1991

As tramas da rede

por Adauto Novaes

Em poucos anos, nossa vida passou a ser construída de uma maneira sem precedentes e sem exemplos na história da cultura: “a máquina governa; a vida humana é rigorosamente controlada por ela”, escreveu Valéry. Pulsões divergentes são canalizadas; a representação triunfa sobre o que é representado; as imagens perdem a força e o sentido originais e são produzidas apenas para o prazer dos olhos; os poderes sobre o tempo e o espaço são utilizados de tal maneira que acontecimentos distantes são conhecidos em frações de segundos. Pressionados pela grandeza e pela onipotência dos novos meios, suportamos, a um só tempo, o peso e os benefícios dessas mudanças. O desenvolvimento ilimitado do mundo dos símbolos e signos, e as alterações de todo imaginário põem novos problemas que os antropólogos, historiadores, sociológos e os pensadores mais sagazes têm dificuldade de explicar. Mas o pensamento político procura hoje entender esse caos tanto para preservar formas de vida civilizada quanto para construir um novo sistema ético, a liberdade, o desenvolvimento, os direitos a partir das condições de existência, e distinguir, portanto, “a guerra da paz, a abundância da falta, a vitória da derrota”.

A natureza da televisão impede ao intelectual e ao observador comum qualquer possibilidade de compará-la com outros momentos e outras formas de expressão cultural. Exige, pois, a invenção de outros meios de análise: isolar o artifício, conhecer o seu sistema material, aprender a ver e a ouvir, distinguir o que pode arruinar valores e sentimentos.

A televisão brasileira não é a responsável por essa crise, mas ela ajuda a compor e a alimentar um modelo que “especula sobre nossa sensibilidade”: são 227 emissoras concentradas nas mãos de quarto grandes redes que cobrem o país de ponta a ponta com 40 milhões de aparelhos; a média de consumo do imaginário televisivo por habitante já chega a mais de quatro horas por dia. O universo mental não está, portanto, dissociado das formas de produção desse imaginário. Foi a partir de alterações visíveis nos campos da política, dos costumes, da ética e da cultura que a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, através da Assessoria de Projetos Especiais, decidiu criar um projeto de reflexão permanente sobre os meios de comunicação, começando por desvendar os mecanismos escondidos da produção desse imaginário. A materialidade e a força da televisão estão nessa potência invisível. Daí, começamos pela análise da construção desse imaginário.

Rede Imaginária está dividida em dois eixos:

  1. A imaginação. Ouvimos sempre dizer que a imaginação nos engana sobre a própria natureza. Mas se, para muitos pensadores, a imaginação produz uma crença sem objeto (Montaigne descreve minuciosamente a desordem do espírito e o tumulto do corpo daqueles que “acreditam ver o que não vêem”), ela é também fonte de obras de arte e de pensamento. Para se chegar à análise da construção do imaginário, os primeiros textos fazem, antes, o percurso da imaginação: o que é imaginação criadora, de que maneira ela pode ser controlada pela racionalidade técnica, qual a sua relação com o desejo, com a política e, por fim, como são produzidos os signos e símbolos.
  2. A construção do imaginário. Vemos uma imagem, ouvimos uma voz, mas geralmente ignoramos a sua constituição. Ora, o sentido de um programa de televisão não é independente de sua gênese: o poder mágico da aparição e a sucessão fácil e esperada das imagens não permitem ao telespectador imaginar que a produção televisiva é pensada com rigor, que vai desde a posição da câmera, o corte, a domesticação da linguagem verbal com a redução drástica do universo vocabular até as normas de comportamento do jornalista. A regras de debate político são cuidadosamente discutidas, os publicitários sabem que tipo de iluminação pode fazer vender 1 milhão de sandálias, os teledramaturgos têm a fórmula para manipular paixões e sentimentos. A política transformou-se em manipulação técnica, como observou o crítico de arte Robert Hughes da revista norte-americana Time em entrevista a Veja: “O discurso político americano tornou-se um horror, está completamente tomado pelas técnicas de relações públicas. Toda e qualquer ideia tem que caber em quinze segundos de transmissão de TV. A televisão foi o maior solvente da verdade política surgido no século XX. As pessoas emitem sons, não ideias. Quando você lê os discursos de um presidente como Harry Truman, vê que ele tinha o que dizer, mesmo que não concorde com o que ele dizia. Hoje, um político como ele não poderia aparecer na televisão. Ficaria muito complicado. Eu acho que Thomas Jefferson não conseguiria se eleger presidente da República. Ronald Reagan mostrou que é possível um bobo ser eleito presidente”.

Imperando sobre tudo isso está o pré-gravado, engenhosa invenção da TV que, em nome da limpeza técnica, tenta controlar o acaso, eliminando as vozes e as imagens não desejadas. A televisão começa a se pensar através de imagens antes escondidas. Realizadores refutam, desorganizam e organizam a visão comum, tematizam imagens, tornando presente aquilo que as TVs convencionais procuram ocultar. Não existem diferenças técnicas, apenas diferenças na utilização da técnica, o que permite aflorar diferenças no modo de expressão na política, nas artes, no cotidiano. Através da invenção pela imagem ou pelo tema, vemos hoje surgir uma nova dimensão da TV, uma declaração explícita de que nossa retina jamais pode ser tratada de forma homogênea. É o lado da positividade e da criação, a retomada dos sentidos e do pensamento.