2012

Apologia grega à preguiça

por Francis Wolff

Resumo

Somente se atribuirmos um valor ao trabalho, a preguiça parece um vício. Caso contrário, a tal condenação moral não subsiste: a preguiça torna-se repouso, ócio, disponibilidade, independência, liberdade. Este é o caso no pensamento grego.

Os moralistas da Antiguidade clássica condenavam o trabalho porque só o viam como um mal físico, moral, político e metafísico: um mal necessário talvez, mas do qual era preciso tentar escapar. Para eles, o trabalho, por mais útil que pudesse parecer, era a base de toda sujeição.

Fazer apologia à preguiça no sentido grego significava fazer a lista dos motivos da desvalorização do trabalho. Podemos encontrar em Platão e Aristóteles muitas críticas ao trabalho. Dentre elas, a de que o trabalho impede que nos dediquemos à filosofia, à política (a serviço da Cidade) e a nós mesmos (ao nosso corpo ou à nossa alma).

Se hoje fazemos o elogio ao trabalho e à “transformação da natureza” pelo homem, é frequentemente no intuito de defender o produtivismo (capitalista ou socialista) e a acumulação de bens. Os moralistas modernos condenam a preguiça porque advogam em prol das virtudes ascéticas: a luta contra o prazer, o esforço contra si próprio e o sofrimento consentido. O trabalho, na visão destes, por mais penoso que seja, constitui a condição da liberdade.


Quando meu amigo Adauto me disse que o próximo ciclo seria sobre a preguiça, pensei inicialmente que era uma brincadeira. Como seria possível? Como um homem batalhador e trabalhador como ele, que poderia ter se aposentado há muito tempo para passar seus dias na praia de Ipanema, ou voltar a viver tranquilamente em sua Minas Gerais, relendo seu querido Paul Valéry, poderia propor um tema tão contrário à sua natureza?

Pensei tratar-se de um erro. Ele, tão virtuoso, não poderia ter proposto um ciclo sobre um vício, a preguiça, considerado até um pecado capital. Foi essa a minha primeira reação.

Após ter aceitado participar deste ciclo, por amizade, por amor ao Brasil e pelo prazer de também poder desfrutar de alguns dias na praia de Ipanema, minha segunda reação, passada a surpresa, foi de alegria. Poderia então preparar minha comunicação simplesmente… não fazendo nada. Seria, de fato, paradoxal trabalhar dia e noite a respeito da preguiça. É difícil preguiçar em relação ao trabalho; como é que se trabalha a respeito da preguiça? Preparava-me então para passar meus dias em Paris no mais estrito ócio a fim de poder curtir as praias cariocas e bebericar caipirinhas. Infelizmente, logo veio o desencanto. Percebi que Adauto, um bom amigo mas também um amigo astucioso, havia me armado uma cilada. Sua intenção era que eu abrisse este ciclo falando do início do pensamento ocidental, a saber, do pensamento grego antigo. Normal. Ora, não existe preguiça na Grécia. Não tive outra saída senão encara o trabalho, e com seriedade, para compreender por que os gregos não conheciam a preguiça. E é o que devo tentar explicar a vocês.

Quando digo que os gregos não conheciam a preguiça, isso não significa que fossem mais trabalhadores do que nós! Pelo contrário, eu diria! Não. Isso significa que, para eles, o gosto pelo trabalho não era uma virtude: portanto, o fato de não gostar de trabalhar nem querer trabalhar não era um vício. As virtudes e os vícios não são universais. Por exemplo, o voyeurismo é um vício — a menos que você esteja em uma sociedade de exibicionistas, onde os voyeurs são bem-vindos! Ocorre o mesmo com a preguiça. Nós a consideramos um vício porque acreditamos que o trabalho (o gosto pelo trabalho) seja uma virtude. Mas, em uma sociedade que visse o trabalho como uma calamidade, ou o gosto pelo trabalho como perversão, não poderíamos pensar que a preguiça poderia ser um vício. Acharíamos que ela é uma virtude ou, pelo menos, uma disposição sadia de caráter. Na verdade, até ignoraríamos a ideia da preguiça. O que restaria dessa repugnância ao trabalho, que denominamos preguiça, se não mais a condenássemos? Restariam apenas as emoções positivas: o gosto pelo repouso, por exemplo. E, de fato, por que preferir o movimento ao repouso? Restaria a propensão ao ócio. Certo. E por que escolher a excitação, em geral, vã? Aliás, seria preciso acreditar que somos indispensáveis para achar que o mundo necessita de nossa atividade. Amanhã, estaremos mortos e o mundo girará igualmente bem (ou igualmente mal) sem a nossa agitação. E, por fim, se não fizermos nada além de ir levando a vida, será que não estaremos mais disponíveis para as coisas realmente importantes: o amor, a amizade, a cultura de si, o divertimento, o desenvolvimento de nossas faculdades físicas e mentais? Finalmente: por que preferir a submissão ao trabalho diante da possibilidade de nada fazer, ou melhor, diante da liberdade de fazer o que bem nos aprouver?

Vocês me dirão: “Gostaríamos muito de poder não trabalhar! Mas é impossível. É preciso trabalhar, infelizmente!”. Pode ser. Mas o que entendemos por “é preciso trabalhar”? Não é por estarmos fadados a fazer alguma coisa que isso é bom! Por exemplo: é necessário morrer, é uma exigência da vida. Mas não somos obrigados a gostar disso! Ninguém faz da morte um valor em si. A morte é uma simples limitação da condição humana. Ela não é mais, talvez, do que uma lamentável fatalidade. Nunca um valor. O mesmo ocorre com o trabalho. Pode ser que seja necessário trabalhar, mas por que temos que, além disso, gostar de trabalhar? Por que devemos achar que isso é bom? Por que fazer a apologia do trabalho? E por que reprovar aqueles que se recusam a aceitar essa fatalidade? Por que devemos condenar a preguiça?

É PRECISO TRABALHAR?

Na realidade, a expressão “é preciso trabalhar” tem três sentidos, e esses três sentidos são independentes. Ela pode significar uma exigência social; uma necessidade natural; ou uma obrigação moral.

Comecemos examinando o primeiro ponto, a exigência social: parece-me que uma sociedade não pode funcionar sem que seus membros participem de uma maneira ou de outra da vida coletiva e da sobrevivência da coletividade. A título individual, cada um age assim para atender às próprias necessidades: é o que chamamos de emprego, sem o qual o indivíduo está condenado ao desemprego, à dependência, à mendicância e a todas as formas de exclusão social — a vergonha, a marginalidade, o banditismo ou a morte lenta. Trabalhar, como se diz, é “ganhar a vida”. Na escala mais global da sociedade, há o princípio geral, que constitui o pilar de todas as sociedades, mesmo as mais primitivas, da divisão do trabalho. Em vez de cada indivíduo se contentar em atender às suas próprias necessidades, em vez de, por exemplo (para retomar o raciocínio de Platão na República), cada qual fazer as próprias roupas a partir da lã das ovelhas, ou fabricar seus sapatos com o couro das vacas, ou construir a própria casa, ou comer os peixes que pesca, os legumes que cultiva e as frutas que colhe, existem os alfaiates, os sapateiros, os pedreiros, os pescadores e os agricultores. Entendemos que aquele que se recusa a participar do trabalho social (não falo dos infelizes que estão desempregados) é visto como antissocial, rebelde ou aproveitador. Em resumo, um preguiçoso. Isso parece legítimo, ao menos na medida em que as necessidades sociais estão claras, como as que Platão reconhece no texto mencionado anteriormente, que constituem, segundo ele, as quatro necessidades naturais: abrigar-se, vestir-se, calçar-se e alimentar-se. Nesse caso não há problema, a vida social tem suas exigências e, exceto quando escolhemos viver como Robinson em uma ilha deserta tentando sobreviver sozinho, é normal que cada um participe do trabalho socialmente necessário à subsistência de todos e da comunidade à qual ele pertence. O contrato moral entre o indivíduo e a sociedade i é uma espécie de contrato de troca: eu produzo um trabalho social (eu faço calçados ou faço a colheita de frutos) e, em troca, a sociedade me permite ter como me abrigar, me vestir, me calçar e me alimentar. Em outras palavras: de acordo com esse contrato implícito, o indivíduo deve trabalhar na proporção de suas capacidades e receber da sociedade na proporção de suas necessidades. Mas o que acontece se eu achar que as novas necessidades que a sociedade cria permanentemente são inúteis e descabidas? O que acontece se eu achar que o trabalho que a sociedade exige de mim é desproporcional em relação ao que ela me dá em troca? O que acontece se eu me recusar a trabalhar em benefício de uma sociedade para a qual eu contribuo muito mais com o meu trabalho do que ela me dá em troca? Posso ser verdadeiramente considerado um preguiçoso se me recusar a trabalhar em tais condições?

A isso se acrescente que a divisão do trabalho não é somente técnica: não se trata apenas de cada indivíduo especializar-se em uma tarefa de modo a facilitar o conjunto da produção. Na maior parte das sociedades, a divisão do trabalho é sobretudo social, como bem o sabiam os economistas clássicos. Não se trata simplesmente de uma especialização de tarefas, mas de uma distinção de classes sociais, ou seja, de reservar certos privilégios para certos homens excluindo outros. Bertrand Russell expressou essa questão com humor em seu Elogio ao ócio:

Há dois tipos de trabalho: o primeiro, alterar a posição de um corpo na ou próximo à superfície da Terra relativamente a outro corpo; o segundo, mandar outra pessoa fazê-lo. O primeiro tipo é desagradável e mal pago. O segundo é agradável e muito bem pago. O segundo tipo é capaz de extensão indefinida: há não somente aqueles que dão ordens, mas aqueles que dão conselhos sobre que ordens deveriam ser dadas[1].

Se tal for o caso, quem é o mais preguiçoso? Aquele que se recusa a ser mal remunerado para deslocar certa quantidade de matéria ou aquele que é bem pago para dar ordens? Ou mesmo aquele que é muito bem pago para não fazer nada além de dar duas ou três ordens de compra e venda de ações por telefone? Vemos, portanto, que a preguiça não é uma simples disposição de caráter: ela depende da noção que temos de trabalho e da organização social estabelecida. É preciso trabalhar, dizemos. Tudo bem. Mas que tipo de trabalho? E em que sociedade?

Passemos ao segundo sentido de “é preciso trabalhar”. Esse é mais existencial, mais metafísico. Acabamos de admitir que o trabalho é socialmente necessário. Mas por quê? Por que no podemos conceber uma sociedade humana sem alguma forma de trabalho? Por que o trabalho é humanamente necessário? Não poderíamos imaginar que os seres humanos conseguiriam viver, e até viver bem, talvez viver melhor, sem precisar trabalhar? Não é assim no caso de muitos animais? É verdade que há aqueles cuja condição de vida é pior do que a nossa. Vejam o elefante. Ele passa de 16 a vinte horas por dia se movimentando sem cessar para poder obter o alimento de que precisa. Caminhar para comer; caminhar sem cessar para comer sem cessar para alimentar sem cessar esse enorme corpo extremamente exigente. Comer para sobreviver e sobreviver para comer. Trabalhar para viver e viver para trabalhar. Que vida! Mal sobra tempo para dormir um pouco e para copular, excepcionalmente, durante alguns dias por ano. Copular para dar vida a outros elefantes que viverão para trabalhar e trabalharão para viver. Nenhum tempo para o ócio. Um elefante não pode se permitir ser preguiçoso. Preguiçoso, ele morre. Outros animais, porém, têm mais tempo. Os chimpanzés podem passar boa parte do dia se divertindo; os bonobos parecem ter tempo até para uma série de jogos eróticos cuja simples descrição em público me faria ruborizar. Isso sem falar dos “preguiçosos” que passam metade do tempo dormindo! No entanto, o animal que menos trabalhava talvez fosse o ser humano: o Homo sapiens. Na época do paleolítico, antes da invenção da agricultura, antes da sedentariedade das cidades, toda a economia fundamentava-se na caça, no extrativismo e no nomadismo. Em sua obra Age de pierre, âge d’abondance, Marshall Sahlins mostra que as sociedades de caçadores e extrativistas não são sociedades de carência, como em geral acreditamos, e sim sociedades de abundância. De fato, existem duas formas de abundância: podemos nos satisfazer produzindo muito ou desejando pouco. No último caso, não precisamos trabalhar muito porque temos poucas necessidades. Três ou quatro horas de trabalho por dia para satisfazer as suas necessidades, e o resto do tempo o homem pré-histórico sem dúvida ficava ocioso. De qualquer maneira, o que poderia fazer o homem da idade da pedra quando terminava suas atividades de caça e extrativismo? Nenhum livro para ler, nenhuma novela para assistir na TV. Podemos também pensar que o homem do paleolítico tinha pouco tempo para a preguiça, já que vivia constantemente ameaçado pelas feras ou pelas intempéries. Nenhuma ameaça, por outro lado, pesava sobre nossos ancestrais míticos, os primeiros homens segundo a Bíblia, na época do paraíso terrestre. O que Adão e Eva faziam? Nada. Não tinham necessidade nem de reproduzirem seus corpos pela alimentação nem de se reproduzirem entre si pela copulação. Nenhuma necessidade. Nenhum trabalho. Nada para fazer. Antes do pecado original, eles ainda não estavam condenados a “suar o rosto para comer o pão”. Além do Gênesis, numerosos mitos, em diversas civilizações, também imaginam outra condição humana, original ou final, na qual os seres humanos seriam desprovidos de necessidades ou poderiam satisfazê-las sem esforço — e portanto sem trabalho. Os homens não sentiriam nem fome, nem sede, nem frio, ou, supondo que sentissem fome e sede, a natureza ao redor colocaria, espontânea e imediatamente, à disposição deles água e vinho, carne e frutas, sem esforço. Uma eterna vida de ócio seria a verdadeira condição humana original. Ou talvez fosse a vida dos bem-aventurados após a ressurreição. Os preguiçosos não têm direito à salvação, mas os que se salvarem terão direito à preguiça. Na realidade, no paraíso, não existiria preguiça propriamente dita, já que não haveria necessidade de trabalhar. Ao contrário, o que denominamos preguiça seria qualificado de virtude. Seria uma qualidade suprema: a arte de despender o tempo da forma mais agradável, sem fazer nada. A arte de saber ser ocioso sem se entediar. De alguma forma, a arte da felicidade. Nem mais, nem menos.

Vemos que a condenação da preguiça supõe a aceitação da infeliz condição humana: aceitamos a ideia de que o homem é um ser de necessidades, que carece permanentemente de tudo para viver e que deve, para atender às suas necessidades, agir e transformar seu ambiente mediante esforço, pena e até sofrimento. O homem é um ser natural que não pode viver em sua própria condição natural sem transformar o ambiente que o circunda. Sua infeliz natureza interior exige que ele transforme, através do trabalho, a natureza exterior. Considerado desse ponto de vista, o preguiçoso não é um aproveitador, mas um doce sonhador, nostálgico do paraíso terrestre, quiçá um iluminado, um utópico, imaginando outra existência humana que não conheça o sofrimento. Ou, então, é um. otimista que concebe uma natureza generosa que nos daria espontaneamente abrigo (como para a ostra e o caramujo), a fim de nos poupar do trabalho de construirmos casas, que nos daria peles (como para a raposa ou a ovelha) de modo a nos poupar do trabalho de tecer a lã ou o algodão para nos agasalharmos, e que nos ofereceria frutas à vontade, que colheríamos sem esforço.

Vemos que o terceiro sentido, puramente moral, de “é preciso trabalhar” (“você tem que trabalhar, seu preguiçoso!”) supõe que tenhamos aceitado os dois sentidos anteriores. Temos de considerar legítimas as exigências da sociedade e o drama da condição humana expulsa do paraíso. Para fazer do trabalho um valor e da preguiça um vício é preciso aceitar a divisão social do trabalho e a condição infeliz do homem.

O CONCEITO DE TRABALHO

De fato, é preciso uma condição suplementar para pensarmos que a repugnância diante do trabalho é um vício. Para que a preguiça exista, é preciso que o trabalho exista. Refiro-me, aqui, ao conceito de trabalho. Dizer que o conceito de trabalho existe significa pensar que há certas atividades, bem particulares, que nós reagrupamos em uma mesma e única ideia, denominada trabalho, e outras que ficam excluídas dessa categoria. Tentemos, portanto, definir esse conceito de trabalho sem o qual não existe a preguiça. Vamos tentar defini-lo ao mesmo tempo em extensão (quais são as atividades que classificamos como trabalho) e em compreensão (quais são as condições do conceito de trabalho).

Primeira condição: o trabalho é uma ação. Nesse sentido ele se opõe ao repouso e ao ócio, ou seja, aos estados puramente passivos, mas ele se opõe também a todas as formas de contemplação: a contemplação estética diante de uma bela paisagem ou de uma obra de arte admirável, a meditação solitária, a oração coletiva, a reflexão metafísica, o conhecimento desinteressado, ou seja, o conhecimento destinado ao simples prazer de compreender, de satisfazer sua curiosidade ou de aprender. Todas essas atividades que os filósofos gregos colocavam acima de todas as outras não podem ser consideradas como trabalho.

A razão para tal é que o trabalho supõe uma segunda condição: é uma atividade penosa. Uma brincadeira que tem seu fundo de verdade diz: “O homem não foi feito para trabalhar, a prova é que o trabalho leva à fadiga”. Encontramos um argumento comparável em Aristóteles. A fadiga é o sinal de que a atividade exercida por um ser excede suas capacidades naturais. Um deus poderia pensar incessantemente sem se cansar. Mas um filósofo, mesmo que seu nome seja Aristóteles, acaba se cansando. O trabalho vai, portanto, além da fadiga, ele exige pena e, em geral, implica até sofrimento. Esse é justamente o sentido clássico da palavra “trabalho” até o século XVIII, tanto em francês como em português. O termo era empregado, ao menos em francês, para designar as dores do parto: dizíamos “uma mulher em trabalho de parto”. Etimologicamente, o vocábulo trabalho designava o tripalium, um instrumento de tortura que servia para punir os homens ou para confinar os animais ferozes. Nesse sentido, falaremos do trabalho do operário, do mineiro, do agricultor, mas hesitaremos em chamar de trabalho a atividade do comediante, do pintor, do cantor, do escritor, do poeta, do filósofo ou do cientista — mesmo que sejam essas as suas profissões, mesmo que vivam disso. Na realidade, eles não trabalham para viver, ao contrário, vivem para suas atividades. Voltaremos a tratar dessa questão.

Mas o trabalho não é apenas uma atividade penosa, é também uma atividade imposta. Existem atividades penosas que escolhemos livremente e que não somos forçados a exercer. Vejam os corpos suados nos ginásios e academias! Não é penoso correr sobre uma esteira rolante durante uma hora ou levantar pesos cem vezes seguidas? Entretanto, ninguém dirá que essas pessoas que sofrem e transpiram estão trabalhando. Em geral, pagam caro para sofrer assim três noites por semana. Não é trabalho porque elas esperam obter com esse esforço um maior bem-estar ou um corpo mais sadio! Há preguiçosos que adoram isso! Não podemos confundir “preguiça” com “indolência”.

Atividade penosa e imposta, o conceito de trabalho tem uma terceira condição: é uma atividade socialmente útil. Assim, lavar a louça em casa, lavar o carro no domingo, pegar o ônibus de manhã e à tarde, cuidar-se quando se está doente são atividades penosas, mas não são trabalhos propriamente ditos porque não são úteis à sociedade. Por outro lado, os que lavam a louça no restaurante, os que lavam o carro no posto de gasolina, ou que dirigem um ônibus, trabalham. A atividade que exercem é social. Ela obedece a essa espécie de contrato sobre o qual já falamos: prover certa quantidade de trabalho útil a fim de obter um meio para ganhar a vida. O que distingue fundamentalmente o trabalho de qualquer outra atividade é, portanto, sua finalidade, sua utilidade social. Alguns sociólogos distinguem três tipos de tempo: o tempo obrigatório (aquele que dedicamos a atividades socialmente produtivas), o tempo imposto (o que passamos nos transportes, fazendo compras, cozinhando, comendo, nos lavando ou dormindo) e o tempo livre, que é o que resta quando retiramos os dois anteriores. A preguiça só diz respeito ao tempo socialmente obrigatório. Alguns trabalhadores muito esforçados adoram passar uma hora no banho ou dez horas dormindo.

Definamos, então, finalmente, o trabalho como uma atividade imposta, socialmente útil, acompanhada de esforço e de pena.

Vemos que, para tal conceito ser pensável, seria preciso que pensássemos que todas as atividades socialmente úteis são comensuráveis entre si. Seria preciso pensar que o agricultor trabalha, mas também o operário, o artesão, o empregado doméstico, o engenheiro, o cozinheiro, o comerciante, o professor; precisaríamos admitir que todos trabalham pelas mesmas razões; mas que nem o estudante, por mais que ele se esforce, nem a dona de casa, por mais pesadas que sejam as suas tarefas, nem o rei, nem a corte, nem os que vivem de renda trabalham, independentemente de seu bem-estar ou de sua riqueza. Compreendemos por que e como esse conceito vai nascer no final do século XVIII. Compreendemos como e por que a invenção da preguiça está ligada ao nascimento do capitalismo.

NASCIMENTO DA PREGUIÇA

A preguiça está ligada a certo conceito moderno, o do trabalho. Ora, esse conceito vai nascer, no final do século XVIII, na interseção histórica de duas casualidades independentes. De um lado, uma velha tradição religiosa; de outro, uma invenção recente, a da economia política ligada ao nascimento do capitalismo.

De fato, foi preciso esperar a invenção da economia política, com Adam Smith, para que o conceito de trabalho servisse para explicar o funcionamento das sociedades. Em Adam Smith, pela primeira vez, esse conceito é utilizado para medir o valor, ou seja, a riqueza das sociedades. No primeiro livro de A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas[2], Adam Smith parte do princípio de que a única fonte de riqueza não é a terra, como postulavam os fisiocratas, nem o comércio, como postulavam os mercantilistas; é o trabalho humano, pois este cria a utilidade e atribui valor às coisas. Além disso, Smith chama de “valor de uso” das coisas a maneira pela qual elas respondem mais ou menos às necessidades dos homens, e “valor de troca” a quantidade de trabalho necessário para sua produção: “O valor de qualquer mercadoria para a pessoa que a possui e que não pretende usá-la ou consumi-la, ela própria, senão trocá-la por outros bens, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe dá condições de comprar”. O trabalho, portanto, é a medida real do valor permutável de toda mercadoria. Como Foucault demonstrou[3], antes de Smith (por exemplo, em Cantillon) já nos servíamos da quantidade de trabalho para mensurar o preço das coisas. Mas o valor de uso, quer dizer, a necessidade, finalmente, servia sempre como referência última e absoluta. Em Smith, a troca não está mais relacionada à necessidade, e a quantidade de trabalho torna-se uma unidade de medida absoluta. As riquezas não representam mais necessidades, desejos cristalizados, e sim trabalho. Smith, o primeiro a fazer isso, distingue a razão de troca (a necessidade) e a medida de capacidade de troca (a quantidade de trabalho). A invenção moderna do trabalho está, portanto, ligada à ideia de que toda a vida social, incluindo-se aí as trocas, pode ser entendida a partir de um padrão único, o trabalho; e é por isso que todos aqueles que participam da produção de uma mercadoria que pode ser trocada trabalham: o operário, o artesão, o engenheiro, o cozinheiro, mas também o comerciante que trabalha tornando a mercadoria disponível no mercado, o professor, o empregado doméstico e até mesmo o artista, a partir do momento em que vende sua força de trabalho em um mercado, o mercado de trabalho, onde ele vai ter também seu valor de troca. A invenção do trabalho está ligada também, como podemos constatar, à ideia de que ele é quantificável. O que conta no trabalho é o fato de ser uma medida universal. O trabalho torna-se pensável a partir do momento em que ele pode ser pensado universalmente, quer dizer, abstratamente, separado desta ou daquela atividade particular concreta. Deveríamos admitir que todo homem, independentemente do que faça, desde que isso seja socialmente útil, trabalha. Seria necessário então que o trabalho abstrato fosse também objeto de troca, sob a forma de um salário. O trabalho está relacionado a um mundo onde tudo pode ser comprado ou vendido, onde tudo é mercadoria, incluindo-se aí o próprio trabalho.

Para que o trabalho pudesse surgir na cena conceitual, foi preciso que a economia política o tomasse como um de seus fundamentos, o fundamento último que permitisse definir a sociedade e mesmo o homem em geral. Até esse momento, o homem social era definido ou de acordo com a tradição aristotélica, por suas capacidades de comunicação (a linguagem), permitindo-lhe trocar ideias ou argumentações com outros homens, ou de acordo com a tradição platônica, por suas carências, por suas necessidades.

A origem e o fundamento da vida social eram, então, ou o direito natural de viver com seus congêneres para poder se comunicar com eles; ou a necessidade natural de cooperar com os outros de modo a permutar os produtos necessários à subsistência de cada um. O homem era, então, em sua essência, ou um ser que dispunha do logos, capacidade social; ou, ao contrário, um ser incompleto, dependente dos outros e que, consequentemente, devia ser completado pela educação e ser regido contra suas próprias tendências.

Com a sociedade capitalista e a economia politica que é a tradução desta em conceitos, começa o tempo de um novo homem: o homem é, por essência, no trabalho. Ele se realiza mediante o trabalho. Ele adquire sua natureza própria transformando a natureza exterior. Compreendemos que, nessas condições, o verdadeiro rebelde não é mais o homem que recusa a vida no seio de uma sociedade bem policiada; não é mais aquele que recusa a vida política ou a educação cívica. Esses eram os rebeldes tradicionais, os traidores da essência da humanidade. Não; de agora em diante, o pior dos homens, o avesso da humanidade, é aquele que recusa essa nova essência do homem, o trabalho. É o preguiçoso: o farniente, o ocioso, o desocupado, o vagabundo, o nômade. É ele o verdadeiro parasita. É ele o inimigo.

Mas a preguiça, como o trabalho, vai se situar, ao mesmo tempo, na interseção de outra casualidade histórica, totalmente independente daquela que testemunhava o nascimento da economia política. Trata-se de uma tradição religiosa muito antiga, remontando aos primeiros Padres da Igreja, e principalmente a Santo Agostinho, que tinha uma maneira bem peculiar de definir a essência do homem, diferente também daquela da tradição grega antiga. Certa leitura do Gênesis, e principalmente do relato de Adão e Eva expulsos do paraíso terrestre, fazia do homem um ser fundamentalmente mau, intrinsecamente pecador, viciado desde o início pelo pecado original. De fato, de acordo com sua “antiga” natureza, aquela que ele tinha quando no paraíso, o homem havia sido criado à imagem de Deus. Mas, desde que na Terra, estava justificadamente condenado ao sofrimento. A essência do homem, separada de sua condição original, é a condição terrestre definida pela queda. A vida aqui embaixo é simplesmente um vale de lágrimas e os sofrimentos que o ser humano suporta (a dor do parto das mulheres, o padecer dos homens que sofrem diariamente, durante toda a vida, para simplesmente sobreviver) são justos. São esses sofrimentos que lhe permitem esperar a remissão de seus pecados. O pecado não é necessariamente um ato criminoso, ele é constitutivo da natureza carnal do homem. E o sofrimento é tudo o que a carne merece. Penitência. Expiação. Eis por que o trabalho, desta vez não mais no sentido moderno mas no sentido antigo e tradicional de pena e de sofrimento, está ligado, de acordo com a visão cristã, à essência do homem.

De um lado, a tradição religiosa definia o homem pelo sofrimento de sua condição terrestre. Glorificava o valor redentor do trabalho, concebido como pena. De outro lado, o capitalismo moderno se propôs a definir o homem como um ser social de produção. Glorifica o valor social do trabalho, concebido como fundamento de toda a riqueza. Na interseção dessas duas concepções, situa-se o conceito moderno do trabalho tal como nós o definimos: atividade ao mesmo tempo penosa e imposta (como propunha a tradição religiosa) e socialmente útil e universal (como proposta pela nova economia politica).

Por um lado, o preguiçoso é aquele que, contrariamente ao que exige a tradição religiosa ascética, se recusa a sofrer na carne e opta pelo divertimento, prazer, vida fácil, sem pressão sobre si, contra si próprio, contra sua própria natureza forçosamente viciosa. Por outro lado, o preguiçoso é aquele que, contrariamente ao que exige a nova ética capitalista, não faz nada socialmente útil e se recusa a assumir seu papel humano: o trabalho.

A FINALIDADE DAS APOLOGIAS AO TRABALHO

Ninguém soube descrever melhor que Max Weber[4] a nova moral oriunda da interseção do espírito empreendedor capitalista e de certo ascetismo cristão. É preciso trabalhar, trabalhar para produzir, produzir mais, produzir cada vez mais novas mercadorias, trabalhar para promover as trocas, a riqueza. É preciso ser rico, mas não para gastar, para satisfazer necessidades, criar novas necessidades cada vez mais vãs e vazias; não, pois o homem não é um ser de necessidade e menos ainda de prazer: essas necessidades e desejos devem ser limitados ao máximo.

É preciso trabalhar mais para produzir mais e criar mais riquezas, para economizar, centavo a centavo; acumular riquezas como prova do trabalho, quer dizer, dos esforços, das penas que foram necessários para juntá-las, acumulá-las, produzi-las. Essa é a razão pela qual a preguiça é não apenas um vício (a recusa do trabalho como pena e utilidade social), mas, pior, ela é considerada a mãe de todos os vícios. O ocioso dispõe, de fato, de todo o seu tempo livre para praticar todos os outros vícios (a luxúria, por exemplo): por outro lado, à medida que o trabalho ocupa todo o tempo do trabalhador, este não tem mais momentos livres para copular por prazer, mas apenas para assegurar suas funções reprodutivas. Ele não tem tempo de gastar seu dinheiro no jogo ou em diversões fúteis. Em resumo, o preguiçoso poderia usufruir de seu ócio para se entregar à perigosa cultura de si, ao passo que o trabalhador não somente é dotado das virtudes da tenacidade, como também tem gosto pelo esforço, sabe resistir ao prazer imediato, é contido, moderado etc.

Vamos, agora, antecipar uma objeção. Poderíamos pensar que a preguiça não foi inventada pelo encontro de certa tradição moralista cristã com o capitalismo; que ela sempre fez parte dos “pecados capitais”, desde os primórdios da Igreja e, pelo menos sob essa forma, desde São Tomás de Aquino. Mas o que chamamos de “os sete pecados capitais”? Não são, em absoluto, os pecados mais graves como o assassinato ou a blasfêmia, sim os vícios que constituem a causa psicológica de todos os atos pecaminosos. A lista é a seguinte: gula (gula); fornicatio (luxúria); avaritia (avareza); superbia (soberba); invidia (inveja); ira (ira); há por fim a acedia, que traduzimos erroneamente por “preguiça”. Mas a acídia não é, de modo algum, a preguiça no sentido moderno, tal como nós a definimos. É uma forma de vício, originalmente atribuída aos monges, definida como uma forma de depressão ocasionada pelo relaxamento da ascese”. É uma espécie de abatimento. A acídia é um mal da alma que se exprime pelo tédio, pelo afastamento das orações, da penitência e da leitura espiritual. Isso não tinha nada a ver com a recusa do trabalho, já que era sobretudo uma atitude viciosa que constituía um risco para os que não trabalhavam, os monges, que deviam dedicar todo o seu tempo à prece e à meditação. Foi somente quando os tempos modernos fizeram a apologia do trabalho e do trabalhador que passamos a entender a acídia como “preguiça”, tornando-a um pecado.

A ideia da preguiça nasce, portanto, desse encontro de uma moral ascética cristã e da ética do capitalismo. Como prova indireta, temos a mais bela crítica da apologia ao trabalho por Nietzsche no parágrafo 173 de Aurora. O texto se intitula “Os apologistas do trabalho”[5]Na glorificação do ‘trabalho’, nos infatigáveis discursos sobre a ‘bênção do trabalho’, vejo a mesma segunda intenção que nos elogios dos atos impessoais e de interesse geral: o temor de tudo o que é individual”. Nietzsche faz o diagnóstico de sua época, a grande época do desenvolvimento do capitalismo e da ideologia do trabalho. Ele faz o paralelo entre a apologia dos atos desinteressados (os “atos impessoais e de interesse geral”) e a apologia do trabalho. Para ele é o mesmo sintoma: todo indivíduo tem interesse em que os outros sejam desinteressados. Os que pregam o desinteresse têm interesse em que aqueles para quem pregam ajam de forma desinteressada por si próprios e, portanto, indo ao encontro do interesse daqueles que pregam o desinteresse. Da mesma forma, os que fazem a apologia do trabalho têm interesse em que os outros trabalhem. Subentendido: os que pregam para outros o amor ao trabalho têm interesse em que estes outros trabalhem para eles.

Nietzsche continua: “Agora nos damos realmente conta, perante o trabalho — isto é, dessa dura atividade da manhã à noite —, que essa é a melhor polícia, pois ela mantém cada um com rédeas curtas e se empenha vigorosamente em evitar o desenvolvimento da razão, dos desejos, do gosto da independência”. Eis a outra face da preguiça, segundo Nietzsche: o que os apologistas do trabalho entendem por preguiça não é mais do que outro nome, a outra face, do gosto pela independência. Se subtrairmos da preguiça suas conotações viciosas, conotações trazidas pelos discursos policiais sobre o amor ao trabalho, veremos que o que sobra é a vontade de desenvolvimento pessoal da razão e os desejos de cada um.

Nietzsche explica: “De fato, o trabalho usa a força nervosa em proporções extraordinárias e a subtrai à reflexão, à meditação, aos sonhos, aos desejos, ao amor e ao ódio, coloca sempre diante dos olhos um objetivo mesquinho e assegura satisfações fáceis e regulares”. Desta vez, dê tempo ao trabalhador, deixe-lhe tempo para preguiçar: verá que ele se entregará à reflexão, à meditação, aos sonhos, aos desejos, ao amor e ao ódio.

Mas eis que surge o perigo, como explica Nietzsche logo em seguida: “Assim, uma sociedade em que se trabalha sem cessar duramente terá maior segurança: e é a segurança que hoje se adora como divindade suprema”. Porém, observa Nietzsche, a esperança tem curta duração, pois são as próprias classes trabalhadoras que podem se tornar perigosas. “E aí está! ó horror! Justamente o ‘trabalhador’ que se tornou perigoso! Os ‘indivíduos perigosos’ formigam! E atrás deles está o perigo dos perigos — o individuum.”

Nietzsche estava certo. A renúncia ao trabalho é, sem dúvida, o pior inimigo do capitalismo. Mas viria a ser também o pior inimigo do socialismo e do comunismo: o stalinismo será ainda mais apologista do trabalho que o capitalismo, com seu culto exacerbado à quantidade de trabalho, à produtividade, ao rendimento — encarnado no sinistro stakhanovismo. Nietzsche evidentemente não poderia saber disso. Mas é como se o tivesse previsto, percebendo que essa apologia ao trabalho (em outras palavras, essa condenação da preguiça como mãe de todos os vícios) tem como inimigo o indivíduo rebelde, ou seja, o rebelde enquanto indivíduo, esteja ele insurgindo-se contra a exploração capitalista ou contra aquilo que se tornará o totalitarismo da comunidade socialista.

A APOLOGIA GREGA DA PREGUIÇA

Se nos voltarmos agora para a origem de nossa civilização ocidental, para a cultura da Atenas clássica do século V antes de Cristo, que ignorava tanto o modo de produção capitalista como a moral cristã, constataremos que os gregos ignoravam igualmente a condenação da preguiça e a apologia ao trabalho. Às vezes, dizemos que eles condenavam o trabalho. É verdade, pelo menos em parte. Mas somente em parte, pois vale acrescentar que eles não podiam realmente condenar o trabalho, pois ignoravam essa ideia.

Não existe, de fato, em grego um termo que possa traduzir a palavra “trabalho”. Existe a palavra grega ponein, que vem de ponos, pena, e que podemos traduzir por “se dar ao trabalho”, ter dificuldade, fatigar-se. Essa palavra designa todas as atividades que exigem um esforço penoso, ou seja, não necessariamente aquelas que dizem respeito às tarefas socialmente úteis. O aspecto penoso é de fato uma das determinações do conceito de trabalho, mas não é o trabalho.

Há outro verbo, ergazesthai (de erga, os campos), que designa as atividades agrícolas e também, por sinal, as atividades financeiras. De forma mais geral, significa se dedicar a uma atividade mediante a qual realizamos uma obra (ergon). É realmente uma das determinações possíveis do conceito de trabalho, mas não é trabalho.

Outras palavras estão associadas ao que nós chamamos de trabalho. A technè designa o know-how, a técnica, o que nós chamaríamos às vezes de métier, quando dizemos sobre alguém competente que ele “entende do métier”. Existe também demiourgos, aquele que trabalha em prol do público, o demos (o povo); em outras palavras, aquele que tem uma atividade social e não somente pessoal ou familiar: o médico, o carpinteiro, o ferreiro; de maneira mais geral, é aquele que exerce uma profissão manual, artesanal, produtiva (o sapateiro, o confeiteiro, o escultor). Há também os chernètes, que vivem do trabalho de suas mãos, o trabalho braçal; há também o banusos, operário, que designa de maneira mais geral os trabalhadores manuais (em geral, tem um sentido pejorativo). São trabalhadores, não são os trabalhadores no sentido moderno.

Conclusão sobre as questões de vocabulário: segundo nossa análise conceitual acima, o trabalho no sentido moderno do termo consiste na relação intrínseca entre duas ideias: a ideia de labuta (pena) e a ideia de atividade socialmente útil. Ora, não existe para os gregos nenhum termo que designe todas as atividades laboriosas socialmente úteis. Além disso, a ideia moderna remete à ideia de produção e é dotada de valor moral. Assim, constatamos que, para os gregos, as atividades produtivas, mesmo as socialmente úteis, não são moralmente valorizadas. Não existe nenhum termo que cubra todas as atividades sociais remuneradas. Não há nada que corresponda à ideia de um trabalho abstrato e universal. Nada tampouco que corresponda ao valor “trabalho”, ou seja, à glorificação do trabalho, nem, consequentemente, à desvalorização do ócio. Ocorre mesmo o contrário. Como salientado frequentemente nas línguas antigas, o termo positivo é aquele que designa a inatividade e o termo negativo é o que designa a atividade enfadonha. Scholein, em grego, que corresponde ao latim otium, designa o que podemos fazer quando não temos nada para fazer: o lazer. Ao contrário, a ascholia designa o fato de ser privado dessa liberdade (o de ascholia indica privação), de ter alguma coisa para fazer, de estar subjugado por uma tarefa, de ter espírito e corpo cerceados e, por assim dizer, escravos de uma atividade da qual não se pode escapar. Em latim, ascholia se tornará negotium, negação do otium, que nas línguas latinas modernas resultou em négoce. négoce é, portanto, desvalorizado, ao contrário do que vai ocorrer na convergência de uma certa moral ascética e do espírito do capitalismo. O negócio é tão desvalorizado na Antiguidade grega que é, na maior parte do tempo, delegado aos escravos. De fato, se numerosos escravos ficavam restritos às tarefas manuais, por exemplo nas minas, havia escravos banqueiros assim como havia escravos policiais. Nem as finanças nem a ordem pública eram atividades muito valorizadas, logo, eram relegadas aos escravos.

Claro, poderemos dizer justificadamente que os filósofos gregos podiam se permitir desprezar as atividades manuais pois se beneficiavam, indiretamente ao menos, do trabalho produtivo do regime escravocrata. É verdade. Ainda assim: existe, no pensamento grego em geral, e mais particularmente no pensamento dos filósofos clássicos, uma desvalorização de tudo o que chamamos trabalho. Por quê?

Existe, primeiramente, a oposição entre corpo e espírito. As atividades medíocres deformam o corpo e matam a alma. De tanto se dedicarem a atividades penosas, as almas relaxam, tornando-se tão vis quanto o corpo[6]. De fato, aquele que é obrigado a trabalhar sofre de dupla sujeição: ele está sujeito às necessidades da vida em comum, pois deve atender às exigências econômicas da cidade[7]; e está sujeito às suas próprias necessidades, pois deve assegurar sua sobrevivência e a de sua família. O trabalho impede a liberdade de espírito que seria necessária à virtude política[8]. Observamos, curiosamente, que, para os filósofos antigos como Aristóteles, a economia subjuga, ao passo que a política liberta. A economia é menosprezada porque diz respeito às necessidades, quer dizer, à vida no sentido animal do termo: a sobrevivência. A política é valorizada porque diz respeito aos princípios da boa vida, à vida no sentido verdadeiro do termo, no sentido propriamente humano: a vida justa, a vida feliz, e não a simples sobrevivência animal, a satisfação permanente das necessidades do corpo. Comer para viver, viver para comer. É essa a lei da economia. Isso é bom para os elefantes. A política, ao contrário, precisa da liberdade de espírito, da ausência de qualquer inquietude relacionada à manutenção do corpo, ela necessita portanto do prazer, scholè.

Não devemos pensar que as críticas que encontramos em Aristóteles só dizem respeito ao trabalho produtivo, ao trabalho manual. Existe um menosprezo igual, se não superior, em relação às atividades financeiras, ao trabalho dos ricos. Os que buscam o enriquecimento também não podem ser virtuosos. O espírito destes é tão escravo quanto o dos trabalhadores manuais. Pior. O vício do rico é sem fim: seu desejo é infinito pois nunca se é rico, rico de forma absoluta, já que sempre podemos ser ainda mais ricos. Querer ser rico é querer ser sempre mais rico. Sempre mais: é essa a lei da riqueza. É essa também a lei da produção. Ao menos, quando a atividade é limitada pela satisfação das necessidades, ela tem uma finalidade, um objetivo a ser atingido. Mas a atividade, ou ativismo, daquele que só procura se enriquecer não atingirá nunca seu objetivo, seu fim, seu termo.

O trabalho é então sinal de dependência: dependência em relação ao outro, dependência em relação à sociedade, dependência em relação às próprias necessidades naturais. E até mesmo em relação à matéria.

Em um texto célebre de A política[9], Aristóteles afirma que, se as lançadeiras e agulhas para tecer funcionassem sozinhas, não teríamos necessidade de trabalhadores. Em outras palavras, Aristóteles imagina a invenção do tear: ele imagina que a mecanização das tarefas liberaria os homens das atividades mecânicas — ou seja, o que chamamos de trabalho — e permitiria a todos acesso ao lazer (scholè), ao menos a todos aqueles capazes de usufruir do lazer. Na realidade, certos seres humanos não conseguem ser preguiçosos, se é que podemos colocar nesses termos. Que fariam eles se nada tivessem para fazer? Ficariam entediados como crianças. Deixar-se-iam levar pelo jogo, pela bebida, pela ruína e pelos vícios de todos os tipos.

Saber ser preguiçoso, ou seja, saber o que fazer quando não se tem nada para fazer, é uma arte, um luxo, um privilégio. É o privilégio dos espíritos livres. É a prerrogativa daquele cujo espírito é tão livre que não se entedia jamais. É a virtude daquele que pode dedicar seu tempo a servir à comunidade sem a ela se subjugar — é isso a política, pelo menos a verdadeira política para Aristóteles; ou é a virtude daqueles que podem se esforçar para compreender o mundo sem depender deste — é isso a filosofia, quer dizer, a verdadeira sabedoria. A política a serviço da Cidade e a filosofia a serviço do pensamento puro constituem o avesso do trabalho. Constituem, se quisermos colocar nesses termos, belas atividades preguiçosas.

CONCLUSÃO

Desse confronto entre o pensamento moderno, que condena a preguiça e valoriza o trabalho a ponto de torná-lo a condição da liberdade humana, e o pensamento antigo, que desvaloriza o trabalho a ponto de torná-lo a negação da liberdade e o avesso da condição propriamente humana, podemos tirar algumas conclusões. O que faz com que nossa civilização condene o ócio a ponto de transformá-lo em um vício chamado preguiça e que a civilização antiga exalte o ócio a ponto de torná-lo uma virtude chamada liberdade?

Há inicialmente, como já salientamos, o nascimento do capitalismo, que teve como consequência a ideia do trabalho abstrato e a universalidade do salário. O capitalismo foi sustentado por uma ideologia que valorizava o trabalho e condenava os que dele tentavam se furtar. Escravagismo antigo, ao contrário, foi sustentado por uma ideologia que desvalorizava o trabalho (bom para os escravos) e menosprezava aqueles fadados ao trabalho. A isso se acrescentava que, na Antiguidade, a pena, a fadiga, o sofrimento são sinais de atividade contra a natureza e contrárias à própria essência do homem. Inversamente, nos tempos modernos, o capitalismo instalou-se em países cristãos, onde uma tradição valorizava a pena, a fadiga, o sofrimento como sinais de atividades próprias à natureza pecaminosa do homem e sua condição terrestre. Dessa vez, é o preguiçoso que é duplamente menosprezado: ele tenta se esquivar das obrigações sociais e é escravo de sua disposição ao prazer imediato.

Além dessas razões históricas e ideológicas, existe uma oposição profunda entre dois tipos de pensamento. Os gregos valorizavam o repouso. Os modernos valorizam o movimento. É verdade tanto no plano da física como no da metafísica. Para a física moderna, fundada sobre o princípio da inércia, um corpo em movimento retilíneo uniforme permanecerá sempre assim a menos que seja impedido: o repouso não é, portanto, mais natural do que o movimento. Para a física antiga, ao contrário, o movimento se compreende por sua finalidade, que é o repouso. Se um corpo está em movimento é porque foi forçado a tal (quando lanço um objeto no ar, por exemplo) ou porque tende a reencontrar seu local natural, lá onde estará em repouso (quando um objeto pesado cai ou quando uma chama sobe, por exemplo). Metafisicamente, o repouso é, portanto, o estado natural de todo ser; e o movimento é o sinal de que ele não está em consonância com o que gostaria de ser, com o que deveria ser. É por isso que os deuses de Aristóteles não fazem nada. Eles não produzem nada. Logo, eles não criaram o mundo e nem se ocupam do mundo. Isso não significa que passem o tempo todo dormindo. Significa que dedicam suas vidas à mais elevada atividade, a única que está em consonância com sua natureza espiritual, o pensamento. O filósofo tenta fazer o mesmo: ele pensa o mundo, o que quer dizer que ele se esforça para se colocar à distância do mundo a fim de compreendê-lo. Seria isso a preguiça? É, em todo caso, uma forma particularmente positiva.

Além disso, os gregos valorizam o ato em oposição à potência. Nossa modernidade tem tendência a valorizar a potência, por exemplo, a juventude, a idade da vida em que tudo ainda é possível, em vez da idade madura, quando certas possibilidades já se realizaram e se transformaram em atos. Nossa modernidade valoriza a produção, a novidade, a mudança, a inovação, e o “sempre mais!” — em resumo, o trabalho, ao passo que a Antiguidade valorizava a reprodução, o estado definitivo, a estabilidade — em resumo, todas as atividades parcimoniosas em energia, mas que eles chamavam justamente de energeiai, quer dizer, atividades imutáveis nas quais os seres atualizavam suas potencialidades. Em suma, a modernidade valoriza o que temos a fazer, ao passo que a Antiguidade valoriza aquilo que podemos fazer quando não temos nada para fazer.

Eis, acredito, o motivo pelo qual não existe trabalho na Grécia, logo, não existe preguiça. Eis por que a apologia grega do ócio não é uma apologia do vício, mas da liberdade. Esse é o resultado do trabalho que realizei para este ciclo, ao invés de passar meu tempo dormindo, esperando para curtir as praias cariocas e bebericar caipirinhas. Mas será que posso chamar isso de trabalho? Não sei se foi uma atividade socialmente útil: sei que ela não foi nem produtiva, nem transformadora. Em todo caso, o que é certo é que não me causou nenhuma pena, foi puro prazer. Não acredito que possamos chamar isso de “trabalho”. É uma forma de trabalho livre que se parece muito com a preguiça grega.

E entendo melhor, agora, por que meu amigo Adauto decidiu dedicar este ciclo à preguiça. É porque ele também prefere este trabalho, que não é trabalho, ao ócio das praias. Como um filósofo grego, ele prefere o repouso ao movimento, quer dizer, o estado de estabilidade espiritual em lugar da agitação desordenada. Como Aristóteles, ele prefere o ato à potência, ele coloca os atos acima de todas as potências, ou seja, do poder. Como um homem da Antiguidade, ele prefere a lentidão à precipitação, o slow food ao fast food. Como homem livre, ele faz o que gosta. E é essa a forma de trabalho, quer dizer, de preguiça que ele e eu desejamos para todos.

Notas

  1. Bertrand Russell, Elogio ao ócio, traduzido, Lisboa: Sextante, 1932. 
  2. Adam Smith, A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas, São Paulo: Nova Cultural, 1988. 
  3. Michel Foucault, Les mots et les choses, Paris: Gallimard, 1966, p. 237. As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes. 
  4. Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
  5. Citações segundo tradução da edição da Editora Escala. 
  6. Aristóteles, Pol. III, 5, 1278 b 20; VII, 9, 1328 b 39 et 1329 a 19. 
  7. Idem, Pol. I, 13, 1260 a 34 
  8. Idem, Pol. VIII, 2, 1375 b 5 sq. 
  9. Idem, Pol. I, 4, 1253 b 32 sq. 

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