1994

As artes e os feitos ou A secretaria do Império

por Antonio Alcir Bernárdez Pécora

Resumo

Apesar das diferenças de ofício, época e estilo, o que Camões e Vieira pensam de suas respectivas artes nunca é pensado à parte do que praticaram em seus temas. Nenhum dos dois é preceptivo. E há outros pontos em comum: ambos postulam um ideal pátrio; ambos compreendem sua arte como louvor dos antepassados e anúncio do Bem; ambos admitem uma determinação que se traduz pela ampliação universal da Cristandade através do Império português. Nem um nem outro ficaria satisfeito com um reino de palavras, eles sonham um reino histórico (embora o império da língua, como dirá Fernando Pessoa, tenha sido afinal o que puderam ter). Ambos atacam seus adversários contemporâneos: Camões, os que rebaixam o sentido espiritual da conquista portuguesa e não reconhecem o valor do poeta; Vieira, os falsos pregadores que esquecem a prova moral constituída pela imagem do orador e seu efeito persuasivo no público. Para ele, pregar é semear, preparar as gentes para o futuro Quinto Império. Se em Camões a má estima dos versos faz perder a virtude, em Vieira o mau uso da retórica arruína a salvação. Talvez a diferença principal e um tanto paradoxal entre os dois seja esta: a epopeia camoniana, por vezes tão desolada, cumpre o pathos do herói trágico, enquanto a vidência profética de Vieira (“ó portugueses, vós descobristes ao mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser”) tem a grandeza do herói épico. Seja como for, é na arte que ambos depositam a esperança.

 


Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.[1]

Luís de Camões, Os lusíadas

Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma coisa se lia no mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta História será o silêncio de todas as histórias.[2]

Antonio Vieira,

Livro anteprimeiro da história do futuro

Nem Camões, nem Vieira propõem as artes como tema fora da própria prática em que são os melhores que conheceu a língua portuguesa. Não são, nenhum deles, preceptistas, embora pelo menos Vieira o pudesse ser, espírito adestrado nas lides escolásticas. Entretanto, vivido e louvado em meio a uma das cortes mais refinadas de seu século, a do palazzo romano de Cristina da Suécia, o jesuíta passa olimpicamente pelas questões mais gerais a propósito das artes, e mesmo não se surpreende em suas correspondências familiares qualquer afeto mais aprofundado pelo assunto. Parece sempre muito mais preocupado com alguma recôndita notícia do avanço do turco ou a respeito das intrigas da provinciana corte portuguesa do que com as questões culturais ou o ambiente intelectual daquilo que hoje chamaríamos de “barroco romano”, já às vésperas do movimento da “Arcádia”. Arte que lhe interessa comentar é essencialmente a sua, de pregador cristão, cuja finalidade está em semear as palavras de Deus e fazê-las frutificar no coração dos fiéis e no corpo místico do reino.

Compreender o que pensam sobre a arte, assim, obriga a repassar os modos efetivos como a empregam, os seus escritos tão vastos e diversos, sem ter a priori uma entrada necessária ou óbvia — a não ser, talvez, para o caso de Vieira, o célebre Sermão da Sexagésima, uma espécie de meta-sermão (se não fizer violência o termo) em que comenta o “rumo particular” que imprimira aos seus. Infelizmente nunca chegou a nossas mãos o Pregador e ouvinte cristão, livro que Vieira, no prólogo ao leitor da Primeira Parte dos Sermões, refere ter ideado, e em que, segundo afirma, veríamos “as regras, não sei se da arte, se do gênio, que me guiaram por este novo caminho”.[3] Tampouco podemos contar — pois hoje já não é sustentável a sua atribuição a Vieira — com a leitura de certa Retórica sagrada ou arte de pregar, supostamente encontrada em seus papéis, e que apareceu em Lisboa em 1745.[4]

De qualquer maneira, uma pista óbvia, para restringir as inúmeras direções possíveis e, ao menos, dividir o labirinto, é assinalar certos pontos genéricos que Camões e Vieira guardam em comum, cada qual, entretanto, às voltas com o seu próprio ofício e tempo, muito diferentes: poeta, o quinhentista; pregador, o que vive no século XVII.

1.

O primeiro desses pontos evidentes é a própria distinção — repleta, entretanto, de árduo sofrimento e imensa mágoa — que tanto Camões quanto Vieira postulam para si em terreno pátrio: a luz de seus engenhos, segundo pensam, brilha quase peregrina nas trevas do tempo. Eis o que diz Camões, em quem o fogo do demônio amoroso do neoplatonismo florentino queima igualmente com o ressentimento local:

Pois se o desejo afina

Uma alma acesa tanto

Que por vós use as partes de divina,

Por vós levantarei não visto canto,

Que o Bétis me ouças, e o Tibre me levante;

Que o nosso claro Tejo

Envolto um pouco o vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam

Flores, mas só abrolhos

O fazem feio; e cuido que lhe faltam

Ouvidos para mim, para vós olhos.

Mas faça o que quiser o vil costume;

Que o Sol, que em vós está,

Na escuridão dará mais claro lume.[5]

Quanto a Vieira, julga-se bem apartado, com sua arte de pregar, do caminho “mais seguido e ordinário” dos “estilos modernos” tão apreciados na época por oradores sacros e ouvintes agudos. O púlpito, como acusa no Sermão da Sexagésima, tornou-se palco de “comédia”, pela afetação culta dos pregadores contemporâneos:

Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se, passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito ma\is sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria, por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um profeta profano e gentio que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes sobre cristão religioso![6]

E se a falta de decoro, paradoxalmente, granjeia para tais oradores da moda os aplausos do auditório tão desvanecido quanto enganado, para o pregar mais conveniente faltam ouvidos, estima e favor: “O pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o apóstolo: há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mudo, mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo”.[7]

Para o jesuíta, mais que impróprio, seria indigno submeter o juízo do sermão ao gosto do auditório — já por ser gosto, faculdade mais da vontade que do intelecto, incapaz de avaliar a justiça com que se repõem as palavras sagradas, aspecto mais irredutível da arte de pregar: “Pois o gostar ou não gostarem os ouvintes! Oh! Que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo quando trata de lhe dar saúde? Sarem, e não gostem, salvem-se, e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas.”[8]

Um segundo ponto comum que Vem logo à mente quando se pensa em Camões e Vieira é que, cada um em relação ao seu próprio gênero, compreende a sua arte como estímulo, louvor e documento das proezas memoráveis dos antepassados, de virtudes sublimes dos heróis, e de esperanças futuras do Reino. Proezas, virtudes e esperanças que o gênio apenas, encendido na Graça e Fúria divinas, logra vislumbrar claramente, e busca trazê-las, com arte rigorosa, à vista de todos, de modo a movê-los em direção a estes altos princípios, que são igualmente desígnios providenciais.

Em ambos, supostos sempre tanto o engenho natural quanto o domínio técnico das regras, arte é divulgação do feito extraordinário e, também, anúncio profético de outro maior e mais perfeito, que apenas após a intervenção do poeta ou pregador poder-se-ia conceber com nitidez. Arte é, para estes dois monstros do engenho, publicidade de um passado elevado e vibrante, e, ao mesmo tempo, fiança de uma história futura ainda mais alta que ela descobre embutida ou figurada na antiga. Ao revelar esse futuro e torná-lo presente em sua própria perfeição, tal arte antecipadamente participa de sua existência e assegura a sua vinda.

Camões o diz, por exemplo, com modéstia afetada, na celebérrima “Invocação do primeiro canto” dos Lusíadas, quando postula para o seu “novo engenho” a faculdade de efetuar um canto cuja sublimidade alcança o preço do feito que se dispõe a divulgar:

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mim um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mim vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloquo e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham inveja às de Hipocrene.

Daí-me uma fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,


Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda:

Que se espalhe e se cante no Universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.[9]

Também o afirma naquela segunda invocação, no canto terceiro, desta vez para dar voz concertada à narração de Vasco da Gama, exigida pela curiosidade deslumbrada do rei de Melinde, ansioso por conhecer detidamente “as obras Portuguesas singulares”. Novamente aqui é o fino desejo do intérprete, ordenado em canto pela Ninfa, que pode, ele apenas, descobrir e espalhar o verdadeiro merecimento dos lusitanos:

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,


Como merece a gente Lusitana;

Que veja e saiba o mundo que do Tejo


O licor de Aganipe corre e mana.


Deixa as flores de Pindo, que já vejo


Banhar-me Apolo na água soberana;


Senão direi que tens algum receio


Que se escureça o teu querido Orfeio.[10]

Quanto ao jesuíta, há um trecho do Livro anteprimeiro de sua projetada História do futuro em que justamente explicita o que entende ser o “ofício” por excelência do poeta épico. Combinando uma tópica de Aristóteles — a distinção hierárquica entre o poeta e o historiador — com o passo de Virgílio, em que, no canto VIII de sua epopeia, Vulcano forja para Eneias um escudo com a gravação dos sucessos futuros de Roma, associa a essência de sua arte à inteligência profética e à energia decorrente dela:

O ofício e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas como haviam de ser ou como era bem que fossem. E achou o mais levantado e judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético que, para vencer as mais dificultosas empresas, para conquistar as mais belicosas nações e para fundar o mais poderoso e dilatado Império, nenhuma arma poderia haver mais forte, nem mais impenetrável, nem que mais enchesse de ânimo, confiança e valor o peito que fosse coberto e defendido com ela, que um escudo formado por arte e saber divino, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviam de obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao seu Eneias.[11]

Em um caso e outro, portanto, arte é, muito genericamente, louvor e anúncio do Bem, que, em Vieira, interpreta-se de forma mais atada à história futura e à Providência divina, e, em Camões, mais ligada à justa memória do feito e à destinação imanente do espírito dos melhores.

Mas há ainda um terceiro ponto que gostaria de apontar, estreitamente ligado a este, em que é possível postular-se semelhança entre os pensamentos de Camões e Vieira a propósito de suas artes particulares. É que, em ambos, o Bem que anunciam e que buscam repropor na ordem distinguida de seu ofício, supõe ou admite sempre uma determinação histórica, que se traduz genericamente pela ampliação universal da Cristandade através da expansão decisiva do Império português. A tão conhecida proposição do primeiro canto dos Lusíadas assinala perfeitamente, como objeto da epopeia, as “três ordens de heróis[12] fundamentais nessa perspectiva imperial: os navegadores e conquistadores que “entre gente remota edificaram Novo Reino”, os reis “que foram dilatando a Fé e o Império”, ao mesmo tempo em que “andaram devastando” as seitas viciosas de África e de Ásia, e os demais varões portugueses cujo esforço e bravura valeu-lhes a imortalidade.

E isso é o que o poema repõe a cada passo, ainda nos mais pungentes desta epopeia por vezes tão desolada e contrária em tudo ao que se esperaria de um canto de louvor à pátria. Uma pátria, de resto, que, no presente de sua enunciação, surge ali sem quase traço da antiga grandeza que dera causa ao canto. Entretanto, mesmo aí, o poema, como em combate esforçado, retoma o lema que, supõe, fará recrudescer a valentia dos combatentes do Império. Este ponto de exortação imperial condensa-se, muito emblematicamente, nas várias incitações que faz ao príncipe d. Sebastião, cabeça e síntese do corpo inteiro do Reino, para que lance contra o turco uma ofensiva decidida, de modo a dar exemplo aos demais príncipes europeus, que, pouco cristãmente, vão guerreando entre si e permitindo que cresça o poder da torpe seita de Mafoma. É assim desde a Dedicatória, no canto I:

E, enquanto eu estes canto e a vós não posso,

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,

Tomai as rédeas vós do Reino vosso,

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Comecem a sentir o peso grosso

(que pelo mundo todo faça espanto)

De exércitos e feitos singulares

De África as terras e do Oriente os mares.

Em vós os olhos tem o Mouro frio,


Em quem vê seu exício afigurado;


Só com vos ver, o bárbaro Gentio


Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;


Thétis todo o cerúleo senhorio


Tem pera vós por dote aparelhado;


Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,


Deseja de comprar-vos pera genro.[13]

Como o é, de maneira mais exasperada, certamente, na súplica e incitação que fecham a extraordinária proeza da epopeia, ainda sem prêmio ou reconhecimento algum:

Pera servir-vos, braço às armas feito,


Pera cantar vos mente às Musas dada;


Só me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.


Se me isto o Céu concede, e o vosso peito


Digna empresa tomar de ser cantada,


Como a pressaga mente vaticina


Olhando a vossa inclinação divina,

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,


A vista vossa tema o monte Atlante,


Ou rompendo nos campos de Ampelusa


Os muros de Marrocos e Trudante,


A minha já estimada e leda Musa


Fico que em todo o mundo de vós cante,


De sorte que Alexandro em vós se veja,


Sem à dita de Aquiles ter inveja.[14]

Com Vieira, de maneira igualmente nítida, o serviço da expansão da Fé católica e do Império português são tão indissociáveis entre si quanto, em conjunto, são inalienáveis da arte de pregar. A rigor, para ele, há ou deve haver natural reciprocidade entre o serviço do Estado e o da religião, cuja atuação histórica está mutuamente condicionada.[15] Assim, o fortalecimento do príncipe cristão é condição da existência moderna do pregador missionário que segue as rotas das expedições enviadas por ele às longínquas terras que vai descobrindo. Da mesma forma, em sentido inverso, não seria possível sustentar-se e, muito menos, ganhar dimensões imperiais, um Portugal que abdicasse da divulgação da Fé.

Exemplo de uma formulação que evidencia as duas partes restritivas da inalienabilidade entre-a pregação da Fé e a expansão de Portugal, que define mesmo uma missão portuguesa no mundo,[16] encontra-se no belíssimo Sermão da Epifania. Nele, os Reis Magos, referidos no passo de Mateus (2:1), figuram a gentilidade conversa nas descobertas dos reis portugueses:

Que diz o evangelista? Cumnatus esset Jesus in diebus Herodes regis, ecce Magi ab oriente venerunt. Diz que nos dias de Herodes, sendo nascido Cristo, o vieram adorar os Reis do Oriente — e nestas mesmas circunstâncias do tempo, do lugar e das pessoas, como que limitou a primeira vocação da gentilidade, mostrou que não havia de ser só uma, senão duas, como estava profetizado. A primeira vocação da gentilidade foi nos dias de Herodes: In diebus Herodisregis — a segunda quase em nossos dias. A primeira foi quando Cristo nasceu: Cum natus esset Jesus — a segunda quando já se contavam mil e quinhentos anos do nascimento de Cristo. A primeira foi por meio dos reis do Oriente: Ecce Magi ab oriente venerunt — a segunda por meio dos reis do Ocidente, e dos mais ocidentais de todos, que são os de Portugal. [17]

Em outro sermão magnífico, pregado em Roma, a pequena extensão territorial de Portugal é interpretada por Vieira como manifestação da Providência divina a exigir de seus habitantes que, como apóstolos, lançassem-se ao mundo para levar a luz de sua religião às quatro partes dele: “Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal, para morrer, o mundo”.[18]

Santo Antônio, nascido em Lisboa e falecido em Pádua, celebrado em Portugal e Itália conjuntamente, é, aqui, a personagem emblemática, e autobiográfica tanto pela identidade do lugar (Vieira, português, pregava em Roma) como pela referência homônima (Antônios, ambos) — que sintetiza esta dupla função, inseparável, de português e missionário: “E se Antonio era luz do mundo, como não havia de sair da pátria? Este foi .o segundo movimento. Saiu como luz do mundo, e saiu como português. Sem sair, ninguém pode ser grande: Egredere de terra tua, e faciam te in gentem magnam, disse Deus ao pai da fé. Saiu para ser grande, e, porque era grande, saiu”.[19]

Ainda segundo o pregador, a “fundação” e “instituição” do Reino de Portugal por Cristo, como a dotação jurídica das novas terras que lhe foi feita pelos Sumos Pontífices, obriga-o à “propagação da Fé e conversão da alma dos gentios”. O rompimento do “intento e contrato” implicará a completa ruína do império: “no-lo tirará o mesmo Senhor que no-lo deu”.[20] A arte do pregador é, assim, a viga-mestra da sua sustentação.

Camões e Vieira sucedem-se, pois, cada um no exercício da arte que lhe é própria, como titulares de uma impressionante e turbulenta — por assim dizer — secretaria do Império. Por mais de um século, enquanto este se arruinava para sempre, fizeram-na ferver como jamais e ficamos nós, agora mesmo, com a vontade febricitante a cada vez que examinamos o que andaram lançando em seus papéis. Nem um, nem outro, porém, nem de longe ficaria satisfeito com um reino de palavras somente, porque se as diziam era para descobrir ou fabricar a passagem do desejo para um reino também histórico. Um reino, aliás, mais real que a história anterior a ele, pois seria plenamente, segundo a “verdade, nua e pura” que a invenção poética descobria, aquilo que a história ainda não concebia ou experimentava senão de maneira precária.

O Império, a que tanto Camões quanto Vieira pretendiam servir, não era, de modo algum, o da língua que foi, afinal, o que puderam ter —, a não ser na medida em que da língua esperavam, com confiança e audácia desmedidas, o fogo capaz de animar o seu movimento universal. Era em territórios objetivos que pensavam, como objetiva supunham a ordem divina que impregnava a geografia mundial. Era “Império de expansão” e “Império de domínio”, conquistado por armas, palavras, ou ambas, e não apenas “Império espiritual” ou “Império de cultura”, para trazer à cena uma distinção iluminadora proposta por Pessoa, este que tanto pretendeu ser um “SupraCamões”, como abrir ainda um “terceiro aviso”, após o de Vieira, a quem coroou “Imperador da língua portuguesa”.[21]

Da mesma maneira, o homem de “gênio universal” que ideavam Camões e Vieira não refere apenas, como anota Margarida Vieira Mendes a propósito deste último, à “extensão do saber, ou do conhecer”, como era o caso do uomo universale, proveniente do renascimento italiano” mas compreende também “a extensão geográfica e continental do viver, da acção”. É, como diz a autora, uma “espécie de cosmopolita físico”.[22]

Os pontos repassados aqui, muito por alto, constituem naturalmente um horizonte amplo demais. Para nos aproximarmos daquilo que, nele, reserva-se as cores particulares das Artes, talvez convenha retomá-los com mais detalhe, embaralhando-os em torno do papel-chave cumprido pelo engenho na inteligência do grande feito e de sua faculdade de efetuar o que, em tal feito, permanece figura ou potência de sua perfeição.

2

Talvez se possa entrar na questão através de Camões, e, para nos concentrarmos na relação da arte com o feito histórico, atermo-nos particularmente aos Lusíadas. Nesse caso, o final do canto v, em que o Gama encerra a narração dos sucessos extraordinários que fizeram a história de Portugal desde a fundação do Reino até a chegada da expedição a Melinde, fornece uma excelente pista para a discussão. Num daqueles excursos que fizeram da epopeia lusíada a mais aflita que se pode conceber, no limite quase inverossímil daquilo que admitiria um discurso de louvor, defrontam-se surpreendentemente o herói e o poeta. É dito então que, a despeito de Portugal gerar grandes capitães, capazes de denodados combates e façanhas, êmulos dos antigos e superiores aos de todas as outras nações, falta-lhes o engenho, o amor da ciência, artes e eloquência. É esta falta justamente que os impede de conhecer a verdadeira importância dos poetas dedicados a divulgar seus feitos. Eis:

Trabalha por mostrar Vasco da Gama


Que essas navegações que o mundo canta


Não merecem tamanha glória e fama


Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.


Sim, mas aquele Herói que estima e ama


Com dões, mercês, favores e honra tanta


A lira Mantuana, faz que soe

Eneias, e a Romana glória voe.

Dá a terra Lusitana gpiões,


Césares, Alexandros, e dá Augustos;


Mas não lhes dá, contudo, aqueles dões


Cuja falta os faz duros e robustos.


Octávio, entre as maiores opressões,


Compunha versos doutos e venustos


(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira,


Quando a deixava Antônio por Glafira).

Vai César sobjugando toda França

E as armas não lhe impedem a ciência;

Mas, nua mão a pena e noutra a lança,

Igualava de Cícero a eloquência.

O que de Cipião se sabe e alcança

É nas comédias grande experiência.

Lia Alexandro a Homero de maneira

Que sempre se lhe sabe à cabeceira.[23]

E conclui:

Enfim, não houve forte Capitão

Que não fosse também douto e ciente,


Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,


Senão da Portuguesa tão-somente.


Sem vergonha o não digo: que a razão


De algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima:

Porque quem não sabe arte, não na estima.[24]

Ou seja, os capitães portugueses, ao avaliarem baixamente os poetas, acabam tendo suas façanhas menos conhecidas que a dos antigos, embora possam verdadeiramente excedê-los. Mas há algo mais do que isso. Se é certo que as proezas dos portugueses podem superar a dos antigos, também não há dúvida que o engenho capaz de divulgá-las igualmente pode exceder aqueles que efetuaram os cantos do passado. À competição dos feitos heroicos corresponde estreitamente a competição das epopeias que, ao final, como ao Gama apenas cabe o louro da mais ousada navegação, também apenas ao poeta português cabe o de melhor louvor das ações humanas virtuosas.

Depois, se os poetas antigos, para encarecer os seus heróis, contaram façanhas fingidas e imaginadas, e os feitos dos portugueses excederam mesmo à fantasia, é certo que o poeta português, dizendo exclusivamente a. verdade, supera a todos os antigos, e os reduz ao silêncio — como a navegação dos portugueses relega à dimensão local, mesmo o sonho dos heróis antigos. A disputa entre os feitos, continua-o agora o poeta, que só fará bem o seu combate e será fiel à grandeza do feito, quando, armado apenas da verdade, produzir um canto mais excelente que o das narrações aventurosas, porém fingidas. Voltando ao canto v, finda a narração do Gama ao rei de Melinde, outros versos acentuam esses lugares:

Julgas agora, Rei, se houve no mundo

Gentes que tais caminhos cometessem?

Crês tu que tanto Enéias e o facundo

Ulisses pelo mundo se estendessem?

Ousou algum a ver do mar profundo,

Por mais versos que dele se escrevessem,

Do que eu vi, a poder de esforço e de arte,

E do que inda hei de ver, a oitava parte?[25]

Aqui, Camões põe na sua arena Homero, primeiro, e depois Virgílio, modelos emuladamente imitados por sua arte:

Esse que bebeu tanto da água Aônia,

Sobre quem têm contenda peregrina,

Entre si, Rodes, Smirna e Colofônia,

Atenas, Ios, Argo e Salamina;

Essoutro que esclarece toda Ausônia,

A cuja voz, altíssona e divina,

Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece,


Mas o Tibre co som se ensobervece:

Cantem, louvem e escrevam sempre extremos

Desses seus Semideuses e encareçam,

Fingindo magas Circes, Polifemos,


Sirenas que co canto os adormeçam;


Dem-lhe mais navegar à vela e remos


Os Cícones e a terra onde se esquecem


Os companheiros, em gostando o loto;


Dem-lhe perder nas águas o piloto;

Ventos soltos lhe finjam e imaginem

Dos odres e Calipsos namoradas;

Harpias que o manjar lhe contaminem;

Descer às sombras nuas já passadas:

Que, por muito e por muito que se afinem

Nesta fábulas vãs, tão bem sonhadas,

A verdade que eu conto, nua e pura,

Vence toda grandíloqua escritura![26]

Contudo, não é só contra os veneráveis antigos, que imita, que o poeta combate: como o Gama, enfrenta igualmente os inimigos vis do presente, postos em vão entre ele e seu destino. O fingimento que nos antigos é grandeza, pois movido do amor da pátria e do desejo de elevar os seus legítimos heróis, entre os adversários contemporâneos rebaixa-se no desperdício de palavras: são os escritores de novelas de cavalaria que trazem embevecida a imaginação dos vulgares. Isso se mostra bem visível, no canto quando o divertido marinheiro Veloso conta aos companheiros a história de Magriço e os doze de Inglaterra, para que “aprendam a fazer feitos grandes de alta prova”. Ao chegar ao ponto em que o modelo comum das novelas mandava contar os duelos tidos pelos cavaleiros no torneio, Camões adverte:

Gastar palavras em contar extremos

De golpes feros, cruas estocadas,

É desses gastadores, que sabemos,

Maus do tempo, com fábulas sonhadas.[27]

Se o Gama derrota seus inimigos do presente e reduz ao âmbito local os feitos dos antigos, Camões, igualmente, tanto vence com a descoberta essencial da virtude heroica o gosto vulgar dos golpes aparentes, quanto supera com a energia poética da verdade o fingimento patriótico dos antigos épicos.

Mais. A relação entre o feito e o seu canto não é de simples paralelismo de competição, em que o superior cala o inferior. A relação hierárquica não se mantém apenas de canto a canto e de feito a feito, mas avança até confrontar o feito com o canto que faz o seu louvor. Para Camões, o fato de que os bravos portugueses sejam sem dões e engenhos, incapazes de estimar a arte, torna-os, de fato, menores do que são, e menores os seus feitos. Pois o canto, agora se compreende, não é apenas elogio posterior de um feito acabado: é a descoberta efetiva do que ele tem de mais sublime; é a sua continuação, por assim dizer, até o ponto mais alto em que a façanha histórica torna-se espiritual conjuntamente, e imortal. Poder-se-ia dizer que, sem a epopeia, o Bem da proeza não se pode cumprir integralmente. Em primeiro lugar, porque nada incita tanto o desejo de Bem dos heróis que a fama justa que conquistam:

Quão doce é o louvor e a justa glória

Dos próprios feitos, quando são soados!

Qualquer Nobre trabalha que em memória

Vença ou iguale os grandes feitos já passados.

As invejas da ilustre e alheia história

Fazem mil vezes feitos sublimados.

Quem valerosas obras exercita,

Louvor alheio muito o esperta e incita.[28]

Depois porque, quando é grande o engenho, torna-se ele mesmo honra, prazer e excelência — objeto, por si só, do desejo do herói, e não apenas pela fama que proporciona:

Não tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandro, na peleja,
Quanto de quem o canta os numerosos
Versos: isso só louva, isso deseja.
Os troféus de Milcíades, famosos,
Temístocles despertam só de inveja:
E diz que nada tanto o deleitava
Como a voz que seus feitos celebrava.[29]

E há, enfim, uma terceira razão que Camões apresenta em favor da alta função da epopeia. Para ele, nem mesmo poder-se-á compreender toda a extensão do feito sem que a inteligência do gênio e o rigor da arte descubram nele o seu móvel superior e o proponham como modelo de virtude heróica. Este o custo mais alto — que chega a pôr em risco a existência mesma dos grandes feitos, além da dos grandes poetas —, que Portugal paga pela ausência de reconhecimento do poeta épico entre os maiores do reino:

Por isso, e não por falta de natura,


Não há também Vergílios nem Homeros;


Nem haverá, se este costume dura,


Pios Eneias nem Aquiles feros.


Mas o pior de tudo é que a ventura


Tão ásperos os fez e tão austeros,

Tão rudos e de engenho tão remisso,

Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.[30]

As armas apenas, sem a companhia das letras, significam mais que a falta ou a perda da arte: significam a impossibilidade de continuidade dos feitos grandiosos. A falta de estima da arte não implica apenas a rudeza dos heróis, mas a própria limitação de sua virtude heroica, incapaz de atingir o verdadeiramente sublime.

Visto da maneira mais radical, o mau costume dos heróis portugueses é o correspondente, neles, ao vil costume do tempo. É igualmente efeito do geral desconcerto do mundo, contrário ao amor da pátria, da fé, da honra e da virtude, vale dizer, contrário a tudo que pode explicar os esforços sobre-humanos do poeta, posto em miséria, para concluir a sua longa e exasperada peregrinação. Revela-o exemplarmente o final do canto VII, quando o épico, ouvido por suas Musas somente, prepara-se para emprestar a voz exausta aos retratos mudos dos heróis portugueses, afixados nas bandeiras da nau, que Paulo da Gama vai descrever ao Catual de Calecut:

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A Fortuna me traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo e novos danos:

Agora o mar, adora exprimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Cánace, que à morte se condena,

Nua mão sempre a espada e noutra a pena;

Agora, com pobreza avorrecida,

Por hospícios alheios degradado;


Agora, da esperança já adquirida,


De novo, mais que nunca, derribado;


Agora às costas escapando a vida,


Que dum fio pendia tão delgado


Que não menos milagre foi salvar-se


Que pera o Rei Judaico acrescentar-se.

E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles que eu cantando andava

Tal prêmio de meus versos me tornassem:

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram,

Com que em tão duro estado me deitaram![31]

Neste ponto, a ironia magoada e brutal do poeta mede a si mesmo com seus heróis:

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valerosos,

Que assim sabem prezar, com tais favores,

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,


Pera espertar engenhos curiosos,


Pera porem as cousas em memória


Que merecerem ter eterna glória![32]

O não-reconhecimento do gênio, insinua, portanto, a debilidade do herói, cuja ingratidão e mau exemplo acaba voltando-se contra a sua própria memória.

Daí que apenas aquele que reúne em si bravura e entendimento, experiência e saber, pode ser verdadeiramente justo, e não apenas com arte. Daí também que ao poeta não caiba apenas dar feição imortal ao canto, segundo engenho e arte, mas ainda reparar, como em tribunal, as injustiças cometidas à parte mais humilde, muito diferente do vulgo,[33] e aos melhores da república, em um mundo soberbo, confuso e sem regimento. O poema não apenas louva o feito acabado, como se viu, mas corrige moral e juridicamente o imperfeito e enganado, às suas próprias custas e do desejo reto que o move.

Talvez nesse sentido se possa interpretar a “dobrada fúria” que reclama o poeta fatigado à sua musa: dobrada, para que tanto repare a injustiça do esquecimento dos verdadeiros heróis da pátria pelos que, sem trabalho e com falsas razões, usam seu poder para antepor interesses próprios ao Bem Comum, quanta para que vença ao seu próprio cansaço frente à injustiça irreparável, por vezes cometida pelos próprios heróis, contra aquele que divulga o mais alto valor deles. Eis o passo:

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Imigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seu vícios;

Nenhum que use de seu poder bastante


Pera servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,


Se muda em mais figuras que Protejo.


Nem Camenas, também cuideis que cante


Quem, com hábito honesto e grave, veio,


Por contentar o Rei, no ofício novo,


A despir e roubar o pobre povo!

Nem quem acha que é justo e que é direito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Pera taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios que não passa.

Aqueles sós direi que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo e as Musas, que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida

Enquanto eu tomo alento, descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.[34]

Trabalho é um termo importante aqui, em que o equívoco ajunta à tópica do labor limae, essencial nas retóricas clássicas, o sentido comum de “esforço”, “prova”, e, ainda mais, de “cuidado”, “aflição”, “pena”. Arte, compreende-se, é simultaneamente ofício divino e desgraçado. O poeta, pago com misérias e trabalhos de um zelo amoroso que não poupa a vida, postula enfim a morte como critério último do merecimento do feito. O mais alto herói da epopeia torna-se a personagem trágica do poeta épico.

3

De início, Vieira, como Camões, também pensa que a sua arte está em confronto com o costume, que supõe ainda pior entre os seus pares de profissão. Publicar a verdade suposta na pregação é também silenciar o pregador vulgar do tempo, que, em tudo, faz a sua arte contrária à palavra divina que lhe dá fundamento, sustentação, finalidade e eficácia.

Fazer o pregão adequado, o da palavra divina, significa, em primeiro lugar, para Vieira, retomar a dignidade da arte de pregar, contrária a si mesma na prática usual do tempo. Se Camões tem que calar os antigos épicos e os contemporâneos gastadores de palavras, Vieira igualmente está obrigado a dois combates semelhantes. Em primeiro lugar, o de superar os antigos pregadores-profetas, por ter mais feitos históricos à sua disposição para submeter, como símbolos escriturais, à exegese, e descobrir, sob a sua cifra, o anúncio que fazem de novos feitos futuros:

Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos Antigos: nos Antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos melhor? Assim a confessou Santo Agostinho o qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou a verdadeira inteligência delas para os vindouros.[35]

E conclui, aplicando ao caso da interpretação profética do discurso do tempo, a alegoria do anão carregado pelo gigante, que, lançada por Bernardo de Chartres, no século XII, viraria tópica do princípio da emulação renascentista:[36]

Um pigmeu sobre um gigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos reconhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que nós pudéramos ver sem eles; mas nós, como viemos depois deles, e sobre eles por benefício do tempo, vemos hoje o que eles viram, e um pouco mais. O último degrau da escada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e estar em cima dos demais para que dele se possa alcançar o que dos outros não se alcançava.[37]

Em segundo lugar, obriga-se a calar os contemporâneos que põem a perder a gravidade do púlpito e desacreditam os intérpretes da palavra divina. Para este novo combate, Vieira reserva palavras duríssimas contra o estilo culto em moda entre os pregadores da Corte, buscando expurgar a arte de pregar, para limpá-la e preservá-la, do que então mais se gabava de artístico. Assim é que diz naquele célebre passo da Sexagésima:

O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit qui seminat seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geografia tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte: caia onde cair.[38]

O ponto é curioso. Se Camões cobrava dos portugueses a pouca estima que mostravam pelas artes, Vieira, de certo modo, cobra deles o excesso vulgar dessa estima, ao menos no tocante à arte de pregar. Não, claro, que pretendesse negar a arte do sermão, ou o sermão como arte. Nenhum a conhecia como ele, que não havia parte dela em que não se distinguisse. A questão aqui é outra. É do interior do domínio das artes retórica e poética, como do interior da ciência teológica, que faz seu ataque contra os “estilos modernos”. A sua concepção da “arte sem arte”, em certa medida, repõe a tópica clássica do ne quid nimis, vale dizer, da “fuga ao excesso”, formulada exemplarmente pelo modus in rebus horaciano, que, por sua vez, repunha recomendação de Píndaro, Aristóteles e outros:[39] “Est modus in rebus, sunt certi denique fines/ Quos ultra citra que ne-quit consistere rectum […]” [Há uma medida nas coisas; há, enfim, certos limites, aquém ou além dos quais o bem não pode subsistir].[40]

É verdade que, no contexto contrarreformista, o esforço de “recristianização do orador eclesiástico” e de impedimento de sua laicização através da eloquência clássica, como o diz Margarida Vieira Mendes, fez com que recrudescesse a “cautela devota contra os perigos da arte pagã e laica por excelência”.[41] A entrada em cena dos jesuítas, porém, altera o ângulo dessas preocupações. Com a sua formação acentuadamente humanista, estavam convencidos de que a pregação apostólica não poderia prescindir da arte, e o caso, aqui, era sobretudo o de conciliar ambas as tradições: celebrar “o orator retoricamente competente e, ao mesmo tempo, imitador de Cristo, dos Apóstolos e de S. Paulo”.[42]

Desse modo, não convém fazer da recomendação de Vieira de uma “arte sem arte” qualquer recusa (pré-ilustrada, pré-romântica, pré-modernista) do ornato dialético ou do conceito engenhoso como procedimentos artísticos adequados, mas notar, sim, que está se referindo à arte do sermão, e o que pretende é estabelecer os princípios dessa adequação no tocante à arte específica que está considerando. Trata-se de repor o preceito retórico do decoro, da conveniência de pessoa, lugar e tempo segundo o gênero, de maneira que a sua aplicação correta impeça que se perca a eficácia desejada, vale dizer, impeça que o sermão frutifique, que é o que necessariamente ocorre quando se deixa de observar a investidura solene do pregador. O princípio mais geral é o seguinte: “Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer, tão naturais, que vão caindo, tão próprias, que venham nascendo”.[43]

A partir da parábola do semeador, que dá tema ao Sermão da Sexagésima (Semen est verbum Dei), especifica então que a sua “arte sem arte” supõe a aplicação adequada de três regras básicas, para a invenção, elocução e disposição, respectivamente:

O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu: para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair. Há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão de vir bem trazidas, e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetado que pareça caso e não estudo. Cecidit, cecidit, cecidit.[44]

A aplicação conveniente da arte ao pregar, para Vieira, como disse, deveria cuidar para que nada no sermão ferisse a dignidade de que se reveste a pessoa do orador eclesiástico, cujo “conceito” público interfere na sua eficácia junto ao auditório. O tema, pensado claro em relação ao orador laico, é de fundo aristotélico: remete à questão da prova moral constituída pela imagem do orador e seu efeito persuasivo no público. Na quarta parte do Sermão da Sexagésima, Vieira desenvolve-o, com extraordinária habilidade, especificamente no tocante ao auditório cristão.[45] Esta imagem, diz ele, é o que primeiro se compromete, tão logo o púlpito tome ares de “comédia”, senão piores:

Pouco disse S. Paulo em lhes chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia: são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência, e todos, desde o dia em que os professamos, mortalhas), a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio. E quando este se rompeu, que é o que se ouve?[46]

Até aí a composição da cena gravíssima, coroada justamente pela estupefação e mudez que aguarda a voz definitiva a ser pronunciada pelo pregador; mas Vieira a prossegue, em excurso, dilatando a suspensão dos ouvintes:

Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do céu, que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos?[47]

É então que desata com violência o nó do desfecho patético:

Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fôra tanto para chorar?[48]

Enfim, uma vez mais, cobra o decorum próprio a cada arte:

Na comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rústico veste como rústico e fala como rústico, mas um pregador vestir como religioso e falar como… não o quero dizer por reverência ao lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão comédia, sequer não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício?[49]

Há ainda um outro aspecto a retomar, na relação entre os feitos e a palavra do pregador. Para um orador eclesiástico, como Vieira, a atenção exigida pelos fatos históricos é semelhante àquela que o texto sagrado cobra do exegeta. Trata-se de ler em tais fatos, mormente os decisivos da história de Portugal, a verdade cifrada da palavra de Deus a propósito do futuro reservado aos homens. Até aí, divulgar. Amplificar. O que cabe silenciar, ao contrário, é uma arte que em vez de descobrir aos ouvintes maravilhados os sinais obscuros da Providência, e de movê-los acertadamente em direção ao futuro cristão que se prepara, trata de cegá-los com a pirotecnia de sua própria arte.

Ou seja, a arte oratória do pregador — que é sagrada porque revela e dispõe segundo a Providência — não pode senão fracassar quando atenta apenas para seus próprios mecanismos e procedimentos. Supondo-se autônoma, tomba sobre si mesma, e imediatamente perde seu fundamento teológico e sua razão de ser na história, que é essencialmente teleológi-ca: preparar as gentes para o futuro lido nos feitos. Nada mais aproveita então esta arte, seja à Igreja universal ou ao Império, pois, encantada consigo mesmo, toma a palavra de Deus, repete o seu som, porém já não conhece o seu sentido:

Mas, dir-me-eis: padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus. Quiha bet sermonem meum, loquatur sermonem meus vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus pregadas no sentido que Deus as disse, são palavras de Deus, mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavra do demônio.[50]

E interpelando, como in praesentia, aos pregadores que usam de tal forma a sua arte, “indignos verdadeiramente de tão sagrado nome”,[51] interroga-os duramente:

Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo, porque muitas vezes as tomais pelo que soam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que soam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem.[52]

Se em Camões a má estima dos versos, destrói a possibilidade da mais alta participação dos homens na virtude, aqui, a muito estima de uma arte que se ilude a respeito do seu fundamento, acaba por arruinar a possibilidade de salvação depositada nas vozes dos pregadores — e, ainda mais, dos pregadores portugueses, “luzes do mundo”. Perdido o decoro e o sentido na forma pretensamente autonomizada, sem a aplicação adequada do ornato, o aplauso do auditório como as figuras da elocutio testemunham apenas a própria condenação:

Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos. Oh! que bem levantou o pregador! Assim é: mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus?[53]

Vieira escolhe o termo levantar a dedo, como sempre. O cuidado exclusivo no levantar retórico dos lugares da invenção sem cuidar do fundamento teológico absolutamente implicado no gênero, faz com que o fim salvífico que o justifica já não possa ser alcançado. A arte, à roda de si mesma, já não obtém fruto algum: “Ah! Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas õ que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito, logo, que as nossas imaginações e as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!”.[54]

As fábulas fingidas das epopeias antigas e das novelas de cavalaria, que, em Camões, são vencidas pelos feitos dos portugueses e pelo seu próprio canto verdadeiro, em Vieira impregnam a arte mesmo do pregador, de modo a impedir a eficácia de sua atuação cristã.

E também está claro que, para ele, a palavra do pregador (como, para, Camões, a alta realização da epopeia) não é apenas acontecimento paralelo ou posterior à conclusão dos grandes feitos. A falta de atenção para o pregar verdadeiro (como, para Camões, a ausência de estima da epopeia) terá como efeito desastroso a perda do desejo virtuoso e da reta orientação das gentes no cumprimento da finalidade cristã da história — que fica adiada, ainda que não perdida.

4

Mesmo posto por alto o que pensam a respeito de suas artes respectivas o épico e o pregador profeta fica logo claro o lugar principal que atribuem a elas no aperfeiçoamento e destinação — e não apenas representação, nem jamais condensação puramente estética — da história. Valeria a pena talvez avançar um pouco mais a comparação entre ambos, neste mesmo ponto preciso em que se defrontam as artes e os grandes feitos.

Para Camões, o feito histórico não atinge verdadeiramente a sua plenitude heróica ou sublime sem o seu reconhecimento pelo gênio ou sem que se produza o canto que desempenha o seu valor, isto é, sem que se acrescente aos sucessos das armas o espírito das letras. Ao passado grandioso da pátria é necessário que se ajunte a inteligência dele pela arte a fim de que o feito alcance o estatuto de uma virtude imortal, e que esta virtude, estabelecida assim como modelo de excelência humana, passe a participar do movimento dos seres em direção à sua perfectibilidade.

Em Vieira, os feitos históricos principais do passado português — cujos heróis, em geral, repartem-se entre os momentos decisivos da fundação da nacionalidade, das grandes descobertas e do período presente da chamada Restauração[55] (entre os quais naturalmente se inclui) — são, em sua ocorrência mesma, natural, histórica, por vezes até mecânica, efeito de uma determinação providencial. Isto significa que, enquanto fato, são imediatamente alegoria (antes mesmo que a arte do engenho encontrE para eles a figura capaz de dar-lhes a mais alta substância épica, como em Camões). Melhor dizendo, são allegoria in factis,[56] signos de uma movimentação divina na história que deve ser interpretada e divulgada, segundo o decoro da oratória sacra, de modo a, por sua vez, mover os homens e fazê-los, pela reta eleição do seu arbítrio, cumprir o futuro que se anuncia.

A arte de pregar tem, aqui, uma tripla função: a de interpretar a semântica das realidades[57] portanto, uma função exegética; a de anunciar o futuro —, logo, profética; e a de divulgar para todas as criaturas, mesmo as mais bárbaras e nas partes mais recônditas do mundo, a palavra divina e a historia do futuro que lê —, portanto, uma função apostólica, missionária. Todas essas funções sintetizadas na atividade do pregador fazem dele, na verdade, o principal protagonista dos feitos presentes. Ao interpretar as palavras de Deus (nas Escrituras ou na história, não importa, que tudo é fato e livro conjuntamente) e dá-las aos mais variados auditórios; ao levantar os conceitos convenientes de sua arte (cuja invenção nada pode criar, mas apenas aplicar ao caso, atualizar) e levar os fiéis a cooperar com a autoria divina da história; ao agir assim, o pregador, em Vieira, acaba por tomar — eis aí — um caráter verdadeiramente épico. Na largueza intelectual e voluntarismo amoroso de seu gesto heróico decide-se a sorte da nação, da Fé, do universal Império a ser fundado, que seria maior e melhor, como julgava, que os quatro anteriores, já arruinados, de assírios, persas, gregos e romanos. Ele mesmo o crê, e o diz de maneira extraordinária ao interpelar os portugueses do seu tempo e reclamar para si a dignidade de uma proeza ainda maior que a dos antigos heróis das descobertas:

Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó Portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o mundo ao mesmo mundo. Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior Gama, maior Cabo, maior Esperança, maior Império.[58]

Os feitos da história nacional são, portanto, embora fatos, mais potência que ato: signos, tipos, que aguardam o exegeta-pregador-profeta que há de desempenhá-los como feitos futuros acabados.

Em Camões, o feito é passado que a epopeia presente torna sublime, ao mesmo tempo em que o poeta épico cumpre, na verdade, o pathos do herói trágico. Ao fazê-lo, tanto acusa a baixeza dos contemporâneos, a tristeza indiferente em que decai o reino, quanto, justamente por isso, mantém em inquieta suspensão a esperança depositada no futuro. Em Vieira, há igualmente inquietude sobre o ânimo da gente e o estado desolado do reino, de que é um crítico ainda mais acerbo e quase cruel, mas nunca a ponto de diluir a nitidez ostensiva com que o futuro se exibe à vidência do pregador, cuja palavra soa com a grandeza decisiva do herói épico, em cuja ação pende o destino do reino.

Em Camões, o engenho experimentado do poeta é só o que pode descobrir, representar e emular as verdadeiras virtudes heróicas, cristãs e humanas, que conjugam a bravura comum das armas e das letras; em Vieira, a retórica do pregador é só o que pode esforçadamente tornar o homem co-autor do que lê claramente como Providência, assim como só ela pode ajuntar pelo argumento e por em obra razão de Estado e amor divino.

E se Camões faz de si mesmo, por antonomásia, figura da arte, que não se vê reconhecida pelos enganos da história, Vieira supõe já que, mesmo a arte mais sagrada, no presente, anda oposta a si mesma, e é preciso desenganá-la antes que à história. Em um caso e outro, porém, é em sua arte que julgam depositar-se a esperança possível de um destino português imperial.

À altura da metade de sua epopeia, Camões vai dizê-lo, conhecendo cabalmente que fora de seu puro amor da pátria, que mais o castiga que paga, nada o levaria a cantá-la:

Às Musas agradeça o nosso Gama

O muito amor da pátria, que as obriga

A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Caltope não tem por tão amiga

Nem as Filhas do Tejo, que deixassem

As telas de ouro fino, e que o cantassem.[59]

Já no canto X, numa última invocação às musas, quando, na Ilha dos Amores, trata-se de revelar ao Gama os feitos futuros que sua viagem abrira aos portugueses, o tom de seu desengano torna-se ainda mais baixo, mais exasperado, e penetra enfim, desgraçadamente, o próprio domínio de sua arte:

Aqui, minha Calíope, te invoco

Neste trabalho extremo, por que em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.

Vão os anos descendo, e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono;

A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha

Das Musas, co que quero à nação minha.[60]

Ao cabo dos feitos então que enuncia, implora já à Musa que o deixe, exausto menos dos trabalhos imensos da arte que da ingratidão de seus heróis. O passo, terrível, é conhecidíssimo:

Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

 Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Dua austera, apagada e vil tristeza[61]

Tal estrofe, ao final da epopeia, inevitavelmente faz pensar que, a despeito do feliz êxito da empreitada do Vasco, é sobre o épico principalmente que ameaça abater-se a maldição do velho do Restelo:

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,!

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Digno da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum alto e profundo

Nem cítara sonora ou vivo engenho,

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória![62]

Quanto a Vieira, este, quanto mais descrê da gente e da arte presente, mais julga infalível o futuro, quanto mais improvável a história, mais certo o milagre. Se, para Camões, o pecado mais vil do tempo parece ser o da ingratidão, para Vieira ela é pecado ainda maior quando se alia à desconfiança:

Quem crê que se hão-de cumprir aquelas tão felizes promessas, assim será para ele: vê-las-á e gozá-las-á: Sicut, credidisti, fiattibi. E quem não crê que se hão-de cumprir, será também para ele: não as gozará, nem as verá. É lei da liberalidade de Deus pagar a fé com a vista, por isso havemos de ver no Céu os mistérios que cremos na Terra. E este estilo que Deus [trata-se portanto de arte divina, que o costume não pode corromper) costuma guardar na glória da outra vida, guarda também ordinariamente nas felicidades desta, quando as tem prometido: os que as creem, terão vida para as verem; os que não as creem, morrerão, para que as não vejam.[63]

Os infortúnios e desastres, admite, serão efetivamente demasiados: se se há de restituir o mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor e sentimento dos membros, que estão \fora de seu lugar.[64]

Mesmo as desgraças, contudo, terão lá o seu sabor peculiar e alívio: “Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia, se são dos inimigos. Para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o prazer e para vós, a glória, e entretanto, as Esperanças.[65]

Em meio a tantas misérias, danos e perigos, com tais Boas Novas fiquemos.

Notas

[1] Para todas as citações de Camões utilizo a edição da Obra Completa, da Nova Aguilar, de 1988, primeira reimpressão da primeira edição de 1963, organizada por Antônio Salgado Júnior. As citações de Os lusíadas trazem em algarismo romano a especificação do canto e, em seguida, em arábico, o número da estrofe.

[2] Antônio Vieira, História do futuro, Lisboa, Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1982. Organização de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Citação à p. 54 (doravante, HF, seguido do número da página em que ocorre a citação).

[3] Para as citações dos Sermões, sirvo-me aqui da edição em 24 volumes da Editora das Américas, de 1957, sob a organização de Frederico Pessoa de Barros, P. Antônio Charbel e A. Della Nina. Para esquematização das referências, utilizarei o romano para especificação do volume em questão, seguido da página em que ocorre a citação. No caso presente: I, 22.

[4] Para um exame dos argumentos contrários à autoria vieiriana, veja-se o estudo de R. Cantel, “La retórica sagrada ou arte de pregar novamente descoberta entre outros fragmentos literários do grande p. António Vieira”, Miscelânea de estudos em honra do prof Vitorino Nemésio, Lisboa, Publicações da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1971.

[5] Rimas. Primeira Parte. Ode 8. Na edição citada da Obra completa, encontra-se à p. 343.

[6] Sermões, I, 86.

[7] I, 90.

[8] I, 90.

[9] I, 4-5.

[10] III, 2.

[11] HF, 95.

[12] A expressão é de Antônio Salgado Junior e encontra-se no Guia interpretativo d’Os lusíadas que preparou para a edição da Aguilar, à p. 803.

[13] I, 15-6.

[14] X, 155-6.

[15] A respeito desta questão do “serviço” como tópica fundamental das práticas letradas portuguesas da época das descobertas, há observações interessantes no artigo conhecido do padre Serafim Leite, “Camões, poeta da expansão da fé”, publicado no Arquivo camoníano da Academia Brasileira de Letras, em 1943. À p. 148 divide-se bem a tópica: “Nas consultas preliminares, dizia D. João I, que embora da conquista lhe adviesse grande honra e proveito só a executaria se fosse serviço de Deus. Os motivos propulsores dos Descobrimentos Portugueses encerram-se todos nestas três palavras de D. João I: serviço de Deus, honra e proveito: o serviço de Deus, na defesa e expansão da Fé; a honra, no império político; o proveito, no comércio e riqueza. As demais razões é fácil reduzi-las a alguma destas categorias, e o próprio comércio se pode incluir, já o dissemos, na categoria do Império”.

[16] A respeito desta tópica, em Vieira, tratei espaçadamente em meu texto incluído na coletânea Tempo e história, publicada pela Companhia das Letras, em 1992.

[17] VII, 318.

[18] Sermão de Santo Antônio, de 1670, cujo tema é Vos estis lux mundi (Mt 5:14). 24.

[19] III, 23.

[20] III, 387.

[21] A respeito dos “três graus de imperialismo” imaginados por Fernando Pessoa pode-se conferir o que escreveu em Sobre Portugal, Lisboa, Ática, 1979. O fragmento 74 é especialmente relevante aqui. O poema “Antônio Vieira” está na parte de Mensagem relativa justamente aos Avisos proféticos fundamentais soados em Portugal. Seu primeiro quarteto reza o seguinte: “O céu strella o azul e tem grandeza./ Este, que teve a fama e à glória tem,/ Imperador da língua portuguesa,/ Foi-nos um céu também”.

[22] Cf. A oratória barroca de Vieira, de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Editorial Caminho, 1989. Citações às pp. 106-7.

[23] V, 94-6.

[24] V, 97.

[25] V, 86.

[26] V, 87-9.

[27] VI, 66.

[28] V, 92.

[29] V, 93.

[30] V, 98.

[31] VII, 79-81.

[32] V, 82.

[33] No que toca ao povo, terceira ordem do reino, como tópica da epopeia camoniana e de outros autores do Renascimento português, Martim de Albuquerque tem comentários bastante precisos em seu A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1988. Em particular cabe notar que Camões distingue “a plebe, o vulgo, a multidão informe, o grande animal polícromo de que falava Platão”, de que escarnece, e “o povo ordeiro, trabalhador e sofredor”, para o qual “tem apenas palavras de piedade, carinho e defesa”, p. 138.

[34] VII, 84-7.

[35] HF, 150.

[36] José Antonio Maravall, Antiguos y modernos, Madrid, Alianza, 1986. Referência à p. 232.

[37] HF, 150.

[38] I, 64-5.

[39] Ver a propósito a Introdução à poética clássica, de Segismundo Spina, São Paulo, FTD, 1967, tão pouco lida ou citada hoje, quanto importante. O comentário em questão encontra-se à p. 34.

[40] A tradução é de S. Spina. Idem, ibidem.

[41] A oratória barroca de Vieira, p. 66.

[42] Ibidem.

[43] I, 65.

[44] I, 65.

[45] Tal é o aspecto da oratória do jesuíta mais estudado por Margarida Vieira Mendes em seu livro já citado. Logo à introdução afirma que: “[…] na obra de António Vieira tanto o pathos como o logos derivam de uma energia especial própria do ethos do pregador”, p. 30.

[46] I, 86-7.

[47] I, 87.

[48] I, 87.

[49] I, 87.

[50] I, 82.

[51] I, 83.

[52] I, 84.

[53] I, 84.

[54] I, 85.

[55] Margarida Vieira Mendes, em seu artigo “Vieira no cabo de Não”, Claro-Escuro, 6-7, Lisboa, 1991, em que comenta a tópica dos descobrimentos no Livro anteprimeiro da história do futuro, nota que ela “logra um relevo especial, de tipo geométrico. Os descobrimentos passam a fazer parte de um significativo conjunto dos ‘casos maiores que podem acontecer a um reino’, todos eles dotados de uma origem sagrada porque derivados da profecia, ou seja, do conhecimento e da fé no futuro prometido por Deus: a empresa do infante D. Henrique, tal como a de Ourique com D. Afonso Henriques, havia-lhe sido inspirada por Deus, o que voltará a acontecer na Restauração”, p. 12.

[56] A respeito da “alegoria factual”, veja-se o utilíssimo texto de João Adolfo Hansen, Alegoria — Construção e interpretação da metáfora, 2a ed., São Paulo, Atual, 1987 e, em particular a sua terceira parte, “A alegoria como interpretação ou alegoria hermenêutica ou ‘alegoria dos teólogos’ “, pp. 43 ss.

[57] Idem, ibidem.

[58] HF, 54.

[59] V, 99.

[60] X, 8-9.

[61] X, 145.

[62] IV, 102.

[63] HF, 72.

[64] Idem, 54-5.

[65] Idem, 55.

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