1982

Apresentação

por Adauto Novaes

Há uma tradição, que se pode observar na grande maioria dos projetos culturais e políticos de intelectuais ou de grupos de intelectuais, que considera o poder do Estado no Brasil como o poder histórico por excelência. Esta concepção vai determinar, de uma maneira muito acentuada, não apenas o lugar do intelectual, mas a própria visão que ele tem de si mesmo, da sua função e da sua relação com a sociedade: o Estado realiza a história; o homem só é histórico na medida em que participa do Estado ou de um projeto de Estado.

Presos nas teias das concepções clássicas de um Estado universal e homogêneo, os autores de tais projetos de cultura sonham com a criação de um indivíduo que seja ao mesmo tempo a síntese de particularidade cultural com universalidade de seu discurso. Delírio cheio de consequências quando se sabe que tais teses sempre ganharam, ao longo de nossa história, força de palavras-de-ordem: o Estado, poder transcendente, não é apenas o lugar da obediência e da coesão da sociedade; mais que isso: torna-se o único lugar possível de realização do indivíduo. É lá que se manifesta a individualidade humana porque é lá que se atribui ao particular uma realidade e um valor universalmente reconhecidos. Ainda que não consigam produzir o mundo na sua materialidade, estas concepções o produzem na sua significação, e, nesse sentido, elas estão muito próximas – ou mais precisamente, são expressões de uma teologia laicizada: o Estado, como o “Espírito Absoluto”, é revelado pela Razão do discurso; o discurso racional passa a ser a verdade do Estado. Pouco importa que o sagrado, aqui, seja o povo ou nação. O que importa é que o Estado e o poder saem ganhando na sua “realidade substancial”. Povo e nação tornam-se momentos objetivos ou símbolos de uma ideia.

Essa razão discursiva vai atribuir aos intelectuais um lugar muito particular na história da cultura brasileira: o de funcionários da razão, especialistas da razão. Este lugar só foi possível a partir da constituição de um pensamento que separa sujeito e objeto, consciência e coisas, representação e fatos, o saber e o fazer fragmentando ainda mais o espaço social e político. Nessa divisão, o intelectual que fala “pelo Estado, para o Estado e a partir do Estado”, torna-se consciência da cultura, uma consciência que tem a posse da verdade do todo, esclarecedora e com pretensões de unir aquilo que a própria realidade política se encarrega de separar. É nessa esteira que surgem os projetos de Cultura Nacional Popular, investimento fantástico encarregado de construir a identidade cultural, a unidade social e ao mesmo tempo a ideia de legitimidade.

Como fazer uma pesquisa a partir de uma instituição do Estado, para falar do nacional-popular sem repor a relação de autoridade? Primeiro, não definir a cultura nacional-popular: tomar esse caminho levaria, certamente, a cair na armadilha do próprio conceito. Expressão de um “ideal” sem realidade objetiva que só existe empiricamente enquanto “sentido de discurso”, o nacional-popular é essa unidade que destrói as diferenças culturais e impede a identificação do individuo à sua classe, raça e etnia. Quando determinado projeto reconhece a realidade cultural do outro é para transformá-lo, de imediato, em símbolo da cultura nacional; quando se fala do mundo cultural do outro para afirmar que ele nada diz de si mesmo, porque agora ele é nacional. As diferentes culturas perdem o próprio fundamento e passam a ser vistas (ou regidas) como expressões exteriores que são os textos, projetos, intenções e práticas de uma cultura nacional. Essa transfiguração no nacional – pensada dessa maneira – torna invisível não apenas o mecanismo da identidade – que dá a ilusão de que as diferenças foram mantidas no momento em que todos estão ou podem estar presentes no nacional-popular – mas torna possível ainda a constituição de uma síntese da universidade política com a particularidade cultural – o nacionalismo. É nesse sentido que se deve entender a modernidade da cultura: o nacionalismo não deixa de fora o povo, que passa a participar da configuração do poder. Mais ainda – e esse é o grande triunfo da identidade cultural: transforma a multiplicidade dos desejos das diversas culturas – muitas vezes conscientes da sua individualidade e da sua história – num único desejo: o de participar do sentimento nacional. Operação diabólica e eficiente que faz com que o desejo recaia não sobre um objeto real – a própria cultura – mas sobre um sentimento externo e abstrato. Assim, nos projetos de cultura nacional-poputar, determinada cultura – a negra, por exemplo – perde a relação com o seu tempo e sua história; perde ao mesmo tempo o desejo de progresso consciente e voluntário; perde, enfim, o próprio ato de reveler-se a si mesmo e aos outros. Ganha-se, por outro lado, uma identidade cultural, construída de fragmentos de representações colados pela linguagem de interesse para produzir a “síntese” regulada e unificadora que torna cada vez mais imprópria a diferença, a distorção, o enigma e a revelação do novo. Apagam-se as diferenças culturais em favor da ficção de que todos somos iguais. Ampliam-se as zonas de sombra e silêncio sobre o que “deve” ser esquecido e sobre o que não deve: a música, a paisagem, o cheiro, a cozinha, os sonhos, tudo ganha seu lugar e sua forma na ordem racional do modelo. (Uma questão: até mesmo a transgressão ganha seu espaço? A crítica do nacional-popular a partir de uma instituição do Estado não seria parte dessa proposta?)

As pesquisas nos campos da Filosofia, Música, Literatura, Artes Plásticas, Teatro, Cinema e Televisão tomaram outro caminho e são tão diversas quantas são as áreas da cultura e a formação de cada autor. Mas todos partem de um solo comum: entender como tais conceitos foram sendo construídos na nossa história: nada propor, porque, de resto, seria contrapor um discurso a outro discurso: dessa maneira, estaríamos na mesma posição daqueles que se pretendia criticar, e contribuindo na incessante reposição da divisão dos que pensam e dos que fazem. Isso se deu não por obra da boa (ou má) consciência, mas por necessidade: o discurso da identidade cultural que nega a palavra àquele do qual se fala, da mesma forma nega a palavra a quem fala – entendendo por palavra o ato de revelar.

Assim, se os ensaios não fazem parte da construção do conceito de cultura nacional-popular; se também não fazem parte da história empírica que se limitaria a juntar mais alguns textos aos já existentes sobre o mesmo tema, qual seria então o lugar da pesquisa?

Ao situar a crítica a partir das intenções e práticas de determinados intelectuais em determinados momentos não muito distantes da história cultural brasileira, os pesquisadores estavam elegendo, como centro da discussão, a condição de ser intelectual num país de características tão peculiares como o nosso. Uma escolha ainda assim problemática: no lugar de pensar a cultura do outro, passar a limpo a própria história. Ao buscar um sentido para essa história, os pesquisadores estavam fazendo uma afirmação aparentemente banal mas muito importante no combate a certas tendências que insistem em circunscrever o político na política, o cultural na cultura, o governo nos governantes e o pensamento nos pensadores: estavam reconhecendo que todo homem que está no mundo pensa seu mundo. Os “não-intelectuais” expressam-se de formas diferenciais que, muitas vezes, escapam ao entendimento do intelectual. Mas pensam!