2011

As armadilhas da história universal

por Marcelo Jasmin

Resumo

A crença de que a humanidade está submetida a uma história universal – compreendida como um percurso estruturado de desenvolvimento, iniciado na selvageria e orientado para um futuro luminoso, cujas leis poderiam ser conhecidas – parece ter perdido sua naturalidade no mundo contemporâneo. As dramáticas experiências vividas desde a Segunda Guerra Mundial, em oposição à autorreferência humana até ali vigente, obrigaram à busca de formas alternativas para a orientação do agir que não as inscritas nas filosofias da história. Nesse contexto de desorientação, o caráter culturalmente situado das crenças históricas abrangentes que conformaram o mundo moderno torna-se particularmente visível.

Muitas comunidades sobreviveram e sobrevivem sem manifestar a necessidade que o Ocidente sente, desde os gregos, de salvar do esquecimento e da voragem do tempo os feitos humanos a ponto de constituir um sistema de produção de conhecimento acerca dos fatos mundanos do passado. Mitos, memórias, diários e registros de natureza diversa cumpriram e cumprem muitas das funções sociais que exigem remissão ao passado, sem que a história – conhecimento sistemático, crítico, racional do passado mundano das comunidades humanas – tenha precisado emergir. Esse dado é suficiente para que se saiba, em primeiro lugar, que a história não é uma necessidade natural dos seres humanos e sim uma invenção civilizatória e, em segundo lugar, que, como tal, continua a existir na medida em que responde a necessidades humanas, sociais ou espirituais que, por vezes, sequer somos capazes de identificar com clareza. Em resumo: o conhecimento histórico pode acabar como tantas outras formas do saber que desapareceram ou foram marginalizadas no contexto abrangente do horizonte cultural do ocidente, como a magia ou a alquimia, por exemplo. Mas seria possível prescindir de uma crença na história mesmo que sem vínculos com o aparato científico e filosófico do conhecimento?

Até aqui, no contexto das tradições greco-romanas e judaico-cristãs, a história sempre foi uma crença ativa na conformação do agir e do estar no mundo de grupos e indivíduos. Conta-se, cotidianamente, com duas respostas tradicionais à pergunta sobre como a história opera neste mesmo horizonte cultural e que correspondem às duas grandes configurações historiográficas que o Ocidente conheceu: a primeira, que foi nomeada por Cícero, no século I d.C., a História Mestra da Vida, crê que história opera como uma coleção de exemplos que servem à prudência; a segunda, própria ao iluminismo europeu e às filosofias da história em seus diversos matizes, supõe que a história é um processo ordenado de desenvolvimento dos fatos que explica o presente, o que é a humanidade e como ela chegou onde chegou.

Em que medida serão ainda plausíveis essas crenças históricas?


A HISTÓRIA COMO CRENÇA

Podemos compreender a história universal como uma forma moderna de crença. Tomemos como ponto de partida a suposição, compartilhada por grande parte dos habitantes do Ocidente moderno, de que a História é um processo ordenado de desenvolvimento da humanidade no tempo. Apesar das suas muitas variações, a forma genérica deste processo é a de um percurso iniciado num passado remoto que já deixamos para trás — as “cavernas” —, que atravessa o presente atual experimentado como um instante breve, momento de passagem em direção a um tempo novo, heterogêneo, o futuro. Em muitas versões dessa crença imaginou-se que, com bons instrumentos científicos, seria possível conhecer antecipadamente o futuro, apreender o que faz a História mover-se e, de posse de tais conhecimentos, acelerar ou retardar o processo histórico universal pela ação consciente na direção em que este se dá. Tais crenças viabilizaram afirmações como a de que o homem faz a história ao planejar o seu futuro, ou a da História — com H maiúsculo e enunciada no singular — como o verdadeiro tribunal e a última instância para ajuizar o valor das coisas humanas.

A partir desse desenho inicial, que se não me engano pode ser reconhecido por qualquer um que tenha vivido as décadas anteriores aos anos 1980, eu gostaria de trabalhar três hipóteses. A primeira delas é a de que essa perspectiva sobre a história difundiu-se tão amplamente no Ocidente moderno que foi naturalizada e passou a operar como uma crença constitutiva da autorreferência humana, servindo para responder perguntas relevantes como: o que somos, de onde viemos e para onde vamos. A segunda hipótese, de caráter mais historiográfico, é a de que essa crença numa história universal passível de ser conhecida em seus fundamentos e dirigida pela ação humana só foi possível a partir de uma concepção particular, histórica e culturalmente situada, concebida paulatinamente pelo mundo europeu entre os séculos XVI e XVIII, e que adquiriu as suas formulações mais sistemáticas e representativas nas filosofias históricas dos séculos XVIII e XIX. A terceira e última hipótese é a de que os acontecimentos catastróficos do século XX, em particular os experimentados na Segunda Guerra Mundial, e de lá até a Queda do Muro de Berlim, em 1989, fizeram com que não pudéssemos mais crer com a naturalidade moderna no esquema universal e progressivo do tempo histórico. Isso ensejou a percepção de que aquilo que nos parecia uma dimensão intrínseca à existência e natural à consciência humana era somente uma dentre as formas culturalmente possíveis de se ordenar o tempo e engendrar a autorreferência humana. O que em algum momento recente se chamou pós-modernismo é, neste quadro hipotético, apenas um sintoma de que os modos modernos de lidar com a história estão no limite de sua validade e persuasão. Assim, propõe-se ao pensamento a tarefa de elaborar formas alternativas de lidar com a estrutura temporal da história, as relações entre o passado, o presente e o futuro.

O conceito de história: história e historiografia

Comecemos por uma distinção interna ao conceito de história. Ao usarmos o termo “história” na atualidade, podemos nos referir a coisas distintas, dentre elas os acontecimentos do passado e o conhecimento do que se passou. História é tanto o acontecido quanto o que se diz sobre ele, é o fato e a sua narrativa, o passado e a sua representação. Esta distinção interna ao conceito é moderna. Quando no século V a.C. Heródoto, o primeiro a registrar os fatos humanos sob o termo “histórias”, assim, no plural, mobiliza o vocábulo, é para significar investigações; não os próprios feitos, mas aquilo que deles se conhece e se diz. Na obra de Aristóteles, o livro em que se discute a história é a Poética, cujo capítulo IX a compara com a poesia como formas da mímesis, da arte de imitar ou recriar, pela linguagem, o que se encontra fora dela. Do mesmo modo Cícero, na Roma do primeiro século antes de Cristo, ao dispor sobre as qualidades da história, o faz em seu livro sobre o Orador — “Que outra voz, se não aquela do orador, pode conferir a imortalidade à história, testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, revelação do passado?” —, indicando que a história é um ramo da retórica[1]. Não é muito distinto o estatuto da historiografia medieval e daquela do Renascimento. Por isso mesmo, quando se diz história nestes contextos, o substantivo vem sempre acompanhado de um complemento, seja uma qualificação adjetiva — história romana, história grega —, seja uma preposição, sob a forma geral “história de”, que pode ser de alguma coisa — a história da Guerra do Peloponeso, a história de Florença, a história do papado —, ou de seu autor — a história de Tito Lívio, a história de Leonardo Bruni. Maquiavel, por exemplo, intitula um de seus livros Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, que não trata, obviamente, da infância do historiador paduano, mas dos primeiros anos da história de Roma tal como narrada por ele.

A história com o significado de processo temporal que a humanidade realiza desde os seus primórdios aos dias de hoje e ao futuro, como a aventura humana na Terra, é uma concepção posterior ao Renascimento, de origem propriamente iluminista. O estudo da história dos conceitos nos mostra que é só na segunda metade do século XVIII europeu que vamos localizar com clareza o vocábulo “história” sendo usado para significar aquele processo universal. Entre Imo e 1850, no contexto da ampla transformação sofrida pela linguagem política e social europeia, o termo será cada vez mais usado no singular — a História —, e sem necessidade de complementos, para se referir à totalidade da dimensão temporal da própria existência humana. Ao mesmo tempo, o vocábulo manterá a sua conotação prévia de conhecimento ou representação dos feitos passados, o que produz a ambivalência inescapável que nos alcança ainda hoje, apesar dos esforços de historiadores e intelectuais para distinguir história e historiografia. Na língua alemã esse movimento torna-se mais visível na medida em que o termo latino “Histoire”, tradicionalmente usado para a referência às narrativas dos feitos humanos no tempo, vai sendo substituído pelo germânico “Geschichte”, que é portador daquela ambivalência e significa, simultaneamente, os feitos e o seu conhecimento[2].

É desta descoberta da história conceitual que parto para pensar como a crença numa História Universal, numa história em si, dimensão ontológica do real e autônoma em relação aos historiadores e ao pensamento, foi uma construção mental culturalmente localizada que, embora tenha preponderado nos últimos dois séculos, parece começar a nos abandonar.

Meu itinerário segue por três paragens. A primeira, breve, expõe modelos de crenças históricas anteriores ao século XVIII e que podemos reunir sob o rótulo da “história mestra da vida”, em referência à divisa ciceroniana, ainda que eu tome como principal exemplo uma narrativa retirada do contexto bíblico. A segunda paragem especula a possibilidade paradigmática da crença na História Universal a partir da análise do Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, do marquês de Condorcet, modelo dos princípios orientadores da filosofia histórica do Iluminismo francês. A terceira e última parte do caminho, também breve, apresenta dúvidas e indagações acerca dos limites atuais da crença moderna numa história universal.

USOS CLÁSSICOS DA HISTÓRIA

As histórias de Salomão e a exemplaridade bíblica

Comecemos por um exemplo retirado do contexto bíblico: a história do rei Salomão, que se encontra no Primeiro Livro dos Reis. O texto narra vários aspectos de seu reinado, mas a sua milenar recepção consagrou a fama de um deles: o caráter justo e sábio de sua personalidade. Narra o livro que ainda em vida o rei Davi, seu pai, faz saber ao povo que Salomão seria o seu sucessor. Logo após a breve narrativa das mortes ordenadas pelo novo rei em resposta a injustiças cometidas contra seu pai, eventos praticamente desaparecidos da memória difusa que preserva a história ainda hoje, conta o livro que Salomão adormece em Gabaon, onde fora oferecer sacrifícios. Neste local Iaweh aparece em sonho ao rei, dizendo: “Pede o que te devo dar”. Salomão, dizendo-se muito jovem para a tarefa que tem pela frente, pede a Iaweh “um coração que escuta para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal”, de modo a poder comandar com justiça. Iaweh fica satisfeito com o pedido de Salomão, especialmente por este não lhe pedir nada para si, e dá ao jovem rei o dom da sabedoria — nas palavras de Iaweh, tal como traduzidas pela Bíblia de Jerusalém, “um coração sábio e inteligente, como ninguém teve antes de ti e ninguém terá depois de ti” —, além daquilo que não pediu para si, riqueza e glória. Além disso, Iaweh promete a Salomão que, se este seguir o Seu caminho e guardar os estatutos e os mandamentos tal como fizera Davi, seu pai, ele terá vida longa[3].

A cena seguinte conta a famosa história das duas prostitutas que vêm ter com o rei, pois disputam a maternidade de uma criança. A passagem é conhecida: dado o igual pleito das duas mulheres, Salomão manda buscar a espada e partir a criança ao meio, para dar a cada uma a metade do pequeno morto. Enquanto uma das mulheres aceita que a criança morra e não fique com nenhuma delas, a outra suplica para que a criança viva, mesmo que perca a sua guarda. É neste momento dramático que a “sabedoria divina para fazer justiça” se manifesta através de Salomão, que decide: é esta última a verdadeira mãe, aquela que prefere que o filho viva, mesmo que criado pela outra mulher, a vê-lo morto[4].

Esta historieta tão familiar me permite sublinhar várias características próprias à estrutura das narrativas que reunimos sob o modelo da história mestra da vida. Em primeiro lugar, a cena se passa sem que haja marcadores precisos de tempo. Ela se inicia bruscamente: “Então duas prostitutas vieram a ter com o rei e apresentaram-se diante dele”. Quanto tempo se passou entre a morte de Davi, ou o início do reinado de Salomão, o seu casamento com a filha do faraó, a ida a Gabaon e o embate das duas mulheres não sabemos. Sabemos apenas que este embate se deu após o sonho com Iaweh e que depois dele Salomão retornou a Jerusalém, onde ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão, além de um banquete para seus servos. Não temos também informações detalhadas sobre as mulheres: sabemos que são prostitutas, que moravam na mesma casa, que tiveram filhos com três dias de diferença, que uma das crianças morreu sufocada pelo corpo da mãe durante o sono noturno e que esta trocou o seu filho morto pelo filho vivo da outra, querendo fazer a outra crer que o seu próprio filho morrera à noite.

O que é interessante notar aqui é que a narrativa não necessita de mais do que isso, dado que a historieta se destina a revelar aos seus leitores ou ouvintes tanto o paradigma da justiça como o modelo do amor materno. A sabedoria de Salomão vem da sua lealdade a Iaweh, que em troca lhe deu o discernimento. É justo aquele que se mantém ao lado de Deus, pois é da divindade que decorre a sabedoria necessária ao juízo. Discernimento para ouvir e sabedoria para julgar, atributos divinos da justiça, estão suficientemente presentes para fazer com que a justeza do rei se manifeste em sua plenitude[5].

Do lado materno, algo semelhante acontece. A mulher é uma prostituta, mas a explicitação do amor que dispensa ao filho, ao escolher o sofrimento menor de vê-lo vivo, ainda que sob a guarda da mentirosa, a torna digna do nome de mãe. E não há nada aqui, do ponto de vista do relato, que sugira a consciência de uma certa perspectiva, cultural da maternidade ou da concepção da maternidade num certo estágio do desenvolvimento da humanidade. O que se revela é o valor da mãe ela mesma, o seu dever ser, o modelo que deve ser tomado ali e pela posteridade como eterno, calcado no amor ao filho acima de todas as coisas.

Poderíamos elaborar análises mais circunstanciadas do relato ou encontrar outras lições nesta história, mas fiquemos com estas duas, acrescentando que ao longo de séculos a historieta da sabedoria de Salomão foi recepcionada por várias sociedades, mantendo-se o registro paradigmático que caracteriza a sua origem. A narrativa, embora enunciada a partir de uma perspectiva religiosa e judaica, guarda os três pilares do modelo historiográfico que a partir de Cícero chamamos história mestra da vida: ela é pedagógica, pois ensina aos homens, a partir do relato de uma situação particular do passado, como se conduzir no seu presente quando se depararem com situações semelhantes — no caso, aquelas que exigem o exercício da justiça; ela é pragmática, pois traz lições de uma sabedoria prática, orientada para o agir no mundo, e não reflexões teóricas acerca da justiça ou do amor materno, considerados, no relato, grandezas autoevidentes; e ela é paradigmática, exemplar, narrando as ações a serem imitadas por aqueles que devem ser justos ou por aquelas que devem ser mães, pois o que nos apresenta são os próprios modelos da Justiça e do Amor materno. Uma tal história se destina a instilar os princípios da filosofia moral ou religiosa através de narrativas exemplares e atraentes, cuja eficácia no ordenamento dos comportamentos cotidianos tende a ser maior do que aquela derivada da penosa leitura dos tratados de teologia ou de filosofia.

Por isso mesmo, o relato é rápido e não se demora na informação detalhada que localize a situação narrada numa referência espaçotemporal precisa. Esta é desnecessária aos fins a que se destina este tipo de relato. Diferentemente do que nos acostumamos com a sensibilidade moderna, ele não trata de um evento que, para se tornar inteligível, tem de ser inscrito numa cadeia de causalidades que o aponte como o resultado de um processo anterior ou como o elo disparador de um futuro. Porque é da ordem do paradigma e da exemplaridade da tradição da história mestra da vida a sua atemporalidade, a sua validade para qualquer presente, onde e quando for. A grandeza do evento narrado, a sua dignidade própria, não se define pela sua contribuição a um processo que se desenvolve; a sua validade independe de uma inscrição temporal específica. Cada uma das histórias narradas nesse registro historiográfico antigo encerra, em si mesma, a sua relevância paradigmática.

Nesse sentido, ao pensarmos classicamente a história como um ramo da retórica, percebemos que a atividade do historiador resulta numa coleção de relatos de experiências que, por sua natureza exemplar, ultrapassam a finitude empírica e temporal para permanecer a salvo do esquecimento produzido pelo tempo. Tais histórias passadas deverão estar sempre à disposição dos que necessitem, num presente qualquer, orientar as suas ações. As noções de “lição” ou de “moral da história” que habitam a nossa linguagem ordinária têm, provavelmente, a sua origem nesta estrutura paradigmática em que se fundam as crenças historiográficas clássicas.

Sobre alguns usos da história por Maquiavel

Devemos notar que o exemplo acima apresentado se inscreve na tradição religiosa judaica, e seria possível reivindicar que a plena validação de suas verdades exigiria a adesão ao conjunto das crenças em que se originou. Do mesmo modo, seria equívoco tratar o narrador dos Livros dos Reis como um historiador no sentido disciplinar que foi constituído pela tradição historiográfica fundada na Grécia do século V a.C. Mas tais questões críticas, que se podem endereçar com pertinência ao exemplo da historieta de Salomão, não anulam o que me importa sublinhar neste momento: a historiografia clássica, na vertente laica da tradição ocidental, operou por suposições e estruturas narrativas análogas àquelas presentes neste tipo de relato bíblico, e as crenças nos usos da história exemplar não distinguiram fortemente, em seu aspecto pragmático, o registro laico do religioso. Acrescento ainda que, embora a presença divina esteja ausente e tenha sido intencionalmente excluída de grande parte das narrativas historiográficas clássicas, a história mestra da vida não teria como se sustentar sem a estrutura de crença na validade atem-poral dos exemplos narrados.

Poderíamos recorrer, por exemplo, à insistência de Maquiavel, logo no proêmio do primeiro livro dos Discorsi, sobre a necessidade de imitar os exemplos da Antiguidade, não só nas artes, na medicina e no direito, como também na política, “quando se trata de ordenar uma república, manter um Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra, ou de distribuir justiça aos cidadãos”[6]. Ou verificar como os exemplos positivos e negativos, as ações que devem ser imitadas e aquelas que se deve evitar, são parte integrante da sustentação dos argumentos acerca da conquista e da manutenção do poder d’O príncipe[7] . Como afirma Maurizio Viroli, “Maquiavel é um mestre na arte da retórica: conhece os clássicos e sabe muito bem que um exemplo, uma história ou um relato vale muito mais que qualquer argumentação”[8].

O que as reivindicações de Maquiavel em relação à imitação dos antigos nos Discorsi e os usos dos exemplos do passado sugerem é a crença na repetição da história em dois sentidos. Em primeiro, que as situações com as quais um príncipe se depara no presente encontram analogia corn situações já vividas no passado. Em segundo, que a imitação no presente dos passos dados por aqueles homens no passado levará aos mesmos resultados então alcançados. O que dá a Maquiavel a possibilidade de pensar que a ação humana num dado presente qualquer chegará a resultados semelhantes aos alcançados pelos atores do passado? Uma dupla concepção de estabilidade da vida. De um lado, uma perspectiva antropológica, fortemente baseada na psicologia, que supõe, como afirmado nos proêmios dos Discorsi, que a natureza humana é sempre a mesma, não se modificando com o passar do tempo. De outro, que o conjunto de circunstâncias em que os homens podem se envolver ao longo de suas vidas públicas é finito, de modo que sempre será possível buscar analogias entre o que se passa no presente e o que se experimentou em algum ponto do passado. O que se espera acontecer adiante não é tão distinto do já acontecido no passado, logo, o ator poderá sempre buscar, na história, uma orientação para o seu agir.

Não se pode, certamente, esquecer, em momento algum, o papel desempenhado pela Fortuna como força que desarruma o esquema da relação entre intenções e resultados da ação. Mas se nos ativermos ao que em Maquiavel parece ser passível de controle por parte da ação humana, a dimensão da virtit, podemos ver ativa uma versão realista da História Mestra da Vida de Cícero. Os homens públicos, ao se depararem com situações que exigem decisão, têm sempre consigo um tesouro de exemplos guardados no baú das narrativas históricas, de modo a encontrar ali a orientação necessária ao seu agir. Neste sentido, O príncipe de Maquiavel pode também ser lido como um tratado em que os exemplos registrados pelas histórias orientam a ação no presente para reduzir ao máximo a margem de surpresa nas previsões do ator[9].

O continuum temporal da história mestra da vida

O que eu gostaria de reter destes usos clássicos da história, religiosos ou laicos, é que nestas concepções históricas o futuro mundano é sempre pensado como um horizonte de possibilidades que terão semelhança com o que já aconteceu no passado. De modo que se circunscreve o futuro à repetição de experiências conhecidas, constituindo-se uma espécie de continuum temporal cujo conteúdo finito cabe nos livros de história. É neste sentido que podemos pensar que o futuro está controlado pelo passado e que as expectativas se baseiam nas experiências já vividas, negando ou reduzindo a dimensão do desconhecido, no tempo ainda não acontecido.

A MODERNA HISTÓRIA UNIVERSAL
Voltaire e a filosofia da história

Vou usar essas referências clássicas como uma espécie de pano de fundo contra o qual podemos perceber as características próprias e inovadoras do modelo da história da civilização que se formula no contexto do Iluminismo europeu do século XVIII, quando a história receberá um conjunto de atributos e significados muito diversos desses que vimos até aqui.

Comecemos com uma referência a Voltaire, que foi o primeiro pensador a usar o termo “filosofia da história”, na introdução, publicada separadamente em 1765, de seu livro Ensaio sobre os costumes (de 1753). O que queria Voltaire com o uso desse termo? Estabelecer a possibilidade de olhar para a história humana de outro modo que não o da repetição infinita do mesmo; de discriminar, na amplidão de fatos que só fazem ocupar a memória, o que merece a atenção de todos os tempos. “Mil circunstâncias interessantes para os contemporâneos [dessas circunstâncias] se perdem aos olhos da posteridade e desaparecem para só deixar ver os grandes acontecimentos que fixaram o destino dos impérios. Nem tudo o que se fez merece ser escrito”[10]. Em seu livro sobre o século de Luís XIV, Voltaire insiste que importa salientar aquelas “épocas felizes” nas quais “as artes se aperfeiçoaram” e, demonstrando “a grandeza do espírito humano, são exemplo para a posteridade”[11]. É este o olhar histórico-filosófico reclamado por Voltaire.

E quais são estas épocas que ele também chama de séculos? A primeira é aquela de Felipe e de Alexandre, ou aquela dos Péricles, dos Demóstenes, dos Aristóteles, dos Platões etc., mas que manteve a sua glória restrita às fronteiras da Grécia, enquanto fora delas “o resto da Terra então conhecida era bárbara”. A segunda é a de César e de Augusto, também reconhecida pelos nomes de Lucrécio, Cícero, Tito Lívio, Virgílio, Horácio, Varrão e Vitrúvio. Como se vê, o mundo romano e as expressões mais salientes de sua cultura. A terceira época é a que se segue à tomada de Constantinopla e que nós identificaríamos como a do Renascimento italiano. Voltaire, que não tinha o termo “Renascimento” à sua disposição, fala da Itália na qual vive “uma família de simples cidadãos que faz aquilo que deveriam fazer os reis da Europa”. Os Médici chamaram a Florença os perseguidos pelos turcos, e o resultado foi uma nova vida das belas-artes. Por isso os italianos merecem ser honrados com o nome da virtude, como os gregos mereceram o da sabedoria. Afirma nosso autor que na Itália “tudo tendia à perfeição”, embora faltassem aos italianos a música e a filosofia experimental que viriam, posteriormente, com Galileu. A última época é o século de Luís XIV e, das quatro, é certamente a que alcançou a maior perfeição:

Enriquecida pelas descobertas das três outras, ela fez mais em certos gêneros que as três juntas. É verdade que nem todas as artes foram levadas tão adiante como sob os Médici, os Augustos e os Alexandres; mas a razão humana em geral se aperfeiçoou. A sã filosofia só foi conhecida nesse tempo, e é verdade dizer que […] nele se realizou, nas nossas artes, nos nossos espíritos, em nossos costumes, como em nosso governo, uma revolução geral que deve servir de marca eterna à verdadeira glória de nossa pátria[12].

Dito assim, nesse tom de glorificação e de reivindicação de eternidade dessas épocas, poderia parecer que Voltaire buscava elaborar uma versão, um pouco modificada em seus objetos, da história mestra da vida. Mas esta seria uma familiaridade falaciosa. Voltaire não está a narrar histórias, eventos ou mesmo épocas exemplares. Ele retrata épocas inteiras a partir de um olhar novo que quer ultrapassar o relato das ações de reis e heróis para alcançar “o espírito, os costumes, os usos das nações”. Não lhe interessa saber, como afirma no “Avant-propos” de seu Ensaio, “em que ano um príncipe indigno de ser conhecido sucede a um príncipe bárbaro numa nação grosseira”[13]. É o “espírito” o que importa, o progresso de tudo aquilo que serve à caminhada da humanidade em direção ao mundo das Luzes. Como diz o próprio Voltaire, de modo sintético, em notas destinadas a complementar o seu Ensaio: “Em vez dessa enorme acumulação de fatos, em que um jamais deixa de contradizer o outro, dever-se-ia reter somente os mais importantes e os mais seguros a fim de colocar umfio condutor na mão do leitor e para que ele fique em situação de formar um juízo acerca da ruína, renascença e progressos do espírito humano”[14].

E esse deslocamento do olhar do historiador filósofo é radical e anuncia a verdadeira revolução já em curso no pensamento europeu sobre a história. Pois, para além dos eventos paradigmáticos, dos fatos narrados pelas histórias — assim, no plural —, o que se vai em busca no Iluminismo é de um “fio condutor”, de algo que possa conferir sentido racional à experiência humana no tempo. As histórias, concebidas como relatos do passado, acabavam por acumular uma infinidade de dados inúteis da qual pouco se poderia apreender de relevante. O argumento é, na sua forma inicial, o mesmo de Descartes: a história, compreendida como relato e erudição, acumula indefinidamente informações que só fazem pesar na consciência humana, impedindo o pensamento de se desdobrar livremente em busca da verdade. Mas diferentemente de Descartes ou de Rousseau, que precisaram recusar os fatos para pensar racionalmente, muitos iluministas, nas pegadas de Voltaire, buscaram na própria experiência a prova dos progressos da razão humana.

O modelo de conhecimento que está na base desse novo olhar é aquele que foi desenvolvido no âmbito da física newtoniana e que supunha poder encontrar, subjacente ao aparente caos dos fenômenos dados à percepção, uma ordem cientificamente apreensível, uma legalidade que explicasse aquilo que se vê. Do mesmo modo que a física alcançara resultados notáveis com a observação e a experimentação, dentre eles a lei geral da gravitação e da atração entre os corpos, os métodos da filosofia natural deveriam ser trazidos para o âmbito da filosofia moral, e da história, por consequência, de modo a buscar aquilo que ordena tanto a sociedade quanto a experiência temporal humana. E do mesmo modo que se acreditava que de posse do conhecimento científico da natureza a humanidade poderia dominá-la, domá-la, fazê-la servir a seus propósitos, também se cria que o conhecimento das leis que regem a sociedade e a história serviria para aperfeiçoar a primeira e fazer acelerar a segunda, sempre em beneficio da espécie. Saber o mundo e dominar a natureza, a sociedade e a história em prol da humanidade são duas faces desse projeto otimista e extraordinário com que o Iluminismo acreditou poder realizar o bem racional na Terra dos homens e mulheres.

Condorcet e os progressos do espírito humano

Poderíamos aqui mobilizar uma plêiade imensa de autores e obras que, nos cem anos que seguiram às elaborações de Voltaire e dos enciclopedistas, se debruçaram sobre os feitos humanos em busca de razão subjacente à história. Meu foco será uma obra exemplar dessa busca, tão paradigmática que chega a ser até caricata em seu otimismo histórico. Trata-se do Esboço de um quadro histórico dos progressos do espirito humano, do marquês de Condorcet, obra escrita já no furacão da Revolução Francesa, entre julho de 1793 e março de 1794[15].

Há muitas coisas extraordinárias nesse livro de duzentas páginas que narra, sob a forma de um quadro (tableau), na verdade do esboço de um quadro que seria composto posteriormente, o resumo da história da humanidade. O que encontramos nesse pequeno livro notável é a formulação concisa da crença histórica moderna no progresso, apresentada numa versão que se quer científica, e por isso naturalizada como verdadeira, da totalidade da história humana. Desde logo, o índice do livro nos informa de que se trata de um texto dividido em dez períodos (e não capítulos). Após uma introdução que traz o nome do esboço, nove períodos se sucedem, ordenando temporalmente os avanços que descrevem o progresso crescente do espírito humano, desde as primeiras sociedades de caçadores e coletores de que se tinha notícia até o presente da Revolução Francesa. Encontramos aquilo que aprendemos numa escola não religiosa como as fases mais importantes da história universal: a passagem da caça e da coleta ao pastoreio, daí à agricultura, a invenção da escrita alfabética, a ciência grega e o seu desenvolvimento até a época de Alexandre, a descrição do cristianismo como período de decadência das ciências[16], o período das trevas que corresponde à Idade Média, a retomada dos progressos da ciência após as Cruzadas, a invenção da tipografia, a revolução científica e filosófica do século XVII (“a época em que as ciências e a filosofia abalaram o jugo da autoridade”) e o período de expansão das Luzes, que vai de Descartes até a Revolução Francesa, momento em que o livro é escrito. O décimo período fala dos “futuros progressos do espírito humano”, num exercício de derivação ao porvir do fio condutor que se vem alinhavando desde o início da narrativa com base na perfectibilidade infinita da espécie humana.

A leitura apresenta as duas componentes fundamentais que sustentam a crença moderna no progresso: a primeira é a demonstração, pela narrativa histórica, do poder da razão em transformar a natureza e a sociedade; a segunda é a promessa histórica da progressiva liberdade do homem pela superação dos males da natureza e dos males sociais[17]. Ao contrário do que encontrávamos em Maquiavel e nas perspectivas da estabilidade da vida humana, há no Iluminismo, e neste seu exemplar Condorcet, a noção de progresso moral que supõe que a espécie não repete indefinidamente o mesmo, mas melhora com o passar do tempo, pela aprendizagem do acontecido e pelo avanço do conhecimento. Não se trata também de uma “história de”, com o foco neste ou naquele povo, cidade ou Estado. Para Condorcet, como para qualquer filosofia da história ou história universal, deve-se escolher os fatos “na história dos diferentes povos, relacioná-los, combiná-los, para deles extrair a história de um povo único, formar o quadro de seus progressos”. Diferentemente daquela perspectiva que considerava o futuro ancorado na experiência pregressa, dado que a estabilidade das condições de vida era a regra — “Nada de novo sob o sol”, dizia o Eclesiastes; “O sol, os elementos, o homem são os mesmos que sempre foram”, dizia Maquiavel —, aqui o mundo social é aperfeiçoável por meio da razão. Uma outra concepção do mal e dos males humanos se enuncia. Os males não são nem frutos da natureza humana, como na versão religiosa do pecado original ou na perspectiva psicológica realista de um Maquiavel, nem resultado das relações necessárias da entrada do homem em sociedade, como se poderia compreender na leitura de trechos de Rousseau: eles se originam da imperfeição das constituições sociais, fruto da falta de esclarecimento. Por isso mesmo são sanáveis, desde que não haja preguiça e covardia, como afirmara Kant, dez anos antes, em texto definitivo para a autoimagem das Luzes[18].

Das muitas coisas que chamam a atenção no esquema de Condorcet, eu seleciono duas para comentar: o lugar privilegiado da tipografia entre todas as invenções (ela é a única que aparece nos títulos dos períodos para marcar a transição entre o sétimo e o oitavo) e a incorporação do futuro como parte da reflexão histórica.

Todos se lembram do livro de Umberto Eco chamado O nome da rosa, e do filme de mesmo nome, em que o frade franciscano William de Baskerville e seu inseparável pupilo Adso investigam uma série de mortes num mosteiro beneditino da Itália do século XIV. Os mortos tinham sempre a mesma característica: estavam com a língua e os dedos manchados de uma substância roxa, mas nenhum outro indício ajudava. A trama, que não se pode resumir aqui, termina com o encontro da causa mortis na biblioteca do mosteiro, onde uma cópia de um livro proibido de Aristóteles sobre o riso tinha suas páginas envenenadas para que morressem todos aqueles que desobedecessem à ordem.

Lembro o romance de Eco porque ajuda a compreender, por negação, o lugar privilegiado da invenção de Gutenberg no esquema temporal de Condorcet. Pois se num contexto medieval estava dada a possibilidade de monopólio do saber pelos mosteiros e palácios, sob a guarda do clero ou da nobreza, se o acesso às luzes dependia de um extraordinário investimento, inclusive financeiro, para copiar à mão aqueles pouquíssimos exemplares guardados em muito poucos lugares, o que restringia o seu acesso apenas a ricos e poderosos, a imprensa veio romper este círculo estreito de acesso ao saber. A tipografia “multiplica indefinidamente, e com poucos custos, os exemplares de uma mesma obra”, cujas cópias espalham com rapidez os “fatos e as descobertas”[19]. De modo que o que só era lido por alguns indivíduos pôde sê-lo por todo um povo. E com o crescente desenvolvimento da linguagem científica — e Condorcet pensa na matemática e sua linguagem formal, por isso, universalizável —, a constituição de uma imensa comunidade de leitores difunde as Luzes por toda a Terra.

As passagens são dignas de citação:

Conheceu-se o meio de fazer-se ouvir pelas nações dispersas. Viu-se instituir-se uma nova espécie de tribuna, de onde se comunicavam impressões menos vivas, mas mais profundas; de onde se exercia um império menos tirânico sobre as paixões, mas obtendo sobre a razão uma potência mais segura e mais durável; onde todo benefício é pela verdade, já que a arte só perdeu os meios de seduzir ganhando aqueles de esclarecer. Formou-se uma opinião pública, potente pelo número daqueles que a partilhavam; enérgica, porque os motivos que a determinavam agiam simultaneamente sobre todos os espíritos. Assim se viu elevar-se, em favor da razão e da justiça, um tribunal independente de todas as potências, ao qual era difícil esconder algo e impossível subtrair-se […].

Todo erro novo era combatido desde seu nascimento: frequentemente atacado antes mesmo de ter podido se propagar, ele não tinha tempo de enraizar-se nos espíritos. Aqueles que, acolhidos desde a infância, de alguma maneira tinham se identificado com a razão humana, aqueles que os terrores ou a esperança tinham tornado caros às almas fracas, foram abalados pelo único fato de que tornava-se impossível impedir sua discussão, esconder que eles podiam ser rejeitados e combatidos, opor-se à propagação das verdades que, de consequências em consequências, a longo prazo deviam fazer conhecer seu absurdo (…).

Enfim, a tipografia não libertou a instrução dos povos de todos os ódios políticos e religiosos? Em vão um ou outro despotismo teria se apoderado de todas as escolas; em vão ele teria, por instruções severas, fixado invariavelmente com quais erros ele ordenava infectar os espíritos, quais verdades ele lhes permitia construir; em vão as cátedras consagradas à instrução moral do povo, ou à instrução da juventude na filosofia e nas ciências, seriam condenadas a só transmitir uma doutrina favorável à manutenção dessa dupla tirania: a tipografia ainda pode divulgar uma luz independente e pura. Essa instrução, que cada homem pode receber pelos livros no silêncio e na solidão, não pode ser universalmente corrompida: basta que exista um canto de terra livre, onde a imprensa possa preencher suas folhas… Por isso veremos a razão triunfar diante desses esforços vãos; nessa guerra sempre renascente e frequentemente cruel, nós a veremos triunfar diante da violência assim como da astúcia, desafiar as fogueiras e resistir à sedução, esmagando alternadamente, sob sua mão todo-poderosa, tanto a hipocrisia fanática que exige para seus dogmas uma adoração sincera quanto a hipocrisia política que, de joelhos, conjura a tolerar os erros dos quais ela se beneficia em paz, erros nos quais, a acreditá-la, é tão útil a ela mesma quanto aos povos ficar imersos[20].

Penso, que tais passagens são suficientes para termos uma ideia da crença na imprensa como destinada à divulgação da verdade e a fazer vencer a razão sobre toda sorte de despotismo, fanatismo ou interesse vil. A importância da tipografia no esquema temporal do quadro de Condorcet é decisiva. Ela marca um novo período da humanidade, junto com a tomada de Constantinopla pelos turcos e as descobertas oriundas das grandes navegações. Mas a tipografia ainda tem outra função definitiva na economia da demonstração do progresso. Porque, antes de sua invenção, a restrição à divulgação das Luzes era possível com alguns recursos de poder e de riqueza, de modo tal que, embora a perfectibilidade humana estivesse potencialmente ativa em todo lugar, as forças do interesse particular e do obscurantismo poderiam retê-la por mais tempo. Trata-se, em última análise, da explicação do mal no seio do progresso humano. A pergunta de Condorcet replica a questão teológica: se Deus é bom, por que existe o mal? Em termos laicos: se o homem é razão e perfectibilida-de, por que o progresso é frágil a ponto de admitir recuos consideráveis como aquele que Condorcet acreditava ver na Idade Média?

A resposta imediata é simples: o homem não é só razão e pode usar as suas luzes apenas em benefício próprio, deixando os demais na ignorância e no medo. O mal exerce, também, a função do erro na história que propicia à razão a oportunidade de corrigi-lo, numa equivalência secularizada da versão cristã de que o mal serve para que se reconheça o bem. Mas uma vez inventada a tipografia, resultado de um progresso ainda inseguro do espírito humano, não há força no mundo capaz de deter o avanço universal da razão. Para falar numa linguagem anacrônica, só após este extraordinário engenho tecnológico é que estarão criadas as condições materiais de um progresso seguro, permanente e autossustentado. Isso quer dizer que, embora a natureza humana seja portadora de uma faculdade natural — a perfectibilidade — que a caracteriza desde sempre, é só a partir de um certo ponto de sua manifestação no mundo que o progresso se torna irreversível[21].

É por isso que Condorcet já pode incorporar, em seu relato histórico, como certos ou altamente prováveis, alguns dos desdobramentos futuros do espírito humano. Há três conquistas da razão que já se pode vislumbrar:

“a destruição da desigualdade entre as nações; os progressos da igualdade em um mesmo povo; enfim, o aperfeiçoamento real do homem”[22].

E por que se podem predizer esses resultados? Do mesmo modo que ao conhecermos as leis da natureza podemos prever o seu funcionàmento futuro, o conhecimento das regularidades subjacentes ao desenvolvimento temporal da espécie humana permite traçar, “com alguma verossimilhança, o quadro dos destinos futuros da espécie humana, a partir dos resultados de sua história”[23]. Encontraremos “na experiência do passado, na observação dos progressos que as ciências, que a civilização fizeram até aqui, na análise da marcha do espírito humano e do desenvolvimento de suas faculdades, os motivos mais fortes de acreditar que a natureza não pôs nenhum termo às nossas esperanças”[24]. A crença otimista de Condorcet expressa exemplarmente o que Ernst Cassirer, em seu estudo sobre o Iluminismo, denominou “a unidade epistemológica entre natureza e cultura”[25].

Autonomia e temporalização: um modelo para a moderna História Universal

A partir desta breve exposição de Condorcet, resumo alguns dos pontos que me parecem mais relevantes para compreendermos esta crença na história universal.

Em primeiro lugar, existe uma tal história universal, i.e., um processo temporal que envolve toda a humanidade. Daquelas histórias no plural que caracterizavam a historiografia clássica, chegamos a uma concepção moderna da possibilidade, e mesmo da necessidade racional, de falarmos de uma História, assim com H maiúsculo, enunciada como um singular coletivo. Neste novo registro, os eventos perdem a sua dignidade própria, o seu valor intrínseco, para serem apreciados apenas na medida em que fazem mover a cadeia de causalidades que produz o futuro do presente[26]. Subjacente a esta proposição há uma mudança na concepção da própria autorreferência humana. A humanidade se define como aquela que caminha, avançando, no tempo, do passado em direção ao futuro, saindo de um estado primitivo, de barbárie, para outro de civilização ou assemelhado[27]. A passagem do tempo não é mais uma circunstância natural que pode ser marcada por uma cronologia física — os dias, os meses e os anos. Há progresso moral e, por isso, a história da humanidade deve ser dividida em períodos, cada um deles com uma determinada cor, um determinado significado que o diferencia dos demais períodos. É como se o tempo ganhasse vida, conteúdo, e deixasse de ser mera marcação astronômica ou dinástica. Esse é o fenômeno que a teoria da história chama de temporalização[28].

Em segundo lugar, podemos dizer que o processo de desenvolvimento ou evolução descrito pela história universal é regulado por algum motor imóvel que o faz dirigir-se de uma determinada maneira. Este motor pode ser a natureza humana, a faculdade da perfectibilidade, o autoconhecimento do espírito, a luta de classes etc. Isto quer dizer que a História, vista como conjunto dos fatos humanos no tempo, não é caótica: ela se constitui como um processo de evolução gradual da humanidade. Logo, há uma ordem inteligível na História que é o resultado do desenvolvimento necessário daquele motor. Se há ordem, é razoável que se busque o sentido da História, com frequência associado a alguma versão do progresso[29]. O termo “sentido da história”, neste contexto, quer dizer, simultaneamente, direção e significado[30]. A História ordenada nos leva a algum lugar, a uma meta, a um télos, e o caminhar em direção a este fim confere ao conjunto do processo o seu conteúdo significativo. Daí se falar que a História é a marcha da humanidade em direção à felicidade ou à liberdade, ou que é, como na linguagem hegeliana, a autobiografia do Espírito.

Isso significa, em terceiro lugar, que a História existe em si mesma e que tem uma dinâmica e um movimento intrínsecos, a despeito da consciência que os seres humanos tenham disso, sejam eles historiadores ou não. Trata-se da autonomização ontológica da História, que se torna uma dimensão própria ao ser, de modo que não se pode mais compreender aquilo que é senão pelo conhecimento do processo que o constitui. É a história em si mesma, e não necessariamente narrada, aquela dimensão da Geschichte por oposição à Historie. Noções como “história natural da humanidade”, “astúcia da Razão” ou “contradições necessárias entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção” são expressões da crença na existência desse processo que opera independentemente de os homens o saberem ou o desejarem. Em algumas variações desse tema, a História pode se tornar, em seu desenrolar inexorável, ajuíza última da verdade ou da validade de todas as proposições. O justo passa a ser identificado com o que está de acordo com o futuro. É este o sentido da famosa frase de Fidel Castro perante o tribunal da ditadura de Fulgêncio Batista: “A História me absolverá”. Como se a capacidade de julgar, a Corte, não fosse mais da responsabilidade do historiador, mas do próprio processo histórico.

Em quarto, se nós formos dotados dos instrumentos adequados, a direção desse processo poderá vir a ser devidamente conhecida pela ciência. E, de posse desse conhecimento, os homens poderão agir no presente para acelerar ou para retardar a sua realização. A metáfora marxiana da violência como “parteira” da História é bastante significativa desse registro. Pois a revolução, pensada numa perspectiva macro-histórica, não cria nem inventa o novo; ela apenas lhe dá passagem, permite que aquilo que já está sendo gestado há tempos venha à luz. Ainda que a violência revolucionária possa ser considerada necessária neste ou naquele contexto, o que virá à luz só virá porque a História já se encontrava grávida desse futuro. O conhecimento da direção do tempo histórico a partir da apropriação racional de seu motor confere um fundamento à ação política na medida em que o futuro passa a ser apreendido como uma extensão temporal da lógica do processo, da marcha da história. Neste sentido, a ação humana constrói o futuro, no presente, a partir da vontade esclarecida pelo processo da História Universal. Aqui, e só aqui, os termos “progressista” e “conservador”, “revolucionário” ou “reacionário”, recebem os seus significados modernos.

Em quinto, se anuncia uma estrutura temporal bastante diversa daquela que reconhecemos em Maquiavel ou na história mestra da vida. Se ali o horizonte de expectativas futuras estava preenchido pela coleção das experiências passadas, eternizadas pelo historiador retórico, aqui a noção de progresso faz o futuro descolar-se do passado de modo que o horizonte de expectativas possa abrigar o inteiramente novo. A novidade radical na história mundana é pensada pela primeira vez, e a autoimagem jacobina da Revolução Francesa como momento inaugural de um mundo inteiramente novo é a expressão paradigmática dessa novidade. Na dramática expressão de Tocqueville: “Quando o passado não ilumina mais o futuro, a mente humana caminha nas trevas”[31]. Neste registro, poderíamos conceber as filosofias da história como mecanismos de autoproteção contra o abismo do radicalmente novo que se abre nessa estrutura temporal, como uma tentativa de controle da abertura do futuro ao desconhecido que se inaugura no mundo moderno. Altera-se a relação entre passado, presente e futuro, constituindo-se um novo modelo temporal que Hans Ulrich Gumbrecht denominou o “cronótopo historicista ou do tempo histórico”[32]. O passado é aquilo que queremos, e devemos, deixar para trás; é o que deve ser ultrapassado. O futuro é a dimensão para onde devemos ir com desejo intenso, pois fundado na certeza de que caminhamos para um mundo melhor. E o presente é aquilo que Baudelaire, no seu Pintor da vida moderna, definiu como o transitório, o fugaz, o “instante imperceptivelmente breve” no qual praticamente pisamos com apenas um dos pés para dar o passo seguinte já adiante no tempo.

Há muitas outras características que poderíamos desenvolver a partir destas anteriores, por exemplo, a politização e a ideologização permitidas por essa concepção. Se há uma história universal, o que é aquilo que não se comporta de acordo com ela? Se o sujeito da história é a humanidade, quem ou o que é aquele que não se ajusta aos seus propósitos implícitos ou conhecidos? Se conheço racionalmente para onde caminha a humanidade, o que fazer com aqueles renitentes a esse progresso? Chegaríamos aqui a um conjunto de justificativas ideológicas para a dominação, exclusão ou eliminação de grupos humanos, e mesmo de nações inteiras, em nome do desenvolvimento da História Universal e da razão que a faz mover. Mas seria imprudente generalizar, ou tratar sem as devidas mediações, um ponto tão delicado. Por isso, apenas registro a sua plausibilidade no contexto da discussão das armadilhas produzidas pela crença na história universal.

Também seria incorreto afirmar que todas as concepções da História Universal desenvolvidas entre os séculos XVII e XIX, algumas das quais sobreviveram até nós, tenham que compartilhar, necessariamente, o conjunto das características acima descritas ou que estas não possam existir separadamente. Mas penso que é uma descrição razoável da estrutura básica de muitas crenças históricas universais que sobreviveram neste tempo e que resistiram bravamente às críticas contundentes que lhe foram feitas de vários lados[33].

PARA DESNATURALIZAR A CRENÇA NA HISTÓRIA UNIVERSAL

A busca do presente: Octavio Paz

Eu gostaria de concluir este percurso fazendo uma referência ao que me parecem indícios significativos de que estamos no limite dessa crença. Para isso, por brevidade, recorro a um dos resumos possíveis das condições contemporâneas que, ao desnaturalizarem as versões tão otimistas da História Universal, permitem que vejamos mais claràmente o seu caráter de crença.

Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em Estocolmo, no ano de 1990, o escritor mexicano Octavio Paz pronunciou um discurso que intitulou A busca do presente. Nele, Paz se referiu ao que chamou “ocaso do futuro”, ao fato de que as nossas sociedades contemporâneas são as únicas, desde a Grécia clássica, desprovidas de crenças meta-históricas convincentes que forneçam instrumentos para pensar o futuro.

O resumo de Octavio Paz acerca da crise dessas crenças que moveram o Ocidente moderno é contundente para pensarmos a caracterização do assombro e da desorientação contemporânea em relação ao tempo futuro.

  1. A crise da crença na infinitude do processo humano e do seu progresso contínuo: vivemos hoje a consciência da finitude dos recursos naturais e da espoliação humana que põe em risco a sobrevivência da própria espécie. Podemos acreditar em instrumentos de reversão desse quadro? Por vezes sim, pela ciência e pela técnica, mas num contexto em que já conhecemos o caráter destrutivo dessas mesmas ciência e técnica — e as armas nucleares refutam qualquer possibilidade de crermos que elas são boas ou progressistas em si. Aqui Paz identifica a refutação “devastadora” da noção de progresso inerente à História.
  2. O otimismo acerca do destino do sujeito histórico moderno (a humanidade) foi destruído pela experiência das duas guerras mundiais, dos totalitarismos (Paz fala em despotismos) e do desenvolvimento, em pleno século XX, dos campos de concentração, uma das mais cruéis instituições humanas já conhecidas.
  3. A impossibilidade de se crer numa racionalidade intrínseca da história e em qualquer noção bondosa do desenvolvimento humano. Mesmo no domínio tradicional da ordem e da regularidade — que é o domínio das ciências exatas —, o acidente e o caos estariam hoje mais presentes do que determinismos cognoscíveis.
  4. A derrocada, reforçada pelos acontecimentos de 1989 e pelo fim do mundo comunista, das hipóteses, filosóficas ou históricas, que acreditavam conhecer as leis do desenvolvimento histórico. Não há mais chaves ou motores a partir dos quais possamos ter certeza de que nossa ação é produtora de futuro virtuoso. As sociedades construídas em nome do futuro intrínseco às leis do progresso histórico terminaram em “cárceres gigantescos”, leviatãs burocráticos e perversos, e negaram a sua pretensa origem na redenção definitiva de todas as iniquidades.[34]

Enfim, nos encontramos diante de um futuro opaco, incerto e, mais do que isso, atemorizador, e a ação política associada ao planejamento abrangente do futuro parece ter-se tornado objeto de desconfiança, dados os sucessivos resultados nefastos vividos no século xx, mesmo quando as intenções originais eram nobres.

A formação da estrutura temporal do presente atual?

A meu ver, são a desconfiança em relação ao que antes pareciam definições certas do que é o ser humano, e a suspeita, com a Segunda Guerra Mundial e o século xx, de que a autorreferência humana pode estar mais próxima da animalidade selvagem do que de um sujeito solar, racional e espiritualmente superior, que corrompem e impedem a permanência, hoje, da estrutura temporal vigente na modernidade entre os séculos XVII e XIX. É daí que resultam muitas das nossas perguntas sobre o valor da história, mas também do que fazer com o conhecimento do passado num tempo sem bússola, numa total incerteza.

Obviamente não tenho respostas para esse desamparo, mas deixo apontados, para servir à reflexão, o que me parecem ser indícios, dispersos e desconexos, dos limites contemporâneos da validade daquela estrutura processual e progressiva da história universal[35].

O fascínio pelo passado aparece recorrentemente em nossas novelas, museus, filmes, em nosso cotidiano e no desejo que vivenciamos hoje de consumir imagens e livros históricos. Como em todo período de profundo ceticismo acerca dos valores que devem orientar a vida em sociedade, assistimos hoje, como no século da dúvida (o XVII), ao que parece ser um inesgotável impulso de ampliação do conhecimento factual e da preservação, em infindáveis bancos de dados, de todas as coisas do passado, ainda que não saibamos o que fazer com esta imensa massa de informações. Diferentemente da erudição antiquária daquele século, entretanto, o nosso desejo pelo passado parece querer trazê-lo de volta à presença no cotidiano, tornando o presente permeado por um passado que não se define mais como aquilo que se quer e que se deve deixar para trás ou ultrapassar. Nesse sentido, o presente se estende para abarcar o passado, alargando-se.

Também o temor de um futuro tenebroso nos impele a adiar a sua chegada. Queremos “conservar” a natureza, “evitar” a ampliação do buraco de ozônio, “impedir” o aquecimento global, “proibir” a matança das espécies, “desmontar” as armas nucleares, “limitar” as pesquisas de donagem etc. É uma agenda negativa, um horizonte de expectativas que reage como que para trás, ampliando a permanência do presente e impedindo a chegada desses futuros. Aqui se amplia o presente para a frente.

Numa tal estrutura temporal, o presente não pode mais ser pensado como aquele instante efêmero, fugaz, mínimo, em que só cabia uma ação que, impulsionada pelos desenvolvimentos do passado, preocupava-se com a construção de um futuro que seria o lugar da verdade, da redenção, da vida boa. O presente requer hoje uma atenção que talvez jamais tenha requerido na modernidade. Ele é o lugar do estar, o lugar que temos para viver, e não mais um lugar de fuga para outro tempo. Não estamos inclinados a legislar sobre o futuro longínquo. O fracasso da imaginação acerca do que poderíamos vir a ser, seres maravilhosos, sem pecados ou iniquidades, parece ter nos trazido de volta para perto de nós mesmos, aqui e agora, tais como somos, nem tão bons nem tão ruins.

Onde buscar, então, justificativas e orientação para o agir, se reconhecemos a impotência das filosofias históricas e dos fundamentos metafísicos tradicionais? Como compreender o conceito de ação quando as referências temporais do atraso e do progresso deixam de ter o sentido vigente nos últimos séculos? Que concepções históricas teremos, se é que as teremos, para substituir a crença no progresso universal? No desamparo que resulta da ausência de grandes fundamentações históricas para a ação contemporânea, creio que temos um vínculo com o presente, vínculo inconcebível nos termos da noção de história universal vivida na época moderna. Talvez seja ele a paragem da qual devemos partir para continuar a experiência do pensamento e da (auto)crítica dessa crença na capacidade humana de controlar as surpresas do tempo que se consubstancia na história universal. É possível que a sensibilidade atual para o presente seja bom antídoto para evitar a insistente projeção da felicidade para adiante, sem cuidar do que está bem aqui e agora.

Notas

  1. Herôdotos, História, Brasília: Ed. UnB, 1985, livro I, § 1. Aristóteles, Poética, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2000, cap. Ix, 1451a-1451b. Marco Tulio Cicerone [Cícero], Dell’Oratore, Milão: Biblioteca Universale Rizzoli, 1997, livro II, cap. 9 (36). 
  2. Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-RJ, 2006, especialmente o capítulo 2. 
  3. A Bíblia de Jerusalém, I Reis,1:14. 
  4. Idem, 16:28. 
  5. Nós, historiadores modernos, se estivéssemos a narrar a mesma historieta, nos apressaríamos em notar que ser justo era a primeira qualidade do rei em todo o antigo Oriente, mas esse dado não nos é explicitado pela narrativa bíblica, que o considera óbvio ao seu princípio ordenador, o paradigma da justiça. Do mesmo modo, sublinharíamos que o sonho era tido como um dos principais meios de comunicação entre os homens e a divindade naquela cultura. Essa informação é desnecessária à narrativa dos Reis, que a toma como um dado, diríamos nós, naturalizado. 
  6. Nicolau Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, Brasília: Ed. UnB, 1979, p. 17. 
  7. Veja-se, por exemplo, no capítulo sobre os principados mistos, como Maquiavel sustenta toda a sua argumentação entre a exemplaridade negativa, representada pelas ações desastrosas de Luis XII na Itália, e a positiva, encarnada na política romana de instalação de colônias nas terras conquistadas. Nicolau Maquiave,, O príncioe; Escritos políticos, São Paulo: Abril Cultural, 1983, cap. 3. “Dos principados mistos”. 
  8. Maurizio Viroli, O sorriso de Nicolau: história de Maquiavel, São Paulo: Estação Liberdade, 2002, P. 92. 
  9. Não há como desenvolver aqui a hipótese de que nas exigências realistas de Maquiavel já encontramos os elementos da crise do modelo retórico ciceroniano que será percebida claramente por seu contemporâneo Francesco Guicciardini. Ver, a esse respeito, Felix Gilbert, Machiavelli and Guicciardini, Nova York: Norton, 1965; Felipe Charbel Teixeira, Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) — PUC-RJ: Rio de Janeiro, mimeo, 2008 (no prelo pela Editora da Unicamp); Marcelo Jasmin, “Política e historiografia no Renascimento italiano: o caso de Maquiavel”. In: Berenice Cavalcante et al., Modernas tradições: percursos da cultura ocidental (séculos xv-xvii), Rio de Janeiro: Access, 2002, pp. 177-202. Para o argumento da história mestra da vida em geral, veja-se Reinhart Koselleck, op. cit., cap. 2. Também não podemos desenvolver de que modo a modernidade do século xvii, seja em Descartes ou em Hobbes, vai recusar qualquer grau razoável de certeza nessa orientação do agir presente pela referência aos exemplos do passado. Para Hobbes, veja-se, por exemplo, Marcelo Jasmin, Racionalidade e história na teoria política, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, cap. II. 
  10. Voltaire, Le siècle de Louis XIV, Paris: Garnier-Flammarion, 1966, tomo I, p. 39. 
  11. Idem, p. 35. 
  12. Idem, pp. 35-36. 
  13. Voltaire, Essai ser les mceurs et l’esprit des nations, Paris: Gamier, 1963, tomo I, p. 195. 
  14. Voltaire, Remarques pour servir de supplément à l’Essai sur les moeurs. In: Oeuvres, Paris: Lequien, 1820, tomo win, pp. 420 ss., citado por Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo, Campinas: Unicamp, 1994, p. 291. 
  15. Vale notar que a crença radicalmente otimista no progresso da humanidade que ali se expõe contrasta com a situação trágica em que se encontra o marquês no momento da escrita do seu esboço. No resumo de Maria das Graças Nascimento, que faz a introdução da edição brasileira do livro: “Em 1793, ano decisivo para os destinos do movimento revolucionário, Condorcet redige, juntamente com Thomas Paine, um projeto de constituição que é apresentado à Convenção em fevereiro. Discutido em abril, o projeto é abandonado, e em junho é um outro texto que é votado e aprovado. Indignado, Condorcet publica um panfleto contra a constituição aprovada, intitulado Advertência aos franceses sobre a nova constituição’. Segundo Michelet, Condorcet dava a entender indiretamente em seu panfleto que a constituição que havia sido preferida àquela que estava em seu primeiro projeto era uma armadilha, um meio hábil de organizar a ditadura. Denunciado em julho, tem sua prisão decretada, e se refugia na casa de uma amiga em Paris. Ficará escondido até março do ano seguinte, e é neste período de inquietações e temores, clandestino, que escreve o seu Esboço, que, curiosamente, é marcado por um inacreditável otimismo histórico. Quando deixa o refúgio, é imediatamente preso, e morre na prisão em circunstâncias obscuras. No ano seguinte, a própria Convenção, que o havia condenado, decide comprar toda a tiragem de três mil exemplares da edição do Esboço que a mulher de Condorcet havia mandado publicar e ordena sua distribuição às escolas francesas, como um livro clássico do filósofo infortunado. Maria das Graças S. Nascimento, ‘Apresentação”. In: Condorcet, Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, Campinas: Unicamp, 1993, pp. 7-8. 
  16. “A luz dos conhecimentos naturais era-lhe odiosa e suspeita, pois eles são muito perigosos para o sucesso dos milagres; e não há nenhuma religião que não force seus seguidores a devorar alguns absurdos físicos.” Condorcet, Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, Campinas: Unicamp, p. 84. 
  17. Minha principal leitura sobre Condorcet é Keith Michael Baker, Condorcet: From natural philosophy to social mathematics, Chicago /Londres: The University of Chicago Press, 1982. 
  18. Immanuel Kant, “Resposta à pergunta: Que é o ‘Esclarecimento’?”, Textos seletos, Petrópolis: Vozes, 1985, pp. 100-117. 
  19. Condorcet, op. cit., p. 109. 
  20. Idem, pp. 110-112. 
  21. Sobre o modo como Condorcet concebe essa faculdade natural, ler as páginas iniciais do Esboço, especialmente pp. 19-20. 
  22. Condorcet, op. ,cit., p. 176. Note-se que a universalidade da história de Condorcet encerra prognósticos para o conjunto da humanidade, aí se incluindo o mundo não europeu e não cristão. Veja-se, por exemplo, pp. 178-181. 
  23. Idem, ibidem. Embora no texto esta frase citada esteja elaborada em termos de uma pergunta, a resposta claramente positiva me permite tomá-la como uma afirmação. 
  24. Idem, p. 178. Grifo meu. 
  25. Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo, Campinas: Unicarnp, 1994. 
  26. Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, São Paulo: Perspectiva, 1972. 
  27. Em complemento ao cogito sem corpo que deixa em plano secundário o espaço clássico na modernidade, torna-se possível pensar uma história na qual a supremacia da dimensão temporal praticamente dispensa o espaço. 
  28. Reinhart Koselleck, op. cit. 
  29. Ordem e progresso, não custa lembrar, é a divisa positivista da bandeira brasileira, filha dileta desta perspectiva filosófica da história. 
  30. Karl Lëwith, Meaning in history, Chicago/Londres:The University of Chicago Press, 1949. 
  31. Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique. In: J.-P. Mayer (dir.), CEuvres Completes, Paris: Gallimard, 1951, tomo I, v. 2, p. 336. 
  32. Hans Ulrich Gumbrecht, “Depois de aprender com a história”, Em 1926: vivendo no limite do tempo, Rio de Janeiro: Record, 1999. 
  33. A história dessa crítica, que aqui não pode ser tratada, é longa e variada. Alguns de seus pontos centrais estão na crítica de Herder sobre o caráter francês e abstrato desse tipo de perspectiva da História Universal; nos romantismos diversos e sua apreciação dos passados nacionais; na crítica de Tocqueville aos historiadores dos tempos democráticos; na história cultural de Jacob Burckhardt; nas Considerações intempestivas de Nietszche; e nas vanguardas dos anos so e 20 do século passado, para nos referirmos apenas aos períodos anteriores à Segunda Guerra Mundial. 
  34. Octavio Paz, La quête du présent: Discours de Stockholm, Paris: Gallimard, 1990, especialmente pp. 56-60. 
  35. Além das leituras de Hannah Arendt, Reinhart Koselleck e Octavio Paz, aproveito aqui algumas discussões com Hans Ulrich Gumbrecht, em particular em torno de textos recentemente recolhidos em Lento presente: Sintomatología del nuevo tiempo histórico, Madri: Escolar y Mayo, 2010, além do já citado artigo “Depois de aprender com a história”. 

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