paralisado podem reencontrar uma forma de agir e, através disso, reintegrar-se ao grupo dos humanos, comunicar e até mesmo satisfazer de maneira autônoma certas necessidades. A essas considerações devemos acrescentar duas observações. Como vimos anteriormente, no caso de Kevin Warwick, a tecnologia neuromotora não está destinada a permanecer limitada ao caso das deficiências motoras graves, nos quais ela presta um serviço vital. Ela pode ser desenvolvida para fins profissionais (já vimos o caso das cirurgias), recreativos, artísticos e militares. Da mesma forma que a percepção sensorial pode ser artificialmente aumentada pela extração de informação modal supranumerária, como a informação térmica ou magnética, a ação pode agora, em princípio, ser ajustada, focalizada, ampliada para espaços não peripessoais, generalizada para um grupo, utilizando os meios supraindividuais de compartilhamento da informação. Por exemplo, em breve será possível compartilhar intenções motoras com um ou vários agentes sem ter que passar por um suporte externo de sinalização. Podemos imaginar as aplicações militares, esportivas ou mafiosas desses dispositivos. A segunda observação é que o custo muito alto dessas técnicas de substituição constitui, ao menos num primeiro momento, um obstáculo à sua disseminação. A autonomia motora tem um preço que a destina a uma estreita faixa dos mais afortunados. Observemos que essa situação não é própria do desenvolvimento das técnicas de substituição neuromotoras ou neurossensorias. Todas as inovações técnicas são geralmente reservadas para aqueles que podem pagar por isso. A escrita foi, durante séculos, apanágio das classes dirigentes ou do clero, antes de se estender, muito recentemente, e sob a influência de políticas públicas de voluntários, ao conjunto da população do globo. Apesar disso, é chocante saber que um pequeno círculo de privilegiados, que vivem geralmente nas grandes metrópoles ocidentais, pode se beneficiar de aparelhagens caras cuja existência é ignorada pelo restante da humanidade.

Os dispositivos de ampliação cognitiva

Assim como o Burguês Gentil-homem (personagem da peça homônima de Molière) admirava-se de fazer prosa, capacidade que havia utilizado a vida toda sem saber, a humanidade não esperou o século XXI para colocar ao alcance dos seus dirigentes, ou da elite letrada, instrumentos de ampliação cognitiva à altura de suas eminentes responsabilidades. As cartas, os livros, os programas educativos, a melhor diversificação dos aprendizados durante o desenvolvimento, isto é, as técnicas de escolarização e de difusão dos conhecimentos, “aumentam de fato a cognição de modo quantitativo, favorecendo os aprendizados que, sem elas, teriam sido impossíveis”. Mas não é disso que se trata quando falamos de ampliação cognitiva: queremos falar de um aumento qualitativo da cognição, que permite ao indivíduo adquirir novas competências (sejam elas de tipo epistêmico, afetivo, ou conativo) na sua interação com o mundo. A instituição escolar, embora consciente da diferença entre os dois tipos de ampliação, privilegia, geralmente, a ampliação quantitativa. Há inúmeras razões para isso, e a melhor delas é que não podemos (com os métodos tradicionais) transmitir a um aluno os meios para ampliar qualitativamente suas faculdades cognitivas sem passar por um saber particular de “primeira ordem”.

O que é então, exatamente, a ampliação qualitativa das disposições cognitivas? Ela consiste na capacidade de mobilizar aptidões de segunda ordem, que podemos chamar de agentividade mental. É esse tipo de agentividade, ou de intenção, que intervém quando deliberamos racionalmente sobre aquilo que merece ser estudado ou, mais simplesmente, quando decidimos dedicar nossa atenção a um tipo de tarefa, excluindo qualquer outra, durante um certo tempo. A ação mental também intervém no jogo para hierarquizar as preferências em matéria de lazer, de ocupação profissional etc. Ela é, finalmente, a chave da harmonização entre seus afetos, e a coerência de seus registros de socialização. Os filósofos chamam de “ação mental” o ponto comum a todas essas aptidões (Proust, 2005): trata-se, na verdade, de tomar como objetivo a aquisição de uma nova propriedade mental: podemos, por exemplo, nos esforçar para perceber, procurar saber, ou querer sentir (achar que uma disposição emocional nos falta e deve ser desenvolvida).
As neurotécnicas podem permitir que essas formas de ação mental “naturais” se desenvolvam de maneira mais rápida ou objetiva, ou então estender o repertório das ações mentais a formas “artificiais”, incluindo novos dispositivos sensoriais, perceptivos ou executivos. Nesse caso, poderemos perceber o mundo com um novo sentido (por exemplo, um sentido tátil-magnético), querer experimentar novas sensações ou emoções que não podemos experimentar “naturalmente”.

Desenvolver a ação mental não é em si um objetivo revolucionário. Podemos ver que ele preside implicitamente um certo número de atividades pedagógicas destinadas a promover a autonomia do aprendiz. Embora o perfil qualitativo da educação escolar seja, atualmente, a consequência indireta da organização do tempo e das matérias a serem assimiladas, não seria exagero dizer que esse é, de fato, o objetivo essencial de qualquer instituição escolar numa sociedade democrática. Trata-se, de fato, de permitir que o indivíduo, qualquer que seja sua origem social, tenha independência de pensamento e de raciocínio, escolha seus objetivos e controle seus afetos com autonomia. Aprender a aprender é a palavra de ordem de todas as pedagogias contemporâneas. O que é revolucionário, por outro lado, é colocar real e concretamente essa preocupação no centro do dispositivo pedagógico: desenvolver a ação mental como tal, e fazer disso um tema central do programa educativo.

Estabelecidas essas precisões conceituais, voltemos ao estado das técnicas relativas à ampliação cognitiva. Assim como nas duas espécies precedentes de neurotécnicas, também existem dois tipos. As intervenções não invasivas são de tipo pedagógico ou regulador. O objetivo é desenvolver, na criança ou no adulto, capacidades que lhe são próprias (como a atenção ou a emoção), propondo que interajam com os dispositivos construídos para esse fim. O segundo tipo de intervenção ainda está essencialmente no estágio de pesquisa: consiste em fornecer meios cognitivos suplementares ao indivíduo, através de uma intervenção invasiva no seu sistema nervoso.

As técnicas não invasivas de ampliação cognitiva

A pesquisa nesse campo está fundamentada na constatação de que o desenvolvimento cerebral se efetua sob a dupla influência dos genes e da experiência do indivíduo. Devido a essa dupla influência, os indivíduos escolarizados diferem na maneira pela qual utilizam o cérebro para uma única e mesma tarefa. A expressão dos genes, como sabemos, é modulada pelo meio ambiente pré e pós-natal. Alguns dos acontecimentos que contribuem para a modulação genética estão hoje identificados: por exemplo, a separação precoce da mãe pode trazer para o bebê importantes déficits cognitivos e, particularmente, de atenção (Tremblay, 2008). As técnicas para obter imagens cerebrais permitem reconhecer as conexões utilizadas na atenção ou na emoção, a fim de selecionar os tipos de intervenção, clínica ou pedagógica que permitirão restaurar essas conexões, caso um defeito genético as tenha tornado inoperantes. De um modo geral, a observação comparativa das imagens cerebrais funcionais permite distinguir as diferenças, localizar as eventuais lacunas e reestruturar, se necessário, as funções cognitivas em momentos estratégicos do desenvolvimento. Uma outra preocupação desses pesquisadores é combater a ilusória concepção universalista do aprendiz e promover instrumentos de intervenção adaptados às particularidades de cada cérebro.

É no domínio do treinamento da atenção que esse tipo de pesquisa mais se desenvolveu. A atenção está no coração da ação mental, visto que é mobilizando voluntariamente a atenção que podemos não apenas aprender, mas também exprimir nossas preferências e organizar nosso tempo de maneira autônoma. A mobilização voluntária da atenção é, consequentemente, a base de sustentação do sucesso escolar e, mais amplamente, dos aprendizados sociais. Ora, os trabalhos experimentais recentes demonstraram os efeitos do treinamento qualificativo da atenção sobre o desenvolvimento da inteligência individual. A criança de 4 anos treinada em cinco sessões de meio dia em videogames concebidos para desenvolver sua memória executiva (inibição das distrações, reconhecimento dos sucessos e dos fracassos, concentração da atenção em uma tarefa) internaliza por longo tempo os métodos de exploração e de fixação da atenção que lhe são propostos e atinge dois anos antes – ou seja, aos 6 anos – a capacidade de atenção normal de uma criança de 8 anos não submetida a esse treino (Rueda e Posner, 2005). O efeito desses recursos executivos implementados no aprendizado e na socialização é considerável, e se traduz, anos mais tarde, por uma melhor performance da memória e do raciocínio. Com frequência objetamos que esses métodos “individualistas” não são uma panaceia: o meio ambiente social e emocional da criança (família, espaço de vida) constitui dimensões insubstituíveis da construção da atenção. A qualidade dessas aquisições depende por sua vez de uma multiplicidade de fatores socioeconômicos e culturais tais como a estabilidade dos recursos familiares, a integração ao tecido social, as normas de parentesco em vigor e o grau de sensibilização dos pais em relação às necessidades emocionais e cognitivas próprias da criança. Não podemos negar que a interação entre as dimensões globais e individuais da sustentação atencional é estabelecida em várias escalas causais e temporais.

Essa objeção corrente não diminui em nada a importância dos resultados de Rueda e Posner, que estão de acordo com as análises epidemiológicas de Tremblay. Ela deveria, pelo contrário, sublinhar sua pertinência para pôr fim ao círculo vicioso da reprodução (elites que produzem elites, classes trabalhadoras que produzem trabalhadores sem qualificação). Qualquer que seja a origem do problema (social ou genético), existem meios para remediá-lo, já que a compreensão da plasticidade cerebral permite reorientar o desenvolvimento mental da criança. Essa tentativa não tem nada de utópica (mesmo que a especulação pós ou transumanísta possa tomar conta dela): é aqui e agora que está sendo oferecida às novas gerações humanas a possibilidade de um desenvolvimento emocional e intelectual ancorado na aquisição da “autonomia mental”.

De imediato, e de acordo com uma cronologia já observada nos outros domínios do desenvolvimento das neurotécnicas, os indivíduos que apresentam um déficit são os primeiros a serem favorecidos por essas pesquisas – no caso, as crianças atingidas por um “transtorno do déficit da atenção e da hiperatividade (TDAH)”, ou seja, uma síndrome neurológica que associa falta de atenção, hiperatividade e impulsividade. Estima-se que ela afete pelo menos 5% das crianças e 4% dos adultos. Os trabalhos do grupo de Posner mencionados anteriormente (Rueda et al.,2005) preconizam a intervenção precoce nas crianças com TDAH, propondo-lhes videogames do mesmo tipo daqueles que foram propostos às crianças normais.

Um método alternativo, baseado em técnicas não invasivas, é igualmente explorado, como a utilização de um capacete EEG para utilizar o feedback neuronal do qual falamos (Fuchs et al.,2003 Strehl et al.2006). O método comumente usado propõe à criança um vídeogame no qual se deve alcançar valores, determinados (representados, por exemplo, pela velocidade relativa de diversos aviões). Na sua estrutura, a tarefa é um treinamento por biofeedback, no qual o indivíduo é convidado a atingir um determinado valor visualizando seus próprios estados mentais/neuronais. Os valores observados são dados pelas frequências das ondas neuronais recolhidas pelo capacete. Essas frequências são, na verdade, distintivamente moduladas pela vigília e pela atenção focalizada. Está provado que os indivíduos tiram do exercício regular desses jogos uma melhor capacidade de concentração nas suas tarefas e de resistência à sua impulsividade. Essa técnica, largamente usada na América do Norte, permite que a criança suspenda progressivamente o uso de ritalina.

Um segundo campo, imensamente promissor, no qual o neurofeedback pode ser aplicado é o do desenvolvimento emocional. Chamamos de “psicopatia” a perturbação da emoção que provoca uma falta de consciência moral, associada a uma fraca disposição para transferir para o outro a gratificação de seus próprios desejos, particularmente aqueles que colocam em jogo a agressividade ou a sexualidade. Embora os psicopatas não sejam todos criminosos nem violentos, estima-se que um quarto dos detentos penitenciários tenha esse distúrbio. Por que os psicopatas são assim tão vulneráveis às disposições criminosas e violentas, à pobreza e às dificuldades de se relacionar? Sabemos recentemente que a reatividade emocional diante dos estímulos aversivos (como as marcas faciais do sofrimento, ou a imagem de corpos mutilados ou sangrando, entre outros exemplos) é o determinante causal nos aprendizados sociais. Está estabelecido que os psicopatas não possuem essa reatividade emocional. Eles têm um déficit metabólico cerebral do “circuito do medo”, que diz respeito às áreas pré-frontal e límbica: ínsula, córtex singular anterior e amídala (Blair et al., 2005, Birbaumer et al., 2005). Como a ínsula anterior está centralmente implicada na percepção da dor (a sua e a do outro), a terapia neuronal visa a restaurar a atividade dessa zona, apostando no fato de que o restabelecimento do circuito do medo resultará na reatividade da ínsula (Caria et al., 2007).

Para conseguir esse resultado, é apresentada aos indivíduos, em tempo real, uma sucessão de imagens da ínsula em neurofeedback. Mais exatamente, os indivíduos visualizam a quantidade do fluxo sanguíneo na zona alvo, sob a forma de uma coluna de mercúrio num termômetro. O objetivo do neurofeedback é de fazer subir o mercúrio para atingir o valor desejado, representado por um segmento vermelho. Nos pacientes hiperansiosos, o objetivo será, contrariamente, fazê-lo descer (até um segmento verde). Em algumas seções, os indivíduos conseguem atingir níveis normais de atividade. No atual estado da pesquisa, entretanto, falta vencer uma dificuldade: não sabemos como garantir a transferência e a generalização desses aprendizados para contextos naturais – em contraste com o caso da criança portadora do déficit de atenção que se beneficia do neurofeedback no contexto escolar ou familiar. O momento da intervenção – principalmente na criança – é evidentemente um fator importante do seu sucesso; outros trabalhos tentam, atualmente, suprimir esse obstáculo.

As técnicas invasivas de ampliação cognitiva

Como era o caso das técnicas de substituição perceptiva e motora, as técnicas invasivas de ampliação cognitiva foram, primitivamente, concebidas para atender a casos de deterioração do sistema nervoso. Dois tipos de caso foram particularmente sugestivos quanto à potencialidade desses métodos. Primeiramente, o estímulo cerebral profundo (deep brain stimulation, ou DBS); ele consiste em implantar um marca­passo cerebral, dispositivo que compreende três elementos: um gerador que emite impulsos elétricos (dispositivo à pilha implantado sob a pele no tronco do paciente); um fio encapado de poliuretano e um pequeno número de eletrodos implantados no cérebro. Esse dispositivo permite estimular as partes do cérebro nas quais os eletrodos são inseridos (por exemplo, o tálamo ou o globo pálido), tendo em vista regular um certo número de problemas neurológicos, como a dor crônica, a depressão, a doença de Parkinson ou a síndrome de Tourette.[5] Aparentemente, os pacientes têm uma melhora na sua qualidade de vida, mas o dispositivo exige que os estímulos sejam definidos e calibrados, o que provoca riscos de problemas psiquiátricos ou neurológicos, felizmente reversíveis se forem ajustados.

Uma técnica vizinha é o marca-passo da epilepsia, através de estímulo do nervo vago (vagus nerve stimulation, ou VNS). Um pequeno dispositivo elétrico implantado no corpo do paciente envia permanentemente impulsos elétricos para o cérebro (uma vez a cada cinco minutos). Os eletrodos implantados têm aqui a função de analisar a atividade cerebral e detectar a iminência de uma crise. Um implante inserido para isso envia, nesse caso, um estímulo para o nervo craniano, o que, geralmente, é o bastante para evitar a crise.

A geração seguinte de técnicas inovadoras consiste em introduzir no sistema nervoso dispositivos neuronais artificiais destinados a hibridizar com os conjuntos de neurônios biológicos. Daí, um novo domínio de pesquisa, chamado “microeletrônica biométrica”. Ted Berger,[6] do Centro de Engenharia Neuronal da UCLA, estudou primeiramente os meios para fornecer próteses artificiais aos indivíduos que perdem suas células cerebrais, como os pacientes de Alzheimer. Seu trabalho, em seguida, orientou-se para o aperfeiçoamento de novas gerações de computadores inspirados pelo funcionamento biológico, cuja hibridação com os sistemas vivos será, evidentemente, facilitada. A tecnologia crucialmente adotada é a VLSI (ou very large scale integration), por meio da qual circuitos integrados combinam milhares de circuitos a transistor em um só microprocessador. A utilização dessa tecnologia (primeiro passo para a nanorrobótica cerebral) permite construir microcircuitos de silicone tendo um comportamento funcional análogo ao de dez mil neurônios; eles se destinam a ser implantados no hipocampo. Pesquisadores do Instituto Max-Planck de Bioquímica, junto a Peter Fromhertz, implantaram, recentemente, in vitro, um microprocessador provido de uma sinapse química excitativa capaz de estabelecer uma relação informacional entre neurônios de uma cobra. Eles observaram que conjuntos de atividade no neurônio pré-sináptico aumentam a força da reação sináptica entre as células implicadas. Esses resultados, e alguns outros, deixam entrever a possibilidade do uso de dispositivos artificiais para aumentar as capacidades cognitivas naturais. O aperfeiçoamento desses dispositivos deverá, relativamente a curto prazo, permitir que se compreenda melhor a natureza da plasticidade cerebral e, um pouco mais a longo prazo, inspirar novos tipos de computadores. Do ponto de vista prospectivo que nos interessa aqui, isso também abre um campo de aplicação vertiginoso para a ampliação cognitiva. Podemos ver que essa ampliação permitirá (um dia talvez ainda distante) compensar déficits (por exemplo, nos diferentes casos de demência ou de amnésia traumática retrógrada) e remediar os efeitos normais do envelhecimento. Mas podemos especular que esse tipo de pesquisa visará também estender as competências mentais para além dos limites do aprendizado individual não invasivo. Poderemos desejar melhorar nosso raciocínio, nossa capacidade de planificar ou o ajuste dos nossos afetos. Talvez um dia possamos escolher entre os dispositivos artificiais de ampliação cognitiva, como escolhemos hoje o computador que melhor se adapta às nossas necessidades. Voltaremos mais adiante aos problemas éticos que surgem com essa perspectiva.

3. O humano híbrido ou seu desaparecimento diante da máquina?

Esboçar a evolução das técnicas de ampliação cognitiva conduz nesse ponto a uma passagem para o limite: qual é o limite da hibridação no qual o homem natural é substituído por uma nova espécie? Estaremos caminhando na direção de uma ultrapassagem do humano por causa do aumento de potência da máquina cerebral – literalmente implantada num computador -, bem além daquilo que poderíamos imaginar ainda ontem? Transumanistas, como Ray Kurzweil ou Hans Moravec veem nessa ultrapassagem do homem pela máquina a inelutável consequência do aumento de poder dos computadores. Moravec tem um argumento comparativo: será preciso cem milhões de anos para que o cérebro biológico passe de algumas centenas de neurônios para cem bilhões; para os computadores superpotentes foi preciso apenas dez anos para que a RAM passasse de algumas centenas de bits para cem bilhões. Projetando esses dados no futuro, vemos que as máquinas vão se desenvolver exponencialmente; elas serão capazes de se reprogramar, de raciocinar de maneira autônoma, de criar seus próprios objetivos e lidar com a complexidade; chegará o dia em que a evolução das máquinas tornará a espécie humana incapaz de controlar o desenvolvimento delas. Nascerão uma evolução e uma civilização de máquinas com tendência a substituir a evolução humana salvo se as máquinas conservarem, de suas interações anteriores com o homem, algum respeito pela espécie que um dia as criou.

A esse tipo de argumento costuma-se objetar que os homens – graças a Deus! – podem limitar o poder de cálculo das máquinas. Os homens terão a sabedoria, nesse cenário, de parar antes que a superioridade das máquinas se torne irreversível. A isso podemos responder que, primeiro, a humanidade nunca resistiu à possibilidade de levar as invenções cada vez mais longe, mesmo as mais nocivas, e não saberá interromper a tempo o processo de inovação. Precisaremos citar a questão do aquecimento climático para lembrar a miopia da humanidade diante das limitações a longo prazo? Devemos esperar uma atitude mais racional quando for o caso de limitar o desenvolvimento da Inteligência Artificial? Um segundo argumento vem reforçar o primeiro. Quanto mais avançamos na construção de uma sociedade da informação, e quanto mais aumenta a complexidade da junção dinâmica entre o espírito humano e o meio ambiente (físico, socioeconômico e intelectual), mais se acentua a dependência da sobrevivência coletiva diante dos superpoderosos computadores. Estes serão cada vez mais não apenas ajudantes, mas agentes de decisão em situações que contenham uma ou outra forma de complexidade. Não será possível viver sem eles para assegurar a sobrevivência da espécie. Daí a conclusão transumanista. Forçosamente, chegará o dia em que as máquinas conectadas à rede que teremos construído tornar-se-ão capazes de nos controlar, antes de nos dispensar. Vamos tentar nos concentrar nesse difícil problema. O transumanismo e, de modo geral, o interesse que pode existir em aumentar a cognição por meios invasivos deram lugar a reações hostis dos meios religiosos (Bruce, 2007) e provocaram uma análise crítica dos filósofos. Limitaremos aqui nosso exame aos problemas filosóficos e de ordem social.

Num livro estimulante e incisivo, Jean-Michel Besnier ressalta nas tecnociências em geral, e no transumanismo em particular, a obsessão de “acabar com o corpo”. Arepresentação do corpo ativo no transumanismo é, segundo ele, ainda considerada na concepção dualista cartesiana: o corpo encarna a heteronomia, obstáculo oposto ao espírito, e a finitude, diante da alma imortal. Tomando como testemunho as análises de Alain Ehrenberg, Besnier diagnostica no transumanismo um deprimido insatisfeito com suas deficiências. As novas tecnologias de informação e de comunicação fornecem alternativas que nos permitem abstrair nossa própria condição, e assumir a dessubstancialização. Besnier comenta aqui as palavras de Günther Anders, filósofo austríaco da Revolução Industrial: a produção industrial dos bens conduz o homem a “explodir” em funções sem nexo ligadas às suas necessidades e ao seu prazer, e engendra nele uma forma de vergonha chamada “de Prometeu”, que nasce da contemplação da “humilhante qualidade das coisas que ele mesmo fabricou”. O programa transumanista estaria dessa forma realizando a profecia de Anders. Último avatar da vergonha de ser “apenas ele mesmo”, ele teria afinidades secretas, mas profundas, com a eugenia. A eugenia designa, como sabemos, a intenção de aperfeiçoar a espécie humana através de uma intervenção deliberada (a variedade de possibilidades não para de aumentar, desde a antiga forma de escolha dos reprodutores à atual manipulação genética, chegando até as hibridações futuristas imaginadas pelos transumanistas). O desgosto e a vergonha do humano conduzem, de fato, certos pensadores prospectivistas, como Truong ou Kurzweil, à esperança de substituir a humanidade por uma nova espécie: a esperar – e preparar ativamente – a transferência da inteligência para uma forma híbrida do homem e da máquina, na qual as limitações da nossa biologia terão desaparecido.

O quadro aterrorizante das ambições transumanistas traçado por Besnier é um dos cenários que a prospectiva das neurotécnicas não pode ignorar. Observemos, porém, o contraste gritante com uma outra visão da evolução das tecnociências, em que os avanços contemporâneos são entendidos como o desenvolvimento previsível e perfeitamente racional da maneira pela qual o cérebro-corpo se apropria naturalmente do seu meio ambiente. Nos escritos do filósofo Andy Clark (Clark, 2003), surge um outro quadro que é marcado por múltiplos exemplos da bem-sucedida fusão entre o homem e a máquina. Aqui, a fenomenologia é de uma perfeita conivência entre a biologia e a tecnologia, longe das trágicas ruminações ou do fascínio das ações como as de Prometeu. Partindo da maneira pela qual os telefones celulares foram instantaneamente adotados, assimilados em tempo recorde em novos programas de ação eminentemente intuitivos, Clark não vê nenhuma razão para duvidar da era dos cyborgs. Essa era, segundo ele, já começou, à nossa revelia, há muito tempo. Os homens não têm uma tendência universal de internalizar as ferramentas? Não adotam a escrita para calcular com papel e lápis, antes de deixá-los de lado? A escrita, objeto exterior, torna-se uma nova função mental. Outras funções “tecnomentais” se desenvolveram pelo mesmo processo de internalização. Pensemos na maneira pela qual o relógio de pulso, o bloco de notas, a câmera de vídeo, o computador estruturam respectivamente nosso sentido do tempo, do espaço, das cores e, mais amplamente, nossos conhecimentos e nosso raciocínio. Seria um julgamento superficial atribuir apenas à técnica (e seu pano de fundo industrial) o surgimento de novos modos de ser. O que Clark realça é que a disposição para se transformar pelo “pensamento técnico” (através de operações fundadas em objetos) preexiste ao próprio aparecimento da técnica; essa flexibilidade adaptativa é aquilo que distingue o homem dos outros primatas. Como escreve Clark: “A abertura para uma estreita simbiose entre o humano e a máquina está no coração da nossa natureza humana primitiva” (2003, p. 168).

Se essa simbiose de fato existe, desde os primórdios da nossa espécie, como explicar que nem todos partilhem o otimismo de Clark? De onde vem a “vergonha de Prometeu” da qual falamos anteriormente? Andy Clark prevê a objeção. Se não sabemos a medida da nossa verdadeira relação com a técnica é porque, sob o domínio da convicção dualista cartesiana, desconhecemos a estrutura do nosso espírito. Não da forma como lamenta Besnier, porque a finitude é atribuída ao corpo na sua suposta luta com o espírito; mas porque o terceiro termo no qual o espírito-corpo se constrói é esquecido: esse terceiro termo é o meio ambiente material, complexo, cultural e tecnológico no qual evoluímos; ele faz parte do espírito. Essa é a mensagem que Andy Clark nos passa quando fala de “exteriorização ativa”, ou ainda de “espírito estendido” (Clark & Chalmers, 1998). Clark retoma e revisa Descartes: o autor do Discurso do método tinha visto muito bem que o espírito humano podia se tornar “senhor e possuidor da natureza”. Redigido em uma época em que a energia ainda não era utilizada para fins industriais, esse texto surpreende pela sua justeza prospectiva.[7] O que ele não observa, porém, é que a natureza, uma vez transformada, nos transforma por sua vez, e até mesmo, de certa forma, nos “cria”. O discurso do domínio e da posse deve, portanto, ser completado ou corrigido por aquele da acoplagem dinâmica e das limitações estruturais chamadas de “escoramento” (isto é, scaffolding: o termo, estático em português, deve ser compreendido como uma “muleta” em perpétuo remanejamento). Coerentemente com a sua concepção de exteriorização estendida, Andy Clark expande uma concepção monista, anticartesiana, na qual os objetos e dispositivos, como o cérebro e o corpo, têm um papel­chave na construção do espírito: “Se existimos como coisas pensantes, é unicamente graças a uma dança impressionante dos cérebros, dos corpos e das muletas culturais e tecnológicas” (2003 p.11).

Na concepção de Clark, o meio ambiente físico é sempre arrumado e organizado para exteriorizar nossas funções mentais e fisiológicas, respondendo às necessidades de nossos espíritos-corpo; nós não percebemos isso, justamente porque estamos numa relação intuitiva e imediata com as coisas das quais nos servimos tendo em vista uma finalidade que as ultrapassa. Faz parte do dispositivo que o objeto seja ignorado nas suas dimensões sensoriais e internalizado, ao mesmo tempo que é provido de um significado que ultrapassa evidentemente sua pura tecnicidade. Pensemos naquilo que um artista pode fazer com uma folha branca e um lápis-carvão: o espírito toma conta da matéria, mas a matéria também toma conta do espírito, controlando assim a pressão dos dedos e conduzindo o olho e a mão pelos contornos do objeto desenhado.

Neste ponto do debate, vemos reaparecer o papel estruturante das hipóteses que dizem respeito à natureza do espírito sobre a avaliação das neurotécnicas, como lembra a citação de Fukuyama no começo deste artigo. Se o primeiro cenário é pessimista, é porque ele estima que a tecnologia, nas suas múltiplas ligações com a indústria e a divisão que ela instaura no indivíduo consumidor, viola a natureza do espírito e rompe ligações estabelecidas em cinquenta séculos de civilização. Se o segundo tem uma visão otimista do desenvolvimento das tecnoneurociências, é porque ele considera que as técnicas em questão são o solo de base natural do espírito humano, e que elas formam até mesmo as condições de seu desenvolvimento durável. A pergunta que havíamos decidido deixar de lado reaparece; refletir sobre o valor e o significado das técnicas de ampliação pressupõe uma concepção de evolução da espécie, daquilo que para o homem é natural. Entre a visão de um corpo natural desprovido de artifícios e a de um corpo naturalmente técnico, é essa última que parece ser a mais compatível com aquilo que sabemos da evolução humana. O otimismo de Andy Clark, relativamente à instrumentação neurocognitiva, tem para ele a facilidade com a qual o cérebro pode adotar aquilo que aumenta suas possibilidades adaptativas. Jean-Michel Besnier não contradiz esse ponto de vista quando nos lembra do impacto de uma civilização pós-industrial sobre o julgamento reflexivo e sobre o valor de ser ele mesmo assim. Voltemos então à questão ética da ampliação cognitiva.

Conclusão: a ética da ampliação cognitiva

Fizemos um balanço das técnicas que já nos deixa prever o acesso a recursos cognitivos, através de métodos invasivos ou não, que transformarão a condição humana. O leitor pode tomar posição, no que foi dito, em relação à legitimidade da intervenção de um dispositivo de extensão cognitiva: distinguir o caso da suplementação de deficiências daquele do aumento voluntário dos recursos perceptivos, cognitivos e executivos. O tetraplégico merece ser salvo das suas limitações; mas será que o homem sadio tem motivações aceitáveis se ele pede para ter acesso a uma nova modalidade sensorial? O cirurgião deve ter ao seu dispor os meios que tornarão seus gestos mais precisos. Mas será que é preciso ampliar os meios cognitivos de um político em campanha? Devemos deixar que os instrumentos para que se tenha um poder maior que o de outros circulem livremente por entre os homens? A humanidade não estaria correndo o risco de ver essas técnicas confiscadas por uma facção disposta a impor sua visão industrial, sua religião, sua dominação política?

Mesmo que negligenciemos esse tipo de ameaça, outras questões éticas merecem ser colocadas. Se admitirmos que um cirurgião veja seus gestos artificialmente ajustados, deveremos também fazê-lo em relação aquele cuja profissão é a violência? Uma sociedade tem o direito de ampliar cognitivamente os homens e as mulheres das suas forças armadas, da sua polícia, dos seus serviços secretos? A violência se tornará, evidentemente, numa sociedade neuroinstrumentada, mais objetiva, mais “cirúrgica”, como foram os ataques durante a guerra do Iraque, primeira experiência da ampliação cognitiva em um conflito armado. A violência feita de forma cirúrgica continua sendo uma violência, mais discutível ainda porque utiliza meios mais refinados para passar, eventualmente, despercebida. Uma evidência se impõe à reflexão: as técnicas de ampliação cognitiva têm todas as chances de levar a humanidade à sua destruição, caso a humanidade continue – com uma eficácia aumentada – respondendo à violência com mais violência. O primeiro alvo da ampliação deveria, portanto, ser…emocional. É a emoção – a capacidade de compreender o ponto de vista do outro, a empatia com aquele que sofre – que deveria ser antes de tudo aumentada e ajustada.

Um segundo problema é o da equidade. O aumento cognitivo tem um custo que pode ser, no caso das técnicas invasivas, extremamente elevado. Ela tem também um custo em termos de capital educativo; ela supõe o acesso a uma cultura prévia, igualmente distribuída entre a população mundial. Podemos apostar, num cenário plausível, que o desenvolvimento da ampliação cognitiva será desigual e injusto; ele aumentará ainda mais o fosso, de que fala Peter Sloterdijk, entre a humanidade rica e culta e a humanidade pobre, trabalhadora e analfabeta. Como no esporte competitivo do século XX, veremos divergir uma elite profissional de pensamento ampliado e a massa dos pensadores comuns. O destino da humanidade estará, a partir de então, apenas nas mãos daqueles que foram “ampliados”.

Essa última consideração deveria nos fazer pensar. Pois podemos observar que essa situação já é a nossa. A humanidade já está dividida em uma parte que tem acesso ao saber, que compreende, pelo menos em parte, ou escolhe, pelo menos em parte, os cenários de seu próprio desenvolvimento e uma parte que continua cegamente atrás da sua sobrevivência. Uma parte da humanidade age, isto é, planifica, determina as alternativas, assume escolhas (de carreira ou de desenvolvimento pessoal, política nacional, ecológica etc.). A outra reage, isto é, se determina entre alternativas estreitamente limitadas por falta de conhecimento e de dinheiro. A esfera dos interesses e dos meios de ação tem um raio que varia consideravelmente entre esses dois grupos. Não existe, que eu saiba, nenhum estudo sistemático comparativo dessa distância: mas apostemos que ele ainda varie mais que a renda média, e que as distribuições tendam a se repartir em dois polos extremos e de densidade desigual. É, portanto, completamente ilusório continuar pensando o problema como se ele fizesse parte de um futuro hipotético. É aqui e agora que a iniquidade caracteriza o desenvolvimento dos conhecimentos, das riquezas e do poder. Partindo dessa constatação, não haveria um modo de utilizar a neurotecnologia para lutar contra essas desigualdades?

O desenvolvimento mais significativo em relação a isso é o das neurotécnicas que podem aumentar a eficácia da educação. Como vimos, o sucesso escolar está ligado a uma aptidão essencial, que é o controle da atenção. Vimos também a importância do feedback e do prazer para a plasticidade cerebral que regula todas as aquisições. Hoje, podemos desenvolver técnicas não invasivas para desenvolver a atenção infantil levando em conta esses grandes princípios. Videogames simples na aparência, mas concebidos adequadamente e ajustados em função das disposições individuais, podem reduzir consideravelmente as desigualdades sociais diante da educação. Podemos também aumentar o nível de prazer, isto é, o interesse pelo aprendizado, desenvolvendo a confiança das crianças em si, que sabemos ser a chave das motivações daquele que aprende, sem ceder nada em relação à objetividade autocrítica, que sempre serve de leme individual, mas deve ser interiorizada para se tornar eficaz. Se as novas tecnologias tiverem como objetivo reforçar essas aptidões, elas poderão constituir um poderoso meio de reduzir as desigualdades. Elas tomarão o mesmo sentido que a democratização do acesso ao computador e ao telefone celular. Não podemos, nos limites deste artigo, explorar o tema do desenvolvimento de uma ampliação cognitiva igualitária, como isso mereceria ser feito. Fica claro que se trata de uma questão social maior, que supõe um amplo debate entre os cidadãos.

Bibliografia

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VYGOTSKY, L. S. Pensée et langage. Paris: La Dispute, 1997.

Notas

  1. Science, 2001, vol. 291, p. 302-312. 
  2. Em inglês, BMIC: Brain machine closed loop interface. 
  3. Sobre aquilo que os primatas não humanos podem e não podem pensar, cf. Proust (2003). 
  4. Uma atividade “coberta” é, diferentemente de uma atividade “aberta”, uma forma de pensamento – ou de processamento da informação – que não se exprime num comportamento público. 
  5. Cf. RODRIGUEZ-OROZ et al., 2005. 
  6. Cf. BERGER & GIANZMAN (orgs.), 2005. 
  7. Descartes continua: “O que não é desejável apenas para a invenção de uma infinidade de artifícios, que fariam com que tirássemos proveito, sem nenhuma dificuldade, dos frutos da terra e de todas as comodidades que ali se encontram, mas principalmente também para a conservação da saúde, que é certamente o bem mais importante e o fundamento de todos os outros.” 

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