2002

Afetos, alienação e liberdade

por Paulo Vieira Neto

Resumo

O homem é apenas esforço por ser livre (enquanto Deus é efetivamente livre), diz Espinosa. Mas esse esforço não é nulo; ele adquire um enredo, uma história, que é o desenvolvimento concreto daquilo que somos e sentimos. É assim que a terceira parte da Ética oferece um roteiro para a liberdade a partir dos afetos. Paixões existem porque a alteridade faz parte da nossa natureza. E há dois sinais para compreendê-las: elas podem ser alegres, quando aumentam nosso poder de ação, ou tristes, quando o diminuem. Com isso Espinosa desmonta uma ilusão de interioridade (que ele chama de um império dentro do império da Natureza) arraigada no pensamento tradicional das paixões. Alegria e tristeza são nossa localização no mundo, não cabendo distinguir nelas uma acepção subjetiva de uma objetiva. O eu que se pensa separado do mundo é apenas sombra de sua situação. Paixões são múltiplas (amor, ódio, medo, esperança etc.), mas todas derivam das mais simples (desejo, alegria e tristeza) por modulações e variações. É o que lhes garante um conteúdo racional. E a boa descrição dos afetos encontra o bem e o mal como resultado, não como ponto de partida. Em suma, a Ética expõe o jogo de imagens dos afetos e faz a interpretação desse jogo, buscando entender como ele se produz numa circunstância concreta. O campo dos afetos projeta, ele próprio, essa dupla disposição das coisas. E distinguir a paixão da ação, assim como interpretar nossa relação com o mundo, é tornar visível tanto a liberdade quanto a alienação.


O tema da liberdade é o centro em torno do qual Espinosa escreve sua Ética. A Terceira Parte da Ética não é exceção. Seu enredo se revela uma investigação do sentido que pode ganhar a liberdade, do ponto de vista da natureza e da intensidade dos afetos, identificados por Espinosa como ações e paixões da alma. Todavia, se a liberdade subsiste como tema desde as partes anteriores da obra, isso não significa que tal tema não se recoloque, cada vez, com certo deslocamento capaz de ampliar e precisar sua significação original. Assim, diante da teoria dos afetos, a liberdade passa a ser vista como o impulso mais íntimo que, em todas as coisas, as dirige para a realização de sua essência. Para indicarmos isso basta comparar a definição de livre como aparece nas definições iniciais da Ética e a proposição sétima da Terceira Parte: “Diz-se livre e o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir […]”(I, D7 grifos nossos).[1] E ainda: “Toda coisa se esforça, enquanto está

em si, por perseverar no seu ser” (III, P6).

Ao contrapor os dois enunciados, reinterpretamos o último deles nos seguintes termos: toda coisa se esforça, enquanto está em si, por ser livre — interpretação que se justifica na medida em que a perseverança no ser, nos termos em que a entende Espinosa, puder ser entendida, precisamente, como a capacidade de determinar-se a existir e a agir por sua própria natureza (ou, nos termos da definição, “por si só”). Então, o primeiro passo a ser dado, para encontrar o alcance do papel que cabe à liberdade na Terceira Parte da Ética, está em determinar até que ponto aquilo que foi definido coincide com o descrito pela proposição. Com efeito, se houver coincidência, a liberdade pode estender-se a nós, na medida em que passa a ser o motor mais íntimo de todas as coisas. Mais ainda, ela já se mostrará para nós ainda no plano dos afetos, porque o que a proposição 6 descrevia era o princípio de todas as ações e o limite de todas as paixões da alma, como veremos adiante.

Mas não é tão simples rebater a proposição 6 sobre a definição de livre. Isso porque a cláusula “por si só é determinado a agir” sucede a uma cláusula bem mais restritiva: “Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza […]”. Esta antecedente, com muita clareza, parece ter por objeto a única coisa cuja existência é posta, desde logo, por sua natureza, a saber, a causa de si, ou a primeira causa de todas as coisas. Deus, portanto, seria o único objeto a preencher os requisitos da definição de livre ao pé da letra, não só porque se autodetermina, mas, de forma decisiva, porque não tem sua essência e existência por empréstimo de uma outra natureza. Nós, que por certo obedecemos à definição de modos, somos em outro e por outro concebidos.[2] Logo, estaríamos excluídos da definição de livre na medida em que, ainda que nos restasse algum espaço para a autodeterminação, não seríamos existentes em virtude de nossa natureza. Se fosse assim, a liberdade em nós só poderia ser pensada em proporção e por semelhança à liberdade de Deus, mas nunca em sentido unívoco. Ora, nada parece mais contrário ao espírito da filosofia de Espinosa que dizer a liberdade equivocamente em nós e em Deus. Em contrapartida poderíamos nos perguntar se o objeto da proposição 6 da Terceira Parte da Ética não seria precisamente o que pode ser tomado univocamente na liberdade de Deus e na nossa. Isso porque o esforço para  permanência no ser, de que falava a proposição 6, talvez fosse o que restava, para nós, do impulso que em Deus era desde sempre auto-suficiência e autodeterminação. A continuidade entre o objeto da definição e o da proposição consiste apenas no tipo de relação consigo mesmo que caracteriza o livre e que todas as coisas se esforçam por manter. Contudo fica em pé um último e mais difícil obstáculo. Essa continuidade entre a forma de manifestação da liberdade de Deus e a nossa ainda não prova uma identidade entre elas. Isso porque, pelo menos aparentemente, essas liberdades também guardam uma diferença: as demais coisas se esforçam para isso, enquanto o Livre, do qual falava a definição, efetivamente mantém esta auto-referência. Na diferença entre “esforçar-se por” e “manter” se desenharia novamente um abismo entre a liberdade de Deus e a nossa. Isso porque Deus realiza sua liberdade sem a possível interferência de outras coisas, nós, por outro lado, podemos apenas nos esforçar por isso, em resposta exatamente à interferência de outras coisas.

É esse talvez o motivo mais caro à teoria dos afetos como ela aparece na Ética. É essa teoria que fará a partilha entre sofrer interferência de outro ou se autodeterminar, se levamos em conta que os afetos podem ser ações ou paixões. Ações quando originados de ideias adequadas, ou, o que equivale, quando o agente é sua causa completa; paixões quando colocam seu objeto numa situação de passividade, uma vez que, nas paixões, o apaixonado não é causa completa dos efeitos em que se enreda. Para não perdermos de vista os termos do problema, devemos nos permitir uma descrição provisória das alternativas que estão em jogo. Denominamos liberdade, agora, à relação de uma coisa consigo mesma que não exclui o universo das suas interações com as outras coisas; a ausência de liberdade, ao contrário, será a falta de relação de uma coisa consigo mesma, por força da sua interação com outras coisas. Logo, neste último sentido, a ausência de liberdade passará a ser entendida, simultaneamente, como coação (determinação por um outro que é contra a natureza determinada), alienação (submissão a um outro) e servidão (perda da autonomia).

Afinal, o que define o contrário da liberdade é que nele não se age segundo a própria natureza. Então uma leitura permitida pelo enunciado da proposição 6, principalmente no que diz respeito às paixões, poderia associar, à ideia de esforço ou à necessidade de perseverança, a ameaça de não permanecer agindo segundo sua natureza. Contudo, mesmo nesse caso específico, o esforço (conatus) envolvido em se manter segundo a própria natureza não precisa significar imediatamente a efetividade da coação. Pelo contrário, veremos, o esforço já poderia ser a manifestação da mesma liberdade, e no mesmo sentido em que se afirmava na definição 7 da Primeira Parte da Ética. Se for assim, ambas as liberdades diriam respeito a uma forma de relação consigo mesmo que nega a alienação, mesmo nos casos em que esta última fosse concebível.

O que não deve esconder um deslocamento importante que se efetuou da Primeira à Terceira Partes da Ética. Na definição 7 da Primeira Parte, porque se refere ao livre em sentido absoluto, a sombra de uma relação alienada é completamente exorcizada, daí sua formulação categórica. Na proposição 6 da Terceira Parte a alienação é concebível, ainda que Espinosa esteja afirmando positivamente que, mesmo sob o horizonte da alienação, toda coisa ainda aponta, “enquanto está em si”, para sua liberdade. A natureza da alienação, sua possibilidade e sua relação com o campo dos afetos tornam-se então o grande problema. Ora, ainda que a proposição 6 não implique a realidade da ausência de liberdade, pelo menos de uma forma imediata, há, como pano de fundo, uma ameaça que parece pairar sobre os termos “esforço” e “perseverança”, reforçados pela condição restritiva expressa na cláusula “enquanto está em si”, sugerindo que alguma forma de servidão venha sendo antecipada pelo autor quando pensa no objeto da proposição 6. Sendo assim, estaria aberta definitivamente distância aparente entre o objeto desta proposição, que apenas se esforça pela sua liberdade, e o daquele que era próprio à definição 7, o efetivamente livre. Nesses termos a questão ganha corpo, agora orientada pelas noções de liberdade e de alienação: saber se a ameaça do fim da liberdade é real ou aparente, se ela é efetiva ou apenas imaginada, qual sua natureza e quais suas intensidades, será precisamente a intenção da Terceira Parte da Ética, ao examinar os afetos e, em particular, as paixões da alma.

Daí a importância da proposição 6. A alternativa entre liberdade e servidão, para Espinosa, está dada na forma precisa com que se efetiva, nelas, o esforço em perseverar no seu ser. Principalmente porque, para Espinosa, o esforço e a perseverança não terminam em repetições vazias daquilo que nós somos, eles adquirem um enredo, uma história, que é o desenvolvimento concreto da nossa liberdade e dos nossos afetos. Se todas as coisas já são imersas nas suas relações com o mundo, se ele não pode lhes ser subtraído desde o início, a relação consigo mesmo que definia a liberdade deveria ser igualmente uma relação com o mundo — incluídas aí todas aquelas relações com o mundo que se exprimem pelos afetos. Com efeito, as interações que temos com o mundo, para Espinosa, se expressam também como afetos, e, por força disso, a Terceira Parte da Ética, ao lidar com a natureza, com as diferenças e com as intensidades dos afetos, oferece uma série de roteiros para nossa liberdade. Mais ainda, aprender a pensar os afetos significa o mesmo que aprender a determinar todas as variações da liberdade, segundo estas formas de relação com o mundo que a encarnam.

Antes de passarmos à análise desse jogo que a liberdade instaura ao caracterizar nossas posições no mundo, cabe ainda esclarecer melhor as regiões do tabuleiro no qual ele é jogado. Como vimos, segundo Espinosa são duas as formas de expressão dos vínculos com o mundo a que chamamos de afetos: as ações e as paixões. Mas, do ponto de vista do seu possível nexo com a liberdade, havia uma diferença importante entre elas. A origem das ações da alma é uma ideia adequada ou, o que equivale, a alma é sua causa completa.[3] As ideias adequadas, por sua vez, consistem em uma produção autônoma do intelecto e, portanto, são marcadas pela autonomia necessária da sua produção. Tais ideias exprimem uma ação que determina completamente seu efeito a partir de si mesma, sem a possibilidade de desobedecer à definição 7. Da mesma forma, a totalidade das causas das ideias adequadas está no intelecto, motivo exato pelo qual elas sempre são adequadas a ele — e a nós também, na medida em que somos constituídos por um intelecto. Assim, para a produção das ideias adequa das e dos seus efeitos não se põe a alternativa de contradizer a definição do livre. Para as paixões, no entanto, resta sempre uma inadequação, porque nelas o agente é causa incompleta dos efeitos que se seguem de sua relação com o mundo.[4] Segundo Espinosa, as paixões, em particular, pressupõem uma interação entre pelo menos duas coisas diferentes, sob o signo da passividade de uma delas (a que se submete à paixão).[5] Tomemos alguns exemplos para pensar este caso. As relações envolvidas na paixão são essencialmente complexas: somos causa incompleta de seus efeitos, e, junto conosco, concorrem outras causas, experimentamos esta incompletude como uma interferência das causas concorrentes sobre nós. A paixão, assim, envolve uma relação especular na qual interagimos e sofremos uma reação do mundo, um contragolpe proporcional ao quanto não fomos capazes de determinar os efeitos de nossa atuação sobre o mundo. As ações, em contrapartida, não permitem que se projete a sombra de alguma forma de alienação, nelas somos inteiros e assim permanecemos, sem detrimento do fato de também elas serem interações com o mundo.

Logo, se há uma ameaça de alienação ela só pode estar no campo das paixões. Daqui, porém, não podemos concluir apressadamente que todas as paixões exprimem alguma forma de alienação. A esse respeito, um segundo cálculo deve ser feito. É verdade que Espinosa considera passiva aquela interação com o mundo na qual somos causa inadequada e incompleta de seus efeitos. É verdade, também, que esta incompletude retorna sobre nós, na referência que estabelecemos com as demais causas que completam as circunstâncias suficientes para a produção daqueles efeitos. Não se segue disso, no entanto, que as causas concorrentes sempre sejam tais que as experimentemos como uma negação da nossa natureza. Em outros termos: ainda que as paixões nos coloquem diante de uma alteridade, e envolvam uma posição desta alteridade como tal, elas não implicam que esta alteridade seja uma negação direta da nossa natureza. Para Espinosa a alteridade nem sempre é negativa, no contexto muito preciso em que vem pensada no interior das paixões da alma.

A partir destas considerações abre-se uma nova classificação, agora concernente às paixões. Entre elas, há as que nos direcionam a coisas que discordam da nossa natureza, e as que não o fazem. Entre as últimas, porque não podemos ser indiferentes àquilo que nos afeta (por definição), só resta a possibilidade de nos direcionar a coisas que concordam com nossa natureza.[6] Desta maneira, Espinosa estabelece dois sinais para a alteridade, o que afirma e o que nega nossa natureza, e dois sinais para as paixões: o que se refere a coisas que negam nossa natureza, nas paixões tristes, e o que pressupõe coisas que reafirmam nossa natureza, nas paixões felizes.[7]

A forma de se relacionar com o mundo expressa pela paixão, portanto, estabelece a opção entre a felicidade e a tristeza.

Retomemos agora o quadro geral da teoria dos afetos em sua correta localização. Primeiro temos as ideias, produções naturalmente autônomas do intelecto e necessariamente concordantes com nossa natureza. Depois as ações, as quais, por definição, afirmam nossa natureza, que é sua causa completa e suficiente. Seguem-se as paixões felizes, das quais não somos causa completa, mas que, todavia, nos remetem a coisas que concordam com nossa natureza. Por fim, temos as paixões tristes, nas quais se dá uma relação com algo que nega nossa natureza. É claro que, se há uma ameaça à “perseverança no ser”, ela só aparece neste último caso — porque é o único em que nos vemos ligados a algo que necessariamente nega nossa natureza.[8]

Contudo, estas considerações ainda são parciais. Indicamos, acima, que as paixões envolvem um contragolpe de algo sobre nossa natureza. É nesse retorno que a felicidade e a tristeza encontram seu significado acabado. Porque Espinosa define a tristeza como o sentimento de diminuição do nosso poder de ação, sob o impacto de nossa interação com um objeto, e, simetricamente, define a felicidade como o sentimento de aumento de nosso poder de ação, por um impulso diverso mas concordante com o que nos caracterizava.[9] Isso significa que a paixão é uma interação com o mundo, mas ela também se mostra como uma operação sobre nós mesmos, quando vem marcada pela felicidade ou pela tristeza. Resultado interessante porque parece indicar como Espinosa desmonta uma ilusão profundamente arraigada no pensamento tradicional sobre as paixões. Com respeito a isso, tanto a felicidade quanto a tristeza são igualmente capazes de sugerir a ilusão de algo separado do mundo sobre o que este último age — elas são a felicidade e a tristeza de alguém que, nelas, aparece apenas como espectador. Esta ilusão, a ilusão da interioridade, é explicável através da forma pela qual a paixão nos insere no mundo. O caminho que seguimos até aqui, até isolarmos as paixões tristes e felizes, nos ensina como isso acontece. A paixão apresenta um outro sob o signo de nossa passividade. Ela o faz primeiro por reação, pelo retorno do mundo sob a forma de um efeito que não fomos completamente capazes de produzir, depois pela mensuração desse efeito diante da concordância ou discordância para com a nossa natureza. Os sentimentos associados ao segundo passo, a tristeza e a felicidade compreendidas a partir da comparação entre a natureza de algo e a nossa, serão a matriz da ilusão de um foco imaginário (a nossa natureza pensada como um império dentro do império da Natureza) que venha, desta distância assim construída, relacionar-se com este mundo como um espectador fora do palco, que aplaude o que lha agrada ou censura o que lhe desagrada desta posição deslocada do mundo. Por outro lado, observaria Espinosa, as nossas paixões só podem ser por estarmos no mundo, e não poderia haver indício maior de estarmos realmente mergulhados nele, sem possibilidade de exílio. O ego formado pela paixão, o eu como interioridade, desloca-se irremediavelmente para um espaço imaginário, ainda que desmentido, todavia, pela própria paixão.

Aceito isso, nossa análise nos conduzirá à necessidade de um cuidado muito especial. Ao cedermos à tentação de designar como objetivas a felicidade e a tristeza, pensadas como encontro com o mundo, e em contrapartida, como subjetivas a felicidade e a tristeza sentidas em nós, perderemos de vista o fato de Espinosa entender essas duas descrições como rigorosamente coincidentes. O traçado das primeiras e das últimas delineia a mesma coisa, e a variação na forma de desenhá-las não tem fundamento in re. Nas nossas descrições variamos do subjetivo ao objetivo como um artifício de linguagem. Outorgar a esses pontos de vista algo mais que isso seria uma concessão excessiva à imagem de um eu fora do mundo ou heterogêneo a ele de alguma forma. Isto é: a felicidade e a tristeza em nós são nossa localização no mundo, não cabendo distinguir, nelas, uma acepção subjetiva de uma objetiva.[10] Portanto, o segundo passo da constituição do sinal das paixões, o de tomá-las sob a forma de um sentimento em nós, não deve permitir que nossa análise proceda à ruptura da circunstância na qual se produzem as paixões: o jogo no qual nós e o mundo já nos misturamos desde sempre, numa interação inescapável. O eu que julga sofrer as paixões, pensando-se em separado do mundo, é apenas uma sombra de sua situação. Esse deslocamento, no sentido em que Espinosa pensa as paixões da alma, envolve a dissolução do par objetivo—subjetivo na classificação dos afetos, por força de dois expedientes, seja a recusa a pensar a paixão como algo que ocorre em um eu destacado do mundo, seja a demonstração da rigorosa coincidência e identidade do que aparece como subjetivo e como objetivo no campo aberto pela paixão. Assim, a felicidade é, de forma simultânea, o sinal da concordância do mundo com a minha natureza, sentida como um aumento no meu poder de ação, e a tristeza, o sinal da discordância, acompanhado do sentimento de diminuição daquele poder. E como as paixões podem ser, elas também, tristes ou felizes, toda paixão assim qualificada sinaliza o acordo ou o desacordo com o mundo, ao mesmo tempo que se manifesta como sentimento de poder ou de perda de poder.

Se estas considerações resumem como Espinosa parece distribuir as paixões pelos seus sinais, cabe agora perceber como ele as distribui por sua natureza e pela sua diferenciação interna. Por certo, as paixões se diferenciam por natureza, tanto assim que é perfeitamente possível para a Terceira Parte da Ética oferecer definições diversas de cada uma das principais paixões. No entanto, sua diferença de natureza não implica que elas já não sejam efeitos que sempre envolvem como causa pelo menos uma e a mesma natureza determinada (a do apaixonado). De fato, as paixões também são formas de nosso esforço em perseverar em nossa natureza, modulações de nosso conatus. Mas é necessário esclarecer melhor o que pode ser a permanência de nossa natureza, por trás das paixões. Na Primeira Parte da Ética, Espinosa caracterizava naturezas como a nossa de modos, isto é, todas as coisas que, na sua constituição essencial, remetem a uma alteridade.[11] Isso significa, para estas coisas, que sua concepção já exige sua situação, que sua permanência é permanência entre outros. Logo, ao dizermos dessas coisas que elas permanecem em si, estamos implicando também, e necessariamente, sua posição entre as demais, na ordem da Natureza. Isso era o que significava não poder destacar o eu do mundo, ou estabelecer alguma heterogeneidade entre eles. Some-se a isso a coloração de atividade com a qual Espinosa irá retratar a natureza das coisas. Sua natureza é sua essência em ação, de onde o fato de serem essencialmente situadas significar, igualmente, que toda coisa está inserida em um tecido de relações que garante ao mesmo tempo sua identidade e sua variação, ao longo do enredo das suas interações com o mundo. O que vale para cada homem concreto na singularidade de sua existência e das paixões que é capaz de experimentar.[12]

A paixão, portanto, modula a essência do apaixonado, ela é uma variação da maneira como esta essência se realiza ao longo das suas situações concretas. Exemplo acabado disso é o desejo, que vem definido por Espinosa nos seguintes termos: “O desejo (cupiditas) é apropria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer nela verificado” (III, D. AF. 1, grifos nossos).

O desejo é “[…] a própria essência […] enquanto[…]“, isto é, a essência situada por um afeto. O mecanismo desta situação já estava descrito desde o escólio à proposição 9 da Terceira Parte, como esforço em permanecer na sua natureza:

Este esforço, enquanto se refere apenas à alma, chama-se vontade, mas, quando se refere ao mesmo tempo à alma e ao corpo, chama-se apetite. O apetite não é senão a própria essência do homem, da natureza da qual se segue necessariamente o que serve para sua conservação[…] (III, P9 S, grifos nossos).

Logo, o desejo e as demais paixões consistem numa modificação de nossa natureza em uma circunstância determinada. Ele é a nossa essência no ato de se situar com relação a outras naturezas. Daí, por extensão, que as variações de natureza das paixões o sejam, também, da nossa própria natureza. A proposição 7 da Terceira Parte da Ética esclarece, categoricamente, que o esforço em permanecer na sua natureza é, para uma coisa, sua própria essência atual. Não estranhemos, no entanto, esta duplicação aparente de nossa natureza — de um lado ela parece ser ingrediente do afeto, de outro parece ser seu resultado. Mas se a concebemos como produção interna de diversidade, não podemos mais pensá-la como reposição mecânica de uma identidade. Logo o apetite e o desejo, como as demais paixões, não são mais que as formas pelas quais o esforço em permanecer na nossa natureza (o conatus), enquanto se vê afetado pelo mundo, reconstitui esta mesma natureza segundo sua nova posição. Nossa natureza, pelos afetos, adquire o enredo da sua existência.

A trajetória dos afetos, bem como sua essência, é o conteúdo desse enredo. Então, o amor, a inclinação, a estima, mas também o ódio, o medo, a esperança, e assim por diante, são nomes para uma série determinada de modulações toleradas pela nossa natureza, e retornam sobre ela redefinindo-a na sua condição variante. O esforço de Espinosa em fornecer as definições de uma parte da série das paixões e dos demais afetos nos ensina o expediente pelo qual podemos julgar estas alterações e determinar-lhes o nome e o significado.

Toda definição de um afeto mobiliza uma articulação entre três termos, no mínimo, que enumeraremos adiante:

  1. a imagem de um objeto, ou seja, a forma pela qual aquele que é afetado vê seu afeto,
  1. a natureza do afetado, pela mensuração com a qual o afeto se distribui entre os afetos tristes e felizes,
  2. a comoção na natureza do afetado, que o leva a rearticular sua própria natureza e sua relação com o mundo.

Três elementos também presentes na sua definição geral, que apresentamos abaixo, indicando pelos números a presença dos elementos em questão:

Um afeto, chamado paixão da alma (animi pathema), é (1) uma ideia confusa pela qual a alma afirma (2) a força de existir, maior ou menor que antes, do seu corpo ou de uma parte deste, e (3) pela presença do qual a alma é determinada a pensar tal coisa de preferência a tal outra (E3 DEE GEN., numeração nossa).

É claro, nessa definição geral, que sua particularização nas definições específicas exige que o autor recorra às situações nas quais surge tal ou tal paixão — isso porque a definição de uma paixão é, no limite, a descrição desta circunstância do apaixonado.

Além disso, é preciso uma certa correção no grau de generalidade que as definições de paixões podem atingir. Na medida em que as naturezas são singulares, as situações e as paixões também o são. No caso das definições dos afetos, como fornecidas na Terceira Parte da Ética, temos que encará-las como indicações para a classificação de uma paixão determinada, desta paixão, entre as paixões que recebem, todas, os nomes de amor, ódio, e assim por diante. Mas as paixões, efetivamente, são este amor, este ódio, este favor ou esta indignação que, na sua singularidade, pertencem a uma natureza única e determinada, a minha, por exemplo. Encontrar um nome para uma paixão, portanto, significa identificá-la a um ti_po, compreendê-la, no entanto, exige ir além disso e vê-la na singularidade e na individualidade de sua manifestação. A correção da generalidade, na descrição das paixões, enfrenta um problema. Determinar sua singularidade exige a visão clara e imediata de todas as interações em que uma natureza singular está imersa. Esta visão de totalidade nem sempre é alcançada. Por isso, as definições genéricas das paixões são dadas de forma tal que podemos pensai, através delas, a contextura de paixões derivadas. De fato, boa parcela da Terceira Parte da Ética se dedica a estabelecer os mecanismos pelos quais fazemos o cálculo desta trama. O resultado último desses mecanismos de interferência recíproca deve ser a singularidade de cada paixão que efetivamente sentimos, que é tão diferente daquelas que cabem às outras naturezas quanto a nossa natureza também o é: “Um afeto qualquer de cada indivíduo difere do afeto de outro tanto como a essência de um difere da essência do outro” (m, P57).

A resultante final do composto de todas as paixões é expressão da essência daquilo que as sofre. Mas esta totalidade é alcançada de duas formas, pela ideia desta essência (o que será desenvolvido na Quinta Parte da Ética) ou pela imagem que sua interação com o mundo lhe impõe. O amor de alguém, o ódio de alguém, é deste alguém na medida em que é singular. Mas como podemos falar sobre esta singularidade? Na Terceira Parte da Ética a estratégia consiste, ainda, em classificar as paixões e permitir, pela sua soma, entendida como mistura que muda a natureza dos ingredientes, o cálculo de suas interações.

As paixões, como pensadas na Terceira Parte, não possuem uma natureza corpuscular, mas ondulatória. É mais correto interpretá-las pelo movimento do todo que pelo das partes. Assim, elas se interpenetram para formar uma nova totalidade, todas as suas ressonâncias abalam o todo, e a ele estão necessariamente referidas. Quando alguém ama é toda sua natureza que ama, quando alguém odeia é toda sua natureza que odeia, quando o amor e o ódio se misturam, produzem uma terceira paixão cuja natureza já difere de ambos, mas que afeta também o todo da natureza do apaixonado. Esta explicação ondulatória das paixões permite a Espinosa declinar as paixões mais complexas a partir das paixões mais simples, e elevar sua análise a situações cada vez mais detalhadas e a descrições cada vez mais vivas dos efeitos das paixões. A exigência para que este procedimento realmente descreva, no entanto, está em não romper a relação que a paixão exprime com a totalidade de uma natureza e, ao mesmo tempo, com o mundo. Vejamos como isso acontece no caso de uma paixão complexa (o temor):

“O temor (timor) é o desejo de evitar, por um menor, um mal maior do qual temos medo.” (III, D. AF. 39).

Que remete às definições do desejo (que vimos acima) e do medo:

“O medo (metus) é uma tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura, do resultado da qual duvidamos numa certa medida.” (iii, D. AF. 13).

Que remete, por sua vez, à definição da tristeza:

“A tristeza (tristitia) é a passagem do homem de uma perfeição maior a uma perfeição menor.” (III, D. AF. 3).

Desta maneira o temor é uma tristeza voltada sob si mesma duas vezes, uma pelo desejo de um mal menor, que, por ser desejo de um mal, já indica sua referência à diminuição de perfeição que caracteriza a tristeza; outra pelo medo, que é em si mesmo uma tristeza. Mas isso não quer dizer que o temor resulte numa tristeza duas vezes maior que aquela que sentiríamos se seu objeto fosse realizado. Quer dizer apenas que a tristeza mudou de natureza duas vezes, por força de situações que a modificaram internamente. Em primeiro lugar porque a tristeza própria ao medo tem a ver com um evento futuro, visto como ameaçador. O simples sentimento desse evento (mesmo que ele jamais aconteça) é uma diminuição do nosso poder de ação, ou um signo dela. O temor duplica este objeto: agora propõe um outro, um mal menor que parece desejável diante do objeto do nosso medo anterior. Mas este desejo ainda é o desejo de um mal, que só encontra justificativa na possibilidade de um pior.[13] A descrição, por sua vez, seria tanto mais viva quanto mais determinados os objetos do desejo, medo e da tristeza que constituem a paixão. Passada a limpo a definição do temor, o que resta, para a correta compreensão desta paixão, é o esquema geral da sua produção: há o medo de um mal maior, há o medo de um mal menor, há a comparação entre o mal maior e o mal menor, por fim, deste confronto, seguido da opinião de que o mal menor exclui a possibilidade do mal maior, nasce o desejo pelo menor. Por trás da narração da história segundo a qual o temor se produziu está o mecanismo de articulação dos afetos que constituiu o temor. Em consequência, a questão central para compreendermos como a Ética descreve os afetos está vinculada à necessidade de determinar como os afetos complexos se constituem.

Antes de irmos adiante na caracterização da forma pela qual a Terceira Parte da Ética retrata os afetos, cabem algumas considerações sobre este esforço de descrição ele próprio. A rigor, desenvolveremos algumas considerações sobre o que Espinosa havia dito no escólio à proposição 59 da Terceira Parte da Ética. O autor assume que as paixões se manifestam juntas, uma reverberando na outra e conjugando sua natureza “como as ondas do mar agitadas por ventos contrários” P59 S). Assume também
que cada uma delas, em sua efetividade, difere tanto das outras quanto aquela natureza submetida às paixões difere das outras. Admite ainda que as paixões podem ser tão diferentes quanto os objetos que as causam (razão de variedade que se soma à anterior). Nesse contexto fica claro que a definição do afeto em espécie permite indicar o mecanismo geral da sua produção, e permite a construção de um vocabulário pelo qual podemos relatar os afetos, ou seja, compartilhar a compreensão das diversas formas por meio das quais interagimos com o mundo. Há, e Espinosa o indica, um sem número de afetos inominados — como já havia para Descartes, no Tratado das Paixões da Alma. Mais ainda: no limite, toda paixão efetiva corresponderia a uma paixão inominada, porque envolve a totalidade das interações de uma natureza singular com o mundo. Porém, nada disso implica que os afetos sejam, de alguma forma, irracionais, ou ainda, que eles envolvam, de direito, alguma obscuridade e confusão. A descrição da Terceira Parte da Ética indica que a redução dos afetos aos seus elementos fundamentais (o desejo, a alegria e a tristeza), acompanhada de uma análise de como as suas interferências recíprocas vão construindo outros afetos, isto é, variando sua natureza, basta para fazer-nos compreender o que há de mais importante com relação aos afetos.

Nem por isso deixamos de perceber que a melhor forma de expor uma paixão, por exemplo, é a mais circunstanciada, e é o que qualquer leitor percebe quando, em vez de deparar com a definição de uma paixão, encontra-se diante da história detalhada dos eventos simultâneos a ela (como no teatro as paixões podem ser apresentadas sem menção de seu nome ou do sentimento de alguém, apenas no contexto da ação e do enredo). Inversão interessante de um certo senso comum que tomaria como privilegiada uma descrição subjetiva das paixões — embora, por certo, Espinosa nem sequer esteja considerando tal conceito de subjetividade. O fato, no entanto, é que elas podem ser compreendidas e compartilhadas pela linguagem, pela representação teatral (seja esta ou não a intenção do teatro), pela literatura, pela retórica, pela política e pela ética. Aos olhos de Espinosa isso lhes garante, contra uma longa tradição, certo conteúdo racional.

Em segundo lugar, a boa maneira de apresentar uma paixão, de acordo com o espírito da Terceira Parte da Ética, não deixa margem para a possibilidade de as coisas não ocorrerem como efetivamente o fazem. Quem odeia não tem a opção de não odiar, quem ama não tem a opção de não amar, e os afetos têm menos a ver com uma deliberação quanto mais têm a ver com uma circunstância concreta. Por fim, a boa descrição de um afeto encontra o bem e o mal como resultados, mas não como ponto de partida. Achamos uma coisa boa ou má porque a desejamos ou rejeitamos, mas não a desejamos ou rejeitamos porque a achamos boa ou má. Esta segunda formulação toma o efeito pela causa. Logo, o bem e o mal, no que diz respeito ao seu papel na nossa interação com o mundo, sucedem as paixões, inversão importante quando se trata de separar Espinosa, por exemplo, da tradição estóica.

Feitas estas considerações laterais, retornemos ao ponto: como se compõem as paixões complexas? Contentar-nos-emos em enumerar os princípios gerais desta composição, esquematicamente, para depois extrairmos deles as consequências que nos levarão à compreensão da liberdade que está implícita nisso tudo.

Ei-los:

  1. Se um afeto foi simultâneo a algum outro eles estarão associados (III, p14) .
  2. Se imaginarmos um objeto, justapondo a esta sua imagem uma outra, seguida de um afeto, estendemos este afeto, também, à primeira imagem (III, p15 c).
  1. Se uma imagem, à qual está associada um afeto, é imaginada como semelhante a outra imagem, estende-se a este segundo afeto que dizia respeito ao primeiro (III, p16).
  2. Paixões contraditórias, por semelhança entre as imagens a elas associadas, podem ser associadas em cada uma das imagens, sem se anular e sem contradição (III, p17).
  3. A posição no tempo (passada, futura ou presente), da imagem que causa o afeto, não o diminui nem o suspende (III, p18).

Contiguidade (1, 2) e semelhança (3,4) — estes, independentemente do tempo (5) ou da contrariedade de efeitos (4), são os princípios da composição das paixões. A possibilidade de associação é tão aberta que podemos (segundo o princípio 4) odiar e amar a mesma coisa ao mesmo tempo, sem que cada característica destas paixões, na paixão resultante, diminua ou se anule. As regras de composição dos afetos, portanto, se caracterizariam pela completa arbitrariedade, pela mais absoluta possibilidade de combinar qualquer afeto, qualquer imagem, com qualquer outro afeto, não fosse o fato de os afetos se darem a partir de uma natureza determinada, que é afetada com eles. É a determinação desta natureza que limita a possibilidade de combinação dos afetos e das imagens: não podemos nos afetar com coisas com as quais não nos relacionamos, com coisas que não imaginamos, que estão fora da região das nossas interações possíveis. Da mesma forma, é a história destas interações que determina até onde podemos imaginar e, de forma mais precisa, associarafetos. Os princípios 1 a 5 pensados em geral, apenas asseguram a arbitrariedade dos afetos e da imaginação. Contudo, regulados pela ideia de uma natureza determinada, submetida a uma certa história das suas relações com o mundo, elas indicam apenas nosso enorme poder, que contudo é limitado, de reagrupar nossas imagens e experiências sem com isso ultrapassá-las. Então, dois expedientes estão envolvidos no processo de descrever a composição dos afetos. O primeiro está em observar o processo de associação, meramente sintático, que chamaremos de jogo das imagens, jogo pelo qual elas sobrepõem-se, interferem umas nas outras e formam novas imagens de uma natureza distinta, mas aparentada às suas fontes. O segundo está em emendar o processo observado, referindo-o novamente a um processo cujo fio condutor não é a simples associação, mas a causalidade imanente e cuja pedra de toque são as noções de totalidade, de ordem e sobretudo de situação, como originadas por esse fundo causal. O primeiro movimento deixa surgir a arbitrariedade, o segundo a reinterpreta tentando remetê-la às condições causais concretas que permitiram e que limitaram o jogo arbitrário das imagens.

Esse diagnóstico sobre o jogo das imagens já se encontra em várias outras passagens da obra de Espinosa. Talvez o autor não tenha produzido tantas páginas ao descrevê-lo quanto no Tratado Teológico-Político, sobretudo nos momentos em que examina os jogos de imagens nas profecias. A urgência de tal tarefa neste caso é máxima, porque a correta interpretação das Sagradas Escrituras se faz pela limitação à possibilidade de associar arbitrariamente, isto é, pela semelhança e pela contiguidade, as imagens proféticas ali presentes. Assim, pelo menos reza o Tratado Teológico Político, no diagnóstico segundo o qual Espinosa procura as razões para a variedade das imagens proféticas:

As variações com respeito à imaginação consistem em que se o profeta era elegante, também percebia a mente de Deus em estilo elegante, se era confuso, confusamente, e isso é aplicável a todas as revelações que se representavam através de imagens, isto é, se o profeta era camponês as imagens eram de gado, e assim por diante, se militar, de chefes e exército e se, por fim, era cortesão, as imagens eram de solo régio e de coisas que tais (TTP II, AD., p. 100).[14]

Proliferação que, no entanto, seguia um princípio:

De onde se segue que estes signos foram dados segundo a opinião e a capacidade de cada profeta, de tal maneira que o signo que avalizava sua profecia podia não convencer em absoluto a algum outro, imbuído de outras opiniões. Por este motivo os signos eram distintos para cada profeta, como o era também, segundo dissemos, sua própria revelação, porque variava de acordo com a disposição de seu temperamento corporal, e de sua imaginação, segundo as opiniões que tivesse adotado (TTP 2, p. 99).

Ora, o expediente pelo qual interpretamos as Sagradas Escrituras e suas imagens repete-se ao interpretarmos os jogos das imagens:

assim como o método de interpretar a natureza consiste primeiramente em elaborar uma história natural e em extrair dela, como de dados seguros, as definições das coisas naturais, assim também, para interpretar a Escritura é necessário esboçar uma história verídica e deduzir dela, como de dados e princípios certos, a mente dos seus autores, como uma consequência lógica (TIT 7, p. 193).

A emenda a esse jogo é uma interpretação; todavia, o que assegurava o direito à interpretação? Se as possíveis associações entre coisas fossem apenas regidas pela semelhança e pela contiguidade, não haveria jamais como assegurar este direito. As interpretações poderiam ser tão arbitrárias quanto seu objeto ou, o que é mais plausível, a própria noção de arbitrariedade perderia todo significado. Espinosa, desde a Primeira Parte da Ética, já opunha, à combinatória que caracterizava a associação por contiguidade, e por semelhança, o nexo causal, isto é, a causalidade pensada como produção imanente do efeito. No fio desse nexo se estabelece a ordem total da Natureza, isto é, a disposição seletiva que exclui a indiferença pelas relações arbitrárias (desprovidas de razão).

É claro que o jogo das imagens permite uma forma de relacionarmos as coisas com um esquadro diferente daquele que nos fornece a causalidade imanente, tanto quanto a associação arbitrária de imagens embaralhava a leitura das Sagradas Escrituras. Todavia, aos olhos de Espinosa, o fato de todas as coisas se esforçarem por permanecer na sua natureza, e a ideia de Natureza como uma ordem que concede a totalidade às naturezas, garante o direito de procurar, aquém do jogo de imagens, a razão pela qual ele se produziu nesta sua circunstância concreta. A singularidade na disposição das imagens que efetivamente são imaginadas e a limitação que sempre está presente ao lado de sua arbitrariedade denunciam que era esta, e não outra, a forma pela qual as coisas tinham que acontecer.

Voltemos à Terceira Parte da Ética. Ali também a possibilidade da proliferação arbitrária dos nossos afetos indicava a necessidade de uma situação a partir da qual pudéssemos emendar esta multiplicação e descobrir-lhe as causas. Todavia, desde o início do texto, esta possibilidade estava contida no esforço em perseverar na nossa própria natureza, causa primeira de todos os afetos. Da mesma forma, a aparente possibilidade desta abertura já estava desmentida desde que tomássemos o termo “natureza” como a ação de uma essência singular dada em ato, se reconhecêssemos que os afetos reais são sempre este afeto, e que cada afeto é tão singular quanto aquele que é afetado. Por trás da aparente arbitrariedade dos afetos adivinhamos então uma natureza singular na sua relação concreta com o universo das suas interações. Pelo menos em baixo-relevo, algo da natureza sujeita às paixões permanece determinando a natureza de sua história passional, sobretudo quando esta história envolve as paixões felizes.

Então, finalmente, podemos ensaiar uma volta ao problema central da nossa investigação. Como os afetos podem exprimir liberdade ou servidão? Ora, do ponto de vista emendado e corrigido em que Espinosa pensa os afetos, começa a ganhar visibilidade a nossa liberdade e sua relação com a possibilidade da alienação. Para tanto foi necessário, de forma ainda esquemática, perceber como Espinosa explicava a gênese dos afetos, desde os elementares (felicidade, desejo, tristeza) até os mais complexos. As razões que se encontram nesta gênese são suficientes para situá-la, ela própria, com relação à liberdade e à alienação que ela pode implicar. Recolham-se os resultados da estratégia da Terceira Parte da Ética ao expor a constituição do campo dos afetos: de um lado a série de associações arbitrárias, próprias ao jogo das imagens que correspondem aos afetos, de outro a emenda constante desse jogo, que a Terceira Parte realiza simultaneamente a esta exposição. Naquele as imagens simulam leis de associação, que na verdade são expressões da contiguidade e da semelhança, nesta remete-se ao mesmo jogo e estas mesmas leis aparentes à sua circunstância na ordem causal da sua produção. O campo dos afetos, ele próprio, projeta, indiferentemente, estas duas disposições das coisas — ao mesmo tempo que permite a correção de uma pela outra, tarefa constante de quem analisa esse campo. Mas há uma diferença de pontos de vista naquelas duas disposições. A que é própria ao jogo das imagens associa as imagens externamente uma à outra por coordenação. A que é própria à sua emenda recorre às totalidades que são cada afeto, à sua singularidade e à sua posição na ordem do mundo, da qual os afetos jamais se destacaram. É esta diferença de ponto de vista que explica o fato de, diante da proposição 6 da Terceira Parte, ser plausível interpretar os termos “esforço”, “perseverança no seu ser”, e “enquanto está em si” como implicando a ameaça dos seus contrários.

Podemos agora tentar determinar, de forma mais precisa, que lugares, para Espinosa, ocupam a liberdade e a alienação, diante do campo dos afetos. O primeiro deles, vimos na nossa análise, parece ser o lugar da possibilidade. Ela podia ser pensada, com relação aos afetos, porque os jogos de imagens permitiam uma arbitrariedade aparentemente ilimitada — e esta aparência logo se transformaria na impressão de que o mundo poderia ser diferente segundo um número indeterminado de variações. Ora, quando Espinosa emenda a noção de possibilidade, ele trata de mostrar que esta última não é ilimitada nem indeterminada, que ela depende de circunstâncias, e que a aceitação de uma possibilidade em aberto significa, apenas, o desconhecimento das circunstâncias que realmente determinam o evento considerado aberto. A emenda da noção de possibilidade a denuncia como uma privação. Ao lado desta denúncia, que vinha sendo desenvolvida por Espinosa desde a Primeira Parte da Ética, fica claro que o autor não pretenderá encontrar a liberdade e a alienação, também, a partir do ato de deliberar — só faz sentido falar em deliberação diante de uma alternativa possível. O resultado da análise da constituição dos afetos, segundo Espinosa, leva a um resultado deceptivo para quem pretende encontrar a liberdade e a alienação a partir dos conceitos de possibilidade e de deliberação.

O segundo lugar poderia ser aquele aberto pela perspectiva subjetiva ou pela perspectiva objetiva sugeridas pelo campo dos afetos. Nos dois casos, para tentar explicar a liberdade, segundo estas alternativas, bastaria determinar como centro dos afetos, e das nossas relações com o mundo, um destes pólos. Mas a análise dos afetos, como levada a cabo por Espinosa, dissolve, justamente, estas duas polaridades. A concepção de afeto emendada já nos coloca imersos no mundo, e já entende o mundo como presente em nós e em nossa relação. Portanto temos nesse caso um segundo resultado deceptivo. Desta vez para quem pretende encontrar a. liberdade rompendo a totalidade que é a pertinência ao mundo, ou duplicando o ponto de vista com o qual enfrenta este mesmo mundo. Um lugar fora do mundo só pode ser imaginário — porque se constrói pela associação arbitrária dos afetos sem poder levar em consideração a tarefa de remeter esta associação à circunstância que limita esta arbitrariedade e a recondiciona no mundo sempre dado. Logo, tanto este lugar quanto o mundo compreendido como oposição ou supressão dele são denunciados por Espinosa como ilusões.

Por fim, o lugar em que a análise dos afetos nos deixa procurar a liberdade e a alienação está nos próprios afetos, tomados no sentido emendado que lhes convém, a partir da estratégia da Terceira Parte da Ética. Lugar inesperado para quem procurava a liberdade e a alienação além ou aquém da nossa relação concreta com o mundo. Mais surpreendente ainda para as tradições que punham a liberdade em alguma forma de aquiescência contemplativa. A liberdade e a alienação, nesse caso, passam a ser, respectivamente, vínculo e desvinculação com nossa situação concreta. Este resultado, que parece ser aquele a que Espinosa pode nos conduzir ainda na Terceira Parte da Ética, não se apresenta, contudo, sob a forma trivial da aceitação pura e simples do mundo. A própria análise dos afetos os mostrava como ação e como paixão, como atividade e como ausência de atividade. Aceitar que nisso reside nossa liberdade exige saber distinguir entre os momentos em que agimos e em que não agimos.

Ora, tal distinção, segundo o que vimos acima, implica encontrarmos nossa ação como determinada. E nem sempre é fácil ou imediato distinguir a ação da inação, pelo menos no campo afetivo. Como os afetos concretos são singulares, as questões que esta distinção irá colocar também o são. Além disso, o que talvez seja o principal resultado da caracterização dos afetos como feito por Espinosa, não há um lugar fora do campo dos afetos de onde eles possam ser julgados. Assim, a avaliação da natureza e da intensidade dos afetos não pressupõe sua suspensão nem um ponto de vista externo do qual eles possam ser avaliados. É certo que o campo dos afetos se distribui em uma região na qual há uma concordância com o intelecto e numa região em que esse acordo não acontece. Vimos isso ao reconhecer a distinção espinosana entre as ações, que correspondem a efeitos de ideias adequadas, e às paixões, que são efeitos de ideias inadequadas. Porém, esta distinção apenas estende o parentesco do intelecto com as ações, a rigor, ela vincula necessariamente a produção intelectual à ação efetiva numa interação com o mundo. Não há nesse caso uma separação entre o plano da produção intelectual e o da ação, o que impede de pensarmos o intelecto como uma instância externa às ações, que forneceria de longe o padrão para seu julgamento. Da mesma forma, se permanecem as paixões como possibilidade de desvinculação com o plano da produção intelectual, a natureza das paixões ainda se deixa reconduzir, por definição, àquilo que acontece no plano da ação, porque elas também são formas do esforço pelo qual uma natureza tenta permanecer em si mesma, ainda que imersa no mundo. À alienação resta o estatuto de inação, de falha e de ilusão — o que não diminui o seu perigo, apenas aponta para a tarefa constante de repensá-la. Distinguir a paixão da ação, interpretar nossa relação com o mundo e efetivamente determiná-la, eis o horizonte no qual se torna visível a liberdade (mas também a alienação) quando se trata de pensar a natureza e a intensidade dos afetos. A liberdade, até onde pode ser desentranhada pela Terceira Parte da Ética, consiste no trabalho constante de recuperar as condições da ação concreta e singular que nos define no interior das nossas interações com o mundo. Agora, talvez, o conceito de liberdade tenha sido preparado o suficiente para se dirigir à sua utilização política e ética. Isso, no entanto, será feito, respectivamente, na Quarta e na Quinta partes da Ética.

 

[1] Por brevidade seguiremos a convenção de citar as passagens da Ética indicando primeiro a parte a que a citação se refere, com algarismos romanos (assim, i significa Primeira Parte, II a Segunda e assim por diante). Por fim, os textos que compõem esta obra têm estatuto diferenciado pela função que o autor lhes emprestou, cujos modelos mais próximos estão nos tratados de geometria, de que foram tirados também a estruturação do texto e os nomes das partes heterogêneas que o constituem. Assim, citaremos as proposições como P, seguidas do seu número, as definições COMO D, e em especial as definições das afecções, que estão no final da Terceira Parte da Ética, COMO D. AF., e a definição genérica dos afetos como D. GEN. Por fim, quando se trata de um escólio comentando uma proposição ou de um corolário desenvolvendo seus resultados, citaremos a proposição e seu número, indicando-os com s. para escólio e c. para corolário. Todas estas citações estão referidas à tradução da Ética contida em Espinosa, em “Os Pensadores”, São Paulo, Abril, 2 ed., 1983, salvo indicação em contrário. A primeira destas indicações em contrário está em que, diferentemente do que consta nesta tradução, usaremos a palavra “afetos” no lugar de “afecções”.

[2] Cf EI, D5 e nota 11.

[3] Cf EIII, P3.

[4] Cf EIII, Dl, D2 e P3.

[5] Cf EIII, P1.

[6] Cf EIII, D3.

[7] Cf EIII, P11 S.

[8] Observe-se aqui que o que concorda com a nossa natureza não precisa ser a coisa ela mesma, o objeto real da paixão, mas sua imagem, ou, o que equivale, a relação que estabelecemos com a coisa.

[9] III, P11S.

[10] A este respeito, conferir com Ill, P3 S. Este escólio aponta para o fato de que, embora o vocabulário da análise dos afetos possa tomar uma coloração subjetiva, esta será apenas uma forma de narrar a natureza da paixão, escolhida porque o foco da investigação se centraliza na nossa alma. Mas há uma outra estratégia de descrição, implícita na própria percepção da paixão, que corrige a unilateralidade desta forma de falar

[11] Cf I, D5: “Por modo entendo o que existe noutra coisa pela qual também é concebido”

[12] Observe-se que, a rigor, a Terceira Parte da Ética tem seu foco na natureza humana, por mais que algumas das suas considerações digam respeito às coisas em geral. É por isso que, nesta parte da Ética, Espinosa irá alternar uma argumentação que diz respeito à natureza das coisas em geral com uma que especificamente diz respeito ao homem. Nestes momentos, o autor se permitirá recorrer às relações entre o corpo e a alma humanos, e suas descrições das paixões poderão ser compartilhadas como exemplos do que acontece conosco.

[13] Se nos lembrarmos do uso que esta paixão encontrava nas filosofias políticas da época, ou na teologia (o temor a Deus é o princípio da sabedoria […]), perceberemos o tom ácido desta descrição do temor.

[14] Citamos o Tratado Teológico-Político pela sua tradução espanhola efetuada por Atilano Dominguez, Alianza, Madri, 1986.

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