1988

Arquitetura simulada

por Otília Beatriz Fiori Arantes

Resumo

A arquitetura tornou-se referência obrigatória na interpretação da cultura contemporânea. Muito do Espírito do Tempo se exprime através da linguagem arquitetônica atual. Vivemos sob o signo do Olhar, sob o império da Imagem. A cultura de massa reconhece na arquitetura o arquétipo da arte de massa.

No ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica” Walter Benjamin usa como ponto de partida a ideia de que quando se quer entender a relação das massas com a obra de arte, não podemos esquecer a arquitetura. O nosso contato com a arquitetura é eminentemente tátil em oposição ao que seria uma recepção ótica, contemplativa, atenta.

Para Benjamin, a arquitetura aparecerá como a grande arte sintética de uma sociedade constituída como sociedade de massa.

Baudrillard anuncia a hipervisão de uma hiper-realidade. O obsceno, a obliteração da cena. Uma obscenidade que exprime a extroversão do consumo explícito, da exposição plena, que cega, ao invés de seduzir.

Enquanto nazistas tomavam o poder na Alemanha arquitetos do mundo inteiro se reuniam num cruzeiro no Mediterrâneo para o que deveriam nortear uma cidade moderna. Nascia assim a Carta de Atenas, o mais famoso manifesto do Movimento Moderno. Redigida por Le Corbusier, a carta estabele que o novo método projetual deveria ser regido pelos seguintes preceitos: objetividade, racionalidade, funcionalidade e internacionalidade. A arquitetura pretendia reconduzir o capitalismo para o bom caminho através de uma reordenação que o traçado regulador da cidade deveria tornar visível.

Benjamin elaborou um quadro conceitual no interior do qual a ambivalência do projeto moderno é pensada do ponto de vista da experiência do choque. A consciência alerta filtraria os choques diários da vida moderna, resultantes da diversidade, da agitação, da rapidez, expulsando-os da memória e impedindo, assim, que se sedimentassem em experiências coletivas como nas sociedades pré-capitalistas. Do mesmo modo que a reprodutibilidade técnica da obra de arte provoca a dissolução da aura, a repetição do choque-vivência vai disciplinando o aparelho perceptivo do habitante da grande cidade. Benjamin afirma que a necessidade de se expor a efeitos de choque constitui finalmente uma adaptação do homem moderno aos perigos que o ameaçam. A arquitetura moderna integra essa estratégia global de neutralização do choque pelo hábito.

A expressão máxima desse universo móvel, simulado, múltiplo, sem identidade nós a encontraríamos no Archi-gram, nos anos 60. O. trabalho do Archigram era basicamente gráfico, high tech não cogitando sua viabilidade prática.

O Beaubourg descende dessa tradição high tech. Suas estruturas metálicas são o símbolo da modernidade. Tudo se passa do lado de fora, o interior é um espaço vazio, não planificado.

Peter Eisenman ideólogo do grupo  “Cinco arquitetos de Nova York”, acompanha Derrida em sua reabilitação do frívolo. Para Eisenman, a arquitetura não pretende representar nada, comentar coisa alguma além de funcionar (por assim dizer) como signo de si própria.

Eisenman admite que pequenas modificações individuais de percepção podem provocar uma compreensão diferente do ambiente e, consequentemente, vir a ter efeitos coletivos.


De uns tempos para cá a arquitetura se encontra na berlinda. Num certo sentido extravasou o campo estreito dos especialistas, tornando-se mesmo referência obrigatória na interpretação da cultura contemporânea. É verdade que precisou ser admitida na Bienal de Veneza (1980), e nela provocar algum escândalo de público, para encontrar lugar nos suplementos culturais da grande imprensa internacional. No outro extremo, até mesmo a família longínqua dos filósofos, via de regra muito distantes dos impasses específicos de um mundo que em princípio estão encarregados de explicar, passou a dedicar-lhe alguma atenção, a ponto de a decifração do real significado da arquitetura contemporânea figurar no elenco dos temas polêmicos que hoje opõem a nova Teoria Crítica alemã ao pós-estruturalismo francês.

Acredito não estar exagerando ao observar que muito do Espírito do Tempo (para empregar em sua acepção original uma expressão muito apreciada pelos teóricos do pós-moderno) se exprime através da linguagem arquitetônica atual. Pois bem, hoje em dia, um dos maiores lugares comuns da crítica da cultura consiste em afirmar que vivemos sob o signo do Olhar, sob o império da Imagem, no âmago de uma civilização do Simulacro, e assim por diante, mais ou menos nos seguintes termos: a favor ou contra, todos procuram demonstrar que a assim chamada realidade evaporou a golpes de estilização hiper-realista, que numa sociedade do espetáculo (embora nela nada se represente) a cópia é superior ao original, que tal eclipse se deve a uma avalanche de imagens sem referência, que não há, portanto, informação propriamente dita, sendo a comunicação mera simulação, etc. Não direi que não, sobretudo quanto aos efeitos de desaparecimento do mundo que uma tal saturação acarreta. Lembraria apenas — e a ressalva não é somente de ordem terminológica, como a seu tempo se verá — que essa tão celebrada (para bem e para mal) onipresença do simulacro também pode ser uma miragem que, ao consagrar o triunfo da pura visibilidade, na verdade arremata uma escravização do olhar à hiper-realidade imagética de caráter eminentemente tátil. E mais, diria que a marca registrada da cultura de massa reside precisamente nesta dominância do tátil na esfera mesma do ótico. Logo adiante esclareço a origem e o contexto dessa conceituação que, entre outras coisas, permite reconhecer na arquitetura o arquétipo da arte de massa.

Ora, o conjunto de obras e tendências projetuais de que pretendo falar, não pôr acaso, é responsável pela credibilidade daqueles convites recorrentes à viagem pela hiper-realidade cotidiana, de uma maneira possivelmente menos avassaladora do que a televisão, o cinema e demais artes do vídeo, porém igualmente enfática. Duplamente responsável, aliás, pois afinal o palco dessa irrealidade experimentada pelos contemporâneos é a própria cidade. É na metrópole moderna que se dá essa disciplina tátil do olhar, é na arquitetura da cidade que se encontra a matriz dessa civilização do simulacro. Não falarei pois de uma arte qualquer, mas de um campo de forças técnicas e artísticas de tal modo dispostos que nele germina o embrião daquele mundo de faz-de-conta no qual se exprime, segundo Jameson, a lógica cultural do capitalismo avançado.

A MAIS ANTIGA ARTE DE MASSA

Normalmente ninguém presta atenção na arquitetura de um edifício. Qualquer pessoa reconhece a paisagem próxima em que vive e com a qual se relaciona pela força do hábito; porém o mais próximo se transforma no mais distante tão logo se trate de descrevê-lo com alguma fidelidade. No caso do ambiente urbano das grandes metrópoles em que vivemos, a incapacidade de representação clara e distinta assume proporções de regra geral. Creio que Walter Benjamin foi o primeiro a extrair as consequências desse fenômeno para a compreensão da arquitetura numa época em que as grandes massas entraram em cena para ficar. Quando se quer entender a relação das massas com a obra de arte, não se pode perder de vista a mais antiga e duradoura das artes: esse o ponto de partida de uma breve passagem, raramente lida, do ensaio famoso sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. (Que eu saiba, apenas Giangiorgio Pasqualotto, num estudo de 1971, chama a atenção para a importância dela, sobretudo quando se tem em mente as aporias do Movimento Moderno.)

Em última análise, nossa relação desatenta com a arquitetura se prenderia ao fato de que ela sempre foi uma arte de massa, pois, ao contrário da pintura, que não se presta ao confronto imediato com as reações de um grande público (como o demonstrou o dadaísmo), a recepção da arquitetura, como outrora a da poesia épica e hoje a do cinema, se dá coletivamente e na forma da distração. Neste sentido, as leis da percepção de uma arte assim primordial passam a adquirir, em certas circunstâncias, força de norma. Benjamin se explica fazendo algumas distinções, que, embora muito difundidas, preciso retomar. Começa por uma espécie de reabilitação materialista da diversão que as massas procuram na obra de arte, aspiração que se costuma desacreditar em nome da abordagem circunspecta do connaisseur. Este se recolhe diante da obra de arte, a cuja contemplação se devota de maneira concentrada, enquanto a massa dispersiva exige da arte a mais intensa distração. Para melhor ressaltar esse contraste, Benjamin costuma recorrer a algumas imagens sugestivas do arrebatamento estético contraposto à falta de compostura de um público relaxado. Eis uma das mais eloquentes: “quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo”.

Se Benjamin recorre ao teatro de Brecht, do qual já era na época um dos principais teóricos, para caracterizar a natureza e os efeitos da relação distraída com a obra de arte, é a arquitetura que lhe serve de modelo privilegiado por ser a mais antiga dentre as artes que se dão segundo o critério da dispersão, pois a relação com ela teria sido sempre e em primeiro lugar utilitária, devido à necessidade básica do homem de abrigar-se, e só secundariamente contemplativa. O nosso contato com a arquitetura teria sido, pois, desde sempre, eminentemente tátil, isto é, pragmático, criando hábitos que liberam nossa atenção, mantida sem esforço, basicamente descontínua, superficial e difusa, em oposição ao que seria uma recepção ótica, contemplativa, atenta, polarizada — como tradicionalmente era solicitada pelas demais artes e que é cultivada pelos viajantes à cata de emoções estéticas diante de monumentos arquitetônicos (já fora do circuito que define o uso coletivo do objeto percebido, à margem da vivência cotidiana). Logo, o ótico e o tátil se opõem da mesma maneira que arte aurática e tecnológica, ou obra de arte única e reproduzida tecnicamente.

Volto a lembrar e a insistir que Benjamin interpretava a relação desatenta com a arquitetura nos termos em que concebia o efeito de desidentificação produzido pelo teatro épico de Brecht — o olhar distanciado de quem julga distraidamente —, fazendo dela o paradigma de toda relação estética na era da reprodutibilidade técnica. Uma analogia que possivelmente estava no ar, tanto assim que Leonardo Benevolo, em sua conhecida história da arquitetura moderna, recapitula o programa da “arquitetura funcional” recorrendo também às diretrizes brechtianas do teatro épico: como este último, a nova arquitetura concerne o comportamento prático dos homens; dirigindo-se à sua razão, não deseja comunicar-lhes entusiasmo, nem êxtase, mas arrancar decisões, permitindo que o usuário opine como um especialista, visto que as vantagens funcionais podem ser racionalmente demonstradas. Mas a liquidação da distância em que era mantida a obra de arte — a liquidação da “aura” — só viria mesmo a se consumar, de uma maneira radical, com a mais nova das artes, na sala escura do cinema (que ocupa um lugar central no ensaio citado): aquela arte que, mais do que as anteriores, é produzida para ser reproduzida e está portanto mais próxima das massas. Mas se o cinema era então a forma mais atual e que melhor expressava as tensões da época (quando a dominante tátil passa a prevalecer até no campo ótico), foi contudo a arquitetura a forma originária que minou para sempre aquela dimensão aurática. Assim, a mais antiga das artes e a mais recente e subversiva contribuíram igualmente para o eclipse da aura na arte.

Antes de prosseguir é necessário assinalar que tais distinções datam dos anos 30, quando o cinema era a grande arte nova e a arquitetura do Movimento Moderno, que se iniciara em torno dos anos 20, estava no auge, sem contar que a experiência básica da modernidade tinha como cenário as grande metrópoles. Nas poucas linhas que escreveu então sobre arquitetura, Benjamin alinha com a tábula rasa do Movimento Moderno. Inclusive adota seu argumento básico sobre uma possível transformação das relações sociais em função de uma reordenação global do espaço. Chega, por exemplo, a esperar que a nova arquitetura do vidro atente contra a propriedade privada — esta é opaca e a transparência antiaurática do primeiro valeria como uma crítica material dos segredos daquela, reunificando interior e exterior, como queriam os arquitetos modernos. A arquitetura, que num certo sentido fora exemplar quanto à forma de percepção tátil, aparecerá portanto como a grande arte sintética de uma sociedade que se constituía como sociedade de massa. De outro lado, se Benjamin não tinha dúvidas quanto ao fato de que a distração é também indício de alienação, própria de um sujeito debilitado e desviado de si mesmo, num processo de massificação que, naquele momento, muito tinha a ver com o nazismo e o fascismo (o alvo principal de Benjamin era o cinema de propaganda dos regimes europeus autoritários, ao qual contrapunha um outro uso do cinema: os filmes de Eisenstein); ao mesmo tempo, ele via delinear-se aí um comportamento à altura da era de reconstrução histórica que se anunciava (toda a esquerda e grande parte da intelectualidade nutria-se, então, dessa expectativa). Na experiência desatenta, Benjamin divisava uma espécie de liberação da percepção para outras tarefas, aparecendo-lhe, portanto, como podendo ser propícia a um uso antiburguês e até revolucionário da arte. Dizia ele, confiante na apreensão tátil da realidade e no efeito positivo dos hábitos por ela gerados: “Nenhuma das tarefas que se impõem aos órgãos receptivos do homem quando das grandes reviravoltas da história é resolvida por via visual, isto é, através da contemplação. Para que isso ocorra é preciso recorrer, paulatinamente, à fruição, ao hábito”.

Passados cinquenta anos, já não se pode mais alimentar tais ilusões quanto aos vínculos que atrelavam as inovações tecnológicas — das quais dependia o futuro da arte — às relações sociais de produção organizadas pelo capitalismo que então já mudava de pele, deixando pelo caminho as promessas de seus tempos heróicos. Todavia, a indefinição da hora, a incerteza quanto à direção em que se resolveriam as tensões daquele campo de forças ainda autorizava o livre curso das extrapolações do período anterior (das primeiras vanguardas históricas).

É justamente o triunfo dessa dominância tátil na cultura da sociedade de consumo atual, uma cultura saturada de imagens e dígitos, que pretendo analisar através da evolução de conjunto da arquitetura mais recente. E se principiei recorrendo às sugestões de Benjamin, também foi para melhor marcar o rumo divergente de tal evolução e o momento em que me afasto dele na avaliação dos resultados da generalização do modelo que acabamos de reconstituir. Não é por acaso que a arquitetura ocupa o primeiro plano nas discussões sobre a pós-modernidade. E também me parece estratégico começar pelo acontecimento público em que, expostas com espalhafato, essas novas tendências projetuais abalaram a indiferença com que habitualmente a arquitetura é acolhida. Refiro-me à dos críticos, pois o grande público parece ter se divertido bastante — o que normalmente ocorre em mostras similares —, como se estivesse num parque de diversões. É possível, porém, que tenha se divertido num sentido bem diferente do imaginado por Benjamin, mais próximo, quem sabe, do espírito denunciado por Adorno em carta a este último acerca da “teoria da distração”, lembrando, como um mau presságio, que o riso dos frequentadores de cinema é tudo, menos bom e revolucionário.

UMA RUA-MANIFESTO

A arquitetura muito especial que finalmente chegou à Bienal de Veneza, em 1980, podia pelo menos alegar em seu favor o pequeno escândalo — como dizíamos, mais de crítica do que de público — que suscitou à sua volta. Afinal fazia tempo que não se reeditava com algum sucesso a atmosfera de provocação que, em princípio, anuncia a presença do NOVO. Aqui começam os mal-entendidos. Em primeiro lugar, o título da mostra ia em sentido exatamente contrário: Presença do passado, numa aparente contestação do espírito que anima tais mostras — exibir o que há de mais atual. De outro lado, o imperativo do novo, tornado tradição, esgotara-se numa cansativa repetição de fórmulas — e isso, na arquitetura, já há mais de trinta anos, mas só agora a grande dissidência extravasava o domínio especializado de uma forma tão pública e provocativa. Reagia-se, num retorno ao passado, esquecido pelos modernos, para encontrar aí a inspiração de uma rua inteiramente diferente daquilo que se estava habituado a ver — uma Strada Novissima, como foi chamada. Choque, sem dúvida, houve, mas a presença do passado exasperava sobretudo os herdeiros do Movimento Moderno. Alguns davam de ombros e cinicamente se divertiam com a falsa alternativa, no fundo, uma “brincadeira”, mas se divertiam também com a indignação dos colegas linha-dura, abalroados pela avalanche de uma “moda passageira” que, no entanto, os assediava de todos os lados, e não era de ontem. Uma “vanguarda retroversa” — como a chamou um de seus críticos — é algo para desconcertar e custa a ser identificada. Até mesmo um espírito ponderado e arejado, como Vittorio Gregotti, um dos maiores arquitetos contemporâneos e atual diretor de uma revista muito up to date, a Casabella, ficou com um pé atrás diante desta “enorme feira de vaidades, a reboque das injunções do marketing cultural”. Para não falar do destampatório de um heterodoxo, Bruno Zevi: “facciatisti e facciattosti”, boutade muito grave num país que conheceu de perto os horrores e as cumplicidades indeléveis que o fascismo deixou para trás (motivo, aliás, de seu afastamento no pós-guerra do “racionalismo moderno”, em nome de um novo “organicismo”, mas, sem dúvida, ele não podia prever que a crise que surpreendera, ainda em suas origens, acabasse em tal miscelânea: “mistura de simulacros e cópias, tons áulicos e vernaculares, academia e regionalismo”, ora “historicismo passivo”, ora simplesmente “anarcoide”). Sumariamente, essa a visão, de uma maneira ou de outra, adotada pelos da geração que, mesmo quando não inteiramente sintonizados com o Movimento Moderno, compartilhavam da crença na funcionalidade da arquitetura.

Mas, afinal, do que se tratava? Simplesmente de uma rua inusual (e inutilizável — é verdade): vinte arquitetos de renome alinharam fachadas numa rua artificial — a Strada Novissima — aberta num dos locais mais tradicionais de Veneza, a Cordoaria quinhentista do Arsenal, mais exatamente, ao longo dos 320 metros da nave central, ladeada por sólidas e volumosas colunas toscanas, nas quais as fachadas se apoiavam, por vezes incorporando algumas para melhor acentuar o insólito do conjunto. O ambiente ajudando, multiplicavam-se as citações da arquitetura italiana do passado. Também não eram poucas as alusões mais ou menos diretas aos grandes símbolos e estereótipos da arquitetura de todos os tempos, mas agora apresentados fora do lugar, propositalmente deslocados, reconduzidos da antiga função ao ornamento, ainda mais injustificável, a não ser pela vontade de aturdir o transeunte. Entre outras coisas, chamando a atenção para as obras completas dos próprios expositores, de que estes faziam despudoradamente reclame através de maquetes e painéis variados. Fantasiosas e extravagantes, tais fachadas não escondiam o papelão e as madeiras com que foram construídas nos estúdios da Cinecittà — tudo bem sinalizado para que, de surpresa em reconhecimento imediato, o visitante da mostra pudesse ter a sensação lisonjeira de figurar num filme de Fellini. Como se tudo isso não bastasse, referências abundantes ao teatro completavam a parafernália de recursos de toda sorte mobilizados para produzir uma impressão de irrealidade. Disposta como um grande cenário, aquela rua não podia mesmo ser real. Nem pretendia: para arrematar a provocação, era suficiente sugerir a ressurreição assim fantasmagórica da farmigerada “rua corredor” que Le Corbusier dizia ser necessário matar para dar passagem ao novo urbanismo. Nessa rua de Carnaval (não se pode esquecer que se estava em Veneza), o que era posto em cena era a própria Arquitetura como uma grande construção alegórica.

Antes de passarmos aos termos da polêmica em questão, percorramos um pouco essa rua só fachadas.

Logo à entrada, a primeira delas — abrindo para a Cordoaria, como se o fizesse para um pequeno burgo medieval, de dimensões modestas — é obra de um dos grandes arquitetos italianos da atualidade, Aldo Rossi. Embora introdução literal à mostra, nem tudo se dá neste registro: sóbria, integrada sem alarde no espaço muito conotado que a envolve, a sugerir um fragmento de muralha pontuado por pequenas torres ou faroletes. Este acesso a uma aglomeração urbana mal encobre todavia a citação de uma outra obra dele, um híbrido de barco, farol e sala de espetáculo, o Teatro do Mundo — encomendado para o Carnaval do ano anterior e incorporado à Bienal, ancorado junto à antiga Alfândega. Não faltam também referências sabiamente dosadas a uma certa iconografia veneziana, em particular ao Carpaccio do ciclo de Santa Ursula, exposto na Academia. (O leitor familiarizado com a vasta e bastante desigual literatura consagrada à identificação do pós-moderno há de convir que não cabe enquadrar sem mais essa abertura na trama terminológica na qual se costuma encerrar a arquitetura de que estou começando a falar: simulacro, pastiche, descontextualização, etc. A seu tempo voltaremos a esta encruzilhada conceitual. Tentarei aqui apenas sublinhar algumas singularidades do programa de Rossi, quanto mais não seja, para salvaguardar um pouco a distância entre a nomenclatura disponível e a variação da hora arquitetônica do momento, que ninguém sabe dizer muito bem qual é.) Em linhas muito abstratas, seu programa poderia ser assim resumido: o ponto nevrálgico é a construção “analógica” — uma espécie de elaboração de referências locais, aliada a um repertório mínimo de formas-tipo (de faróis, casas de pescadores, tendas de praia, chaminés, cafeteiras, etc. a frontões-triângulos, colunas-cilindros ou cones e assim por diante). Segundo a imaginação do arquiteto, recorrências históricas associadas a reminiscências pessoais e que afloram em suas obras nas mais diversas articulações — algo como um diálogo permanente entre a memória coletiva e a individual, a tipologia atemporal e a morfologia local, as formas puras e as soluções arquitetônicas concretas.

Passando ao outro lado, o visitante deparava com um renque de formas-fachadas, quase sempre fora de contexto e sem nada que lembrasse mesmo de longe um projeto de uma rua verdadeira. Uma arquitetura livre de qualquer convenção — inclusive de fachada — entregava-se a uma festiva autocelebração (esta sim, pós-moderna). Alguns poucos arriscavam apresentar frontispícios residenciais, como Leon Krier, mostrando uma de suas casas-tipo, pré-modernas e artesanais, em versão clássico-vernacular, ou o próprio organizador da mostra, Paolo Portoghesi, embora sua fachada fosse um tanto assemelhada à de um templo, no espírito de autoculto dominante. A índole complacente dessa manifestação era descrita por dois críticos italianos como “um patchwork de monumentos à glória de si próprios, de altares-mores e arcos do triunfo à própria poética, de scherzi literários ou gráficos, pictóricos ou escultóricos, de auto-ironia e ironia”. Enfim, uma apoteose do narcisismo. Tendo sempre a auto-referência como norma, estes cenários arquitetônicos funcionavam como “boca de cena”, onde os autores vinham expor suas obras. A de Tigerman, por exemplo, consistia num imenso cortinado pintado sobre madeira, enquanto, num segundo plano, levemente recuado, surgia um telão onde se podiam ver colunas em perspectiva, no claro intuito bem elementar de criar um trompe-l’oeil de profundidade, o todo culminando numa porta, encimado por um frontão, pela qual finalmente se entrava em sua sala de exposição. Gordon Smith ia pelo mesmo caminho, substituindo o cortinado por colunas salomônicas pintadas e, coroando o frontão de uma porta-arco, um afresco de imitação, onde se podia ler em letras bem grandes a palavra talismã ARCHITETTURA. De caso pensado ou não, a ideia de altar era a primeira a se impor, quem sabe sugerida por alguma afinidade com o baldaquim da Catedral de São Pedro. Também é um arco triunfal, apoiado sobre pilares e colunas dóricas romanas, que encontramos na entrada da exposição de Greenberg. O acesso à de Mathias Ungers dava-se através de uma imensa coluna vazada. Mais discreta, por assim dizer, a fachada de Koolhaas e Zinghelis resumia-se a um pano branco com uma das pontas arregaçadas, à maneira de uma tenda, ou de uma entrada de circo (com uma haste à frente que, dado o contexto veneziano, também faz lembrar um mastro com uma vela enfunada — achado bem de acordo com o primarismo triunfante que alimenta o programa de alusões de todo um ramo dessa arquitetura). Um pouco mais adiante, o monumento-mausoléu de Taller Bofill. Se o contraste é flagrante, nem por isso a obra exposta, o teatro de Abraxas, deixa de ser menos celebrativa, monumental e cenarística. Aliás é esta a principal especialidade do Taller, fazer uma arquitetura de efeito: grandes cenários inspirados na tradição dos palácios franceses, devidamente deformados, ampliando escalas, multiplicando as formas, misturando estilos — como sempre, tudo a serviço da intensificação de uma ilusão, a grandiosidade ao alcance de todos.

Continuando pela Strada Novissima, ao lado de Bofill, meios-arcos sucedendo-se em diferentes posições anunciam Charles Moore. O visitante europeu pode enfim ter uma ideia da Piazza d’Italia que o celebrizou (construída entre 75 e 80, em plena Nova Orleans). Àquela extravagância deve ele a reputação de um dos mais representativos protagonistas da arquitetura pós-moderna. Numa alusão clara à Fontana di Trevi, a Piazza d’Italia não deixava de ser também uma montagem bem-humorada de citações, com um mapa da Itália cercado por muita água e inscrições em latim, ao qual se juntam arcos, colunas, frontões e pérgulas em forma de tempietto, tudo reunido num cenário que tem menos a ver com um canto de cidade italiana do que com um filme hollywoodiano. Uma Itália kitsch filtrada pelo olho americano igualmente estereotipado pelo preconceito europeu: um amálgama colorido de formas arquitetônicas tradicionais, aço e neon transforma os monumentos da memória numas tantas figuras de retórica esvaziadas e resfriadas. Caberia aqui a distinção feita por Jameson — um dos teóricos da pós-modernidade — entre o pastiche, de humor sem graça, cool, e a paródia, de intenção contestatória, hot, própria às vanguardas. O que se vê aqui, como em quase toda a Strada, é não mais do que uma blank irony, a irreverência “dadá” esvaziada — no máximo aquilo que Daniel Bell, ao caracterizar o niilismo dos anos 60, chama de atitude rebelde (inconsequente como o comportamento da adolescência). Se é verdade que a sociedade de consumo é uma grande usina de processamento de dados, estávamos em casa. Como também não surpreende a irritação do europeu cultivado com essa representação que faz da Itália o turista americano padrão. Embora nem tudo na Bienal de Veneza fosse obra americana, aquela rua aberrante parecia mesmo uma avenida de Las Vegas transportada para dentro de uma das mais tradicionais cidades do mundo.

Do outro lado da rua, o austríaco Hans Hollein, em vez de arcos, brinca com colunas. Uma fachada composta por quatro colunas fictícias, justapostas a duas toscanas, reais, do Arsenal, resumia a história da arquitetura. A primeira delas era um tronco de árvore, segundo os manuais que adotam as teorias do mimetismo na origem da arte, o modelo original da coluna; este primeiro elemento se repetia na fachada de Purini. Seguia-se uma coluna de mármore, partida como uma ruína embora suspensa. Entre elas, a ainda hoje intrigante coluna dórica, a um só tempo prédio e monumento, projetada por Loos (o primeiro grande teórico da arquitetura antiornamental) para o Chicago Tribune. Finalmente uma coluna revestida de vegetação, outra alusão elementar ao retorno ecológico à natureza. Hollein é em geral um dos bons exemplos de uma arquitetura eclética. No geral, como na Piazza di Moore, uma montagem irônica (no sentido empregado há pouco, isto é, sem o tom negativo das vanguardas heróicas) de formas do imaginário do homem médio da sociedade de consumo. Em um dos exemplos mais conhecidos — sua agência de viagens, construída entre 76 e 78, em Viena — reúne novamente num cenário de teatro tudo o que a imaginação de um turista aprendiz, pré-moldada pela mais convencional publicidade, consegue antecipar: ruína grega, baldaquim hindu, palmeiras dos mares do sul, revoada de pássaros em liberdade e outros cromos do mesmo quilate — tudo muito asséptico, brilhante, metálico, sobre mármores. Onde esperávamos encontrar o cálido repertório do “convite à viagem” dos nossos avós, exotismo e mistério prometidos pelo longínquo e primitivo, deparamos com uma paisagem pasteurizada por uma arquitetura que é tudo menos naïve: o antigo e o distante filtrados pelo ultramoderno, superiluminados por uma abóbada de vidro, privados do mais leve indício que os particularizasse, sem subentendidos ou segredos, num espaço chapado onde tudo deve aparecer — embora nada seja revelado — como itens de um catálogo ilustrado (na feliz expressão de Lyotard ao falar do hiper-realismo). Da Agência de Viagens à Joalheria — outra boutique vienense de Hollein —, o raciocínio é linear: a alta burguesia deve consumir jóias como o turista profissional coleciona imagens. Figuremos então uma enorme rocha — uma pedra preciosa, evidentemente — entreaberta por uma fresta por onde se penetra como numa mina; ou, como sugere Jencks (autor de um breviário famoso da arquitetura pós-moderna), uma fenda de simbolismo sexual diretíssimo, possivelmente na intenção de estimular a libido da clientela — talvez um arranjo a comprovar o teorema de que no mundo da publicidade sexo e mercadoria andam de mãos dadas. Num ou noutro caso a informação é de leitura imediata, como no programa de uma arquitetura “simbólica” formulada por Robert Venturi — outro mestre dessa novíssima arquitetura presente na Strada.

A teoria é de Venturi, mas com uma ressalva: não cabe à forma arquitetônica enquanto tal figurar o que quer que seja, mas reservar a algum elemento decorativo a tarefa de informar. O símbolo não é arquitetônico mas gráfico: um letreiro, um luminoso, um objeto exterior indicativo de suas funções ou até mesmo a fachada concebida como um painel, porém claramente distinta do corpo do prédio. Numa palavra, um hangar ou um galpão decorado — na fórmula em que define essa arquitetura simbólica, para a qual encontra apoio nos exemplos do passado, em especial na arquitetura gótica, em oposição à arquitetura moderna que pretendia expressar a função através da forma, o interior pelo exterior.

Digamos que as teorias de Venturi estão bem representadas na Strada Novissima. (Aliás, ignorando um pouco o fogo de artifício daquela rua, veremos que ela dá bem a medida da nova produção arquitetônica.) Ilustrando suas teorias, um grande letreiro com os nomes de Venturi, Rauch e Scott Brown identifica imediatamente o stand dos arquitetos. As letras se distribuem sobre o arco da entrada, num telão onde, para variar, estão representadas formas arquitetônicas clássicas — frontões, colunas, etc —, porém simplificadas e distorcidas segundo as regras do humor pop que domina os luminosos de motéis, ou como num desenho de caricatura: colunas rechonchudas e esquemáticas. (Em Oberlin, na ampliação de um museu, inflige o mesmo tratamento a uma coluna jônica.) Logo em frente, Robert Stern faz um jogo semelhante — trata-se de outro dos mais significativos arquitetos americanos pop — ao introduzir o visitante ao seu stand através de duas imensas colunas recortadas à maneira de uma “Aro Gibbs” (numa versão também bem-humorada de uma solução arquitetônica recorrente em Palladio).

Voltando à fachada anterior — o passado da arquitetura em chave publicitária —, é o exemplo mais chamativo das ideias de Venturi. Como se sabe, a arquitetura que ele tem em mente deveria se inspirar na paisagem cotidiana dos Estados Unidos, em especial nas ruas de comércio mais sobrecarregadas, ou na famosa Avenida 91, que atravessa Las Vegas. Ideias que lhe valeram a pecha de “populista”, por confundir as formas pseudo-comunicativas da sociedade de consumo com as autenticamente populares. Quem percorrer os escritos de Collin Rowe, Frampton, Colquhon ou Maldonado — para ficar nos mais conhecidos — encontrará a mesma unanimidade. Em particular, Frampton denuncia o culto do camp, e Collin Rowe considera que o programa de uma arquitetura “ordinária” seja apenas um álibi para a não-performance no ato de construir. Aprendendo com Las Vegas propunha uma arquitetura “feia e ordinária” (FO), inspirada no vernacular, em oposição à “heróica e original” (Ho) do Movimento Moderno. Numa entrevista concedida a John Cook e Heinrich Klotz, Venturi se defende, precisando que, posta de lado a comparação polêmica, logo se verá que, na verdade, sua arquitetura também é “extraordinária”. No fundo, lembrava, reinterpretando o discurso vernacular e a língua cifrada dos símbolos publicitários, a nova arquitetura retomaria, com algum atraso, procedimentos correntes na melhor literatura erudita. Assim, um reajuste de escala ou de contexto, de elementos convencionais e habituais, pode produzir significados insólitos, pois — como diz no polêmico texto sobre Las Vegas — o familiar um pouco em off tem um estranho poder de revelação. Por outro lado, argumenta, se diante do caráter por assim dizer dramático de grande parte da arquitetura moderna a sua aparece apaziguadora e banal (veja-se a Guild House), o inesperado desta intervenção fora de tom, quando tudo à volta é ênfase e titanismo, pode ter até — quem diria — valor de choque. Ao mesmo tempo, no exemplo citado, não faltam as tensões, como no contraste patente da fachada mais ou menos monumental, destacada na sua diferença por um enorme letreiro sobre o pórtico de entrada, e o restante do prédio, de uma singeleza extrema, expressamente projetado com materiais e soluções arquitetônicas tradicionais. Não haveria melhor exemplo de “galpão decorado”.

A Guild House, contudo, é do início dos anos 60, quando, seguindo de perto as lições de seu mestre Louis Kahn, Venturi parecia estar mais preocupado com uma espécie de serenidade estética, na qual envolve suas principais obras do período, de resto estruturalmente complexas, como propõe em seu livro da mesma época — Complexidade e contradição (talvez o primeiro grande libelo contra o Movimento Moderno). Neste livro, Venturi analisa mais de duzentos exemplos extraídos da história da arquitetura para mostrar o caráter híbrido e por vezes equívoco das grandes obras do passado, ao contrário do programa de clareza e nítida homogeneidade adotado pelos arquitetos modernos, num despojamento que esconde o preconceito, resumido na famosa fórmula de Mies van der Rohe: “Less is more”. Nessa primeira fase, Venturi está atento aos procedimentos, materiais e soluções construtivas da tradição. Como se vê, a redução um tanto unidimensional do contexto ao cenário pop dos media ainda não se impusera. Constrói então uma série de casas similares, em parte inspiradas nas shingle houses e cuja simplicidade está longe de resultar de um processo de simplificação; no entanto, a unidade e a precisão daquelas casas até hoje surpreendem. Pois é uma delas, a casa da sua mãe, construída em Chestnutt Hill, em 1962, que se pode ver ao fundo da enorme fachada autopublicitária da Strada Novissima — mais uma vez, a ilustrar suas teorias; aqui, pelo violento contraste proposto: o da cisão entre fachada-símbolo (o telão à frente) e a forma-construção (a maquete em segundo plano).

À primeira vista, tudo nessa casa é da maior compostura. A face pública parece reproduzir um desenho infantil — segundo o próprio Venturi, é uma “imagem quase simbólica” da casa. Acontece que, recuperando a tradição clássica, está calcada na fachada de um pequeno pavilhão de Palladio, ao fundo da Vila Maser, da qual transpõe algumas formas geométricas, mas numa versão que em parte as contradiz — e nisto, seguindo igualmente as sugestões de Palladio —, como é o caso do frontão-telhado interrompido, deixando entrever o volume quase desproporcional, não o salvasse o recuo do paralelepípedo da chaminé central. O arco, que em Venturi é tanto uma reminiscência clássica quanto uma lembrança local (segundo ele mesmo assinala, um recurso muito usado por Sullivan em alguns de seus prédios da região bancária de Chicago), vê-se reduzido ali à sua função simbólica, apenas desenhado sobre o quadrado que marca a entrada, onde novamente um deslocamento se processa, com vistas a desmentir a harmonia clássica, com a porta colocada à direita e um tanto recuada em relação à fachada, que vai assim se transformando num “signo neutro e liberado” (justifica-se o arquiteto). Se as janelas obedecem em geral à variedade dos espaços internos, as da fachada principal, entretanto, estão subordinadas antes de tudo a um equilíbrio peculiar, pois não é resolvido pela simetria convencional, mas por um balanceamento entre a longa janela horizontal da direita e o peso da janela maior à esquerda, tanto quanto pela equivalência numérica: cinco quadrados iguais de cada lado, porém distribuídos de forma desigual. As outras fachadas são mais livres — “complexas e contraditórias” —, alternando as diagonais dos telhados, as horizontais dos balcões ou desenhadas nas paredes, os arcos (ora apenas formas, ora janelas), planos e volumes variados, trompe-l’oeil em profusão, paredes que se prolongam para além do corpo da casa, e assim por diante. O mesmo se dá internamente, onde linhas, planos e espaços se contrariam e se equilibram, multiplicando a diversidade, pelos efeitos de luz e sombra.

Colada às sugestões de Las Vegas, a arquitetura “inclusiva” da década seguinte abandonará em larga medida essa lição de sobriedade inventiva. Há quem diga em sua defesa que o ecumenismo desse gesto abrangente não é puro revival, é antes urna releitu-ra, por assim dizer, ao quadrado do passado — não da sua versão erudita original, mas da tradução kitsch (veja-se o hotel de Venturi para Atlanta) que a sociedade de consumo (mais uma vez) foi sobrepondo àquela camada primitiva. Seja como for, caso a realidade imediata, sem maiores qualificações, sirva de sismógrafo, não há arquitetura mais up to date do que essa outra de Venturi, embora pague por isso o preço elevado de toda integração: o desinteresse crescente.

Só o primeiro Venturi ainda faz pensar, os desmandos do último (ou do segundo — talvez ele já esteja numa outra fase, quem sabe, de síntese) pedem um contraponto que apenas posso evocar na forma de algumas ideias programáticas muito genéricas, concretizadas num último exemplo, colhido na mesma mostra polêmica, cujo percurso encerro aqui, embora não tenhamos nos detido diante de todas as fachadas. Trata-se de uma arquitetura onde a significação não foi abandonada, como parece ter sido o caso dos pós-modernos expostos. Sirva então de primeiro exemplo desse renascimento, depois da exaustão do Movimento Moderno, uma obra do arquiteto pelo qual começamos nosso percurso, o Teatro do Mundo de Aldo Rossi.

Apoiando-se numa velha tradição veneziana, documentada na iconografia dos séculos XVI e XVII, a de um teatro sobre barco, chamado Teatro do Mundo, Rossi por assim dizer renova esse circuito, a partir de uma dupla meditação sobre o teatro e o seu mundo, Veneza, sua arquitetura e suas festas. Nas representações da época, barco e palco flutuavam a descoberto, formando uma única e insólita entidade anfíbia. Rossi começou fechando o espaço, como no teatro moderno, mas, reatando ao mesmo tempo com a mais antiga forma teatral, concebeu-o como um anfiteatro grego, ou melhor, como uma arena circundada por arquibancadas. Como, de outro lado, tratava-se de uma encomenda para o Carnaval de Veneza (1979) — uma festa que até hoje, mesmo degradada pela indústria turística, ainda fala à imaginação e à memória dos habitantes do lugar —, o arquiteto deu-lhe feição de carro alegórico, e como tal dotado de mobilidade, além de estruturas metálicas desmontáveis e paredes de tábua, como a armação dos palanques. Uma arquitetura simples que no entanto tem tudo a ver com a complexidade veneziana — penso sobretudo na arquitetura renascentista de Palladio. Com sua planta em forma de cruz, encimada por uma cúpula octogonal, esse teatrinho, ancorado ao lado da antiga Alfândega, como já foi lembrado no início do nosso itinerário, rima com a igreja de San Giorgio ao fundo, ao mesmo tempo que reproduz parcialmente as formas e planos do prédio aduaneiro em estilo barroco, que, situado na -entrada de Veneza, se não tem a função, aos poucos foi assumindo a fisionomia familiar de um farol. Mas a conversa com a cidade não fica por aí, pequenas aberturas no corpo do edifício permitem ao espectador ver simultaneamente o que se passa em cena e o espetáculo que é a própria Veneza. A cidade pode ainda ser vista — e ver, em Veneza, é o mais enfático e abrangente dos verbos — do alto de um balcão que faz do Teatro do Mundo mais uma das tantas torres e mirantes que oferecem aos visitantes incontáveis vistas aéreas dessa cidade que hoje em dia ninguém mais se atreve a descrever, tal o entulho literário que a recobre. Uma coisa porém é certa, Veneza é sobretudo essa solicitação permanente — para bem e para mal — de um olhar externo. É um pouco essa exterioridade da imagem em exposição que lhe confere uma inegável — e por vezes desagradável — dimensão cenarística, que, aliás, como vimos, os organizadores da mostra souberam explorar muito bem, convergência que não deve ter contribuído pouco para o mal-estar dos críticos venezianos. O Teatro do Mundo é assim uma figuração sintética de Veneza: encarna-lhe os valores — ou supostamente tais pela força da tradição —, reduplica-lhe a teatralidade, ao mesmo tempo em que plasma um lugar de práticas artísticas e coletivas. E também é uma grande recapitulação do repertório arquitetônico de Rossi que encontramos nesse casamento feliz do imaginário individual com o coletivo posto em cena pelo Teatro do Mundo.

Ainda duas palavras. Aldo Rossi encara o projeto arquitetônico, e cada um deles em particular, como um “fato urbano”, e como tal, diretamente vinculado ao seu “lugar” de inserção, não apenas do ponto de vista físico ou topográfico, a sua ambiência imediata, mas como um gesto referido a um espaço constituído por elementos primários” — os monumentos, que de um certo modo encarnam aquilo que Chabot chamou a “alma da cidade” —, fatores da memória coletiva que configuram a imagem da cidade de que partirá o arquiteto. Por assim dizer são nós ou feixes de significação em torno dos quais vai se cristalizando a estrutura da cidade e que, em última instância, condicionam todas as construções que nela se “situam”. Com esse dispositivo em mente, Rossi esboça uma hipótese de cidade “análoga” (já referida aqui): composição centrada em alguns fatos fundamentais da cidade, em torno dos quais se constituem outros tantos fatos urbanos, como no quadro de um sistema analógico. Para se fazer entender melhor, Rossi costuma evocar uma tela de Canaletto que se encontra no Museu de Parma. Nela estão representados apenas alguns lugares de Veneza, reagrupados muito mais próximos uns dos outros que na sua localização de origem, de modo a produzir uma figuração alterada da paisagem original da cidade, na verdade oferecendo-nos uma Veneza análoga, resumida por alguns monumentos mais significativos do ponto de vista da história da cidade e de sua arquitetura, justamente os paladianos. Reconhecemos de imediato a “alma” de Veneza, embora apresentada como um lugar de puros valores arquitetônicos. “Surge daí (conclui Rossi) a hipótese de uma teoria do planejamento arquitetônico em que os elementos estão prefixados, definidos formalmente, mas cujo significado que se desprende ao término da operação é o sentido autêntico, imprevisto, original da investigação. Isto é o projeto.” Resultado de uma investigação concebida nesses termos, o Teatro do Mundo a um só tempo revela e acrescenta significações a Veneza. Vinculando-se à arquitetura de Veneza na mesma medida em que prolonga a história de certas práticas artísticas e sociais da cidade, é obra de invenção, sobretudo quando reinterpreta de modo original e atual os dados pacientemente recolhidos da memória.

Se, por vezes, o repertório um tanto restrito e recorrente de Aldo Rossi valeu-lhe muitas críticas, ou reproduz, em parte, embora num registro formal diverso, o que ocorreu coma arquitetura moderna ao consagrar certas formas geométricas simples, neste caso preciso, do Teatro do Mundo, redundou num dos exemplos mais felizes de uma arquitetura situada, ou daquilo que chamarei ao fim — a título de alternativa à arquitetura simulada — contextualismo crítico.

ARQUITETURA OBSCENA

Chegados a este ponto, talvez se faça necessária uma precisão terminológica. Ao ressaltar a teatralidade ostensiva dessa arquitetura cenarística, procurei sempre evocar a sensação de irrealidade produzida por tal cenografia. Isto é, se a ilusão naturalista é inerente à própria disposição em “cena italiana”, mimetizada por aquela sucessão de fachadas sem corpo, ocorre que rigorosamente não se passa nada nessa rua corredor, nada está sendo encenado em semelhante teatro — ou melhor, dá-se em espetáculo uma espécie de saturação do repertório arquitetônico. Recorro portanto a um trocadilho de Baudrillard que me convém para assinalar uma tal variação de perspectiva.

Num artigo intitulado “O êxtase da comunicação”, o próprio Baudrillard se encarrega de inventariar o que o separa atualmente dos esquemas consagrados em suas obras anteriores, quer dizer: a Era do Simulacro, do antigo Sistema dos Objetos ainda sobrecarregados de sentido, atravessados pelas mais diversas pulsões fetichistas, consumidos como sonho de poder e diferenciação social. Hoje se encontra desativado esse palco obsoleto em que o sujeito, mesmo alienado, mutilado, punha em cena o claro-escuro de seu drama — uma espécie de corpo a corpo em que os objetos lhe devolviam a própria imagem desfigurada pelas mais variadas fantasias de posse. O automóvel, por exemplo (endeusado pelos futuristas nos tempos heróicos da poética da máquina), já não é mais esse “santuário psicológico”: ao invés de um projétil pilotado por um demiurgo embriagado por velocidade, propriedade e poder, tem-se uma cápsula sobre rodas dirigida por um computador, enquanto a paisagem à volta vai se sucedendo como as imagens no vídeo de uma televisão. Voltando à metáfora teatral, Baudrillard anuncia o fim da idade do espetáculo: este não subsiste sem a separação entre o segredo da intimidade doméstica e o espaço público do consumo significativo; ou melhor, enquanto sobrevive tal distância, que é a da alienação, há o espetáculo — alguma ação em cena. Não é mais o caso, como o demonstra o universo devassado pelo “efeito televisão”. À luz inexorável, irradiante da pequena tela — que passa por informação — nada de obscuro ou reprimido permanece sobre a vasta cena doméstica do mundo, que por seu turno desaparece por excesso de iluminação. Não há mais espetáculo, não mais cena — e, portanto, promessa de significação quando tudo se torna absolutamente próximo, Como no close glacial
de um filme pornô. Essa total promiscuidade com as coisas não é nem mais do domínio do olhar. Voltando a W. Benjamin, seria o caso de acrescentar que a chave da promiscuidade assim entendida é tátil. Vemos agora no que se converteu, para pior, a confiança depositada por ele na predominância do tátil na cultura moderna. A “tatilidade” beira aqui a cegueira: incapacidade total para qualquer forma de distanciamerito, completa imersão no objeto e anulação de qualquer diferença do sujeito. No limite, diz Baudrillard, é aquilo que não pode ser visto, porque “está votado nu, sem segredo, à devoração imediata”. Hipervisão de uma hiper-realidade. Nisto consistiria o obsceno — obliteração da cena. Daí o trocadilho que me interessava: uma paisagem (antes de tudo metropolitana) obscena (ob-cena). Portanto, uma obscenidade que não tem mais nada a ver com o jogo de esconde-esconde da libido e do recalque, mas que exprime justamente o contrário: a extroversão do consumo explícito, da exposição plena, que cega, ao invés de seduzir. A obscenidade é o reino chapado da superfície.

De minha parte, estou procurando mostrar em que sentido a arquitetura é igualmente protagonista e sintoma desse processo, e não só nos termos em que o analisa um dos seus teóricos mais em vista. Como já disse, numa medida bem mais modesta, quando comparada à “espetacularidade” do “efeito televisão” dos media, mas possivelmente mais profunda, e por isso mesmo desapercebida, quando entrevista do ângulo da constituição de base do cenário metropolitano — lugar por excelência da atenção flutuante, como a do telespectador, diante de cujo olhar indiferente desfilam desencarnadas, porém resplandecentes, as coisas mesmas, o mais terrível anulado pela justaposição do anódino. E, quando as coisas estão presentes em pessoa, não há mais aparência. A Strada Novissima, com suas fachadas sem profundidade, sem qualquer ponto de fuga que permitisse à imaginação alçar vôo na direção de uma realidade outra, de um lado assinalava, ao banir a ilusão da quarta parede, a abolição da aparência (de uma significação em cena) — o preço histórico pago pela eliminação técnica da distância estética; de outro, a existência de um paradoxo: pretender, apesar de tudo, contra a forma monovalente dos modernos, uma legibilidade imediata, uma carga semântica altamente diferenciada, como se estivesse a reinstaurar a significação. No entanto, não passava de muita retórica sem nada a dizer, a alteridade tinha sido anulada pela cisão definitiva entre forma e função aí consumada. Apesar de sua índole ascética e lacônica, a Arquitetura Moderna sempre pretendeu dizer alguma coisa, enunciar um sentido (não importa se riscado do mapa do mundo); agora, contudo, fica suspensa no ar a pretensão — sem dúvida equivocada — de voltar a narrar, como as grandes arquiteturas simbólicas das sociedades pré-modernas. Embora a quimera salte aos olhos quando se trata de reativar o passado (em geral envolto num halo fictício de magia), a arquitetura também arriscou esse passo em falso (uma variante do raciocínio pós-moderno). Aliás, um tropeço que só uma arte de massa poderia dar. Quando Jencks fixa a data da morte do Movimento Moderno em 15 de julho de 1972 — dia em que foi dinamitado o conjunto de Pruitt-Igoe, projetado por Yamasaki na década de 50, segundo os ideais mais progressitas dos CIAM” -, a certidão caricata de sua tirada tem o mérito de chamar a atenção (sem querer) para o drama presente naquela implosão real — a implosão de sentido” (outra expressão forjada por Baudrillard) dessa arquitetura.

A imagem obscena é, por assim dizer, o estágio final da forma-mercadoria. É, ao menos, o que pretende Baudrillard, reclamando o patrocínio de Marx e recorrendo à transformação do valor de uso em valor de troca, para localizar a origem da realidade obscena. Não há dúvida, contudo, que fetichismo e obscenidade, pelo menos no início, não podem andar juntos; para tanto, é preciso esperar pela consolidação terminal do capitalismo avançado, onde triunfa a forma-publicidade. Nesse espaço unidimensional, os objetos comunicam sempre a mesma coisa — seu valor de troca, que no limite não existe mais. Esse o “êxtase da comunicação” — a transparência e a obscenidade do universo saturado pela hiperinformação. De outro lado, Baudrillard (como de resto todo o pós-estruturalismo francês) também recorre muito livremente à psicanálise para o seu diagnóstico da patologia contemporânea: o sujeito moderno era um híbrido de histeria e paranóia, ora encenando seu drama interior, ora o projetando numa ordenação delirante do mundo, enquanto a obscenidade do novo estado de coisas se exprime na esquizofrenia branca de um indivíduo que não oferece mais nenhum obstáculo à transparência de um mundo que o atravessa — uma espécie de leveza minimalista, de grau zero da alienação. Jameson também fala de esquizofrenia a propósito da cultura pós-moderna para acentuar a irrealidade que ela produz (bem diversa daquela irrealização do mundo criticada por Lukács nos expressionistas, e por Sartre nos surrealistas). Neste sentido muito especial, a arquitetura simulada que estamos passando em revista, além de obscena, seria esquizóide. É também do ponto de vista desse novo sentimento do mundo desmaterializado que a queremos abordar.

Uma imagem que apagou a sua relação com o outro é, nesta exata medida, hiper-real: por assim dizer mais visível que o próprio visível — e quem o diz é ainda Baudrillard, acrescentando que a hiper-realidade dela é a da simulação. Embora todo esse processo se prenda ao aparato tecnológico dos media, a experiência dessa alucinação, que é a substituição das coisas por imagens, se dá a todo momento; por exemplo, na presença de um simples manequim hiper-realista — quem não sentiu, diante desses simulacros de poliéster, pergunta Jameson, a realidade do mundo à volta oscilar por um breve instante de dúvida e hesitação? A figura hiper-realista é imagem ao quadrado, daí o halo de irrealidade que instaura à sua volta; o simulacro ao mesmo tempo simula e anula a sua referência, pois é uma espécie de cópia idêntica de um original inexistente. Mas a intensificação desse efeito deriva da reprodução técnica indefinida da cópia, cujo original se perdeu sem deixar rastro. Esse o segredo da imagem publicitária.

Pois bem, boa parte da arquitetura que vimos até agora, também saturada de pastiches, faz reclame de si mesma: nela se espelha a contaminação recíproca da imagem da cidade e o achatamento radioso da imagem publicitária (não é por acaso que boa parte da iconografia hiper-realista provenha da fotografia de ambientes urbanos devidamente embalados para o olhar esquizóide). Em outros termos: a arquitetura é igualmente fonte primária da experiência do simulacro (por certo não com a mesma eficácia com que uma garrafa de Coca-Cola tenta nos convencer de que ela é the real thing). Concretamente: o exemplo do automóvel em movimento por cujas janelas desfila a paisagem como numa tela de vídeo, em que o modelo da experiência alucinatória é a produção industrial do simulacro, também pode ser lido levando-se em conta o caráter determinante do que se vê pela janela do carro. “Se você vai a Times Square, em Manhattan, ou viaja por quase qualquer uma das rodovias americanas”, afirma o crítico Peter Fuller (citado por Cristopher Lasch), “você se depara com um fluxo de imagens que parecem mais reais do que a própria realidade. Você tem a impressão de um mundo físico em que as coisas foram desmaterializadas ou reduzidas a superfícies.” Tal sensação (privilegiada por Venturi enquanto fonte de uma arquitetura adequada aos nossos dias) não se deve exclusivamente à inflação pop da publicidade. Como o próprio Fuller sublinha, é a vida na metrópole de hoje que nos arrasta para um mundo de superfícies — ou, como diriam os teóricos franceses, é na cidade que fazemos experiência do mundo como obscenidade. Assim, continua o mesmo crítico, o império da “planura” na pseudofiguração hiper-realista, ou na arte minimalista (e é desta última que ele está falando), é parte de uma experiência urbana mais larga em que predomina uma espécie de onipresença do superficial (cuja matriz, por certo, é a cidade americana). Ora, estou procurando mostrar de que forma e em que condições a arquitetura contemporânea vem evoluindo como um dos enquadramentos básicos dessa experiência.

UMA FALSA SUPERAÇÃO DO MOVIMENTO MODERNO

Não há dúvida de que a fisionomia que assume esta arquitetura — sejam as obras consideradas até agora ou as tendências projetuais de que falarei mais adiante — é bem diversa daquela de há trinta ou quarenta anos, mas nem por isso é um acidente na história recente da arquitetura, nem mesmo uma simples extravagância, se pensarmos naqueles projetos em que a provocação supera o propósito construtivo. Aliás, o tom contestatário não é dominante, nem tão radical assim, como muitos pretendem. Tomar o popular como referência, ou a feição mais banal da sociedade de consumo são iniciativas que têm o seu preço, como uma maior integração na ordem capitalista: e não é fácil precisar onde termina a ruptura (via de regra espalhafatosa) com o passado e principia a mera atualização. Para bem ou para mal, a arquitetura obscena se encontra como um peixe dentro d’água em pleno centro nevrálgico do atual estado de coisas. Mas se ela evolui aí com tanta desenvoltura, isto não significa que não tenha antepassados.

Não há como negar um certo formalismo, exasperado mesmo em alguns casos, das novas tendências arquitetônicas. De fato, o caráter fragmentário, aleatório e seguidamente passadista delas, embora extremado, é uma consequência natural do esvaziamento progressivo do estilo internacional, que ia perdendo qualquer sentido à medida que passava da prancheta para o campo de forças de uma sociedade superlativamente enquadrada pelo capitalismo; desfazendo assim antigas ambições de ordenação abstrata da cidade. Por outro lado, também é fato que a tentação formalista sempre acompanhou o Movimento Moderno. Os historiadores ou os próprios pioneiros tentam desculpá-la, ora alegando um equívoco — a Arquitetura Moderna não é um estilo a mais —, ora a necessidade do projeto comentar-se a si mesmo para efeito de demonstração didática, etc. Não é bem assim. Confiemos na clarividência de um Mies van der Rohe, sem acompanhá-lo na capitulação. A certa altura de seu estudo sobre as relações entre Arte de Vanguarda e Tecnologia, G. Pasqualotto, referindo-se à arquitetura de vidro de Mies, afirma que a opção deste pelo silêncio representa a aceitação da integração como destino. O que é a verdade, mas não toda. Ao abandonar de vez a crença em qualquer possibilidade objetiva de intervenção, Mies van der Rohe simplesmente tira uma conclusão própria do desfecho de um processo que teimava em não cumprir suas promessas — algo como uma dialética da racionalidade arquitetônica. Em poucas palavras: os planos de redenção social através da ordenação do espaço habitado (casa/cidade), que desde sua origem a Arquitetura Moderna acalentava como a antevisão de uma nova era, resultariam finalmente no seu exato contrário, e, mais particularmente, no formalismo integral das soluções padronizadas pela produção industrial. O formalismo não é portanto uma aberração passageira ou mesmo um desvio constitutivo (porém sempre um desvio), pois nele aflora uma marca de nascença, um vício de origem, que alcançou a maturidade (por isso discordo dos que tentam salvar o discurso original contra a história subsequente em nome de um “projeto inconcluso” da Modernidade).

Não seria, portanto, a arquitetura dita Pós-Moderna, em seu formalismo extremado, o prolongamento natural daquele desdobramento antitético? Apesar das especificidades, rompeu-se de fato com o projeto Moderno, ou simplesmente abandonou-se o seu discurso: a ideologia da síntese e da funcionalidade, em nome da verdade escondida (a rigor, realizando-a cabalmente ao negá-la)? Visto de perto, o programa “pós-funcionalista”, exposto por Eisenman há dez anos (num editorial de Oppositions), na verdade apenas aprofunda o silêncio em que se fecharam os mestres modernos, tornando ainda mais explícita a ausência de sentido que aos poucos foi tomando conta da modernidade arquitetônica enquanto tal. Porém, se a arquitetura simulada não é uma alternativa radical, mas um capítulo conclusivo da Arquitetura Moderna, tem o mérito de pôr por terra cinquenta anos de ilusões quanto à Ordem que esta tanto encareceu diante da patologia da metrópole contemporânea: uma Utopia, sem dúvida, mas que tanto mais se transformava em seu contrário quanto mais procurava se realizar, embora parcialmente, através do traçado regulador, da unidade no detalhe, do tipo, da organização das funções, etc., na cidade.

Inútil lembrar que uma condenação global do Movimento Moderno faz tão pouco sentido quanto a sua apologia rotineira. O meu interesse está em entender o que ocorreu e o que faz com que a arquitetura assuma sem maior violência todas as características de uma arte de massa ao completar o ciclo de sua evolução moderna. O que me obriga a algumas digressões mais, antes de voltar à civilização do simulacro, com o intuito de tornar mais verossímil a “tese” acima acerca da gravitação de conjunto de “modernos” e “pós-modernos”.

REFORMA E UTOPIA

“Arquitetura ou Revolução. Podemos evitar a revolução.” Esta proclamação famosa de Le Corbusier dá bem a medida do caráter, diria eu, antitético do programa arquitetônico anunciado no início da década de 20. Por um lado, um projeto reformista propriamente dito: antes que seja tarde, prevenir a revolução — que desde 1917 não era mais uma palavra qualquer —, antepondo-lhe uma reforma da sociedade que a desarmasse por completo. A Arquitetura Nova que havia dois anos vinha propondo nas páginas do Esprit Nouveau apresentava-se então como um esforço decisivo no sentido de sanar os “sintomas alarmantes” de insatisfação que o capitalismo desorganizado de entre-guerras vinha multiplicando. Uma alternativa, portanto, à Revolução e não àsociedade convulsionada que emergira de uma guerra imperialista. Por essa via, contudo, reformulava-se a sociedade muito mais num plano formal do que intrínseco. Assim, aderindo ao plano Dowes de reconstrução da Alemanha e produzindo para as grandes empresas do país, chegando mesmo a transferir-se para Dessau devido à proximidade de um importante complexo industrial, a Bauhaus também corria pelo mesmo trilho. Inútil lembrar que não se apoiava em qualquer forma de poder constituído e a qualquer preço — não por acaso os nazistas fecharam a Bauhaus. É bem verdade que na Itália muitos arquitetos modernos se deixaram cooptar (não se há de esquecer que o país se modernizava, só que pela via conservadora), chegando a propor um programa de arquitetura moderna para o Estado fascista (sem muito êxito, aliás, visto que os grandes arquitetos oficiais eram anti-modernistas). Numa palavra, os arquitetos modernos, como uma grande parte da inteligência de esquerda, apostavam na evolução positiva do capitalismo europeu num momento em que a catástrofe estava batendo à porta. Assim nasceu a “Carta de Atenas”, o mais famoso manifesto do Movimento Moderno. No mesmo ano em que os nazistas tomavam o poder na Alemanha, arquitetos do mundo inteiro se reuniam num cruzeiro no Mediterrâneo para estabelecer em linhas gerais os princípios que deveriam nortear uma cidade moderna. Redigida por Le Corbusier, a carta, publicada somente dez anos depois, em plena guerra, registrava um desencontro patético: o fim de linha da barbárie nazista começava afinal a revelar a verdadeira face da ordem capitalista; enquanto isso, a arquitetura pretendia reconduzir o capitalismo para o bom caminho através de uma reordenação que o traçado regulador da cidade deveria tornar visível. A abstração de tal programa era, entre outras coisas, indício do alheamento (considerando que a maior parte dos arquitetos modernos era, sem dúvida, bem-intencionada) de intelectuais confinados. De outro lado, esse irrealismo traz à tona a outra dimensão da nova arquitetura: um certo radicalismo que, se não contraria inteiramente suas intenções reformistas, empresta-lhes uma maior abrangência. É que o Movimento Moderno também é filho da Utopia — se bem que de uma utopia da civilização maquinista, atrelada a todas as aporias do progresso técnico.

É preciso lembrar que essa radicalidade era a de todas as vanguardas históricas. Como estas, a arquitetura acreditava pressagiar dias melhores para a humanidade, e isso com tanto mais razão quanto ela podia intervir diretamente sobre as condições materiais de vida do homem moderno — isto é, podia, em princípio, alterar radicalmente a fisionomia da cidade. A utopia resumia-se à convicção de que era possível, e desejável, resolver os antagonismos da grande metrópole através da reordenação do espaço habitado, uma intervenção em profundidade que se refletiria na organização social. Para tanto, o novo método projetual deveria ser regido pelos seguintes preceitos: objetividade, racio-nalidade, funcionalidade e internacionalidade — resumidos na fórmula-programa “arquitetura funcional”. Esse ímpeto vanguardista do Movimento Moderno ressalta ainda mais a sua inviabilidade histórica, evidente na implicação recíproca e contraditória de Reforma e Utopia. Pois a utopia de uma racionalização em que a forma deveria seguir a função se realizaria na organização da cidade; justamente por ser o lugar por excelência das relações de produção, no âmbito em que se verifica a integração capitalista da sociedade. Daí a reforma modernizante, caucionada pelo espírito de utopia.

Voltando à “Carta de Atenas”: seus princípios básicos para uma “cidade funcional” levavam em conta quatro funções básicas’ do homem: morar, trabalhar, recrear-se e locomover-se. Hoje salta aos olhos a enormidade do programa, a abstração que o comprometia pela raiz. Uma ordem construída idealmente, nivelando diferenças e condições históricas as mais variadas, subordinada ao princípio do modelo único e com validade internacional (independente do fuso histórico ou geográfico no planeta), forçosamente substituía o homem concreto e as relações reais na sociedade por uma organização espacial maximamente eficiente do ponto de vista do sistema econômico geral. Ou seja, a funcionalidade arquitetônica que se tinha em vista dava forma ao mesmo processo de abstração que se realizava através das relações sociais de produção no sistema capitalista. O mecanismo totalizador encarnado pela cidade era o palco dessa abstração. Em sua primeira declaração de princípios (1928), os Ciam — Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (que estão na origem da “Carta de Atenas”, visto que ela resultou do Di encontro, realizado em 1933) — referem explicitamente o “vínculo da arquitetura e do sistema econômico geral”; trocando em miúdos a Utopia técnica do Trabalho, estabelecem como norma a “eficiência técnica”, isto é, a “racionalização e estandardização”; além do mais seria exigido do consumidor (sic) uma revisão de suas demandas, tendo em vista o ajustamento às novas condições econômicas.

Torno a repetir que uma condenação global da modernidade arquitetônica não faz sentido, como, também não, buscar ingenuamente circunstâncias atenuantes (ideais traídos, degradação ideológica, recuperação pelo “sistema”, erro categorial quanto à ideia de “função”; etc.). Ao contrário, o que importa é discernir, na evolução de conjunto da arquitetura moderna, os elementos de um processo que acabou por ultrapassá-lo — de um sistema de ilusões e compromissos, que são a marca de nascença da ideologia. Alinhei brevemente alguns deles. Lembro que os teóricos da Escola de Veneza (Manfredo Tafuri, Francesco dal Co, Massimo Cacciari) vêm analisando exaustivamente o colapso da ideologia arquitetônica do piano, da qual o Movimento Moderno é a expressão triunfal — crise patente desde o último pós-guerra. Quando observam que a arquitetura-plano tornou-se programação e reorganização da produção edilícia da cidade como organismo produtivo integrado, tomam o cuidado de acrescentar que a Arquitetura Moderna já surgira com tais características. “A arquitetura, ligada literalmente à realidade produtiva”, conclui Tafuri, “não só é a primeira a aceitar com rigorosa lucidez as consequências de sua já realizada mercantilização: partindo dos seus próprios problemas específicos, a arquitetura moderna em seu conjunto está em condições de elaborar, já antes que os mecanismos e as teorias da Economia Política facilitem os instrumentos de atuação, um clima ideológico que integra eficazmente o design a todos os níveis de intervenção, em um Projeto objetivamente destinado a reorganizar a produção, a distribuição e o consumo do capital, na cidade do capital.”

UMA ARQUITETURA PARA SITUAÇÕES DE CHOQUE

A curva cumprida pelo Movimento Moderno obriga-nos a uma revisão do arquétipo arquitetônico de recepção coletiva do qual partimos, seguindo as sugestões de Benjamin, embora já então anunciando essa reversão de ponto de vista. O que de fato acabou ocorrendo com a arquitetura foi uma adaptação consequente da relação distraída-tátil, que desde sempre comandou o comportamento do usuário, ao seu programa de funcionalidade racional, onde convergem integração e planificação global. Essa reformulação positiva da relação desatenta carrega, contudo, desde o seu nascedouro, o rumo oposto: ao invés de liberar a atenção e o intelecto para o campo da iniciativa política emancipató-ria, ela disciplina, formando hábitos ajustados a uma outra política — expressa pelo lema de Le Corbusier “arquitetura ou revolução”.

Mas isso não é tudo quando está em causa o vínculo material do programa conciliador do Movimento Moderno com a relação distraída que a massa mantém com a arquitetura. Reativando algumas análises da sociologia alemã sobre o comportamento psicossocial do homem moderno nas grandes metrópoles (em especial Simmel) à luz das experiências estéticas de vanguarda, sempre ligadas ao ambiente urbano, W. Benjamin elaborou um quadro conceitual no interior do qual a ambivalência do projeto moderno é pensada do ponto de vista da experiência do choque. Esta leva Benjamin a estudar mais de perto o outro lado da questão: o plano inclinado da modernidade, a degradação da “experiência” em “vivência”, ou seja, a transformação do choque em hábito — em choque-vivência repetitivo. A consciência alerta filtraria os choques diários da vida moderna, resultantes da diversidade, da agitação, da rapidez, da multidão que se-acotovela, expulsando-os da memória e impedindo, assim, que se sedimentassem em experiências coletivas como nas sociedades pré-capitalistas. Do mesmo modo que a reprodutibilidade técnica da obra de arte provoca a dissolução da aura, a repetição do choque-vivência vai disciplinando o aparelho perceptivo do habitante da grande cidade. A atrofia moderna da experiência é o avesso de uma crescente organização de estímulos ou neutralização de situações ameaçadoras e traumáticas. Intercambiando constantemente positivo e negativo, Benjamin afirma que a necessidade de se expor a efeitos de choque constitui finalmente uma adaptação do homem moderno aos perigos que o ameaçam. Uma adaptação racional, podemos acrescentar, pela qual, do choque ao hábito que o enquadra e normaliza, está definido o caminho percorrido pela razão técnica moderna — funcional e pragmática —, votada inteiramente à autopreservação. Sem tirar nem pôr, não é outro o itinerário da racionalização arquitetônica. A arquitetura moderna integra essa estratégia global de neutralização do choque pelo hábito. No princípio, sem dúvida, estava a recepção coletiva comandada pela apreensão tátil utilitária; mas ao longo do trajeto não houve liberação de outras faculdades para novas tarefas, porém inibição e domesticação. A vivência na metrópole foi obrigando a arquitetura moderna a um esforço continuado de instrumentalização produtiva do choque pela organização funcional da cidade e a abrangência do Plano — do talher à cidade, como dizia Le Corbusier.

Era tão aguçada a consciência que tinha Benjamin do que nos reservava o empobrecimento moderno da experiência que, a certa altura, chega a antecipar a indiferença sem perspectiva da cultura do simulacro (da arquitetura do vidro aos filmes de Mickey Mouse): “uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio […], na qual um automóvel não pesa mais do que um chapéu de palha, e uma fruta de árvore se arredonda como a gôndola de um balão”. Mas não era para lamentar o impulso dado pela nova arquitetura àquele encurtamento da experiência: uma arquitetura sem “aura”, do vidro e do aço, anulando os espaços interiores e arrastando o indivíduo para a extroversão e massificação, cumpria o programa brechtiano de “apagar os rastros”. Consequentemente, ele esperava que os habitantes dessa cidade de aço e vidro, em que não há mais diferença entre interior e exterior, desejosos de subtrair-se a toda experiência, viessem “a ostentar tão claramente sua pobreza externa e interna que algo de decente pode resultar disso”. Nesse contexto adverso, contudo, ele não pode deixar de ressaltar a outra face da extinção da “aura”: o choque, ao impedir o olho de se fixar numa imagem (como nas sequências cinematográficas), como que consagra uma espécie de campo visual coercitivo de predominância absoluta do tátil. Essa é a pista por onde correrá a imagem arquitetônica à medida que a diversidade e a agitação da metrópole — como numa linha de montagem — for cedendo o passo ao elementarismo e à ordem do Plano.

Se de um lado as formas simples ou as formas-tipo permitem, pela sua reprodu-tibilidade técnica, a recepção distraída que deparamos na origem do fato arquitetônico, de outro, como mostra Pasqualotto, alcançamos um tal ponto de inflexão que tais formas elementares, graças ao tipo de reprodução que consentem, tornaram-se objeto de consumo massificado. É esta lógica que governa o elementarismo programático das formas simples, do produto em série, estandardizado, das fachadas homogêneas, das aberturas padronizadas, dos módulos, da moradia mínima, dos modelos, tipos e invariantes que se harmonizam no novo panorama urbano. Obedecendo aos princípios de montagem, estas células que se ordenam num todo urbano vão se ajustando segundo leis e ritmos da lógica do consumo de massa. Não surpreende então que, ao término desse processo, as imagens arquitetônicas funcionem como imagens publicitárias.

ULTRAMODERNISMO À DERIVA

Voltemos à década emblemática dos 60. Se fôssemos procurar no âmbito da arquitetura a expressão máxima desse universo móvel, simulado, múltiplo, sem identidade — alguns dos traços marcantes da cultura do simulacro —, nós a encontraríamos no Archi-gram. Tratava-se de um grupo de jovens ingleses que se reuniram sob esse nome programático — Architecture + Telegram (ou Aerogram). O princípio básico que norteava a atividade do grupo — como sempre algo um tanto fluido, como em todos os manifestos — era o da “metamorfose”, ou ainda, da “instantaneidade”. Uma orientação projetual muito mais imaginada do que praticada, mas que não deixou (talvez por isso mesmo) de estimular muitos arquitetos que viam na arquitetura high tech a solução para os novos tempos. O. trabalho do Archigram era basicamente gráfico e, no limite, antiarquitetôni-co. Não se cogitava de sua viabilidade prática (embora, em geral, tecnicamente o fosse). Em muitos casos o espaço construído era substituído por projeções, ou por raios. Passava-se da hard-ware para a soft: no lugar de paredes, hologramas; em vez de casa, carro ou apenas uma cápsula; finalmente, um terminal de computação. Formuladas estas propostas extremas, o grupo se desfez. Procurando antever e moldar o ambiente futuro, elas não só antecipavam como suplantavam qualquer outra experiência arquitetônica atual no propósito de dar forma a esse brave new world de simulacros, pois chegaram enfim à virtualidade total do objeto arquitetônico, ultrapassado por um circuito imagético de metamorfose contínua, sem consistência nem estabilidade.

Alguns exemplos, combinando hipertecnologia e nomadismo — tão ao gosto dos anos 60 —, desse antiurbanismo hiperurbano. Em 1964, Peter Cook propõe a “Plug-in-City”, uma composição de estruturas metálicas fixas, destinadas aos serviços, e estruturas móveis, cápsulas, etc., conectáveis, dentro do espírito da arquitetura megaestrutural, figurado pela supermáquina, que despontara no panorama internacional fazia uns dez anos e acabou sendo a tônica da grande exposição de Montreal em 1967. A esses grandes dispositivos em voga, os jovens arquitetos ingleses acrescentaram elementos móveis, intercambiáveis — verdade que igualmente presentes noutros projetos, como os de Yona Friedmann e Frei Otto. Mais radical, entretanto, foi a proposta de uma “Walking-City”, uma interpretação literal da “máquina de morar” de Le Corbusier, apresentada por Ron Herron: imensas cápsulas móveis, entre a nave espacial e a aranha gigantesca. Os projetos do grupo multiplicavam as casas em forma de trailers ou cápsulas. A “Drive-in-House” constava de uma cápsula-carro, envolta por telões móveis que também serviam para isolá-la ou pô-la em contato com o exterior. As cidades deveriam ser instantâneas: por exemplo, transportáveis num hovercraft apropriado, na forma de uma torre em feitio de guarda-chuva que se abriria numa cobertura transparente e hastes sus‑tentando cápsulas-habitação (“Blow-out-village”); ou, ainda, por um sistema de balões (“Instant-City”). Havia ainda o “Cushicle”, cápsula autotransportável, quase um carro. Estruturas móveis e imagens projetadas: hard e soft vão se combinando até culminar no “Auto-ambiente” hologramático, permitindo ao indivíduo, elevado à condição extrovertida e passiva de manipulador de botões, ser transportado, segundo lhe fale o capricho, para a África ou Hollywood. Mais uma vez: incorporando e estilizando recursos e expedientes dos media, a arquitetura decididamente principiava, quase ao pé da letra, a desmaterializar-se.

Onde situar essas montagens demonstrativas em que o domínio da ficção se encontra com o da realidade — “essa simulação universal que é para nós o mundo dito ‘real”? Utilizando as distinções feitas por Baudrillard: o trompe-I’oeil ainda é da ordem do alusivo, e a science fiction abre-se para o imaginário, para um mundo de projeções alimentadas pela multiplicação ilimitada das possibilidades entreabertas pela ciência. Já a terceira modalidade, a do simulacro — dominante nos dias de hoje —, como se recordou, abole a ficção e transforma o real numa utopia, a da simulação sem transcendência. Entre o que ele chama de “operático”, o reino da maquinaria teatral e fantástica; o “operatório”, que envolve a reiteração projetiva e produtiva de energia; e o “operacional”, abarcando a tecnologia informatizada e as regiões conexas do aleatório e do flutuante — estratos da cultura que Baudrillard pretende sucessivos e excludentes —, é difícil precisar o que é domínio projetivo e o que é pura simulação, o que é fantasia e o que é hiper-realidade. Assim, boa parte da arquitetura da Strada Novissimas é ainda, apesar de tudo, “operática”, enquanto as fantasias do Archigram seriam “operatórias”, e “operacionais”; quem sabe, sua última fase, uma certa arquitetura high tech, e possivelmente o Beaubourg do qual falarei a seguir. Seja como for, esse amálgama difícil de classificar, entre projeto propriamente dito, utopia e ficção, superlativamente ilustrado pela arquitetura Archigram, não deixa de representar uma brecha, mesmo virtual, nesse mundo do qual a dimensão significante da alteridade foi banida; numa palavra, não está escrito que estamos fatalmente condenados a este único lado do espelho. Voltarei ao assunto.

UMA FRATURA EXPOSTA: O PARADOXO BEAUBOURG

Num certo sentido, o Beaubourg descende dessa tradição high tech, mas de tal modo que as imagens de science fiction nele parecem se tornar realidade.

Pompidou propusera aos arquitetos um grande museu de arte moderna. Rogers e Piano procuraram, no entanto, fugir do museu-templo-da-cultura, projetando um edifício que fosse ao mesmo tempo tão familiar como uma usina e tão intrigante como uma nave espacial, de tal sorte que provocasse nas pessoas o desejo de se aproximar e ver o que se passa no interior. As referências iconográficas, contudo, não têm outra função — sabidamente não se trata de fábrica, nem de espaçonave. Daí resulta um monumento bifronte: por um lado, estruturas metálicas sofisticadas que são o símbolo da modernidade; por outro, tal emaranhado de tubulações de serviço e circulação aparentes, como se os intestinos do prédio estivessem à mostra, essa falsa máquina virada do avesso constitui uma espécie de desmoralização da tecnologia moderna. São cenas de tecnologia explícita que tornam o Beaubourg a própria modernidade em pessoa, quer dizer, totalmente exposta — entendamos: em franca exposição, porém exibida como uma imagem do passado. Esse prédio que lembra as estruturas da “Plug-in-City” ou o pavilhão de Kurokawa para a mostra de Osaka (em 1970), e tem um pouco de montanha russa e parque de diversões, é todo exterioridade. Tudo se passa do lado de fora, o interior é um espaço vazio, não planificado (até hoje os administradores do Centro não sabem muito bem o que fazer com aquele grande oco). Paradoxo calculado ou não, esse vazio interior abriga a cultura tradicional. Vai-se lá mais para circular e ver Paris, mas de quebra também se consome cultura como em qualquer outro museu, sala de exposições ou biblioteca.

É essa contradição o tema de análise de Baudrillard, a que chamou “o efeito Beaubourg”: todo exterioridade, portanto simulacro dissuasivo, ao mesmo tempo que esconde uma cultura da significação, reinstaurando uma relação tradicional. No fundo, um chamariz publicitário para uma cultura da profundidade. Mas o exterior se encarregaria de aniquilar de saída o ritual que em princípio estaria sendo celebrado no interior — o Beaubourg-carcaça proclama o que o Beaubourg-museu quer esconder, entre outras coisas, que a cultura contemporânea é também da ordem do cracking. De outro lado, a falência provocada por uma tal discrepância tornaria sem sentido qualquer proposta de um novo conteúdo. Não há nada a colocar no interior do Beaubourg (nem mesmo do vazio sobrecarregado de sentido da anticultura), ou então, num esforço de harmonizar interior e exterior, algo como um labirinto, uma biblioteca borgiana, um laboratório de ficção prática, etc., numa consagração de toda parafernália cultural pós-moderna. Afastemo-nos um pouco da direção que vai assumindo o “efeito Beaubourg” que, apesar das intenções do autor, não consegue esconder, no terrorismo alardeado, suas raízes: o antigo pathos da provocação de vanguarda. Esse centro inventado por Pompidou estaria aí, segundo Baudrillard, a convidar as massas não para celebrar, mas para enterrar de vez uma cultura que sempre detestaram, e, em sua fragilidade, o Beaubourg representaria um apelo à autodestruição pelo peso em excesso dos frequentadores que acorreriam em massa, sendo implodido (FAITES PLIER BEAUBOURG!). Preferimos mantê-lo em pé com todas as suas contradições — justamente o que o torna paradigmático.

O extraordinário sucesso de público do Beaubourg — arquitetura e centro cultural — deveria mesmo dar o que pensar. Ainda mais quando estudado do ângulo dos esquemas mobilizados até aqui para entender o destino da arquitetura moderna no mundo de hoje. Não há dúvida de que boa parte dessa acolhida se deve à fisionomia particularmente convidativa do objeto arquitetônico que se plantou no coração do Marais e hoje se incorporou à imagem da cidade com os mesmos direitos de uma torre Eiffel. Isca “obscena”? Vamos por partes. Evidentemente não seria preciso esperar tanto tempo para pôr à prova a teoria de Walter Benjamin de que nos servimos para entender o molde arquitetônico da arte antiaurática; de qualquer modo, nas tubulações simuladas do Beaubourg, a predominância do tátil sobre o ótico também parece não ter cumprido o que prometia o primado da recepção coletiva. O rush que ali se verifica diariamente pouco tem a ver com o que anunciava Benjamin, apesar do aspecto animador de pequenas multidões de usuários que se divertem com uma desenvoltura própria de espíritos despertos. Não esqueçamos que a confiança de Benjamin na reprodução técnica dependia da força social inerente à generalização do comportamento “esclarecido”. Ora, mais uma vez: o efeito dessacralizador da arquitetura “tátil” do Beaubourg esbarra na cultura do “recolhimento” do recheio, além do mais, administrada como um bem de consumo. Ao que se poderia acrescentar que por isso mesmo ele é um emblema de nosso tempo fraturado: de um lado, um imenso jogo de armar, de tal modo exposto que dá a impressão de que a ideia democrática de uma massa composta de usuários-especialistas pareça novamente ao alcance da mão; de outro, como ficou dito, hibernando sob a forma convencional e confinada do museu, a memória liberadora da arte autônoma — as duas metades de uma verdade mais funda, cuja reunificação está muito longe do atual estado de coisas.

Digamos que a evidência contemporânea de que a liquidação da aura caminhou em direção exatamente inversa, e perversa, inspira, como vimos em parte, um raciocínio simétrico, apenas de sinal trocado. O que é o “obsceno” senão a expressão terminal da dominância do tátil no domínio mesmo do ótico? A abolição da distância estética cultural resolveu-se num fetiche invertido, na promiscuidade absoluta com a coisa vista, na proximidade total do simulacro, cuja visibilidade hiper-real vem a ser a caução “tátil” da ressureição de uma aura espúria, a da prática manipulatória. Novamente Baudrillard (tomando o tátil na sua acepção mais corriqueira): “as pessoas vêm tocar, elas olham como se tocassem, seu olhar não é senão um aspecto da manipulação tátil. Trata-se bem de um universo tátil, não mais visual ou do discurso, e as pessoas são diretamente implicadas num processo: manipular! ser manipulado, ventilar /ser ventilado, circular / fazer circular que não é mais da ordem da representação, nem da distância, nem da reflexão”.

ARQUITETURA FRÍVOLA

Retomo a meada do formalismo — tal como o estamos entendendo aqui, como o resultado histórico — por uma de suas pontas extremas, na pessoa de um dos integrantes do grupo denominado “Cinco arquitetos de Nova York”, e seu principal ideólogo, Peter Eisenman, que de saída apresenta a arquitetura que faz como frívola. Ao introduzir a frivolidade na arquitetura, está evidentemente acompanhando Derrida em sua reabilitação do frívolo, quando o redefine como o domínio do significante (“vide, vacant, friable, inutile”) que circula dissociado de qualquer referente (“pour ne rien dire”). Eisen-man, portanto, ao qualificar assim a arquitetura — mas nessa acepção precisa e enobrecedora, em que o “fútil” (ainda Derrida) assume proporções metafísicas — o faz na exata, medida em que ela não pretende representar nada, comentar coisa alguma além de funcionar (por assim dizer) como signo de si própria. Pode-se pois tomá-la como um caso de arquitetura “dissuasiva”, embora com resultados bem diversos; ou ainda, dentro da mesma rede terminológica, “operacional”, embora não computadorizável, pois agora o caráter aleatório da operação é absoluto. As formas se compõem e recompõem através de seus múltiplos desenhos, que não são propriamente projetos, nem visam obrigatoriamente a qualquer construção — as configurações que vão se realizando têm neste jogo combinatório infinito sua única finalidade. Trata-se de uma arquitetura derramada no poço sem fundo da autonomia formal, como disse Tafuri. Uma negação sem transgressão, simplesmentè a frivolidade assumida de quem deu as costas para a cinzenta positivi-dade do mundo. Eisenman chega a afirmar — citando Baudrillard — que, assim como a simulação tornou-se tão onipotente que a realidade a segue, sua arquitetura igualmente se limita a dissimular, sem fazer ou propor coisa alguma de real.

Ele define o seu fazer como um processo contínuo de desconstrução ou de decomposição. Como, apesar de tudo, se trata ainda de arquitetura, são ideias no mínimo curiosas. Diante delas, até mesmo Derrida se vê obrigado a observar que a arquitetura aparentemente é “a arte que mais resiste ao que se chamaria desestabilização ou desconstru-ção, porque dentre todas as artes é a mais solidamente fundada nos valores da presença, da origem, da teleologia, da finalização, etc.”. Quando se fala em desconstrução, recorda, já não mais se trata de arquitetura. Ou então a desconstrução visada é um tanto sui generis, pois não pode nunca ser inteiramente negativa, “mas produtiva de alguma coisa que concerne formas, escalas, itinerários, traçados”. Ao se fazer arquitetura inevitavelmente tem-se que passar — diz Derrida, num surpreendente acesso de realismo — do nível do discurso sem amarras para a dura realidade da pedra, da economia, da política, da cultura. Eisenman sabe evidentemente do que se trata, pois afinal também constrói, e o que ele constrói também pode ser utilizado, habitado, etc. Mas quando fala, dá a impressão que gostaria mesmo de ficar deste lado do espelho, aquém do fato bruto, “trazer a arquitetura ao seu grau zero”.

Em 1970, publicou “Notas sobre uma arquitetura conceitual” que correspondiam a pontos numerados e distribuídos ao acaso numa folha branca. Mais recentemente, em três textos para a Bienal de Veneza, propôs uma arquitetura fundada no vazio — vazio do presente, do passado e do futuro. O que está dado jamais lhe serve de referência, sua arquitetura é abstrata e dispensa o contexto. Seus desenhos em série não formam um contínuo de ordenação do espaço tendo em vista alguma coisa real, concreta, nem pretendem. E mesmo que isso se verifique, continuam a ser exercícios livres — decomposições em que a forma ou o objeto final não é a síntese desse processo, o resultado de uma acumulação, mas uma parada arbitrária de uma série que poderia continuar indefinidamente através de sucessivos deslocamentos. O que também não é uma simples inversão do procedimento habitual, que principiaria pelo objeto na sua integridade ao invés de defini-lo ao fim. Trata-se, portanto, de um percurso muito mais importante do que os objetos que eventualmente possam dele resultar. Suas casas são apenas momentos dessa trajetória. Aliás, projeto e obra se apresentam com os papéis trocados. Antes o desenho anunciava a obra, mas agora esta última ou a maquete estão a serviço do entendimento do desenho, servem para ilustrar o plano, a elevação, o corte. Uma operação em que “o edifício representa a representação sobre a folha”, como se pode ler no texto introdutório de J.-F. Lyotard para o catálogo da exposição “Les immatériaux”. Os resultados — se assim se pode falar — não são volumes, pouco têm a ver com uma casa, pelo menos tal como habitualmente costumamos nos servir dela: são intersecções de planos que dão uma linha, que formam vãos, mais do que volumes fechados. Uma arquitetura em abismo, labiríntica, espaços incompletos, formas gratuitas, sem função, quando muito destinadas a provocar no observador um sentimento de estranheza e, no usuário desprevenido, a curiosa convicção de ser um intruso.

A casa III, por exemplo, é aparentemente o resultado da intersecção de dois sólidos — dois cubos —, a bem dizer virtuais, inteiramente vazados, decompostos em várias formas: vigas, escadas, etc., que no geral no obedecem a necessidades estruturais ou funcionais. O mesmo ocorre nas demais casas, onde ele vai, inclusive, abandonando as formas geométricas simples. Na casa vi, sobrepõem-se uma escada verde, real, e uma vermelha, perpendicular à primeira, em negativo, impraticável. O efeito de tais desníveis e ângulos torna instável qualquer ponto fixo de referência, como num quadro de Esher. A multiplicação e inversão de formas e pontos de vista, a funcionalidade evanescente no interior de toda essa complexidade formal, a “artificialidade” do espaço (de tal forma enfatizada que parece ideada expressamente para contrariar os movimentos naturais do indivíduo e a “racionalidade” de seus deslocamentos), graças ao inevitável dépaysement que provoca (como reparou Tafuri), não deixam de exercer uma pedagogia perversa para uso de alguns poucos eleitos, obrigando-os a rever seus parâmetros e mudar sua percepção espacial, tanto quanto seus hábitos. Mas tal adaptação é na verdade uma elevação consagradora — Eisenman é o primeiro a reconhecer o elitismo de suas propostas ao avaliar a distância delas do entorno habitual. Daí a ressalva de Tafuri, nem sempre afinado com o “elegante purismo” de Eisenman: as estruturas herméticas dele tenderiam para uma compreensão alternativa. Na aristocrática reserva dessas estruturas, se espelharia, na verdade, menos a comunicação interrompida do que uma guerra intransigente à ba-nalização da linguagem arquitetônica. Eisenman protestou contra tal interpretação ideológica generosa: não quer, diz ele, transformar o mundo, acha que o arquiteto enquanto tal não deve ter programa político, nem pretende que se mudem os rumos da cultura por meios dessa ordem, mas concede entretanto que pequenas modificações individuais de percepção, como as que suas casas podem provocar, acabam levando a uma compreensão diferente do ambiente de tal sorte que podem vir a ter efeitos coletivos.

Pelo menos duas dúvidas. A primeira, vai na direção em que a revista AMC o interpelou, perguntando se a anulação do sentido em proveito de estruturas puramente formais no processo do design não estaria alinhada com alguns dos princípios imperativos da ideologia dominante. Eisenman respondeu irritado que sua atividade projetual consistia justamente em arrancar os objetos arquitetônicos de tal contexto — rodando em torno do mesmo círculo: o conteúdo ideológico do esforço de desideologização do objeto arquitetônico… Segundo reparo: o elitismo confesso de uma arquitetura confinada a uma estreitíssima faixa de consumo dificilmente terá efeitos coletivos ou provocará a generalização de novos hábitos perceptivos, pois justamente o que essa classe de consumidor, predisposta a acatar e reforçar tais excentridades, procura é sublinhar de maneira eloquente o que a distingue, barrando qualquer veleidade de comportamento generalizável que porventura o arquiteto alimentasse. Como se vê, não abandonamos o enorme girar em falso do formalismo integral em que foi se convertendo o discurso arquitetônico moderno à medida em que seu sentido se volatilizava.

DESLOCAMENTOS MÍNIMOS, TRANSFORMAÇÕES DISCRETAS

Se ao longo desta exposição dei a impressão de estar descrevendo uma evolução fatal, não foi essa minha intenção. Uma coisa é mostrar de que modo a imagem tátil arquitetônica cabalmente realizada revelou seu fundamento histórico, a generalização da forma-mercadoria e sua apoteose publicitária; outra é sugerir que estamos condenados a embalar o repertório de, todos os tempos em neon, a mimetizar, para efeitos dissuasivos, o espetáculo da tecnologia de ponta, ou então, a torturar as formas modernas para demonstrar, em permanência, ao infeliz usuário delas, o quanto se enganara em imaginar que elas anunciavam uma nova e superior organização social. Por outro lado, há um pouco de miragem — sem dúvida socialmente necessária — na alardeada onipotência do simulacro. Seus teóricos tendem a esquecer que a desmaterialização do mundo pela simulação irrestrita é também um cenário, que também pertence ao faz-de-conta a pretensa volatilização universal dos acontecimentos no vídeo de uma televisão — e que portanto não estamos condenados à falsa alternativa da provocação apocalíptica, de resto envelhecida. A força emblemática do hiper-realismo generalizado tem no entanto sua razão de ser: hoje a realidade é a sua própria ideologia, como qualquer câmara de televisão sabe muito bem. Mas nem assim está provada a inexistência de um ponto de observação a partir do qual essa fusão de imagem ideológica e realidade possa ser posta em perspectiva. Sucede apenas que a hiper-realidade tátil do mundo tornou ainda mais penoso o esforço de passar para o outro lado do espelho. Uma coisa porém é certa: a partir do momento em que o desenvolvimento das forças produtivas, ao invés de fazer explodir o quadro estreito e opressivo das relações de produção, passou a confirmá-lo e reforçá-lo, a sorte do Movimento Moderno, que confiara àquele processo o destino da utopia, estava selada — quanto mais “racionalizava” seu programa, mais ilusões enterrava. As coisas sendo o que são, para a arquitetura, a era das intervenções drásticas e radicais está encerrada. Aos poucos a grandiosidade do fiasco foi sugerindo uma estratégia alternativa e mais modesta: deslocamentos mínimos, transformações discretas, com repercussões de pequeno porte, porém imediatas, graças às quais vá recuando também, nas mesmas proporções, a escravização tátil do olhar — para voltarmos aos termos do nosso problema — à hiper-realidade imagética característica da paisagem metropolitana no capitalismo tardio. A reconstituição e interpretação dessa tendência, bem como a identificação dos processos sociais que dão substância ao seu projeto ficam evidentemente para uma outra ocasião. A presença um tanto destoante de Aldo Rossi na Bienal de Veneza serviu-me de contraponto necessário. Como se há de recordar, anunciava então uma estratégia alternativa, nada fatal, de um “contextualismo crítico”.

O que estou chamando de contextualismo (deixo de lado as origens do termo, variantes e atribuições) designa certamente uma gama muito variada de arquitetos e obras. Trata-se, não obstante, de uma reinvenção que deve muito à experimentação dos italianos, especialmente dos que formaram o grupo “Tendenza”, no final dos anos 60. Não faz muito a revista Casabella dedicou um número à “Architettura come modificazione”, mas que, à diferença de uma arquitetura como decomposição, proposta por Eisenman (a bem dizer no vazio), pressupõe uma appartenenza — já mencionada de passagem. Quando o lugar é o fundamento do projeto, a arquitetura torna-se transformação do que está dado. Só assim, afirma Gregotti, enquanto modificação silenciosa de um presente específico, a arquitetura poderá ultrapassá-lo, reatando enfim com sua tarefa de representar o que de alguma maneira não se encontra no presente — “somente da experiência do lugar podem nascer as exceções que dão forma à arquitetura”. Salvo engano, um ponto final no capítulo conclusivo do formalismo moderno, mesmo quando se apresenta simulando o contrário.

Figura 1. Aldo Rossi, Entrada para a mostra da I Bienal Internacional de Arquitetura, 1980
Figura 1. Aldo Rossi, Entrada para a mostra da I Bienal Internacional de Arquitetura, 1980
Figura 2. Vista geral da Strada Novissima, I Bienal Internacional de Arquitetura
Figura 2. Vista geral da Strada Novissima, I Bienal Internacional de Arquitetura
Figura 3. Robert Venturi, Vista da fachada na Strada Novissima, de dentro do estande de Robert Stern, ao fundo maquete da Resistência de Chestnut Hill
Figura 3. Robert Venturi, Vista da fachada na Strada Novissima, de dentro do estande de Robert Stern, ao fundo maquete da Resistência de Chestnut Hill
Figura 4. Hans Hollein, Fachada na Strada Novissima
Figura 4. Hans Hollein, Fachada na Strada Novissima
Figura 5. Hans Hollein, Joalheria, Viena, 1975
Figura 5. Hans Hollein, Joalheria, Viena, 1975
Figura 6. Hans Hollein, Agência de viagens, Viena, 1978
Figura 6. Hans Hollein, Agência de viagens, Viena, 1978
Figura 7. Bofill, Teatro de Abraxas, Noisy-le-Grand, 1982
Figura 7. Bofill, Teatro de Abraxas, Noisy-le-Grand, 1982
Figura 8. Henri Moore, Piazza d'Itália, Nova Orleans, 1979
Figura 8. Henri Moore, Piazza d’Itália, Nova Orleans, 1979
Figura 9. Aldo Rossi, Teatro do Mundo, Veneza, 1979/80
Figura 9. Aldo Rossi, Teatro do Mundo, Veneza, 1979/80
Figura 10. Venturi e Rauch, Chestnut Hill, 1962
Figura 10. Venturi e Rauch, Chestnut Hill, 1962
Figura 11. Fachada lateral
Figura 11. Fachada lateral
Figura 12. Venturi e Rauch, Guild House, Filadélfia, 1963
Figura 12. Venturi e Rauch, Guild House, Filadélfia, 1963
Figura 13. Ron Heron (Archigram), Projeto para uma Walking-City, 1964
Figura 13. Ron Heron (Archigram), Projeto para uma Walking-City, 1964
Figura 14. Peter Cook (Archigram), Projeto para uma Instant-City, 1969
Figura 14. Peter Cook (Archigram), Projeto para uma Instant-City, 1969
Figura 15. Rogers e Piano, Beaubourg, 1977
Figura 15. Rogers e Piano, Beaubourg, 1977
Figura 16. Rogers e Piano, Detalhe dos tubos externos de circulação, Beaubourg
Figura 16. Rogers e Piano, Detalhe dos tubos externos de circulação, Beaubourg
Figura 17. Eiseman, Esquemas de "decomposição" para Casa III
Figura 17. Eiseman, Esquemas de “decomposição” para Casa III
Figura 18. Eiseman, Casa III, Lukerville, 1971
Figura 18. Eiseman, Casa III, Lukerville, 1971
Figura 19. Eiseman, Casa VI, Washington, 1975
Figura 19. Eiseman, Casa VI, Washington, 1975
Figura 20. Eiseman, Detalhe do interior da Casa VI
Figura 20. Eiseman, Detalhe do interior da Casa VI

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